(Ser cético não é simplesmente duvidar de tudo)
“A desgraça de Dom Quixote não era suas fantasias, mas o ceticismo de Sancho Pança”
Kafka
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Uma bela noite de verão, há uns vinte anos, estavam minha
defunta mãe e a patroinha no quartinho da primeira, conversando sobre qualquer
frivolidade, enquanto eu deveria estar falando de futebol ou carros com meu
padrinho. Repentinamente, o grito agudo tão característico das mulheres
amedrontadas, como se fosse o karaokê de uma ópera. O primeiro pensamento é o
que valeu: barata.
No quarto de minha falecida mãe, dentre outras mistiqueiras,
havia várias borboletas penduradas na parede, daquelas em tamanho natural. Belo
dia e ela pergunta à consorte: “tô louca ou as anteninhas daquela borboleta
estão se mexendo?”. Sim, estavam. Podia ser qualquer coisa: o vento, a projeção
de uma sombra, um milagre... Mas não, era uma barata colocada por detrás do
enfeite, com apenas suas sórdidas anteninhas aparecendo. Daí para frente, uma
curiosa demonstração de como a seleção natural adaptou o ser humano a soltar
gritos para provocar um susto em seu suposto adversário.
Minha verve sarcástica aflorou: não deve ser borboleta, nem
barata. Deve ser uma fada encantada, no meio de todos esses incensos e
cogumelos. A minha mãe fez a cara de canarinho pistola típica dela quando via
suas convicções desafiadas, e admoestou pelo aspecto prático da situação:
aniquile esse demônio. É óbvio que minha descrença nos esoterismos diversos me
permitia tal “desrespeito”, mas eu ainda não era um descrente completo em
qualquer metafísica. Isso veio com o tempo.
O que não veio com o tempo foi a resolução de uma certa
confusão com o termo ceticismo. Isso porque se dizer cético é meio polissêmico,
o que leva a significados meio destoantes, como achar que céticos são ateus,
que céticos não creem em nada, que céticos duvidam de qualquer coisa, que
cético é um descrente de tudo. Não é assim e eu gosto de prestar
esclarecimentos, e, por isso, vamos lá.
Começo do começo: o que é o ceticismo?
Na acepção mais pura da palavra, é uma escola filosófica que
coloca em questão a possibilidade do conhecimento humano, ou seja, se é
possível a nós alcançar qualquer coisa que deva receber o nome de verdade. Como
verdade, devemos entender a capacidade de correspondência entre o que
observamos e a maneira como o descrevemos, ainda que não traduzamos isso em
palavras. A origem da palavra está em skepsis, termo grego que significa
“investigação”. Isso significa que o ceticismo filosófico entende que é preciso
ir aos fatos e investigá-los para extrair deles alguma verdade.
Onde isso resulta na descrença na capacidade de se
atingir a verdade?
Especialmente na quantidade de variáveis que influencia na
relação com o conhecimento. Quando olhamos para uma realidade simples,
percebemos que há um conjunto tão grande de fatores que lhe dizem respeito que
acabamos por constatar que ela é complexa. E, nessa complexidade, já não há
caminhos unívocos para fornecer respostas.
Certo. Mas quando surgiu essa história na filosofia?
Evidentemente, as ideias raramente surgem de uma só vez, ou
mesmo uma só vez. Faz parte do próprio espírito da filosofia colocar os objetos
que investiga em questão. Entretanto, a sistematização dessa corrente de
pensamento vem de Pirro e outros coetâneos, no período helenístico da filosofia
grega, coetâneos à tríade Sócrates-Platão-Aristóteles, e tinha como objetivo
maior a descoberta dos caminhos da eudaimonia, a felicidade calcada na
paz de espírito. Os céticos são filósofos que estão na corte de Alexandre Magno
e observam o mundo sob as mais diferentes perspectivas, com respostas
igualmente válidas, mesmo que diametralmente opostas. Concluem, portanto, que é
impossível conhecer e que a felicidade consiste em manter o juízo suspenso, sem
se matar por causa disso.
Se o ceticismo original era filosófico, então deveria haver
uma ortodoxia no seu pensamento. Quais são os princípios metodológicos dos
céticos?
Em sua concepção helenística, o ciclo cético tem três
etapas. Ele começa com o conflito de ideias que ocorre quando nos vemos
defrontados com um problema qualquer, que inclui não considerar nenhuma das
hipóteses como verdadeira prima facie. Essa é a epoché. Em
seguida, vem o momento dos questionamentos, em que são sopesadas as
alternativas disponíveis e verificadas quais são as mais plausíveis. É a zétesis.
Por fim, a tranquilidade de espírito seja qual for o resultado, se a verdade
foi atingida ao não, que recebe o nome de ataraxia, a imperturbabilidade
de espírito com a conclusão.
E acabamos por aí? Não vem mais nada posteriormente?
Vem, e como vem. Nem dá para listar todos, então vou falar
mui rapidamente de três: Husserl, Hume e Descartes, em ordem inversa
cronologicamente. Husserl incluiu a époche na sua fenomenologia,
sob um aspecto de remover da consciência seus prejulgamentos sobre o fenômeno
que visa investigar, em uma tentativa de entrar em contato psicologicamente
“limpo” em um estudo. Hume, por sua vez, tem um ceticismo
quase absoluto, a ponto de duvidar até mesmo do princípio da razão
suficiente, ao afirmar que não há nexo causal em toda e qualquer
inferência, pelo fato de que a observação de fenômenos nos leva a constatar
hábitos, e não necessidade lógica. Por fim, Descartes inicia o Racionalismo com
um processo de evidência, síntese, análise e enumeração para dirimir as dúvidas
sistemáticas, que sempre devem ser apresentadas quando um conhecimento
qualquer não se apresente claro e evidente.
E o que seria essa tal dúvida sistemática?
É um princípio filosófico que reza ser a dúvida diante da
verdade uma maneira de chegar a ela mesma. Não se trata do duvidar por duvidar,
para ser chato e impertinente, mas para evitar que um conhecimento falso se
consolide. Se não duvidamos daquilo que julgamos conhecer, nunca poderemos dar
uma certidão de validade a esse conhecimento. Descartes não é radical na
impossibilidade de se atingir a verdade, mas na maneira como podemos ser
enganados pela nossa falta de defrontação com verdades tidas como absolutas.
Por que há filósofos que pensam desse jeito?
Porque, de fato, é muito difícil de estabelecer verdades
absolutas. A própria observação do mundo ao nosso redor nos dá ideia de como
podemos ser iludidos pelos nossos sentidos. Esteja eu no começo da rua, e você
no final. Veremos o ciclista que bambeia e cai no meio dela cada um de sua
maneira, e nenhum dos dois conterá a perspectiva completa.
Muito bem. Falamos de filosofia em um sentido mais
acadêmico até agora. E o que é o ceticismo de uma maneira mais coloquial?
Quando nos defrontamos com alguma coisa que não fechamos
veredito sobre sua validade ou não, temos em nós gerada uma dúvida. Por este
motivo, o ceticismo no vernáculo passa mais a impressão de uma desconfiança com
relação às coisas que nos apresentam do que de uma dúvida sistemática.
E qual é a consequência disso?
É que duvidar por duvidar não é uma forma de ceticismo que
faça sentido na acepção pura da palavra, mas acabamos entendendo que
desconfiança e ceticismo são sinônimos. Quando falamos que alguma pessoa é
cética, geralmente associamos o adjetivo a descrença, o que não é uma
correspondência real com o que temos.
Mesmo com um erro no sentido original, é ilícito usar o
termo coloquialmente?
Não, até mesmo porque a linguagem é histórica. Se ela mudar
de forma a consagrar o ceticismo como sinônimo de desconfiança ou outra coisa
qualquer, restará a nós aprender a fazer as distinções adequadamente. E mais:
um desconfiado duvida, e sendo assim, não está de todo errado dizer que ele é
um cético. A chave aqui é não embaralhar os sentidos.
Existe um contrário de ceticismo?
Em uma oposição direta, é o dogmatismo. Esta escola pensa
que a verdade absoluta é possível e é atingível pelo intelecto humano, razão
pela qual a busca por essa verdade deve ser uma razão de ser do pensador. Normalmente
é associado a religiões, que precisam dos dogmas para reconhecer suas
divindades como estando acima da imanência humana, em um sentido de serem
possuidoras de perfeição. Os dogmas, sendo assim, são imutáveis e
indubitáveis, o que os coloca em perfeita oposição ao ceticismo.
Sendo assim, o relativismo preconiza que há múltiplas respostas possíveis
aos problemas de conhecimento, o que também se defronta com o dogmatismo. Ceticismo
e relativismo são diferentes?
Sim, são diferentes. Como exposto, o ceticismo é a conclusão
de que não é possível chegar à verdade, enquanto o relativismo, carregado de
subjetividade, entende que o conhecimento produzido por diferentes pontos de
vistas é igualmente válido. Claro que isso flui por critérios bem
estabelecidos: não basta eu dizer que vejo tal coisa de tal forma, isso seria
mera doxa. O que o relativismo diz é que, por exemplo, utilizando um mesmo
método, se eu chegar a resultados distintos, os dois são igualmente válidos.
E desse, o dogmático gosta?
Não, também não. Tudo o que “impede” valores absolutos vai
contra a estrutura de pensamento dogmática. Isso é bem visível nas religiões,
que necessitam de verdades absolutas. Já pensou alguma religião que permitisse
milhares de diferentes interpretações do seu texto sagrado? Haveria igualmente
milhares de igrejas diferentes para um mesmo deus (EPA!).
Em que medida a ciência é cética?
É cética em todas as medidas, especialmente com relação aos
próprios resultados. A ciência é permanentemente cética de si mesma, e isso é
exatamente o seu motor. Quando olhamos para toda a tecnologia e recursos
aplicados em pesquisa, temos a ilusão de que somos cada vez mais capazes de ter
certezas. Essa é a nossa busca, mas se entendermos que ela tem pontos de
chegada, negaremos a própria ciência, por mais que isso possa parecer
contraditório.
Mas o conhecimento por aproximação proposto pela ciência
não é ilusório?
Pode-se dizer que sim, e isso não é um problema em si. Quem
opera dessa forma é a ciência, que, mesmo com o conjunto mais robusto de
evidências, ainda assim sempre coloca a possibilidade de falseamento, como já
discuti aqui
e aqui.
O princípio filosófico mais básico da ciência é esse: é preciso buscar a
verdade, mesmo que ela seja inatingível. Nesse ponto, ela se contrapõe à
ataraxia dos céticos originais. Por isso mesmo é ciência.
Então ser cético é só uma maneira de não ligar para a
verdade?
Ser cético não significa ser inativo. O “bom” cético não se
abstém de procurar esclarecer as coisas, mas de desconfiar de verdades prontas.
Quem não liga para a verdade geralmente é aquele que acha que o esforço não
vale a pena. Isso é confundir um pouco o propósito do conhecimento. Mesmo que
ele não seja possível (o que pode ser discutido), ainda assim é muito útil
caminhar em busca dele, pelo simples fato de que só assim descartamos aquelas
hipóteses que não servem.
Você já explicou em outro momento que ceticismo e ateísmo
não são sinônimos. Mas o ateu não é um cético por natureza?
Há um pouco de confusão aqui, especialmente porque o ateu
pode ter sua ausência de deuses como uma verdade absoluta, e isso não bate com
o ceticismo. Melhor atribuir essa característica ao agnosticismo, que, aí sim,
diz ser impossível fechar questão sobre a existência de divindades e é mais
afeito ao ceticismo. Mas, ainda assim, ser cético com relação a divindades não
significa ser cético com qualquer coisa. Eu posso não crer em deus, mas
acreditar nas inúmeras teorias da conspiração que brotam por aí.
Isso é confuso. Como é possível ser cético e não ser
cético?
Na verdade, um ceticismo absoluto pode ser sinonimizado com niilismo,
que duvida de qualquer sentido para a vida ou justificação posterior. Mas mesmo
eles podem ter crenças. Eu posso ser cético com relação à existência de
qualquer transcendência, com a possibilidade da verdade absoluta, com dados científicos,
com ideias filosóficas e, mesmo assim, não duvidar, em um exemplo banal, que
meu time é o melhor do mundo, em uma crença que sempre se apoiará na
subjetividade da minha paixão.
Sintetize tudo isso.
O ceticismo é menos do que dramatizam aqueles que lhe
antipatizam. Para além da corrente filosófica, é uma atitude de não aceitar de
bate-pronto aquilo que pretensas autoridades afirmam sobre um determinado
assunto. É preciso colocar na conta do ser humano capacidades de distorcer
temas que lhes deveriam ser de domínio: displicência, negligência, desvio de
interesse, vantagens. Sem teorias da conspiração, mas com cuidado de não
engolir uma explicação que pode carecer de elementos e de coerência. Ceticismo,
portanto, não é duvidar de tudo e de todos, mas de se disciplinar com relação
àquilo que lhe é apresentado, só isso.
É isso que eu queria resumir em forma de perguntas e
respostas. Não esgoto o assunto, mas trago um mínimo de luz a ele,
principalmente para se desfazerem confusões. Embora não seja um erro chamar
alguém de cético em sentido figurado, isso só passa a fazer sentido a partir do
momento em que saibamos o real significado da palavra, senão fazemos acertos
por acaso, e não por conhecimento. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Um livrinho curto e rápido, disponível na internet.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. O Ceticismo Pirrônico e os Problemas
Filosóficos. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/5251285.pdf.
Acesso em 22.01.2025.
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