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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – o tempo irreal da lógica

(Uma contradição lógica pode nos provar que o tempo não existe?)

“E o ar que já passou pelos pulmões

De tão velho já quer ir descansar

Daqui pro futuro falta só um piscar

Que é pro tempo não mais nos enganar” 

John Ulhoa, Pato Fu

Olá!

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Depois de um longo e tenebroso inverno, trouxe para casa a joia da coroa. É um flagrante exagero, porque não passa de um método de extração de café que eu queria comprar faz tempo, mas cujo preço era proibitivo para um sujeito de minha renda. Acontece que os mecanismos de oportunidade da internet provaram sua utilidade. Deixei a intenção cadastrada já há mais de um ano, e uma notificação veio na telinha do meu celular, quando já nem ligava mais, causando-me estranheza pela pouca memória. Indicaram uma promoção muito boa em uma loja virtual, com preço reduzido e parcelas sem juros. Mesmo que um pouco dolorido ainda a tão delicado órgão, veio aquela perigosa sensação de “agora ou nunca” e mandei bala no cartão de crédito. Agora ele está lá, curtindo seu momento de primazia dentre os demais métodos. É a cafeteira de elegante nome Eva Solo.

A produtora do utensílio é uma empresa dinamarquesa especialista em inovações em design. Estruturalmente, é uma garrafa em vidro borossilicato onde se coloca café moído bem grosso, porque não se fará uma percolação convencional, mas se deixará em infusão por um tempo específico para fazer a extração.

Passado o tempo adequado, a filtragem é feita pela própria tampa, que retém os resíduos no momento em que o café é servido. Seu lado positivo é o corpo que dá à bebida, vez que retém pouquíssimo dos óleos naturais do grão. 

O objeto não é caro à toa. O filtro cônico de metal é encaixado de forma a evitar que se formem os temidos pingos que as vovós tanto detestam em suas toalhas, e a tampa tem um engenhoso sistema de abertura e fechamento automáticos para completar a função de servir.


A sofisticação chega ao ápice através de uma jaqueta de neoprene com zíper que é ajustada ao corpo esbelto da Eva, como se fosse uma mocinha surfista, ajudando a manter a temperatura e (dizem) diminuir o processo de oxidação do líquido, tornando a peça esteticamente única.


Nome do utensílio: Cafeteira Eva Solo

Tipo de técnica: Misto (Infusão e filtragem)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no fundo da garrafa de vidro e despeja-se a água fervente, em tempo suficiente para uma extração adequada. Após, encaixa-se o filtro e a tampa no bocal para exercer a função de despejo do café.

Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio/alto

Como todo método de infusão, o tempo é componente primordial neste tipo de extração. Se formos açodados, a extração será insuficiente e obteremos uma desanimada água de batata. Pelo contrário, se formos distensos, teremos um amargor digno das zurrapas de beira de estrada, o que é igualmente indesejável. Por esses motivos, métodos de infusão exigem um cuidado maior com o fator tempo para obter a bebida na medida certa.

Vou pensando nisso e o tempo vai passando, passando e passando, e eu pensando, pensando e pensando. Por fim, o toque de minutagem da balança me acorda do devaneio e vou servir o café, ainda tendo a cabeça numa forma de concretude do tempo, que não consigo vislumbrar, nem no relógio que demarca o prazo da extração, nem na posição da patroa que me aguarda já acordada na cama. Se o tempo não é concreto, por que dizemos que ele existe?

Aí é que está. Algo que não é tangível não é necessariamente inexistente. Não me refiro a entidades mágicas ou deidades, mas àquilo que damos o nome gramatical de substantivos abstratos, ou seja, objetos que possuem uma substância, uma existência real, mas que só operam em nível mental – abstratos. Está aí, evidentemente, toda sorte de sentimentos e sensações. Talvez os tais seres imateriais possam ser traduzidos em imagens concretas – pense em um anjo. O mesmo não acontece com os substantivos abstratos, que precisam emprestar de um substantivo concreto uma forma de lhes representar. Daí, temos os corações que representam amor, mas que não são amor em si, gelos que representam frio, mas que não são o frio em si, e assim sucessivamente.

E o tempo? É um substantivo concreto ou abstrato?

É possível encaixar argumentos nos dois lados. Se por um lado a representação de um relógio, uma ampulheta ou uma engrenagem que gira cumpre o mesmo papel de substituição típico dos abstratos, é inegável que a visualização das mudanças em nosso redor vai além das meras sensações, e a própria sucessão de eventos é a concretude dos tempos. Se o tempo pode ser medido, ele é concreto, como não acontece com o ódio, a ternura, as saudades, o tédio, a justiça, a misericórdia.

Será?

Às vezes a abordagem sobre o misterioso tempo é uma questão de lógica. Faz sentido conceder concretude a algo que é inerente à percepção humana? Sim, pode até ser que o tempo seja aplicável a cães e baratas, mas o fato é que eles não estão nem aí para relógios ou calendários. Mesmo que o tempo exista concretamente, ele só se aplica a nós.

O mesmo acontece com a lógica. Um leão não come a gazela porque é lógico que a coma, mas porque tem fome. Essas inerências e inferências são igual e tipicamente humanas. Portanto, é lícito dizer que, para que o tempo seja real, é preciso que ele seja lógico. Não lhes parece?

Pois bem. John McTaggart, filósofo inglês de cunho idealista, discordaria desse assertiva, e, por esse motivo, pensava ser o tempo uma irrealidade explicada unicamente pela percepção humana. É uma tese bastante complexa, na qual dei uma breve e insuficiente pincelada no texto onde eu falava sobre Filosofia do Tempo. Vou aprofundar um pouco melhor a partir de agora.

McTaggart parte do princípio aristotélico de que tempo é movimento. Se o mundo inteiro congelasse completamente por 30 minutos, por exemplo, esse lapso temporal não significaria nada, já que nada poderia ser percebido de diferente. Sendo assim, essa meia hora poderia ser uma hora inteira, um dia inteiro, a vida inteira. Também não vale aqueles exercícios budistas de meditação: o que está parado é o corpo, mas a mente está girando tanto quanto o sangue e o ar nos pulmões. Movimento imperceptível não é ausência de movimento.

Sendo o movimento um componente indissociável do tempo, existem dois eixos por onde este trafega: um que descreve o princípio da causalidade e outro que posiciona os eventos com relação ao momento.

O primeiro descreve a ordem com as quais os fenômenos acontecem no transcurso da história: o que vem antes, o que acontece no momento e o que ocorre depois. Se formos perceber bem, notaremos que este é o plano estático do tempo. Não temos como mudar o que tem anterioridade, o que tem simultaneidade e o que tem posteridade. Não há como o centroavante cabecear a bola antes que o ponta cobre o escanteio. E não há como ser assinalado o escanteio sem o corte providencial do zagueiro. A longa cadeia de nexo causal faz com que esse eixo seja, portanto, estático, e aplicável a toda a história. Sempre a Revolução Francesa terá acontecido antes da Revolução Russa, que sempre será concomitante à Primeira Guerra Mundial, e a Segunda sempre lhe será posterior, até porque, para que os fatos transcorram como transcorreram, é preciso que se desenrolem nessa ordem.

Aqui, começamos a perceber algumas colisões. Se esse eixo é estático, então pressupomos um imobilismo, já que é impossível trocas de posições dos eventos e, consequentemente, dos movimentos. Sendo assim, é preciso que exista um plano dinâmico, onde se possa observar movimentação. E é aqui que entra o segundo eixo.

Quando pensamos em qualquer tipo de evento, nós podemos imaginá-lo com relação a um referencial: se penso em algo que já aconteceu, temos o passado; se está acontecendo agora, é o presente, e se ainda ocorrerá, o evento é futuro. Este plano é dinâmico porque os estados se transformam. Algo que hoje é futuro, será presentificado e tornar-se-á passado, assim como o que está no passado, já foi presente e futuro. Dessa forma, ao contrário da série B, encontramos aqui dinamicidade e, consequentemente, movimentação, fator essencial para reconhecimento do tempo.

McTaggart deu ao trânsito passado-presente-futuro o nome de série A, e à anterioridade-simultaneidade-posterioridade o nome de série B. O grande problema é que, olhando para o sentido lógico, elas são contraditórias em si mesmas e entre si, e este é o cerne no argumento do inglês.

Começando pela série B. O entendimento de fixidez que a mesma contém não permite supor que um evento seja variável. Quando eu idealizo o tempo como uma régua, onde é possível vislumbrar que um evento acontece antes ou depois de outros, verifico que, se fosse factível a sua variabilidade, teríamos então ferido o princípio lógico da não-contradição, consagrado desde os tempos aristotélicos (vide). O eixo estático não permite antever posições variáveis, porque como as posições da régua são sempre imutáveis, pensar em mudanças na posição na série desmontaria sua lógica. Sendo assim, a mudança que é elemento necessário para constatar o tempo não se enxerga aqui. A série B não é possível como reflexo da realidade.

Essa mobilidade então deve ser buscada na série A, para verificar se ela sustenta a realidade do tempo e salva a série B. Como eu já disse, aqui os eventos ganham uma qualidade em relação a um ponto de referência. Se na série B um evento sempre será anterior ou posterior a outros, na série A este mesmo evento tem uma caraterística variável. Digamos que eu esteja dentro de um estádio esperando um jogo de vida ou morte do meu time favorito. Este momento era futuro no momento em que eu vestia o manto sagrado e me encaminhava para a estação do metrô, assim como se convolou em passado quando eu, já satisfeito (tomara), desembarcava na mesma estação de volta a casa. Ainda poderíamos dizer que há um elemento de fixidez semelhante à série B, mas a regressão ao passado e a projeção ao futuro podem se dar de forma infinita: passado e futuro próximos ou remotos. Eu posso dizer que estou no campo porque meu pai me ensinou a gostar de futebol, e que seu pai fez o mesmo, e assim por diante. E, com isso, podemos perceber a mobilidade do tempo.

Mas notem. A própria expressão da língua já traz alguma ambiguidade. Um evento qualquer é presente, e aqui não temos problemas. Mas ele também foi futuro e será passado. Percebam que, para expressar a referência do tempo gramaticalmente, eu inverto as relações, porque uso o tempo futuro para referenciar o passado e vice-versa. Mas isso não é o problema central. A questão é que essa posição é relativa a referenciais que são igualmente móveis. Eu percebo que me joguinho é presente no momento que estou em campo, mas, se eu olhar para o banhão que tomo para tirar aquela catiça de torcedor, ele está no passado. Portanto, dependendo do referencial que eu usar, a qualificação do evento varia. Não se trata somente da distância temporal, como no exemplo da regressão infinita, mas da própria posição relativa no que seria a régua do tempo. Se um evento é colocado nesse círculo vicioso, podendo ser passado, presente ou futuro ao mesmo tempo, caímos na mesma contradição lógica da série B, e inviabilizando a série A como expressão da realidade. Visto que só podemos enxergar mudança nela, conclui-se que o tempo é irreal.

A contra-argumentação mais simples que podemos fazer à hipótese de McTaggart é semelhante à que fazemos aos paradoxos de Zenon, por exemplo. Mesmo que seja lógico dizer que um caminho pode sempre ser dividido pela metade para justificar uma teórica nunca chegada, o fato concreto, real e palpável e que nós chegamos. Dizer que o tempo não existe como realidade porque ele não é lógico talvez fale mais sobre o alcance da lógica do que da existência factual do tempo, que certamente tem aspectos abstratos, mas mesmo lá, na abstração, ele existe.

De toda forma, o princípio geral que norteou o pensamento de McTaggart ao discernir sobre o tempo é o de que a lógica plasma o mundo e o mundo deve ser traduzido pela lógica. Sendo assim, se algo não pode ser explicado pela lógica, há duas alternativas possíveis: ou o raciocínio não está bem feito, ou temos alguma ilusão à nossa frente.

Diante do método, em cima da balança temporizadora, por exemplo, mostra a mim que o tempo faz diferença, mesmo que seja percepcional. O tempo em que cheguei ao consenso com minha Eva Solo está bem sólido e realmente demonstra sua existência. Ou não? Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

MCTAGGART, John. A Irrealidade do Tempo. In: Revista Kriterion, nº 130. Disponível em: [https://www.researchgate.net/publication/315931954_A_irrealidade_do_tempo]. Acesso em 01/11/2024.

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