(A intuição é aquele palpite furado ou nossa apreensão direta do mundo?)
“Em síntese, há que se distinguir dois elementos no movimento, o espaço percorrido e o ato pelo qual o percorremos, as posições sucessivas e a síntese dessas posições. O primeiro desses elementos é uma quantidade homogênea; o segundo só tem realidade na nossa consciência”.
Bergson
Olá!
Clique aqui para acompanhar outros textos desta viagem…
Eu tinha um carro humildezinho quando vim para estes lados
pela primeira vez, o já declamado Bedelho.
É uma região predominantemente rural e, portanto, plena de picadas e
estradinhas de terra. Alguns dos lugares só são acessíveis por elas e, para os
baixos veículos convencionais, é um pouco perturbador encarar trajetos meio
longos em caminhos de chão. Por isso, embora estivesse bem perto quando estive
em Itamonte,
não me animei a enfrentar os quase quarenta quilômetros fora do asfalto. Mas,
alvíssaras, temos hoje o carro mais alto e a capa de petróleo quase cru
recobrindo o chão vermelho, e, nesta viagem de resgate, Alagoa não podia deixar
de estar no roteiro. Vamos a ela.
Pequena como a maioria das cidades da região, Alagoa tem um
notável relevo acidentado, com pouca área plana e culturas características de
altitude.
A área urbana é bem pequenina, e com escadarias para ligar
as ruas de desnível. Lembra-me um pouco o Jardim Guairacá, o bairro onde morava
no porão da casa do sogro quando casei, que é cheio dessas escadinhas.
A população é igualmente pequena, menos de 3000 pessoas, mas
há alguma amostra de habitações bastante antigas, remanescentes das comitivas
de tropeiros que passavam pela região.
A igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, estava
inacessível, razão pela qual não fiz uma reportagem minimamente decente, e
tirei uma foto bem patife, para manter um registro que fosse.
Alagoa tem esse nome porque, à semelhança de Lagoinha,
existia uma lagoa que foi drenada pelos fazendeiros que foram chegando à
região. A natureza é generosa, com várias corredeiras no Rio Aiuruoca e no
Ribeirão Vermelho, além de cachoeiras e picos, como o Pico do Garrafão ou de
Santo Agostinho, da Serra dos Martins ou dos Nogueiras.
Para além dos recursos naturais, eu fui para lá com dois
objetivos de cunho gastronômico. Primeiro, fui atrás de azeite, porque lá há um
lagar que cresceu muito nos últimos anos. O pessoal permite que a Fazenda Cauré
seja visitada, pela guia de um exímio conhecedor do negócio, o Sr. Antônio
Carlos, aka Tonhão.
Lá, é possível observar os diversos olivais que produzem
diferentes espécies, como as gregas koroneiki e as espanholas arbosana e
arbequina.
A paisagem é de tirar o fôlego.
Em outro ponto, fica o lagar que produz o azeite oriundo
destes olivais, o premiado Prado e Vázquez.
Além de comercializar o produto, o lagar permite que sejam
conhecidas todas as etapas da fabricação e seu respectivo maquinário.
Novamente nas ruas da cidade, fomos dar uma olhada na outra
especialidade da cidade de Alagoa, os queijos.
São várias lojas na cidade, já que sua fama tem se redobrado
em tempos mais recentes, por terem chegado a um queijo de denominação própria
bastante próximo do parmesão, mantendo um quê dos queijos minas típicos.
A variedade apresentada se dá menos no queijo em si e mais
nos tempos de cura e adição de elementos distintos, como as castanhas e café,
além do fracionamento das peças, porque são produtos bem caros.
Não obstante, são bastante saborosos de fato, merecendo um
esforcinho financeiro para conhecê-los. Os prêmios que as lojas ostentam em
paredes e estantes provam que a experiência é compensatória.
Azeites e queijos fazem parte não só do patrimônio
gastronômico mineiro, mas do aporte intelectivo humano. Suas receitas estão
armazenadas em manuais que permitem sua perfeita reprodução, e, dadas tais e
tais condições, a mágica acontece e temos produtos que nos alimentam e
comprazem. Isso é fruto de nossa característica inteligência, não há dúvida,
mas sempre pensei que resta algo a mais, que não é somente fruto de um
mecanicismo mental.
É aquela velha história. Faça-se o mais descritivo de todos
os manuais, com todos os detalhes possíveis e imagináveis, anexe-se a ele fotos
e endereços com vídeos, tabelas e estatísticas. Isso tudo não é garantia
nenhuma de que este escriba, inexperiente nas artes alimentícias, tenha sucesso
na empreitada. É claro que, se estivéssemos falando de um aviamento de remédio,
a história seria outra, já que a indústria farmacêutica trabalha com insumos
rigorosamente padronizados. Mesmo eu, que trabalhei em uma mequetrefíssima
botica com mania de grandeza, atesto sua honestidade e zelo no cuidado com a
saúde humana. Mas queijo não é remédio, azeite não é fármaco. Enquanto as
aspirinas da vida necessitam de rigor científico para sua segurança na cura, os
alimentos têm como primazia o prazer propiciado pela combinação sensória. Ora
(direis), alimentos servem para alimentar, e também precisam passam por filtros
de segurança tais e quais os de medicamentos. Sim, meu caro interlocutor
imaginário, mas, quando você pensa em uma cápsula, pensa no seu poder curativo.
Agora, quando pensa em comida, não pensa em matar a fome pura e simplesmente,
mas em curtir o que come.
É nesse ponto em que vemos a porção mais artística, mais
estética da comida. A questão aqui não é de reprodutibilidade, mas de criação.
Não há ciência no mundo que consiga fazer com que duas avós façam o mesmo
macarrão dominical, porque cada uma delas faz consistir o alimento em um ato
criativo. Ainda bem.
Eu já mencionei Henri Bergson neste espaço (aqui
e aqui),
e o fiz sobre seus pensamentos sobre o tempo, mas sua filosofia psicológica não
se limita a isso. Ele fazia grandes críticas à excessiva matematização do
pensamento pretendida pelo Positivismo,
que via ciência em tudo, que, se por um lado prometia uma precisão necessária
ao progresso, por outro esquecia que o universo se compõe também do inesperado,
do insólito, do ato de criação. Mas isso não o impedia de criticar também o
finalismo pretendido pelas religiões. A eterna pergunta sobre o sentido da vida
é respondida, costumeiramente, com uma entidade que cria os seres e dá a eles
um propósito, mas a verdadeira resposta é justamente inversa: é a consciência
que doa sentido para a vida. Isso se explica pelo fato de que cada um de nós
pode construir uma cosmovisão própria, sem a necessidade de que se estabeleça
uma finalidade comum a todos, com sentido próprio.
Com a crítica tanto ao mecanicismo quanto ao finalismo, o
que propõe Bergson? Em primeiro lugar, precisamos compreender um pouco melhor
as distinções feitas pelo processo evolutivo: o modo como chegamos a ser o que
somos como humanos. Bergson entende que os mecanismos de evolução apontados por
Darwin são suficientes para explicar como a humanidade chegou a o que é, mas
falta entender seu mecanismo de propulsão. Se não temos os processos quadradinhos
que a ciência propõe, nem uma entidade criadora que nos coloca em um plano
predeterminado, ainda assim há algum motivo para nossas transformações. E a
esse princípio Bergson dá o nome de élan vital (impulso vital,
numa tradução direta do francês). Com isso, o nome da corrente que inaugura tem
o nome de vitalismo.
O élan vital não é uma ideia propriamente nova, já que é bem
semelhante ao conatus
de Spinoza, à vontade de
Schopenhauer, à vontade
de potência de Nietzsche ou às pulsões
de Freud, mas guarda sua originalidade por estar ligada diretamente ao processo
biológico de evolução. De fato, desde o surgimento do universo, com aquilo que
teorizamos como Big Bang ou qualquer outra hipótese concorrente, percebemos que
a realidade se desdobra em um fluxo onde é indissociável a presença de
energias. Segundo o pensamento de Bergson, toda essa movimentação vai
construindo os tijolos que vão desembocar na vida como conhecemos, no lento
processo que se iniciou, talvez, pelo desabrochar de aminoácidos no tempestuoso
oceano primordial. O élan vital concentrava-se em ponto máximo naquele momento
decisivo, de modo a se consubstanciar no ato criativo de se conseguir
replicação contínua daqueles compostos orgânicos simples. Esse ímpeto é o motor
do processo evolutivo.
E como isso funciona? Lembremos de que Bergson vê o tempo
como durée, a duração que não se cronometra, porque as medidas não são
significativas para a consciência, e sim da percepção que se tem dele. Ter o
tempo como duração significa que esse fluxo impulsionado é a permanente
transformação que se operacionaliza por onde encontrarmos esse fenômeno chamado
vida. Então podemos deduzir que é intrínseca uma força que se oponha a qualquer
tendência de estabilidade. Lembrem-se: Bergson é um antimecanicista e, sendo
assim, princípios de inércia não fazem sentido onde houver uma consciência que
lance seu olhar sobre o universo.
Entretanto, quando usamos as réguas da ciência, temos a
tendência de observar o mundo fora do seu fluxo, como se fosse possível
dividi-lo em compartimentos estanques, como se seu continuum fosse linear, e
não é isso que vemos em nossas simples observações diárias. Há algo que escapa
do racionalismo, mas que não é pura e simplesmente um instinto animal, que
apreende de imediato a realidade ainda antes de que toda inteligência possa
processá-la. Essa percepção rápida e sagaz é o que chamamos de intuição.
Não, a intuição de Bergson não é aquele palpite furado que
damos na véspera do jogo, nem aquela namorada que apostamos que não dará certo
com nosso filho. Na verdade, ela é uma contraposição ao pensamento kantiano de
que é impossível se chegar ao Ser de qualquer coisa. Da mesma como Heidegger
acharia um
canal para o contato com o Ser, Bergson entende que a intuição é esse
caminho por onde é possível se ter uma dimensão imediata da realidade, mais
racional do que um mero instinto, e menos segregadora que a inteligência.
Uma ótima forma é dada por Bergson para perceber a intuição,
e eu vou adaptá-la. Embora Alagoa seja uma cidade que esteja crescendo em seu
potencial turístico, ainda é pouca gente que a conhece. Se eu, ao invés de
colocar quinze fotos neste texto, colocar 150, 1500 ou 15000, se eu fizer um
mapeamento completo dos endereços e logradouros, se eu fizer uma filmagem como
aquelas dos vlogs de motociclistas, se eu documentar item por item da cidade,
ainda assim não será possível substituir a apreensão direta de uma visita.
Somente estando in loco temos a apreensão direta que é dada pela
intuição, absorvemos o que a cidade é. As fotos e demais badulaques são uma
demonstração de como a ciência coleta dados do mundo: sempre através de
parcelas, de espacializações. A própria palavra “razão” já é perpassada pela
ideia de divisão para que se compreenda o todo pelas partes, uma forma de
dissecar a realidade em compartimentos. Já a intuição fornece a realidade como
se ela caísse à nossa frente, quase como uma pedra caindo sobre nossa cabeça. A
intuição é a percepção rápida e necessária a quem nós, humanos, fomos levamos
pela evolução para que não tivéssemos meras reações instintivas quando
defrontados com a realidade, mas que levássemos à nossa consciência um
preâmbulo dos fenômenos. A intuição é o instinto da inteligência.
A diferença fundamental entre a inteligência e a intuição
pode ser captada naquelas perguntas sem resposta. Lembro do programa
provocações, apresentado pelo genial Antônio Abujamra, que sempre fazia a
pergunta dupla no final da entrevista: o que é a vida? A sacada era genial
porque passava a mensagem de que é impossível responder adequadamente. Isso se
aplica a qualquer pergunta que tente resgatar a abstração: o que é o amor, o
que é a coragem, o que é a beleza, o que é a virtude. São todas elas perguntas
em que entendemos interiormente o que são, mas que não conseguimos traduzir em
palavras, porque caímos na tentação cartesiana de segregar do objeto a sua
definição, como se fosse possível dividir um do outro. É a intuição que tem a
função intelectiva de fazê-lo, e, por essa razão, Bergson dizia que era através
dela que se fazia possível confrontar as principais questões filosóficas.
A intuição surge no ser humano por conta do próprio processo
evolutivo. Retomando o élan vital, as forças criativas da natureza fizeram com
que o homem se distinguisse dos demais animais pela capacidade de raciocinar.
Só que há um detalhe: esse homem ainda precisaria viver, e isso não seria
possível se não houvesse o instinto, e não haveria uma conexão com o restante
do meio se não fosse a apreensão imediata da intuição. Nela, o élan mantém toda
a sua força criativa, porque é pela intuição que os humanos percebem e redesenham
coisas novas. Um artesão de queijos não saberia perceber que seu processo
poderia ser melhor se não intuísse isso.
E é por isso que conseguimos, nós humanos, chegar a
resultados tão incríveis. A intuição não tem melhor lugar para se expressar do
que na obra de arte, e é isso que temos à nossa frente quando nos deparamos com
alimentos de tanto sabor e qualidade: a certeza de que alguém “sacou” que era
possível obter maior prazer de coisas prosaicas. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
É na obra A Evolução Criadora que Bergson depôs todo seu
esplendor filosófico, mas a questão da consciência sempre esteve embutida nas
suas ideias. Por essa razão, recomendo a obra abaixo, de tiro curto, e que
ajudará a compreender melhor seus princípios intelectuais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário