Marcadores

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Pequeno guia das grandes falácias – 71º tomo: o ilícito menor

(Fazia tempo que eu não fazia um texto sobre falácias. Vamos nessa.) 

“Afirmar que os predicados podem ser sempre combinados sem qualquer exceção acarreta evidentemente muitos absurdos” 

Aristóteles

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Eu, a rigor, não sou um cara muito polêmico. Todos esses anos tendo que lidar com meus usuários (de sistemas) me fez criar uma política de boa vizinhança, primeiro porque é uma questão de educação, depois porque só assim as coisas saem do lugar em um universo francamente conservador, cuja menor virada de chave faz parecer que você está arrancando um órgão da pessoa. É fato. Já vi gente reclamando que vai ficar com tendinite por usar mais o mouse que o teclado, que ainda é usado como se fosse máquina de escrever. E é a mesma pessoa que aprecia mudar de ares, mudar de visual, mudar de cônjuge, e detesta mudar a cor da grama quando se trata de trabalho.

Mas não tem jeito. Há medo envolvido, há comodidade, há até vaidade, então é preciso procurar ser compreensivo. Mas mesmo com a condescendência e a paciência, certas armadilhas retóricas são inevitáveis, porque não conseguimos nos resguardar cem por cento do tempo. E vamos combinar que nem sempre queremos fugir do bom combate.

O caso que deu origem a esse prólogo foi simples, ou seja, não envolveu nenhum tipo de perigo, já que a coisa se desenrolou NO serviço, mas não EM FUNÇÃO do serviço.

A coisa foi mais ou menos assim: há uns tempos, quando queríamos testar funcionalidades novas, fazíamos uma cópia dos dados gravados em uso e vamos que vamos. Em decorrência da LGPD, que exige uma série de cuidados no trato com os dados, quando estamos homologando nossos trabalhos hoje em dia fazemos cargas com nomes fictícios. Tem gente que usa nomes genéricos, como Teste1, Teste2 e etc. Tem gente que usa os Lorem Ipsum da vida e tem gente que carrega nomes de fato, mas de pessoas públicas, para dar uma cara mais realista ao que se homologa. Um dos analistas com quem trabalho costuma usar nomes de pilotos de Fórmula 1, uma paixão sua (e minha). Lá está todo o grid atual, com Max Verstappen, Charles Leclerc, Pierre Gasly, Lewis Hamilton e todos os demais, assim como algumas feras do passado mais conhecidas, dentre eles Alain Prost, Nigel Mansell, Niki Lauda, além, é claro, do indefectível Ayrton, Ayrton, Ayyyyyyyyyrton Senna do Brasil!!!

Entre mim e ele, há uma diferença substancial de idade. No fatídico 01 de maio de 1994, ele era um bebezinho de fraldas, enquanto eu já era pai de duas crianças. Ou seja, entre nós, a testemunha ocular da tragédia era eu. O comentário sobre a carga de nomes automobilísticos inexoravelmente levou ao bate-papo que culminou com o falecido piloto, seus feitos e defeitos. Defeitos? Por incrível que possa parecer, o tema é espinhoso até os dias de hoje, trinta anos depois.

A cena é simples. O moço de seus trinta anos não testemunhou os feitos do grande piloto, embora haja YouTube com material à beça para ser assistido, livros e séries, com uma bastante recente fazendo falas por aí. Mas ele é fã, como se estivesse nos autódromos do mundo acompanhando a carreira desde o kart até a fatalidade. Eu não sou fã do Senna, já expliquei no texto em questão, porque não tenho ídolos no automobilismo. E eu externei isso, para meu desgosto.

A resposta veio seca: então você não é brasileiro.


Isso mostra que o piloto em questão é um símbolo que é defendido como defendemos nossos totens, nossos ícones, nossos objetos sagrados, e isso acontece porque sentimos o sagrado como parte de nós mesmos, e isso aumenta a veemência da resposta na mesma medida em que diminui a sua racionalidade, o que é, em casos extremos, perigoso até. Não se trata do momento em questão, mas pode derivar para isso.

Mas eu não desci do pedestal. Respondi que dizer que não sou brasileiro é uma falácia: o ilícito menor. Pelo inesperado, meu jovem colega me olhou com cara de ET, e tive que me explicar, para nunca esquecer do espírito professoral.

Sempre que pensamos em falácias, temos em mente uma intenção de engodo, o que é feito na base dos argumentos exagerados, ou com foco restrito, e assim por diante. Entretanto, existem argumentos que são construídos com defeitos lógicos, que são as chamadas falácias formais. Aqui, o erro não está propriamente na intenção, mas nos alicerces da proposição. Sabemos o que acontece com uma casa com mais alicerces.

Para explicar melhor, tenho que passar pela parte chata e mais técnica de explicar a estrutura dos silogismos, a ferramenta aristotélica que pretende utilizar a dedução para validar argumentos.

Grosso modo, existem duas formas clássicas de silogismo: o categórico e o hipotético. Como o que nos interessará no momento é o primeiro, vou dar uma espanadinha de leve no segundo. Silogismo hipotético, como o próprio nome diz, é voltado a estabelecer estrutura lógica em hipóteses, bem ao tipo daqueles “se… então”. Um argumento desse tipo bem simples é construído assim:

Se meu time vencer a final, será campeão.

Meu time venceu a final.

Portanto, meu time é campeão.

Ou seja, a conclusão é a confirmação de uma hipótese. Mas nos interessa hoje o silogismo categórico, e vamos nos debruçar sobre ele. Um silogismo é categórico quando ele propõe peremptoriamente um argumento, sendo que, uma vez cumprida as premissas, a conclusão seja de rigor.

O silogismo categórico, dessa forma, é uma forma de síntese de uma aplicação lógica, onde a linguagem expressa um fenômeno da realidade. Como pretende ter caráter veritativo, possui algumas regras para que funcione a contento. Vamos a elas.

1. Todo silogismo contém três termos:

Os silogismos não são meras frasezinhas bonitinhas, mas são encadeamentos linguísticos que se assemelham aos componentes de uma máquina, que interagem entre si para produzir um trabalho.  Silogismos possui três peças a quem damos o nome de termos: um termo maior, que faz referência a um universo mais abrangente; um termo menor, que limita o alcance do entendimento e dá mais precisão a ele, e um termo médio, que se encarrega de unir os outros dois e fazê-los desembocar em uma conclusão.

No silogismo por excelência, aquele do Sócrates, podemos ver com facilidade essa mecânica.

Todo homem é mortal

Sócrates é homem

Portanto, Sócrates é mortal

A primeira premissa tem abrangência universal, já que fornece um aspecto comum de toda a humanidade. A segunda particulariza em Sócrates o seu pertencimento ao sujeito prescrito na premissa anterior. Unidos pelo ponto comum (termo médio), deságuam na conclusão de que, por pertencer a um universo (todo homem), o particular (Sócrates) compactua com sua característica.

2. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior do que os das premissas:

Quando falamos em extensão de um silogismo, referimo-nos ao campo que a proposição alcança. Via de regra, podemos ter abrangência universal, particular múltipla, particular individual ou nenhuma, assim: quando eu falo em “todos”, estou me referindo à totalidade de um determinado sujeito, como “todas as pessoas”. Se eu falo em “alguns”, falo de parte das pessoas de um grupo. Se falo em um indivíduo específico, posso mencionar um nome, por exemplo eu mesmo, e a particularidade desce ao seu menor grão, o indivíduo. E se falo em “nenhum”, a aplicação é a ninguém. Em termos de extensão, essa ordem vai da maior para a menor, e a conclusão não pode indicar mais do que está sendo discutido nas premissas. Se eu estou falando em “alguns homens”, não posso concluir disso algo que atinja toda a humanidade.

3. O termo médio não pode constar da conclusão:

O termo médio existe em um silogismo para amarrar as premissas, e, por conta de seu próprio funcionamento, precisa estar ausente na conclusão. Distribuir um termo médio significa exatamente fornecer a porção que cada premissa terá na construção da conclusão.

4. O termo médio deve ser aplicado universalmente pelo menos em uma das premissas

O termo médio precisa alcançar toda a sua extensão ao menos em uma das premissas, do contrário sempre haverá um gap de elementos que poderá não ser atingido, o que impede o silogismo de ser categórico. Se eu falar que alguns homens são mortais e que Sócrates é homem, não conseguirei deduzir se ele faz parte do grupo dos alguns homens que são mortais ou não.

5. De duas premissas particulares, nada se conclui

Decorrência da regra anterior, também aqui é impossível chegar a uma conclusão firme, por falta de extensão.

6. De duas premissas negativas, nada se conclui

Mais uma vez, temos a questão da abrangência. Se eu estou negativando ambas as premissas, não tenho como firmar um entendimento que leve a alguma conclusão. 

7. De duas premissas afirmativas, não pode ser extraída uma conclusão negativa

Essa é a mais óbvia de todas. Se eu afirmo duas vezes alguma coisa, não há sentido em se chegar a uma conclusão negativa sem incorrer em erro. Quando eu falo que todos os homens são mortais e que Sócrates é homem, não há nenhuma maneira de torcer o argumento para dizer que Sócrates NÃO é mortal. Sem gracinhas de dizer que ele se eterniza em sua obra, por gentileza. Nossa referência é bem clara.

8. A conclusão sempre segue a premissa mais fraca 

O que são as premissas fracas? São aquelas que atingem mais frouxamente um argumento. Quando afirmamos uma coisa ou a atribuímos à universalidade, havemos de concordar que sua abrangência é muito maior do que um argumento que nega ou que se refere a apenas uma parcela dos objetos. Ainda assim, a conclusão, quando envolve uma negação ou o direcionamento a um particular, deve segui-los, porque uma conclusão não pode afirmar mais do que as premissas permitem.

Bom… como podemos construir um silogismo a partir da afirmação de meu camarada? Vamos tentar.

Segundo posso inferir, ele expressa que todo brasileiro tem algum ídolo, preferencialmente o Ayrton do Brasil. No entanto, existem pessoas que não possuem ídolos, e que, portanto, esses não são brasileiros. Colocando em forma de silogismo, temos…

Todos os brasileiros possuem ídolos 

Algumas pessoas não possuem ídolos

Portanto, todas as pessoas que não possuem ídolos não são brasileiras.

Onde está a falha deste argumento? Observemos que a premissa menor, a segunda, indica que temos uma extensão particular, ou seja, que diz respeito a uma parte dos objetos para os quais vira seu foco, já que falamos que há algumas pessoas sem ídolo, e não todas. Mas o que temos na conclusão? O mesmo termo tomado em toda a sua extensão. Quando fazemos uma afirmação dessa, é possível ver que há uma falha em sua estrutura, que não permite realizar a maior de todas as assertivas sobre o silogismo: a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. E isso ocorre por haver quebra na última regra, a de que a conclusão segue a premissa mais fraca.

Por se tratar de um defeito relacionado a um uso indivíduo da premissa menor, esta falácia formal recebe o nome de ilícito menor. Não se trata, evidentemente, de um crimezinho de pouca monta, como uma contravenção ou roubo de galinha, porque a ilicitude no caso se dá no uso indevido de uma forma dedutiva aplicado à premissa menor, que, no caso, é particular, mas aplicada como universal.

Esse salto lógico normalmente é usado sem má intenção, talvez apenas com pressa ou vontade de firmar posição, principalmente porque, a depender da complexidade dos detalhes, pode ficar bem oculto. Mas tem momentos em que passa despercebido.

Fiquem tranquilos, não fiquei de mal do amiguinho. A coisa passou como quase tudo na vida, e até voltamos a falar do tema sem ressentimentos, apenas com as posições mais bem marcadas. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Não se fala em lógica formal sem se falar em Aristóteles, e vou bisar a recomendação aqui.

ARISTÓTELES. Organon. Bauru: Edipro, 2005.

E vamos ter uma série dramática sobre Ayrton Senna sendo lançada na Netflix no finzinho deste mês. É a primeira recomendação antecipada que faço, embora não esteja com bom palpite. Normalmente o que temos nesses casos são panegíricos que reforçam características que o personagem não tem, tornando-o falsificado. Prometo fazer um texto sobre ela.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – o tempo irreal da lógica

(Uma contradição lógica pode nos provar que o tempo não existe?)

“E o ar que já passou pelos pulmões

De tão velho já quer ir descansar

Daqui pro futuro falta só um piscar

Que é pro tempo não mais nos enganar” 

John Ulhoa, Pato Fu

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Depois de um longo e tenebroso inverno, trouxe para casa a joia da coroa. É um flagrante exagero, porque não passa de um método de extração de café que eu queria comprar faz tempo, mas cujo preço era proibitivo para um sujeito de minha renda. Acontece que os mecanismos de oportunidade da internet provaram sua utilidade. Deixei a intenção cadastrada já há mais de um ano, e uma notificação veio na telinha do meu celular, quando já nem ligava mais, causando-me estranheza pela pouca memória. Indicaram uma promoção muito boa em uma loja virtual, com preço reduzido e parcelas sem juros. Mesmo que um pouco dolorido ainda a tão delicado órgão, veio aquela perigosa sensação de “agora ou nunca” e mandei bala no cartão de crédito. Agora ele está lá, curtindo seu momento de primazia dentre os demais métodos. É a cafeteira de elegante nome Eva Solo.

A produtora do utensílio é uma empresa dinamarquesa especialista em inovações em design. Estruturalmente, é uma garrafa em vidro borossilicato onde se coloca café moído bem grosso, porque não se fará uma percolação convencional, mas se deixará em infusão por um tempo específico para fazer a extração.

Passado o tempo adequado, a filtragem é feita pela própria tampa, que retém os resíduos no momento em que o café é servido. Seu lado positivo é o corpo que dá à bebida, vez que retém pouquíssimo dos óleos naturais do grão. 

O objeto não é caro à toa. O filtro cônico de metal é encaixado de forma a evitar que se formem os temidos pingos que as vovós tanto detestam em suas toalhas, e a tampa tem um engenhoso sistema de abertura e fechamento automáticos para completar a função de servir.


A sofisticação chega ao ápice através de uma jaqueta de neoprene com zíper que é ajustada ao corpo esbelto da Eva, como se fosse uma mocinha surfista, ajudando a manter a temperatura e (dizem) diminuir o processo de oxidação do líquido, tornando a peça esteticamente única.


Nome do utensílio: Cafeteira Eva Solo

Tipo de técnica: Misto (Infusão e filtragem)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no fundo da garrafa de vidro e despeja-se a água fervente, em tempo suficiente para uma extração adequada. Após, encaixa-se o filtro e a tampa no bocal para exercer a função de despejo do café.

Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio/alto

Como todo método de infusão, o tempo é componente primordial neste tipo de extração. Se formos açodados, a extração será insuficiente e obteremos uma desanimada água de batata. Pelo contrário, se formos distensos, teremos um amargor digno das zurrapas de beira de estrada, o que é igualmente indesejável. Por esses motivos, métodos de infusão exigem um cuidado maior com o fator tempo para obter a bebida na medida certa.

Vou pensando nisso e o tempo vai passando, passando e passando, e eu pensando, pensando e pensando. Por fim, o toque de minutagem da balança me acorda do devaneio e vou servir o café, ainda tendo a cabeça numa forma de concretude do tempo, que não consigo vislumbrar, nem no relógio que demarca o prazo da extração, nem na posição da patroa que me aguarda já acordada na cama. Se o tempo não é concreto, por que dizemos que ele existe?

Aí é que está. Algo que não é tangível não é necessariamente inexistente. Não me refiro a entidades mágicas ou deidades, mas àquilo que damos o nome gramatical de substantivos abstratos, ou seja, objetos que possuem uma substância, uma existência real, mas que só operam em nível mental – abstratos. Está aí, evidentemente, toda sorte de sentimentos e sensações. Talvez os tais seres imateriais possam ser traduzidos em imagens concretas – pense em um anjo. O mesmo não acontece com os substantivos abstratos, que precisam emprestar de um substantivo concreto uma forma de lhes representar. Daí, temos os corações que representam amor, mas que não são amor em si, gelos que representam frio, mas que não são o frio em si, e assim sucessivamente.

E o tempo? É um substantivo concreto ou abstrato?

É possível encaixar argumentos nos dois lados. Se por um lado a representação de um relógio, uma ampulheta ou uma engrenagem que gira cumpre o mesmo papel de substituição típico dos abstratos, é inegável que a visualização das mudanças em nosso redor vai além das meras sensações, e a própria sucessão de eventos é a concretude dos tempos. Se o tempo pode ser medido, ele é concreto, como não acontece com o ódio, a ternura, as saudades, o tédio, a justiça, a misericórdia.

Será?

Às vezes a abordagem sobre o misterioso tempo é uma questão de lógica. Faz sentido conceder concretude a algo que é inerente à percepção humana? Sim, pode até ser que o tempo seja aplicável a cães e baratas, mas o fato é que eles não estão nem aí para relógios ou calendários. Mesmo que o tempo exista concretamente, ele só se aplica a nós.

O mesmo acontece com a lógica. Um leão não come a gazela porque é lógico que a coma, mas porque tem fome. Essas inerências e inferências são igual e tipicamente humanas. Portanto, é lícito dizer que, para que o tempo seja real, é preciso que ele seja lógico. Não lhes parece?

Pois bem. John McTaggart, filósofo inglês de cunho idealista, discordaria desse assertiva, e, por esse motivo, pensava ser o tempo uma irrealidade explicada unicamente pela percepção humana. É uma tese bastante complexa, na qual dei uma breve e insuficiente pincelada no texto onde eu falava sobre Filosofia do Tempo. Vou aprofundar um pouco melhor a partir de agora.

McTaggart parte do princípio aristotélico de que tempo é movimento. Se o mundo inteiro congelasse completamente por 30 minutos, por exemplo, esse lapso temporal não significaria nada, já que nada poderia ser percebido de diferente. Sendo assim, essa meia hora poderia ser uma hora inteira, um dia inteiro, a vida inteira. Também não vale aqueles exercícios budistas de meditação: o que está parado é o corpo, mas a mente está girando tanto quanto o sangue e o ar nos pulmões. Movimento imperceptível não é ausência de movimento.

Sendo o movimento um componente indissociável do tempo, existem dois eixos por onde este trafega: um que descreve o princípio da causalidade e outro que posiciona os eventos com relação ao momento.

O primeiro descreve a ordem com as quais os fenômenos acontecem no transcurso da história: o que vem antes, o que acontece no momento e o que ocorre depois. Se formos perceber bem, notaremos que este é o plano estático do tempo. Não temos como mudar o que tem anterioridade, o que tem simultaneidade e o que tem posteridade. Não há como o centroavante cabecear a bola antes que o ponta cobre o escanteio. E não há como ser assinalado o escanteio sem o corte providencial do zagueiro. A longa cadeia de nexo causal faz com que esse eixo seja, portanto, estático, e aplicável a toda a história. Sempre a Revolução Francesa terá acontecido antes da Revolução Russa, que sempre será concomitante à Primeira Guerra Mundial, e a Segunda sempre lhe será posterior, até porque, para que os fatos transcorram como transcorreram, é preciso que se desenrolem nessa ordem.

Aqui, começamos a perceber algumas colisões. Se esse eixo é estático, então pressupomos um imobilismo, já que é impossível trocas de posições dos eventos e, consequentemente, dos movimentos. Sendo assim, é preciso que exista um plano dinâmico, onde se possa observar movimentação. E é aqui que entra o segundo eixo.

Quando pensamos em qualquer tipo de evento, nós podemos imaginá-lo com relação a um referencial: se penso em algo que já aconteceu, temos o passado; se está acontecendo agora, é o presente, e se ainda ocorrerá, o evento é futuro. Este plano é dinâmico porque os estados se transformam. Algo que hoje é futuro, será presentificado e tornar-se-á passado, assim como o que está no passado, já foi presente e futuro. Dessa forma, ao contrário da série B, encontramos aqui dinamicidade e, consequentemente, movimentação, fator essencial para reconhecimento do tempo.

McTaggart deu ao trânsito passado-presente-futuro o nome de série A, e à anterioridade-simultaneidade-posterioridade o nome de série B. O grande problema é que, olhando para o sentido lógico, elas são contraditórias em si mesmas e entre si, e este é o cerne no argumento do inglês.

Começando pela série B. O entendimento de fixidez que a mesma contém não permite supor que um evento seja variável. Quando eu idealizo o tempo como uma régua, onde é possível vislumbrar que um evento acontece antes ou depois de outros, verifico que, se fosse factível a sua variabilidade, teríamos então ferido o princípio lógico da não-contradição, consagrado desde os tempos aristotélicos (vide). O eixo estático não permite antever posições variáveis, porque como as posições da régua são sempre imutáveis, pensar em mudanças na posição na série desmontaria sua lógica. Sendo assim, a mudança que é elemento necessário para constatar o tempo não se enxerga aqui. A série B não é possível como reflexo da realidade.

Essa mobilidade então deve ser buscada na série A, para verificar se ela sustenta a realidade do tempo e salva a série B. Como eu já disse, aqui os eventos ganham uma qualidade em relação a um ponto de referência. Se na série B um evento sempre será anterior ou posterior a outros, na série A este mesmo evento tem uma caraterística variável. Digamos que eu esteja dentro de um estádio esperando um jogo de vida ou morte do meu time favorito. Este momento era futuro no momento em que eu vestia o manto sagrado e me encaminhava para a estação do metrô, assim como se convolou em passado quando eu, já satisfeito (tomara), desembarcava na mesma estação de volta a casa. Ainda poderíamos dizer que há um elemento de fixidez semelhante à série B, mas a regressão ao passado e a projeção ao futuro podem se dar de forma infinita: passado e futuro próximos ou remotos. Eu posso dizer que estou no campo porque meu pai me ensinou a gostar de futebol, e que seu pai fez o mesmo, e assim por diante. E, com isso, podemos perceber a mobilidade do tempo.

Mas notem. A própria expressão da língua já traz alguma ambiguidade. Um evento qualquer é presente, e aqui não temos problemas. Mas ele também foi futuro e será passado. Percebam que, para expressar a referência do tempo gramaticalmente, eu inverto as relações, porque uso o tempo futuro para referenciar o passado e vice-versa. Mas isso não é o problema central. A questão é que essa posição é relativa a referenciais que são igualmente móveis. Eu percebo que me joguinho é presente no momento que estou em campo, mas, se eu olhar para o banhão que tomo para tirar aquela catiça de torcedor, ele está no passado. Portanto, dependendo do referencial que eu usar, a qualificação do evento varia. Não se trata somente da distância temporal, como no exemplo da regressão infinita, mas da própria posição relativa no que seria a régua do tempo. Se um evento é colocado nesse círculo vicioso, podendo ser passado, presente ou futuro ao mesmo tempo, caímos na mesma contradição lógica da série B, e inviabilizando a série A como expressão da realidade. Visto que só podemos enxergar mudança nela, conclui-se que o tempo é irreal.

A contra-argumentação mais simples que podemos fazer à hipótese de McTaggart é semelhante à que fazemos aos paradoxos de Zenon, por exemplo. Mesmo que seja lógico dizer que um caminho pode sempre ser dividido pela metade para justificar uma teórica nunca chegada, o fato concreto, real e palpável e que nós chegamos. Dizer que o tempo não existe como realidade porque ele não é lógico talvez fale mais sobre o alcance da lógica do que da existência factual do tempo, que certamente tem aspectos abstratos, mas mesmo lá, na abstração, ele existe.

De toda forma, o princípio geral que norteou o pensamento de McTaggart ao discernir sobre o tempo é o de que a lógica plasma o mundo e o mundo deve ser traduzido pela lógica. Sendo assim, se algo não pode ser explicado pela lógica, há duas alternativas possíveis: ou o raciocínio não está bem feito, ou temos alguma ilusão à nossa frente.

Diante do método, em cima da balança temporizadora, por exemplo, mostra a mim que o tempo faz diferença, mesmo que seja percepcional. O tempo em que cheguei ao consenso com minha Eva Solo está bem sólido e realmente demonstra sua existência. Ou não? Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

MCTAGGART, John. A Irrealidade do Tempo. In: Revista Kriterion, nº 130. Disponível em: [https://www.researchgate.net/publication/315931954_A_irrealidade_do_tempo]. Acesso em 01/11/2024.