(Uma contradição lógica pode nos provar que o tempo não existe?)
“E o ar que já passou pelos pulmões
De tão velho já quer ir descansar
Daqui pro futuro falta só um piscar
Que é pro tempo não mais nos enganar”
John Ulhoa, Pato Fu
Olá!
Depois de um longo e tenebroso inverno, trouxe para casa a
joia da coroa. É um flagrante exagero, porque não passa de um método de
extração de café que eu queria comprar faz tempo, mas cujo preço era proibitivo
para um sujeito de minha renda. Acontece que os mecanismos de oportunidade da
internet provaram sua utilidade. Deixei a intenção cadastrada já há mais de um
ano, e uma notificação veio na telinha do meu celular, quando já nem ligava
mais, causando-me estranheza pela pouca memória. Indicaram uma promoção muito
boa em uma loja virtual, com preço reduzido e parcelas sem juros. Mesmo que um
pouco dolorido ainda a tão delicado órgão, veio aquela perigosa sensação de
“agora ou nunca” e mandei bala no cartão de crédito. Agora ele está lá,
curtindo seu momento de primazia dentre os demais métodos. É a cafeteira de
elegante nome Eva Solo.
A produtora do utensílio é uma empresa dinamarquesa
especialista em inovações em design. Estruturalmente, é uma garrafa em vidro
borossilicato onde se coloca café moído bem grosso, porque não se fará uma
percolação convencional, mas se deixará em infusão por um tempo específico para
fazer a extração.
Passado o tempo adequado, a filtragem é feita pela própria
tampa, que retém os resíduos no momento em que o café é servido. Seu lado
positivo é o corpo que dá à bebida, vez que retém pouquíssimo dos óleos
naturais do grão.
O objeto não é caro à toa. O filtro cônico de metal é
encaixado de forma a evitar que se formem os temidos pingos que as vovós tanto
detestam em suas toalhas, e a tampa tem um engenhoso sistema de abertura e
fechamento automáticos para completar a função de servir.
A sofisticação chega ao ápice através de uma jaqueta de neoprene com zíper que é ajustada ao corpo esbelto da Eva, como se fosse uma mocinha surfista, ajudando a manter a temperatura e (dizem) diminuir o processo de oxidação do líquido, tornando a peça esteticamente única.
Nome do utensílio: Cafeteira Eva Solo
Tipo de técnica: Misto (Infusão e filtragem)
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: grossa
Dinâmica: Deposita-se o pó no fundo da garrafa de vidro e despeja-se a água fervente, em tempo suficiente para uma extração adequada. Após, encaixa-se o filtro e a tampa no bocal para exercer a função de despejo do café.
Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: médio/alto
Como todo método de infusão, o tempo é componente primordial neste tipo de extração. Se formos açodados, a extração será insuficiente e obteremos uma desanimada água de batata. Pelo contrário, se formos distensos, teremos um amargor digno das zurrapas de beira de estrada, o que é igualmente indesejável. Por esses motivos, métodos de infusão exigem um cuidado maior com o fator tempo para obter a bebida na medida certa.
Vou pensando nisso e o tempo vai passando, passando e
passando, e eu pensando, pensando e pensando. Por fim, o toque de minutagem da
balança me acorda do devaneio e vou servir o café, ainda tendo a cabeça numa
forma de concretude do tempo, que não consigo vislumbrar, nem no relógio que
demarca o prazo da extração, nem na posição da patroa que me aguarda já
acordada na cama. Se o tempo não é concreto, por que dizemos que ele existe?
Aí é que está. Algo que não é tangível não é necessariamente
inexistente. Não me refiro a entidades mágicas ou deidades, mas àquilo que
damos o nome gramatical de substantivos abstratos, ou seja, objetos que possuem
uma substância, uma existência real, mas que só operam em nível mental –
abstratos. Está aí, evidentemente, toda sorte de sentimentos e sensações.
Talvez os tais seres imateriais possam ser traduzidos em imagens concretas –
pense em um anjo. O mesmo não acontece com os substantivos abstratos, que
precisam emprestar de um substantivo concreto uma forma de lhes representar.
Daí, temos os corações que representam amor, mas que não são amor em si, gelos
que representam frio, mas que não são o frio em si, e assim sucessivamente.
E o tempo? É um substantivo concreto ou abstrato?
É possível encaixar argumentos nos dois lados. Se por um
lado a representação de um relógio, uma ampulheta ou uma engrenagem que gira
cumpre o mesmo papel de substituição típico dos abstratos, é inegável que a
visualização das mudanças em nosso redor vai além das meras sensações, e a
própria sucessão de eventos é a concretude dos tempos. Se o tempo pode ser
medido, ele é concreto, como não acontece com o ódio, a ternura, as saudades, o
tédio, a justiça, a misericórdia.
Será?
Às vezes a abordagem sobre o misterioso tempo é uma questão
de lógica. Faz sentido conceder concretude a algo que é inerente à percepção
humana? Sim, pode até ser que o tempo seja aplicável a cães e baratas, mas o
fato é que eles não estão nem aí para relógios ou calendários. Mesmo que o
tempo exista concretamente, ele só se aplica a nós.
O mesmo acontece com a lógica. Um leão não come a gazela
porque é lógico que a coma, mas porque tem fome. Essas inerências e inferências
são igual e tipicamente humanas. Portanto, é lícito dizer que, para que o tempo
seja real, é preciso que ele seja lógico. Não lhes parece?
Pois bem. John McTaggart, filósofo inglês de cunho
idealista, discordaria desse assertiva, e, por esse motivo, pensava ser o tempo
uma irrealidade explicada unicamente pela percepção humana. É uma tese bastante
complexa, na qual dei uma breve e insuficiente pincelada no texto onde eu
falava sobre Filosofia
do Tempo. Vou aprofundar um pouco melhor a partir de agora.
McTaggart parte do princípio aristotélico de que tempo é
movimento. Se o mundo inteiro congelasse completamente por 30 minutos, por
exemplo, esse lapso temporal não significaria nada, já que nada poderia ser
percebido de diferente. Sendo assim, essa meia hora poderia ser uma hora
inteira, um dia inteiro, a vida inteira. Também não vale aqueles exercícios
budistas de meditação: o que está parado é o corpo, mas a mente está girando
tanto quanto o sangue e o ar nos pulmões. Movimento imperceptível não é
ausência de movimento.
Sendo o movimento um componente indissociável do tempo,
existem dois eixos por onde este trafega: um que descreve o princípio da
causalidade e outro que posiciona os eventos com relação ao momento.
O primeiro descreve a ordem com as quais os fenômenos
acontecem no transcurso da história: o que vem antes, o que acontece no momento
e o que ocorre depois. Se formos perceber bem, notaremos que este é o plano
estático do tempo. Não temos como mudar o que tem anterioridade, o que tem
simultaneidade e o que tem posteridade. Não há como o centroavante cabecear a
bola antes que o ponta cobre o escanteio. E não há como ser assinalado o
escanteio sem o corte providencial do zagueiro. A longa cadeia de nexo causal
faz com que esse eixo seja, portanto, estático, e aplicável a toda a história.
Sempre a Revolução Francesa terá acontecido antes da Revolução Russa, que
sempre será concomitante à Primeira Guerra Mundial, e a Segunda sempre lhe será
posterior, até porque, para que os fatos transcorram como transcorreram, é preciso
que se desenrolem nessa ordem.
Aqui, começamos a perceber algumas colisões. Se esse eixo é
estático, então pressupomos um imobilismo, já que é impossível trocas de
posições dos eventos e, consequentemente, dos movimentos. Sendo assim, é
preciso que exista um plano dinâmico, onde se possa observar movimentação. E é
aqui que entra o segundo eixo.
Quando pensamos em qualquer tipo de evento, nós podemos
imaginá-lo com relação a um referencial: se penso em algo que já aconteceu,
temos o passado; se está acontecendo agora, é o presente, e se ainda ocorrerá,
o evento é futuro. Este plano é dinâmico porque os estados se transformam. Algo
que hoje é futuro, será presentificado e tornar-se-á passado, assim como o que
está no passado, já foi presente e futuro. Dessa forma, ao contrário da série
B, encontramos aqui dinamicidade e, consequentemente, movimentação, fator
essencial para reconhecimento do tempo.
McTaggart deu ao trânsito passado-presente-futuro o nome de
série A, e à anterioridade-simultaneidade-posterioridade o nome de série B. O
grande problema é que, olhando para o sentido lógico, elas são contraditórias
em si mesmas e entre si, e este é o cerne no argumento do inglês.
Começando pela série B. O entendimento de fixidez que a
mesma contém não permite supor que um evento seja variável. Quando eu idealizo
o tempo como uma régua, onde é possível vislumbrar que um evento acontece antes
ou depois de outros, verifico que, se fosse factível a sua variabilidade,
teríamos então ferido o princípio lógico da não-contradição, consagrado desde
os tempos aristotélicos (vide).
O eixo estático não permite antever posições variáveis, porque como as posições
da régua são sempre imutáveis, pensar em mudanças na posição na série
desmontaria sua lógica. Sendo assim, a mudança que é elemento necessário para
constatar o tempo não se enxerga aqui. A série B não é possível como reflexo da
realidade.
Essa mobilidade então deve ser buscada na série A, para
verificar se ela sustenta a realidade do tempo e salva a série B. Como eu já
disse, aqui os eventos ganham uma qualidade em relação a um ponto de
referência. Se na série B um evento sempre será anterior ou posterior a outros,
na série A este mesmo evento tem uma caraterística variável. Digamos que eu
esteja dentro de um estádio esperando um jogo de vida ou morte do meu time
favorito. Este momento era futuro no momento em que eu vestia o manto sagrado e
me encaminhava para a estação do metrô, assim como se convolou em passado
quando eu, já satisfeito (tomara), desembarcava na mesma estação de volta a
casa. Ainda poderíamos dizer que há um elemento de fixidez semelhante à série
B, mas a regressão ao passado e a projeção ao futuro podem se dar de forma
infinita: passado e futuro próximos ou remotos. Eu posso dizer que estou no
campo porque meu pai me ensinou a gostar de futebol, e que seu pai fez o mesmo,
e assim por diante. E, com isso, podemos perceber a mobilidade do tempo.
Mas notem. A própria expressão da língua já traz alguma
ambiguidade. Um evento qualquer é presente, e aqui não temos problemas. Mas ele
também foi futuro e será passado. Percebam que, para expressar a
referência do tempo gramaticalmente, eu inverto as relações, porque uso o tempo
futuro para referenciar o passado e vice-versa. Mas isso não é o problema
central. A questão é que essa posição é relativa a referenciais que são
igualmente móveis. Eu percebo que me joguinho é presente no momento que estou
em campo, mas, se eu olhar para o banhão que tomo para tirar aquela catiça de
torcedor, ele está no passado. Portanto, dependendo do referencial que eu usar,
a qualificação do evento varia. Não se trata somente da distância temporal,
como no exemplo da regressão infinita, mas da própria posição relativa no que
seria a régua do tempo. Se um evento é colocado nesse círculo vicioso, podendo
ser passado, presente ou futuro ao mesmo tempo, caímos na mesma contradição
lógica da série B, e inviabilizando a série A como expressão da realidade.
Visto que só podemos enxergar mudança nela, conclui-se que o tempo é irreal.
A contra-argumentação mais simples que podemos fazer à
hipótese de McTaggart é semelhante à que fazemos aos paradoxos
de Zenon, por exemplo. Mesmo que seja lógico dizer que um caminho pode
sempre ser dividido pela metade para justificar uma teórica nunca chegada, o
fato concreto, real e palpável e que nós chegamos. Dizer que o tempo não existe
como realidade porque ele não é lógico talvez fale mais sobre o alcance da
lógica do que da existência factual do tempo, que certamente tem aspectos
abstratos, mas mesmo lá, na abstração, ele existe.
De toda forma, o princípio geral que norteou o pensamento de
McTaggart ao discernir sobre o tempo é o de que a lógica plasma o mundo e o
mundo deve ser traduzido pela lógica. Sendo assim, se algo não pode ser
explicado pela lógica, há duas alternativas possíveis: ou o raciocínio não está
bem feito, ou temos alguma ilusão à nossa frente.
Diante do método, em cima da balança temporizadora, por
exemplo, mostra a mim que o tempo faz diferença, mesmo que seja percepcional. O
tempo em que cheguei ao consenso com minha Eva Solo está bem sólido e realmente
demonstra sua existência. Ou não? Bons ventos a todos!!!
Recomendação de leitura:
MCTAGGART, John. A Irrealidade do Tempo. In: Revista
Kriterion, nº 130. Disponível em: [https://www.researchgate.net/publication/315931954_A_irrealidade_do_tempo].
Acesso em 01/11/2024.
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