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sábado, 25 de fevereiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 12ª Parada: Senador José Bento e uma palavra sobre o sincretismo religioso

(Adaptar para sobreviver. Essa é uma assertiva tão válida que acontece até onde não vemos)

Olá!

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Estou quase nos últimos dias dessa minha viagem. Duas coisas determinam o término: o prazo que se esvai e o dinheiro que acaba. É uma dupla ainda mais inexorável que o destino, mas não adianta chorar pelos cantos. O melhor que tenho a fazer é ainda tentar achar mais algum cantinho para visitar, e por aqui isso não é tarefa difícil. Vou até Senador José Bento, e por lá pegar algumas paisagens.

Esta pequena cidade proclama sua região como Vale do Café com Leite, porque fica na confluência entre as áreas dos laticínios e dos cafeicultores, duas atividades nas quais Minas Gerais se celebrizou, uma há muito tempo (e que foi sinônimo de política nacional) e outra mais recente, aproveitando suas características naturais.


A cidade é toda cercada por morros, o que favorece as vistas e dificulta as construções. A tradicional igreja é dedicada a São Sebastião, e fica no topo de uma das incontáveis colinas.

Este é um dos santos mais populares do Brasil, em parte por seu sincretismo com a Umbanda, onde ele é Oxóssi, o orixá da caça e das matas.

Para quem não sabe, esse modelo sincrético foi a maneira com a qual os negros escravizados puderam continuar a exercer seus ritos e sua fé, porque havia uma religião oficial no reino e nas primeiras repúblicas, o que fazia com que fosse necessário o uso de subterfúgios.

Para além disso, o soldado Sebastião foi um dos muitos mártires dos primeiros séculos do Cristianismo. Em certos períodos do governo romano, algumas perseguições eram levadas a cabo para quem não oferecesse sacrifícios aos deuses do império, ou simplesmente se confessasse como tendo fé diversa. Há semelhanças entre os dois dramas? Sim, há. Por isso as dicotomias Oxóssi/Sebastião, Ogum/Jorge, Iansã/Bárbara se tornaram tão populares.

Mais uma coisa: como nos aproximávamos do Natal, esta foi a primeira cidade em que vi alguns preparativos para a grande festa. Os ritos dizem que os preparativos devem começar no Advento, quatro domingos antes do Natal, mas o pessoal já foi enfeitando a praça ainda antes.

Pela área rural, percorri por várias estradinhas de terra e passei por cachoeiras e fazendas, algumas com cachoeiras dentro, mas fechadas. Uma das mais famosas foi comprada recentemente e a dona resolveu não franquear mais o acesso. Pena. Fui também atrás das pedras, sendo a mais famosa delas a Pedra do Mirante, que fica bem na estrada para Poços de Caldas.

Ela se tornou célebre principalmente por conta de seu facílimo acesso, pelo local privilegiado e, naturalmente, pelo ponto de visada que proporciona.

Tanto é assim que acabou recebendo estrutura mais robusta, com escada e plataforma, e até placa comemorativa.


Voltando para a questão do sincretismo, que é especialmente forte quando envolve religiões de origem africana. Como acontece com qualquer região do mundo, os africanos tinham sistemas religiosos e cosmogônicos, e dada a distância entre os territórios e as culturas, diferiam muito daquilo que era praticado nos lugares para onde eram levados. Entretanto, o substrato da formação de suas religiões tinha grandes semelhanças com o de todas as outras.

Se nos reportarmos ao filósofo holandês Baruch de Espinoza, observaremos que a origem das religiões se dá em duas instâncias. Primeiramente, o humano em relação com o mundo está sempre em uma posição de conflito e incerteza. Embora a terra dê frutos, o sol traga calor e as árvores façam abrigo, há momentos em que a terra resseca, o sol calcina e as árvores caem sobre nós. De membros harmoniosos, tornam-se vilões. Levados a um espaço temporal maior, os ciclos se tornam detectáveis, mas há momentos inexplicáveis em que eles não se repetem, e a habitualidade construída em cima dessa roda que gira falha, às vezes com consequências dolorosas. Diante desse cenário, o homem vive em permanente ansiedade, simplesmente porque não consegue ter controle dos fenômenos. Tudo parece longe de suas mãos, com conformação muito difícil, porque, afinal de contas, ele age no mundo: planta, coleta, constrói, limpa, recolhe, pastoreia, prepara, faz e desfaz. No entanto, tudo vai à bancarrota por um evento qualquer – um ano seco, um vento forte, uma maré alta, um tremor de terra. O ser humano percebe os limites de sua ação e como é pequeno diante do universo que não lhe demonstra empatia, embora haja aquele papinho bonito de perfeição e de funcionamento esmerado.

O ser humano vive nessa incerteza, mas não lhe agrada nem um pouco essa condição. Não se conforma, e quer, de algum meio, influenciar no seu próprio destino. Dessa forma, inicia-se uma correlação de coincidências que o faz pensar na existência de um ser maior, que guia os rumos do mundo e o dele próprio, que é suscetível a humores e que pode trazer alvíssaras e desgraças, conforme se sinta agradado ou insultado. Nada mais do que a projeção de sua ansiedade em um ser externo, maior e mais poderoso, passível de ser agradado ou irritado.

Eu fiz isso e choveu, eu fiz aquilo e estiou. A impressão imediata é que minhas ações tiveram alguma influência no clima, como se este fosse controlado por alguma divindade. Então eu passo a repetir esse ato na forma de um ritual, irrefletidamente. Ele se torna tão forte e arraigado que acaba ganhando um status de inerrância. Quando ele falha, o erro não está no rito, mas na forma que o pratico, ou na falta da minha fé. Essa é a segunda faceta de Espinoza: a ignorância. Pela minha falta de capacidade em intervir, eu acabo atribuindo a alguém de fora essa prerrogativa, e busco maneiras de agradá-lo, com danças, palavras mágicas, imagens, sacrifícios. Isso não é nem própria ou unicamente da religião, mas da atitude humana perante sua limitação. Eu puxo pela memória e recordo, entre nuvens, da minha mais antiga reminiscência futebolística, e já lá, na aurora da minha vida, estava esse mesmo sentimento. Na primeira invasão corinthiana, em 1976, estimados 70000 fanáticos empurravam o time contra o Fluminense. Jogo feio em campo inundado, que chegou aos pênaltis. Nos momentos que antecediam as cobranças, minha mãe pegou as pontas de todos os lençóis da sala/quarto da casa da minha madrinha, e tratou de amarrá-las. "É para prender as mãos do goleiro do Fluminense", disse a crédula genitora. Tratei de amarrar tudo o que tivesse pontas também – lenços, toalhas e mangas. Deu certo, mas só naquele dia, porque na final, contra o Inter de Porto Alegre, não houve mandinga que desse jeito. 

Por que isso é ignorância, segundo Espinoza? Porque apartamos a deidade do mundo. Se a terra encharcada não produz, o que precisamos fazer é torná-la menos compacta, mais arenosa, drená-la melhor, plantar ervas que admitam mais água. Ela não precisa de nada além disso, que se voltem os olhos para ela mesma, e não para sortilégios que a modifiquem magicamente. Cuidar da terra é cuidar de Deus, porque ele está em tudo e é tudo, diz o holandês. Tudo o mais, é desconhecimento, é ignorância. Não adianta danças, velas, imagens. O que é preciso é cuidar das próprias coisas.

O discurso óbvio é de que essas crenças são primitivas, e que são descendentes diretas dos antigos animismos. Mas quando você ora, meu irmão, você está fazendo a mesma coisa. Mesmíssima. Estruturalmente, as religiões são tão parecidas que permitem o sincretismo. E um exemplo recentíssimo vem na forma de "Marcha para Jesus", evento evangélico que aproveita um feriado católico, o Corpus Christi, para ser levado a cabo, a ponto de, no mínimo, estar empatando em impacto. Nas grandes cidades, certamente já superou. E os tapetes de serragem da celebração católica vão ficando cada vez mais restrito às cidades do interior. A lógica é simples: aproveita-se um espaço de tempo sem significado para uma determinada comunidade e aplica-se uma lógica nova, em substituição à prática antiga. Isso não é novo: a própria escolha do Natal levou em conta a existência de uma comemoração pagã e procurou substituí-la.

Há uma diferença crucial, porém. Quando duas culturas concorrentes se encontram, temos que ambas se imiscuem, de forma a se obter um resultado final mais consensual, como é o caso da marcha mencionada. Entretanto, quando há a sobrepujação de uma sobre a outra, vemos um fenômeno de resistência, tal como aconteceu com o Catolicismo predominante e as religiões oriundas da África, Candomblé à frente. Esse fenômeno não é único: a Santería cubana e o Vodu haitiano sofreram o mesmo processo sincrético. Em todos esses lugares, a população trazida não tinha suas culturas e valores reconhecidos e levados em conta. Por definição, tudo o que viesse deles era considerado desprovido de valor. Acontece que não se mata uma cultura dessa forma, como se fosse possível jogá-la para o esquecimento da história. E o sincretismo foi a forma encontrada para sua manutenção. Usando simbologias preexistentes, usavam-nas por assimilação para não deixar morrer seus cultos, trazendo uma completa ressignificação para esses elementos. As imagens dos santos é o exemplo mais visível na interação forçada entre Candomblé e Catolicismo.

Há uma quase vingança nisso. A imagem de são Jorge foi praticamente banida das igrejas católicas, por conta de um mal explicado édito que retirou dos altares uma porção de santos considerados pouco documentados. Se por um lado a medida trouxe um pouco de realidade para uma área crivada de elementos lendários, por outro desconsiderou toda a tradição de regiões inteiras. São Jorge é padroeiro da Inglaterra, de Portugal e muitos outros países, além do meu notável Corinthians. Quem não deixou a tradicional imagem sobre o cavalo, combatendo o dragão da maldade foi exatamente o processo sincrético com os cultos africanos. Sua imagem, aqui no Brasil, foi mantida viva por ação da Umbanda e sua associação com Ogum.

Eu, pessoalmente, tive pouco contato com cultos afro-brasileiros, mas que também não é nulo. Três foram as ocasiões: quando eu era criança ainda, no fim da rua sem saída que minha avó paterna morava existia o terreiro da Vó Sabrina, onde eu vivia catando amora durante as giras, porque o quintal ficava aberto. Já rapazola, essa mesma avó ia ao Jardim Colorado, onde existia o terreiro da Mãe Joaquina. É lá que tomei um passe pela primeira vez. Por fim, bem mais recentemente, havia na Liberdade um outro centro, que se mudou para o Bresser, chamado Casa da Fé. De todas elas, pude tirar conclusões interessantes, cada qual dentro das minhas possibilidades. Da primeira, aprendi que um lugar de culto também pode ser um lugar onde você não é obrigado a ter uma posição sisuda, e nem que te fiquem obrigando a segui-lo, entrando e saindo a hora em que bem entender. Do segundo, consegui captar que existe uma arte popular alegre, que inclui danças e cantos que te puxam pelos sentidos, sem sentimentos de culpa. Da terceira, conheci formas de encarar a transcendência de uma maneira inesperadamente sofisticada, que tem respostas melhores que o Cristianismo para certos aspectos, embora eu igualmente não creia em seus desígnios, mas aceite tranquilamente sua visão de mundo. Sobre os princípios gerais destas vertentes, deixarei para momento oportuno, quando também tiver aprendido mais sobre elas. 

Tudo junto e misturado, aproveito para falar um pouco sobre o senador que nomeia a cidade. Ele era um padre e político, além de jornalista que fundou um jornal em Pouso Alegre. Participou de eventos importantes na virada do primeiro para o segundo reinado, e foi assassinado numa tocaia próxima à sua fazenda. Não se sabe bem os motivos para tal ato, mas há duas hipóteses mais aventadas: motivações políticas ou disputas demarcatórias. De uma forma ou de outra, também na sua história vemos a imbricação de duas histórias: o padre de princípios conservadores e o senador com ideias liberais. É assim que o mundo se move – controverso e paradoxal. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Espinoza é um dos pensadores mais desafiadores da nossa espécie. Segue o livro onde ele cuida da formação das religiões.

ESPINOZA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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