Marcadores

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O café filosófico do quotidiano – sobre não compensar mais ter filhos

(Ainda faz sentido ter filhos neste mundo cada vez mais ameaçado?)

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Machado de Assis 

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Esse episódio da minha “carreira” de barista já tem um tempinho, mas era inevitável que ele acontecesse. Eu posso me considerar experiente em passar um bom cafezinho, mas na hora do espresso eu não tinha lá muitos recursos. É bem verdade que eu tenho uma mini, mas é um brinquedinho quando comparado aos grandes conjuntos profissionais, e aproveitei uma belíssima promoção para fazer um treinamento e aprender como lidar com essas maravilhas da tecnologia a serviço da estética palatável.

Não foi exatamente perto, e sim na municipalidade de Itupeva. Ora (direis), moras em São Paulo e precisas ir longe assim? É que o preço valia a viagem, com todo o programa que estava incluso, e Itupeva está a uma hora de São Paulo. Então fui, vá cuidar de sua vida, interlocutor chato. O curso foi todo em uma cafeteira grande, uma Astoria, daquelas de dois grupos, e incluiu pesagem, moagem, descarte, limpeza do equipamento, regulagem de pressão, tudo o que é preciso para dominar o mundo dos baristas. Faltou só a experiência, mas isso fica para um dia qualquer.

É óbvio que esses cursos não vendem apenas o conhecimento, e não vejo nada de errado nisso quando o propósito não é apenas e tão-somente vender produtos. Havia grãos e utensílios também lá, para quem se interessasse em partir para aprofundamentos. Além disso, havia também a divulgação de artesanato temático, e me interessei por um método de filtragem, esse aí embaixo:


Ele tem uma cara meio industrial, meio laboratorial, por motivos óbvios: um bloco de cimento fundido em seção circular recebe um conjuntinho hidráulico, e neste, um funil de vidro faz as vezes de porta-filtro. Bastante simples e semelhante com a solução que montei para fazer cold brew, o trabalho pode ser posto para girar com a adição de um filtro V60 pequeno.

Daí para frente, é só colocar o pó e iniciar a percolação. Como não nasceu com o fim específico de ser um método pensado para a melhor extração possível, é preciso passar a água aos poucos, sob pena de transbordar a preparação. Usar um pó mais grosso ajuda na tarefa.

Nome do utensílio: Porta-filtro artesanal

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Grossa

Dinâmica: Como qualquer método de percolação. Cuidado com a carga de água, já que o funil tem bojo pequeno

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Vendo os últimos pingos cair no decanter, surge a pergunta na cabeça: evidentemente, vou criar um texto para este método também. Mas até quando isso vai se seguir? Todo santo dia surge alguma novidade, então minha tarefa será infinita. Se a cada cor de porta-filtro, ou a cada formato de bocal eu for criar um texto novo, nunca pararei de escrever. É contraditória essa nuvem pessimista sobre o que não é negativo, por vários motivos. Essa não é mesmo uma série finita, e eu escrevo sob inspiração, e não obrigação. O dia que eu não quiser escrever, eu não escrevo e pronto – não sou pago para isso. Mas fiquei pensando na multiplicação infinita e fiz um vínculo meio afetivo, meio consequencialista de que cada coisa que eu escrevo tem uma metaforização filial, o velho chavão de que pari cada um deles e que não sou só seu responsável, mas também seu admirador. Parece estranho tratar um texto como um filho.

Lembro das discussões na mesa da família sobre as quantidades adequadas de filhos, e de como o vinho e a idade tornavam as opiniões mais radicais. Hoje em dia, essa discussão traspassa a mera janta do sábado à noite e vai permear correntes filosóficas que dizem ser errado ter filhos. Fiquei com vontade de explorar esse tema. 

Primeiríssima coisa é fazer um disclaimer*. Não vamos tratar aqui da velha assertiva do senso comum de que os pobres se multiplicam como ratos. Ela é, em primeiro lugar, falaciosa, e também não cabe a mim discutir o que cada um faz de sua vida. Também não quero falar de uma modinha que tem por objeto uma ênfase nas desvantagens em ter filhos, que atrasam carreiras, desmancham corpos, detonam orçamentos, porque isso passa e, dialeticamente, vem uma corrente dizendo que devemos povoar o mundo. Minha ideia é falar de filosofia.

Em primeiro lugar, só conseguimos falar de vida quando passamos pelo rito iniciático do nascimento. É um momento que já carrega consigo uma simbologia, mas, em termos práticos, é traumático para o neonato: uma transição de um meio líquido, escuro e com temperatura controlada para o inverso disso. Seu próprio organismo passa a ter que dar conta de muitas das funções outrora exclusivas de sua mãe. O momento de sua primeira respiração é decisivo e não se processa sem dor, além de iniciar um processo de fome e sede. O próprio ato do nascimento consiste em uma passagem por uma fenda estreita somente possível dada a flexibilidade de suas articulações. A vida começa com o sofrimento.

Daí por diante, temos aquela velha certeza da morte, que pode ser próxima ou não. A segunda certeza vem deste intervalo – ele sempre será povoado de dores. Só não as temos vivas na memória cem por cento do tempo porque nossa própria sobrevivência psíquica depende de não estar permanentemente em sua expectativa.

Aí surge uma grande questão. O confronto entre a quantidade de momentos felizes e as dores e sofrimentos compõem uma equação em desequilíbrio. Em tese, nossa prole é aquela a quem mais amamos, a quem mais nos entregamos. Há inúmeras figurinhas de feicebuque enaltecendo a entrega das mães, que tiram da própria boca para dar aos filhos e que, tirando toda a pieguice, refletem uma verdade bastante abrangente – é rara a mãe que não dá o melhor que possui para seus filhos. E a eles que, ao dar a vida, damos a dor. Não seria essa uma atitude antiética?

A ideia de que a vida é ruim em si mesma não é nova. Jesus mesmo é um daqueles que diz não ser seu reino deste mundo, e que somente uma vida futura traria conforto aos que sofrem. É óbvio que o Cristianismo carrega em si a ideia ambígua de que a vida é sagrada, mas que necessita de muitas restrições para se chegar à vida autêntica, razão pela qual é somente com Schopenhauer que passamos a ter uma visão mais consagrada do desequilíbrio entre prazer e dor. Ele pontua a vontade como objeto metafísico do mundo (sintetizado no instinto de preservação) e a escravização que gera sua contínua ação. Dá algumas opções para solucionar a questão, como a ascese e a apreciação artística, mas deixa em aberto o valor de se preservar a existência como um fenômeno coletivo.

Uma das soluções que poderíamos pensar tem aquela famosa frase dos jovens rebelados contra os pais: “eu não pedi para nascer”. É uma assertiva que normalmente ocorre naqueles confrontos de gerações, mas que pode ir além do desabafo. Não pede para nascer porque pode sofrer e causar sofrimento e, sendo assim, torna-se questionável aquilo que é tomado como bênção. Será que é melhor não procriar? Não perpetuar a miséria, como diz o Machado da epígrafe?

Eu fui atrás dos argumentos antinatalistas e encontrei os principais fundamentos contemporâneos em dois autores: David Benatar e Júlio Cabrera, mas os pontos que o segundo levanta são bem mais complexos e intrigantes, razão pela qual vou tocar em sua filosofia em um segundo momento.

A questão encarada pelo filósofo sul-africano David Benatar é uma pergunta desafiadora. Não é crueldade perpetuar a vida pela via da procriação? É uma opção confortável hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos. Ele trabalha a questão da vida que vale a pena através do valor que o prazer e a dor tem quando colocadas em uma balança. Desta forma, constrói uma tabela semelhante à que Pascal montou em sua famosa aposta, combinada com o pensamento agostiniano de ausência e presença. Ela funciona mais ou menos assim:

O prazer é bom;

O sofrimento é ruim;

A ausência de sofrimento é boa;

A ausência de prazer não é ruim

Percebam que a mancadinha desse argumento está no último item. Poderíamos raciocinar que a ausência de prazer é ruim, mas, de fato, não nos é mais doloroso passar o domingo sem a picanha do que com ela. Na verdade, é uma questão de expectativa: se eu nem espero ter a picanha, não me dói nem um pouco não a ter. Por isso, não faz sentido equiparar ausência de prazer com sofrimento. O mesmo não pode ser aplicado à equivalência adjacente. Não sofrer é sempre bom, sem a indiferença que pode ser causada pela ausência de prazer. Uma vez colocada em um esquema tabelado, temos a seguinte correlação:


Existência

Ausência

Sofrimento (ruim)

Sofrimento (bom)

Prazer (bom)

Prazer (não é ruim)

A conclusão é que existe um descompasso entre ambos, e Benatar deu a essa constatação o nome de assimetria do sofrimento. E ele caiu como uma luva para justificar uma causa contrária à procriação. Se nós nos propomos a amar nossos filhos, a melhor maneira de manifestar esse amor é não os ter, fadados à dor. Ter filhos é, essencialmente, um ato de egoísmo e de crueldade com quem mais deveríamos nos preocupar. É o antinatalismo pelo prisma filosófico.

Mas não parece muito simplista esse argumento? Benatar subdivide suas assimetrias em outras mais específicas para dar mais sustentação a ele. A primeira é a assimetria dos deveres procriativos, que diz ser eticamente obrigatório não criar pessoas infelizes, enquanto essa obrigatoriedade não se aplica a não criar pessoas felizes. Ou seja, quando temos filhos, é dever procurar a felicidade para eles, o que não é aplicável quando eles não existem. O segundo ponto é a assimetria da beneficência prospectiva, que consiste no seguinte: não há nenhuma questão moral na potencialidade de uma criança ser feliz, enquanto a potencialidade de que ela seja sofredora é um bom motivo para não a criar. O terceiro item é a assimetria retrospectiva da beneficência, que, trocada em miúdos, diz que podemos nos arrepender pelo sofrimento de uma pessoa que existe em função de uma decisão nossa, enquanto isso não acontecerá se esta pessoa nunca existir. E, por fim, a quarta assimetria é o sofrimento distante e as pessoas felizes ausentes, que se resume na tristeza que sentimos quando alguém existe e sofre, e sabemos que, se não tivessem existido, não teriam sofrido. A ausência de dor é boa mesmo quando existe a ausência de vida. Dessa forma, procura consolidar seu argumento e dar mais substância a ele. O antinatalismo conserta a assimetria pela abstenção de prazeres possíveis em confronto com sofrimentos certos. Melhor que remediar, é prevenir, parece nos dizer o pensador.

Eu, pessoalmente, parto de uma perspectiva meio nietzscheana para não ser aderente a esse conjunto de ideias. Penso que os grandes arrependimentos, quando estivermos em tempo de avaliar o frigir de ovos da nossa vida, são mais do que aquilo que não se fez, e não do que se fez. Tive três filhos, dois ainda com vida, e espero pelos netos com aquele mesmo espírito de reparação que tantos avós têm para viver com eles uma relação mais ilimitada, que o serviço pela educação dos filhos não permitiu. Entendo o posicionamento dos antinatalistas, e acho mesmo que são válidos seus argumentos, mas há limites em impor a cultura sobre a natureza. Ter filhos é natural do ser humano, ainda que tenhamos consciência de que a balança possa estar em desequilíbrio, numa posição que passa de qualquer fronteira pragmática. Benatar pode até acertar quando diz que há mais momentos de dor do que de prazer, mas a intensidade desses menores momentos aprazíveis pode superar os inúmeros pequenos momentos sofridos, e isso não está em sua balança.

No final, tudo isso me parece mais medo do que qualquer outra coisa. Paranoia? Talvez. Temos um mundo à beira de um colapso ambiental, e isso é um motivo aparentemente justo para não prolongar sofrimentos. Só que há lições que nos ensinam que o dia é feito para ser colhido, e o mesmo Nietzsche que citei tem uma assertiva que considero definitiva: a vida é um pacote que compramos pronto, sem controle de como virá a ser, e se preocupar com tanto excesso tolhe mais o que podemos ter de bom que o que podemos ter de ruim. Eu prefiro morrer afogado a morrer de sede.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem em português ainda. Melhor: exercitei meu italiano, que andava meio parado.

BENATAR, David. Meglio non essere mai nati. Il dolore di venire al mondo. Milão: Carbonio, 2018.

*Disclaimer do disclaimer: é bom dar uma posicionada sobre essas questões de anglicismos. Existem certos termos que, embora haja correspondentes na língua natal, traduzem tão bem o que se quer dizer que sou favorável ao seu uso. Neste caso específico, o termo disclaimer traz uma ideia de “deschamado” que inexiste em português. E antes de ser chamado de anglicismo, é preciso saber que o próprio termo é um galicismo dentro da língua inglesa, o que comprova que é preciso cuidado ao se considerar um purista, porque esse órgão chamado linguagem é uma das coisas mais complexas que temos na cultura humana.