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terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

O café filosófico do quotidiano – sobre não compensar mais ter filhos

(Ainda faz sentido ter filhos neste mundo cada vez mais ameaçado?)

“Não tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

Machado de Assis 

Olá!

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Esse episódio da minha “carreira” de barista já tem um tempinho, mas era inevitável que ele acontecesse. Eu posso me considerar experiente em passar um bom cafezinho, mas na hora do espresso eu não tinha lá muitos recursos. É bem verdade que eu tenho uma mini, mas é um brinquedinho quando comparado aos grandes conjuntos profissionais, e aproveitei uma belíssima promoção para fazer um treinamento e aprender como lidar com essas maravilhas da tecnologia a serviço da estética palatável.

Não foi exatamente perto, e sim na municipalidade de Itupeva. Ora (direis), moras em São Paulo e precisas ir longe assim? É que o preço valia a viagem, com todo o programa que estava incluso, e Itupeva está a uma hora de São Paulo. Então fui, vá cuidar de sua vida, interlocutor chato. O curso foi todo em uma cafeteira grande, uma Astoria, daquelas de dois grupos, e incluiu pesagem, moagem, descarte, limpeza do equipamento, regulagem de pressão, tudo o que é preciso para dominar o mundo dos baristas. Faltou só a experiência, mas isso fica para um dia qualquer.

É óbvio que esses cursos não vendem apenas o conhecimento, e não vejo nada de errado nisso quando o propósito não é apenas e tão-somente vender produtos. Havia grãos e utensílios também lá, para quem se interessasse em partir para aprofundamentos. Além disso, havia também a divulgação de artesanato temático, e me interessei por um método de filtragem, esse aí embaixo:


Ele tem uma cara meio industrial, meio laboratorial, por motivos óbvios: um bloco de cimento fundido em seção circular recebe um conjuntinho hidráulico, e neste, um funil de vidro faz as vezes de porta-filtro. Bastante simples e semelhante com a solução que montei para fazer cold brew, o trabalho pode ser posto para girar com a adição de um filtro V60 pequeno.

Daí para frente, é só colocar o pó e iniciar a percolação. Como não nasceu com o fim específico de ser um método pensado para a melhor extração possível, é preciso passar a água aos poucos, sob pena de transbordar a preparação. Usar um pó mais grosso ajuda na tarefa.

Nome do utensílio: Porta-filtro artesanal

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Grossa

Dinâmica: Como qualquer método de percolação. Cuidado com a carga de água, já que o funil tem bojo pequeno

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Vendo os últimos pingos cair no decanter, surge a pergunta na cabeça: evidentemente, vou criar um texto para este método também. Mas até quando isso vai se seguir? Todo santo dia surge alguma novidade, então minha tarefa será infinita. Se a cada cor de porta-filtro, ou a cada formato de bocal eu for criar um texto novo, nunca pararei de escrever. É contraditória essa nuvem pessimista sobre o que não é negativo, por vários motivos. Essa não é mesmo uma série finita, e eu escrevo sob inspiração, e não obrigação. O dia que eu não quiser escrever, eu não escrevo e pronto – não sou pago para isso. Mas fiquei pensando na multiplicação infinita e fiz um vínculo meio afetivo, meio consequencialista de que cada coisa que eu escrevo tem uma metaforização filial, o velho chavão de que pari cada um deles e que não sou só seu responsável, mas também seu admirador. Parece estranho tratar um texto como um filho.

Lembro das discussões na mesa da família sobre as quantidades adequadas de filhos, e de como o vinho e a idade tornavam as opiniões mais radicais. Hoje em dia, essa discussão traspassa a mera janta do sábado à noite e vai permear correntes filosóficas que dizem ser errado ter filhos. Fiquei com vontade de explorar esse tema. 

Primeiríssima coisa é fazer um disclaimer*. Não vamos tratar aqui da velha assertiva do senso comum de que os pobres se multiplicam como ratos. Ela é, em primeiro lugar, falaciosa, e também não cabe a mim discutir o que cada um faz de sua vida. Também não quero falar de uma modinha que tem por objeto uma ênfase nas desvantagens em ter filhos, que atrasam carreiras, desmancham corpos, detonam orçamentos, porque isso passa e, dialeticamente, vem uma corrente dizendo que devemos povoar o mundo. Minha ideia é falar de filosofia.

Em primeiro lugar, só conseguimos falar de vida quando passamos pelo rito iniciático do nascimento. É um momento que já carrega consigo uma simbologia, mas, em termos práticos, é traumático para o neonato: uma transição de um meio líquido, escuro e com temperatura controlada para o inverso disso. Seu próprio organismo passa a ter que dar conta de muitas das funções outrora exclusivas de sua mãe. O momento de sua primeira respiração é decisivo e não se processa sem dor, além de iniciar um processo de fome e sede. O próprio ato do nascimento consiste em uma passagem por uma fenda estreita somente possível dada a flexibilidade de suas articulações. A vida começa com o sofrimento.

Daí por diante, temos aquela velha certeza da morte, que pode ser próxima ou não. A segunda certeza vem deste intervalo – ele sempre será povoado de dores. Só não as temos vivas na memória cem por cento do tempo porque nossa própria sobrevivência psíquica depende de não estar permanentemente em sua expectativa.

Aí surge uma grande questão. O confronto entre a quantidade de momentos felizes e as dores e sofrimentos compõem uma equação em desequilíbrio. Em tese, nossa prole é aquela a quem mais amamos, a quem mais nos entregamos. Há inúmeras figurinhas de feicebuque enaltecendo a entrega das mães, que tiram da própria boca para dar aos filhos e que, tirando toda a pieguice, refletem uma verdade bastante abrangente – é rara a mãe que não dá o melhor que possui para seus filhos. E a eles que, ao dar a vida, damos a dor. Não seria essa uma atitude antiética?

A ideia de que a vida é ruim em si mesma não é nova. Jesus mesmo é um daqueles que diz não ser seu reino deste mundo, e que somente uma vida futura traria conforto aos que sofrem. É óbvio que o Cristianismo carrega em si a ideia ambígua de que a vida é sagrada, mas que necessita de muitas restrições para se chegar à vida autêntica, razão pela qual é somente com Schopenhauer que passamos a ter uma visão mais consagrada do desequilíbrio entre prazer e dor. Ele pontua a vontade como objeto metafísico do mundo (sintetizado no instinto de preservação) e a escravização que gera sua contínua ação. Dá algumas opções para solucionar a questão, como a ascese e a apreciação artística, mas deixa em aberto o valor de se preservar a existência como um fenômeno coletivo.

Uma das soluções que poderíamos pensar tem aquela famosa frase dos jovens rebelados contra os pais: “eu não pedi para nascer”. É uma assertiva que normalmente ocorre naqueles confrontos de gerações, mas que pode ir além do desabafo. Não pede para nascer porque pode sofrer e causar sofrimento e, sendo assim, torna-se questionável aquilo que é tomado como bênção. Será que é melhor não procriar? Não perpetuar a miséria, como diz o Machado da epígrafe?

Eu fui atrás dos argumentos antinatalistas e encontrei os principais fundamentos contemporâneos em dois autores: David Benatar e Júlio Cabrera, mas os pontos que o segundo levanta são bem mais complexos e intrigantes, razão pela qual vou tocar em sua filosofia em um segundo momento.

A questão encarada pelo filósofo sul-africano David Benatar é uma pergunta desafiadora. Não é crueldade perpetuar a vida pela via da procriação? É uma opção confortável hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos. Ele trabalha a questão da vida que vale a pena através do valor que o prazer e a dor tem quando colocadas em uma balança. Desta forma, constrói uma tabela semelhante à que Pascal montou em sua famosa aposta, combinada com o pensamento agostiniano de ausência e presença. Ela funciona mais ou menos assim:

O prazer é bom;

O sofrimento é ruim;

A ausência de sofrimento é boa;

A ausência de prazer não é ruim

Percebam que a mancadinha desse argumento está no último item. Poderíamos raciocinar que a ausência de prazer é ruim, mas, de fato, não nos é mais doloroso passar o domingo sem a picanha do que com ela. Na verdade, é uma questão de expectativa: se eu nem espero ter a picanha, não me dói nem um pouco não a ter. Por isso, não faz sentido equiparar ausência de prazer com sofrimento. O mesmo não pode ser aplicado à equivalência adjacente. Não sofrer é sempre bom, sem a indiferença que pode ser causada pela ausência de prazer. Uma vez colocada em um esquema tabelado, temos a seguinte correlação:


Existência

Ausência

Sofrimento (ruim)

Sofrimento (bom)

Prazer (bom)

Prazer (não é ruim)

A conclusão é que existe um descompasso entre ambos, e Benatar deu a essa constatação o nome de assimetria do sofrimento. E ele caiu como uma luva para justificar uma causa contrária à procriação. Se nós nos propomos a amar nossos filhos, a melhor maneira de manifestar esse amor é não os ter, fadados à dor. Ter filhos é, essencialmente, um ato de egoísmo e de crueldade com quem mais deveríamos nos preocupar. É o antinatalismo pelo prisma filosófico.

Mas não parece muito simplista esse argumento? Benatar subdivide suas assimetrias em outras mais específicas para dar mais sustentação a ele. A primeira é a assimetria dos deveres procriativos, que diz ser eticamente obrigatório não criar pessoas infelizes, enquanto essa obrigatoriedade não se aplica a não criar pessoas felizes. Ou seja, quando temos filhos, é dever procurar a felicidade para eles, o que não é aplicável quando eles não existem. O segundo ponto é a assimetria da beneficência prospectiva, que consiste no seguinte: não há nenhuma questão moral na potencialidade de uma criança ser feliz, enquanto a potencialidade de que ela seja sofredora é um bom motivo para não a criar. O terceiro item é a assimetria retrospectiva da beneficência, que, trocada em miúdos, diz que podemos nos arrepender pelo sofrimento de uma pessoa que existe em função de uma decisão nossa, enquanto isso não acontecerá se esta pessoa nunca existir. E, por fim, a quarta assimetria é o sofrimento distante e as pessoas felizes ausentes, que se resume na tristeza que sentimos quando alguém existe e sofre, e sabemos que, se não tivessem existido, não teriam sofrido. A ausência de dor é boa mesmo quando existe a ausência de vida. Dessa forma, procura consolidar seu argumento e dar mais substância a ele. O antinatalismo conserta a assimetria pela abstenção de prazeres possíveis em confronto com sofrimentos certos. Melhor que remediar, é prevenir, parece nos dizer o pensador.

Eu, pessoalmente, parto de uma perspectiva meio nietzscheana para não ser aderente a esse conjunto de ideias. Penso que os grandes arrependimentos, quando estivermos em tempo de avaliar o frigir de ovos da nossa vida, são mais do que aquilo que não se fez, e não do que se fez. Tive três filhos, dois ainda com vida, e espero pelos netos com aquele mesmo espírito de reparação que tantos avós têm para viver com eles uma relação mais ilimitada, que o serviço pela educação dos filhos não permitiu. Entendo o posicionamento dos antinatalistas, e acho mesmo que são válidos seus argumentos, mas há limites em impor a cultura sobre a natureza. Ter filhos é natural do ser humano, ainda que tenhamos consciência de que a balança possa estar em desequilíbrio, numa posição que passa de qualquer fronteira pragmática. Benatar pode até acertar quando diz que há mais momentos de dor do que de prazer, mas a intensidade desses menores momentos aprazíveis pode superar os inúmeros pequenos momentos sofridos, e isso não está em sua balança.

No final, tudo isso me parece mais medo do que qualquer outra coisa. Paranoia? Talvez. Temos um mundo à beira de um colapso ambiental, e isso é um motivo aparentemente justo para não prolongar sofrimentos. Só que há lições que nos ensinam que o dia é feito para ser colhido, e o mesmo Nietzsche que citei tem uma assertiva que considero definitiva: a vida é um pacote que compramos pronto, sem controle de como virá a ser, e se preocupar com tanto excesso tolhe mais o que podemos ter de bom que o que podemos ter de ruim. Eu prefiro morrer afogado a morrer de sede.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem em português ainda. Melhor: exercitei meu italiano, que andava meio parado.

BENATAR, David. Meglio non essere mai nati. Il dolore di venire al mondo. Milão: Carbonio, 2018.

*Disclaimer do disclaimer: é bom dar uma posicionada sobre essas questões de anglicismos. Existem certos termos que, embora haja correspondentes na língua natal, traduzem tão bem o que se quer dizer que sou favorável ao seu uso. Neste caso específico, o termo disclaimer traz uma ideia de “deschamado” que inexiste em português. E antes de ser chamado de anglicismo, é preciso saber que o próprio termo é um galicismo dentro da língua inglesa, o que comprova que é preciso cuidado ao se considerar um purista, porque esse órgão chamado linguagem é uma das coisas mais complexas que temos na cultura humana.