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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Pequeno guia das grandes falácias - 18º tomo: o apelo à adulação (falácia do puxa-saco)

Olá!

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Vamos para mais um item deste intrépido guia, que pretende, com uma pitada de bom humor, iluminar um pouquinho o espaçoso universo dos “apliques linguísticos”, as famosas falácias. Desta vez, vamos lidar com uma das mais comuns de todas, o apelo à adulação, mais bem conhecida como falácia do puxa-saco ou do beija-mão (em alguns casos, beija-pé).

Vamos encher os pés de beijos

É uma das mais tolas e ingênuas de todas as falácias, no sentido de que acaba sendo posta em evidência de forma muito destacada. E é utilizadíssima. Basicamente, sempre que exista uma relação de bajulação, é necessário que se lance mão dessa falácia em algum momento. Só que é também uma das mais perniciosas, porque busca tirar vantagens através das fraquezas de ambos os lados: a falha de caráter de quem a usa e a permissividade de quem a recebe.

Para começar, não há como evitar uma ilustração rápida através do desarquivamento de mais uma pasta de minha memória. Como o tema que abordarei é um pouco constrangedor, lançarei mão de pseudônimos para ilustrar a situação.

Em uma das empresas em que trabalhei, havia alguns momentos em que, por conta de um fenômeno qualquer, era necessário juntar as principais inteligências presentes para carregar peso de um lado para o outro. Mudanças de sala, rearranjo do espaço, reformas e adaptações do prédio, instalação de cabos de rede e via discorrendo eram motivos para essas súbitas paradas no transcurso normal de nossas tarefas, todos decididos por um instável gerente. Geralmente essa novidade era repentina, pegando de surpresa os meninos mais fortinhos, como este que vos fala. E também abrangia gente de todas as seções da empresa, para que o incômodo fosse o mais rapidamente resolvido.

Como eu disse, havia vários motivos diferentes para que estes “acontecimentos” fossem disparados. Em um desses dias, encontrávamo-nos todos carregando pilhas de papéis e de equipamentos. Havia no setor um funcionário (chamá-lo-ei de X) que era fortemente coligado a esse gerente. Ele não estava carregando sequer uma palha, e ainda impunha aos outros funcionários que cuidassem da parte que lhe caberia. Adotemos rapidamente uma linguagem teatral:

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Personagens:

Décio – Funcionário barbudo e gordo, muito suado.

X – Funcionário que se veste com certo exagero, próximo ao Gerente. Tem uma mesa ridiculamente desimpedida.

Gerente – Superior hierárquico da seção, sentado mais ao fundo em uma mesa cheia de papéis.

Diversos funcionários com papéis e objetos nas mãos.

(Vários funcionários estão carregando grandes quantidades de objetos. Há apenas dois funcionários que se encontram sentados em suas mesas – o funcionário X e o gerente. O gerente se encontra absorto em seus afazeres, enquanto X retoca sua gravata observando um pequeno espelho).

Décio vem carregando sua pilha e desvia o olhar na direção de X. Ele para e coloca seus objetos sobre uma mesa.

(Décio, tenso) – Ô! Não vai carregar nada, não?

(X) – Ai, eu não posso... Eu tenho problema nas costas.

(Décio, com cara de desprezo) – Problema nas costas... Carrega as coisas leves, tá cheio de porcariada que só atrapalha o caminho.

(X) – Mas eu preciso ficar, o gerente está sempre tão ocupado que precisa de alguém que lhe ajude...

(O gerente) – Pode deixar o X aí. Ele tem problema nas costas...

(Décio abaixa as orelhas, retoma sua carga e sai. X dá um sorriso vil com o canto dos lábios).

(...)

(Mais tarde, já sem a presença do gerente).

(Décio) – X, você não tem vergonha de ser tão puxa-saco?

(X) – É que você não entende nada. Eu e o gerente somos amiguíssimos (sic) a muitos anos. Nós nos queremos muito bem.

(Décio faz uma cara de bunda e sente cheiro de pelo atritado no ar. Fecha o pano).

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Sentiram? Aí está o apelo à adulação, um tipo de falácia de dispersão que introduz argumento irrelevante para definir os rumos da prosa. A parte sublinhada representa o exato momento em que a falácia é aplicada. Nota-se que a adulação não é relevante para argumentar, mas para desviar o foco daquilo que se discute. No caso acima, a ocupação do gerente pode ser real, mas o contexto e a forma como é usada realça a sua importância à empresa, de modo a massagear seu ego. O apelo à adulação é, portanto, uma forma mais miserável do argumentum ad vanitatem, que veremos em outro texto. Percebam também que o gerente despreza a principal adulação, mas não deixa de atender a demanda do funcionário X, destacando o caráter humanitário que é poupar o “sofrimento” do pobre lustra-bolas.

Mas se prestam alguns esclarecimentos. O termo “puxa-saco” não tem a ver com partes pudendas. Na verdade, o termo surgiu a partir do hábito militar hierárquico de obrigar os soldados novatos a carregar não somente suas mochilas de suprimentos, mas também as de seus superiores de maior patente. Como essa atitude eventualmente podia fazer render alguns pequenos favores e indulgências (do tipo ter acesso a comida melhor ou ganhar folga de tarefa tediosa), alguns soldados passaram a se oferecer voluntariamente à inglória tarefa, causando certo desconforto e indignação nos colegas. Daí até impingir-lhes a pecha que o termo em epígrafe proporciona, foi um passo.

Como a gente só pensa “naquilo”, o tal saco saiu da esfera têxtil e recaiu sobre o sensível órgão, e, com isso, surgiram outros termos, desta vez de conotação evidentemente sexual, como “lustra-bolas” e “baba-ovo”. Nestes casos, pressupõe-se o extremo de se prestar obséquios impudicos para a obtenção de obséquios outros, geralmente prevaricantes ou condescendentes.

Mas a história é rigorosamente prenhe de puxa-saquismos. Uma tradição que veio do tempo do império é o beija-mão. Essa cerimônia era uma oportunidade dada ao povo em geral para se ver adiante e entrar em contato com o monarca. Como este era tido como uma espécie de pai da população, era dado o mesmo tipo de reverência que se dava aos pais e avós, ou seja, um pedido de benção representado por um beijo na mão, escancarando o paternalismo no plano simbólico. E, muitas vezes, era o momento perfeito para se pedir algum pequeno favor ao rei; raramente aceitos, mas muitas vezes requisitados. E, neste momento, percebemos a ligação que há entre adulação e retribuição.

Outra tradição é a exacerbação do item anterior, o beija-pé. É um rito da Igreja Católica em que o fiel deveria se ajoelhar e beijar uma cruz situada no sapato do papa. É uma espécie de reconhecimento à transmissão do poder sacerdotal de Jesus para seu representante no mundo. E, evidentemente, de submissão.

Essa prática pode até ter nascido como instrumento de bajulação, mas foi de tal forma absorvido que deixou de ser uma manifestação informal para virar um rito prescrito no protocolo papal. Só foi abolido na década de 60, ou seja, há cerca de 50 anos!!! O papa Paulo VI entendeu que o rito era exagerado e que, no espírito do Concílio Vaticano II, se a Igreja queira uma aproximação com os fiéis, deveria buscar a simplicidade no seu trato. De fato, o hábito nasceu dos agrados que se queriam fazer aos imperadores que dominavam o mundo na época em que o Cristianismo se consolidou. Mas em um mundo onde a monarquia é um sistema em declínio, que existe em poucos lugares, e que está mais ligada à uma representação simbólica do que ao efetivo exercício do poder (vide Inglaterra, Espanha, Suécia, Dinamarca, Japão), pouco se justifica uma reverência tão extrema. E até contraditória com a humildade de seu mentor.

Cabe aqui fazer duas distinções importantes. Na primeira, vamos observar que há diferenças significativas entre adulação e subserviência, principalmente porque a primeira é ativa, enquanto a segunda é passiva. O adulador toma uma atitude, o subserviente aceita uma atitude. Explico melhor: o adulador sempre toma uma atitude para agradar àquele de quem deseja manter vínculos. É ele quem traz a maçã, quem se oferece para trabalhar mais, quem dá o presente mais caro, quem se propõe a carregar a mochila mais pesada, e o faz com estrépito e publicidade – não existe bajulação anônima, sob pena de perda dos efeitos desejados. Eu, pelo menos, nunca vi um emérito adulador deixar quietinho um agrado na mesa do chefe, sem um cartão, uma piscadinha, uma insinuação qualquer. Já o subserviente é aquele que acata ordens sem discutir. Por maior que seja a baboseira proferida pelas estantes mais altas das prateleiras da hierarquia, o subserviente se cala e cumpre o que lhe foi determinado. É o famoso cagão, que aceita sua condição por medo ou acomodação. É uma atitude acrítica ou reprimida, sintetizada no famoso aforismo “manda quem pode, obedece que tem juízo”.

Existe quem obtenha vantagens por ser subserviente? Sim, mais aí não temos adulação. Há até quem possua ambas as “qualidades”, mas que não se confundam alhos com bugalhos.

A segunda distinção é mais importante. Temos, especialmente no Brasil, o estranho hábito de chamar de puxa-saco todos aqueles trabalhadores que procuram não faltar ao serviço, que se esforçam para cumprir seus prazos, que usam seus direitos trabalhistas com parcimônia; entram nesse cômputo os alunos pontuais, que não conturbam a classe, que entregam seus trabalhos completos, limpos e na data. E, principalmente, são chamados de bajuladores por manter boas relações com seus superiores. Para começar, são pessoas que estão cumprindo DEVERES, coisa que detestamos fazer e admitir, mas é assim que as coisas são, e tudo funcionaria melhor se todos fizessem o mesmo. As pessoas tem o direito de achar sua carga de trabalho justa, sua remuneração suficiente e seus direitos razoáveis sem que isso precise ser chamado de adulação e subserviência. Trabalhar bem não é, nem de perto, um ato de bajulação.

E também o fato de existir uma relação de comando não nos torna inimigos automáticos dos nossos superiores. Tratar bem o chefe, como tratamos qualquer colega nosso, não é uma demonstração de puxa-saquismo, mas de boa educação e cordialidade, atitude saudáveis em qualquer ambiente onde se desenvolvem relações humanas.

Recomendação de vídeos:

Para quem acha que humor na televisão nunca deu certo, recomendo três vídeos que mostram Chico Anísio e sua trupe em seu melhor momento, no programa chamado “Escolinha do Professor Raimundo”. Três de seus personagens foram eméritos bajuladores. O mais conhecido de todos, provavelmente, era o impagável Rolando Lero, interpretado pelo magistral Rogério Cardoso. O personagem sempre lançava os mais diversos elogios ao professor, o “amado mestre, amantíssimo guru”, com o propósito de disfarçar sua oligofrenia e obter notas minimamente aceitáveis, mas fracassava em quase 100% das vezes:

Logo em seguida, menciono seu irmão, Armando Volta, defendido pelo ator e dublador David Pinheiro. Da mesma forma que Rolando, este aluno procurava persuadir o professor a lhe aplicar boas notas. Só que havia um diferencial importante: ao contrário de seu irmão, Armando Volta subornava o professor, sempre lhe trazendo algum tipo de brinde. O professor Raimundo, nesse caso, mostrava-se venal, dando algum tipo de dica para que o aluno conseguisse obter a nota desejada:

Por último, vou lembrar do personagem de Lúcio Mauro, seu Aldemar Vigário, que, como o próprio nome diz, não tinha princípios éticos lá muito claros. Ele procurava bajular o professor criando histórias cheias de aventura, onde o protagonista era sempre o mestre. O problema é que ele costumava escorregar na curva, colocando o professor Raimundo em situações embaraçosas perante a classe:


Por fim, agradeço mais uma vez à Jazz por emprestar uma foto sua para ilustrar esse post.

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