Marcadores

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Comunismo: o que ele é e o que ele não é

Olá!

Clique aqui para ver mais itens desta série…

Com maior ou menor intensidade, eu convivo com a área de informática desde o começo da década de 1980, quando ingressei no curso de processamento de dados do falecido Colégio Anchieta, como contei neste post. Foi também mais ou menos por essa época que juntei uns cobres pra comprar meu primeiro computador, um TK85 da Microdigital. A intenção era obter apoio nos estudos (juro), mas a maquininha servia mais para brincar do que para aprender. A área de telemática* já existia, internet inclusa, mas era coisa para os meios acadêmicos. O máximo de coleta de dados remotos que eu conseguia nessa época se dava no videotexto da biblioteca Mário de Andrade, o que já dava uma sensação incrível: ao invés de se vasculhar os fichários e as prateleiras de livros, era possível pesquisar temas diversos para serem lidos na telinha preta de letras verdes do computador, sem a necessidade de sequer se levantar a bunda da cadeira. Tinha fila? Tinha fila, e nem sempre compensava no final, mas valeu muito como iniciação.

Nesses quase quarenta anos de vivência nessa esfera, já vi de tudo, coisas sensacionais mesmo, como os produtos da área de robótica, do reconhecimento facial e biométrico, da computação gráfica, das redes de alta velocidade e dos volumes inacreditáveis de informação,  transformando as antigas Barsas** em almanaques de paróquia. Uma espécie de fusão entre Alexandria e Babel, com o mundo do conhecimento disponível em todas as línguas.

Só que é aí que está. Na mesma proporção em que os meios digitais foram ficando disponíveis para mais e mais pessoas, saindo do ambiente acadêmico, militar e empresarial, a seriedade dos dados começou a escorregar ladeira abaixo.  No começo, eram as pequenas redes de bate-papo, do tipo ICQ, que espalhavam fofocas pelo então incipiente ciberespaço; depois, os e-mails reencaminhados começaram a disseminar bobagens de caminhão, para enfim chegarem às redes sociais e comunicadores instantâneos, agora sim com um mar de estultícia que preenche os quatro cantos deste superaquecido planetinha azul. As historinhas que se contam nesses meios são totalmente desvinculadas dos fatos, mas são tidas como dignas de crédito por uma camada imensa dos seus consumidores. É a pós-verdade posta em prática, como já falei neste meu texto.

Eu penso que deveria deixar de lado essa batalha já perdida, e não me incomodar com novas úlceras no solo lunar de meu estômago. Mas eu teimo em adotar uma obrigação professoral e não consigo engolir argumentos que saem de orifícios impróprios,  e acabo mesmo por me lembrar que pratico desmentidos argumentativos neste espaço já há um bom tempo, haja vista os mais de 50 capítulos do pequeno guia das grandes falácias. Então não vou conseguir ficar quieto no meu canto enquanto se utilizam conceitos absolutamente errôneos, algumas vezes maliciosamente, mas na maioria das vezes por puro desconhecimento. Vamos adotar a máxima do debatedor que combate o bom combate: quer reclamar, reclama direito. E vamos pisar em terreno minado.

Hoje eu quero falar sobre o comunismo. Isso porque há uma grita generalizada contra movimentos tidos como de esquerda, que são colocados em nomenclatura genérica, a quem se procura dar um estatuto de xingamento. Acontece que a imensa maioria das vezes em que se faz esse tipo de relato, ele está errado. A pessoa que o profere o faz por uma espécie de embalo, do tipo "me disseram que o comunismo é ruim, então deve ser ruim mesmo". Ok, camarada, o comunismo de fato pode ser ruim, mas ao menos saiba o porquê. 


Vamos começar pelo mais óbvio dos começos. Afinal de contas, o que é esse tal de comunismo? Evidentemente, não vou fazer longos périplos acadêmicos,  porque meu objetivo é me dirigir ao vulgo e dar explicações gerais, portanto, vou me limitar a dar definições de manual, o que, por si só, já deveria ser suficiente.

Vamos lá. Comunismo é um sistema político pensado primordialmente por Karl Marx e Friedrich Engels, caracterizado pela propriedade pública dos meios de produção. Isso significa que terras, meios minerais, indústrias, maquinário e equipamentos pesados não pertencem a indivíduos, mas ao Estado. Ao despersonalizar os proprietários dos meios de produção, o comunismo visa eliminar aquilo que é chamado de luta de classes, uma condição em que a camada mais pobre da população fica permanentemente submetida aos donos do capital, criando uma tensão permanente entre ambos. Normalmente esses polos opostos são chamados de proletariado e burguesia.

Pelo que foi preconizado por Marx e Engels, o comunismo seria o ponto final de uma via evolutiva das sociedades humanas. Recém-saídos do absolutismo que foi combatido pela Revolução Francesa, viam o capitalismo como um avanço da humanidade, uma vez que já se tratava de uma maneira de sermos livres de uma concentração de poder e riqueza das mãos de um único monarca. Este poder transitou para um grupo de pessoas, a tal burguesia, o que já dava um nível maior de justiça, porque não estamos mais falando de obtenção de poder por direito divino ou descendência nobre, mas por agentes do trabalho, que conseguiram amealhar riqueza pela sua própria atividade. Entretanto, este era ainda um grupo extremamente privilegiado e reduzido, que adquiria a baixo custo o trabalho dos mais pobres. Dada a manutenção do status quo ser um desejo da burguesia agora no poder (assim como o foi nos antigos monarcas), somente seria possível instaurar uma república nos moldes populares através da revolução, como sempre se deu nas transições de poder. Tomado este, teríamos um sistema de transição chamado pelos autores citados de socialismo, cuja gerência seria feita por um grupo escolhido pelos trabalhadores de modo permanente,  em um fenômeno que foi chamado de ditadura do proletariado. O estágio seguinte (nunca atingido) seria a supressão de qualquer forma de Estado, e esse sim seria o comunismo plenamente realizado: a anarquia*** comunista. Eliminadas as classes sociais, com cada um tendo conforme sua necessidade e dando conforme sua capacidade, não fazia mais sentido a existência de um Estado em uma sociedade que já estaria se autorregulando. Existiam anarquistas nesse mesmo momento histórico, com a diferença fundamental de que estes entendiam não ser necessária a fase de transição da ditadura do proletariado.

Bom… comunismo é isso. Agora vamos começar a responder perguntas.

Comunismo é sinônimo de marxismo?

Não, comunismo é só uma parte do pensamento marxista. Karl Marx, independentemente de sua concordância, possui um sistema filosófico complexo descrito em uma obra vasta, que compreende observações políticas, econômicas, sociais, históricas, culturais e religiosas, não podendo ser meramente limitado ao comunismo. Essa diversidade de espectro permite perfeitamente a qualquer um concordar com parte de seu pensamento e discordar de outro. É EVIDENTE que existem marxistas doentes, que veem os apontamentos de Marx como dogmas religiosos, mas qualquer pessoa de bom senso pode achar que, mesmo sendo o comunismo como previsto algo irrealizável, sua Filosofia da História, o materialismo histórico-dialético, seja consistente, apenas para dar um exemplo. O mesmo acontece com qualquer outro sistema filosófico. Aristóteles, para citar, é um gênio incontestável, mas achava que a Terra estava no centro do universo e que o Sol girava em torno dela.

Comunismo e socialismo são a mesma coisa?

Prima facie, não, como já mencionei logo aí atrás: o socialismo seria uma espécie de etapa anterior ao comunismo. Mas não é um pecado tão grande considerá-los sinônimos, e é possível fazer uma certa concessão. Só que tem uma outra coisa, mais importante. Nem todo socialismo vem das ideias marxistas. Todo sistema que se propõe mais enviesado para o social que para o econômico pode receber o nome de socialismo. A Comuna de Paris, por exemplo, tinha características de socialismo antes mesmo da guerra civil russa. Muitos consideram os regimes de bem-estar social, tão comum nos países escandinavos, as formas mais viáveis de socialismo.

Toda esquerda é comunista?

Não. Embora eu tenha imensas restrições a estas disposições cinestésicas, reducionistas ao extremo, o fato é que a moda de enquadrar tudo em esquerda e direita pegou e tenho que lidar com isso. Diferença fundamental entre direita e esquerda, sem juízos de valor: a primeira privilegia liberdade, enquanto a outra enfatiza igualdade. Até mesmo por isso, a direita vê mais importância em fatores econômicos, enquanto a esquerda pugna por questões sociais. Ponto. Esse é o motivo pelo qual causas identitárias costumam ser encampadas pela esquerda: antirracismo, indigenismo, feminismo e etc. Essas causas todas não têm a ver com comunismo, em instância alguma. Nada, absolutamente nada obsta que pessoas posicionadas à direita sejam aderentes a essas causas, mas aí vamos cair naquele campo minado dos pacotes de ideologia comprados prontinhos nos armazéns ideológicos da vida.  

O Brasil esteve próximo do comunismo?

Nunca, a verdade é essa. Talvez o movimento mais sério de fundo comunista que tenhamos tido foi a Intentona Comunista, uma quartelada que não durou uma semana e que não chegou a tomar o poder nem das próprias casernas. Outro momento histórico onde se falou muito em risco de comunismo foi no governo João Goulart, por conta de seu programa de reformas de base. O fato é que vivíamos tempos de Guerra Fria, e jogou-se muito com o medo de implantação de regimes comunistas através do mundo. No nosso quintal latino-americano, a coisa chegou às raias da paranoia depois que Cuba implantou sua revolução. Com isso, as reformas de base de Jango foram o estopim para a aplicação do golpe de estado. Essas reformas não tinham nada de mais. É bem verdade que previa a reforma agrária, seu aspecto mais socializante (e que veio mais tarde ser implantada por governos liberais como o de FHC), mas também falava em reforma bancária, com a criação do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional, que foram mesmo criados pelo governo militar, e da lei de remessa de lucros ao exterior, para manter os capitais dentro do território brasileiro, algo que não me parece muito comunista.

E o PT?

O PT, embora tenha emporcalhado sua história com corrupção e hoje seja um espantalho geral do que representou um dia, nunca foi comunista. E, se foi, era de uma incompetência ímpar, porque foram TREZE anos à frente do poder nacional sem nunca ameaçar a lucratividade dos bancos, sem estatizar companhias privadas, sem criar impostos sobre grandes fortunas, sem implantar comunismo. Quer chamá-lo de esquerda, de socialismo, vá lá, mas não de comunistas.

Todo comunista é ateu?

Marx apregoou o ateísmo, com uma crítica à religião como um misto de lenitivo e de alienação. Mais ainda: na implantação de regimes comunistas na União Soviética, no Camboja e em outros países, houve momentos de forte perseguição religiosa e de expropriação de bens das igrejas. Entretanto, estes foram aspectos inerentes a cada um dos casos e não é obrigatório que um comunista seja ateu. Fosse assim, o próprio comunismo agiria como uma religião****, não lhes parece? Além disso, a correlação é absolutamente falsa. Há ateus aos montes que também são liberais, monarquistas, anarquistas e tudo o mais.

Todo comunista é abortista?

Não, que bobagem. Uma coisa nada tem a ver com a outra. Aliás, ser favorável ao aborto, eu já disse neste texto, parece uma coisa mais de quem preza liberdades individuais do que igualdades coletivas. Portanto, quando alguém defender o direito de aborto, não o coloque automaticamente na conta de comunistas. A Venezuela, tão na moda, não permite aborto (a não ser no caso de risco de vida à mãe, como no Brasil); já os paladinos da liberdade, os Estados Unidos, permitem.

Comunistas comem criancinhas?

Bem, essa é uma antiga afirmação que era bem comum na época da Guerra Fria, e que coloquei aqui só para que vocês saibam que não é de hoje esse tipo de jogada do medo. Hoje em dia, mesmo os mais arraigados anticomunistas deixaram-na de lado, mas é sempre bom resgatá-la, para que não volte à baila, porque deriva de uma tragédia humana. Esse tipo de criação existiu porque os países comunistas enfrentaram períodos de grande fome, não só por conta dos problemas da economia planificada, mas também pelas condições meteorológicas extremas enfrentadas por eles. Propagava-se no ocidente que a prática de canibalismo era um dos recursos extremos nos países comunistas, com os pais matando os filhos para usá-los de alimento. Eu já ouvi muito se falar de pais que dão a vida pelos filhos, e não o contrário. Por isso mesmo, vou me limitar a trazer esse tópico somente como curiosidade histórica.

Comunistas não admitem propriedade privada?

A admissibilidade de propriedade privada vai variar de país para país, de projeto para projeto, mas, em linhas gerais, os comunistas permitem a propriedade de casas para moradia, de pequenos negócios para sustento próprio e da família, de objetos pessoais, de automóveis e motocicletas e assim por diante. A propriedade que deve ser coletiva não é nenhuma dessas, e sim tudo aquilo que se produz. A terra produz alimentos, as fábricas produzem artefatos, e são esses os bens que não podem ser privados, no entender dos comunistas, já que é aí que reside a exploração de classes. Dessa forma, nem sua casa será invadida para dividi-la com sem-tetos, nem a padaria do seo Joaquim será dominada por um tecnocrata estatal.

Por que comunistas usam iPhone?

Porque eles não têm nada contra a tecnologia e não assumem compromisso de serem miseráveis. Para o primeiro ponto, pensem que o iPhone não representaria mais do que uma raquete para jogar ping-pong se não fosse uma criação soviética: o satélite. Já para o segundo, se algum cidadão é comunista, mas tem meios materiais para adquirir um produto qualquer, por que não pode fazê-lo? Eu sei que já é manjado, mas quem manda que se dividam os bens com os irmãos é Jesus*****, e não Marx.

O comunismo é sempre ditatorial?

No formato proposto por Marx, sim. Como eu já disse, há uma fase em que forçosamente o povo trabalhador assumiria o poder, através de representantes eleitos para tanto. Na prática, entretanto, o que nós sempre tivemos foram ditaduras de partido único. Os atuais partidos comunistas tem proposto assumir os governos de maneira realmente democrática, com seus representantes eleitos pelo total da população através do convencimento cívico das massas. A ver.

Você é comunista?

Não. Já fui um idealista na juventude, e isso me causou transtornos em sala de aula e no trabalho. Mas chega um momento em que é preciso por os pés no chão. O comunismo não tem como dar certo, na minha opinião, mesmo que aplicado com outros critérios em uma eventual nova tentativa. O sistema em si é sedutor, parece que tudo se encaixa bonitinho, mas há um componente humano solidário que nós não temos como espécie, infelizmente. O que teremos com regimes comunistas é tudo o que tivemos até hoje: uma elite ditatorial que controla pesadamente os aspectos da vida dos seus cidadãos, que podem enriquecer o país, mas não o povo. Nossa melhor opção é humanizar cada vez mais o capitalismo reinante, especialmente na distribuição de oportunidades. Talvez por aí, a longo prazo, cheguemos em algo parecido com uma sociedade onde as classes não estejam tão distantes entre si. É lícito pensar assim. E isso se faz com educação, conhecimento e espírito crítico, o exato inverso do que temos visto hoje em dia.

Espero ter sido útil para enriquecer um pouco o debate sobre essas questões e tirar um tanto do susto da “nova ameaça comunista” ao nosso já combalido país. Se alguém quiser que eu toque em mais algum ponto, fica franqueado o espaço dos comentários logo abaixo, com a gentileza que se faz necessária neste momento crítico. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

É claro que a minha vontade seria de abrir o presente texto com a frase mágica: quer conhecer Marx, leia Marx. Mas isso é contraprodutivo, embora mantenha a recomendação. As duas indicações mais óbvias seriam o Manifesto do Partido Comunista e o Capital. Entretanto, o primeiro é uma peça panfletária, já com gritos de guerra e slogans prontos, e não é o ideal para uma leitura mais racionalizada. Já o segundo é muito, muito, muito complexo, voltado para o aspecto econômico, uma obra para leitura longa e calma, o que não é o espírito de um texto que busca esclarecer dúvidas pontuais. Por isso, vou recomendar a leitura abaixo, mais simples e mais voltada para o tema do comunismo como sistema político.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.

* Telemática é a fusão de telecomunicações e informática,  sendo esta área que cuida das transmissões de dados através de computadores. 

** Barsa era uma imensa enciclopédia que custava os olhos da cara, mas que era a fonte de pesquisa mais diversificada que se podia ter em uma casa.

*** Anarquia não deve ser confundida com bagunça. Anarquia significa ausência de governantes, como já descrevi mais acuradamente neste texto.

**** Sim, eu sei que certos cidadãos exacerbados agem exatamente como se Marx, Engels, Lenin, Stalin, Mao e outras personalidades do universo comunista fossem divindades, mas é exatamente contra esse tipo de visão distorcida da realidade que eu estou empunhando a arma da minha pena.

***** Criador da religião que embasa a civilização cristã ocidental. Paradoxo é isso aí.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Navegações de cabotagem – o Santuário de Schöenstatt em Atibaia e o conhecimento diante do infinito

Olá!

#ContinueUsandoMascara

Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-volta

Como sempre venho dizendo nesses últimos meses, vim me defendendo como podia de sair de casa nestes tenebrosos tempos de pandemia. O trabalho não foi problema: o home office ficou consagrado e comprovado como meio bem eficaz de manter a vida sendo tocada (se bem medido e bem pesado, ficou até melhor). As compras foram resolvidas na base do aplicativo e as idas ao banco ficaram desnecessárias neste mundo virtual. Cancelei uma viagem que faria a Cascavel para visitar meu menino mais velho e deixei meu cabelo crescer à vontade, sendo que neste momento ostento um rabo de cavalo que oscila entre o extravagante e o ridículo. O problema é que há idosos na família, notadamente o sogro e a sogra. E idosos volta e meia ficam doentes. Há um ponto na dobradiça dos custos e benefícios em que é preciso assumir riscos, e isso acabou acontecendo. Hospital cheio, horas e horas de fila e gente pouco consciente com os cuidados necessários fizeram eu me reduzir à minha insignificância, ao desabrigo e à vulnerabilidade, a ponto de quase retomar minha fé para poder invocar alguns santos protetores. Depois de voltar para casa, tomei banhos com tal intensidade que parecia querer tirar uma ziquizira de cima do cadáver, complementado por esfregaços alcoólicos e alguns dias de somatizações, desconfiando de qualquer dorzinha de cabeça. Passado esse tempo de apreensão, não manifestei nada do coronavírus e refleti que não seria tão imprudente ir até Atibaia novamente, já que a prefeitura local estava desesperada por fazer um concurso público na área do saneamento que a filha mais nova precisava prestar, como tantas vezes já especifiquei neste espaço.

O caso é que foi um daqueles concursos feitos em duas etapas, uma pela manhã e outra à tarde, o que me colocou meio que contra a parede. Ficar enfiado dentro do carro não é boa opção, e sair desvairadamente por aí é uma maneira de renegar todo o esforço feito durante nove meses. Perscrutei a cidade em busca de afazeres com um problema adicional: muitos lugares fechados. Na beira da Rodovia Dom Pedro, entretanto, encontrei um lugar muito bonito, bastante semelhante a um parque e que me permitia ficar em agradável e anacorético isolamento. É o Santuário de Schöenstatt.


Vamos dar as explicações necessárias. Este espaço é mantido pelo Movimento Apostólico de Schöenstatt, da Igreja Católica, que se originou na Alemanha, por obra do padre Josef Kentenich,  em um vilarejo de mesmo nome, da cidade de Valendar. Ele se juntou a alguns seminaristas da ordem Palotina* no ano de 1914, início da Primeira Guerra Mundial, para formar uma aliança de fundo fortemente mariano.


Quem entra no santuário logo percebe o quanto ele é dedicado a Santa Maria, tida como a mãe de Jesus Cristo. Aqui, ela é chamada de Mãe Três Vezes Admirável, e o símbolo colocado à sua entrada é o mesmo que foi adotado por esta comunidade. Mesmo quando ainda era católico, eu já achava o culto a Maria meio exagerado, quase como se fosse ela mesma uma divindade. Mas o fato é que os papas e bispos têm lá suas explicações e não vou discutir o tema aqui.


Aqui no Brasil, o culto e seu movimento brotaram com mais força em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Um devoto de nome João Luiz Pozzobon adquiriu o hábito de peregrinar com uma imagem que simbolizava uma Maria junta de seu filho Jesus em uma moldura em forma de igreja. Esta imagem trafegou por um bocado de lugares e ajudou a sedimentar a fama do movimento.


Como eu já disse, o santuário parece um parque, cheio de referências cristãs, obviamente, com casa para retiros, via sacra, mesas de piquenique, sanitários, estacionamento, barracas de alimentação e muito espaço ajardinado. É administrado pelo Instituto Secular das Irmãs de Maria de Schöenstatt, que possui um convento compartilhando o local.


Apesar do amplo espaço para caminhar e contemplar, o centro do santuário é uma capelinha muito pequena, que reproduz o mesmo edifício que foi utilizado inicialmente na Alemanha. Quando o padre Josef fundou o movimento, ele obteve licença para usar essa capela que se encontrava abandonada, sendo usada como uma espécie de depósito.



Essa capelinha, ainda lá em Schöenstatt, era dedicada a São Miguel Arcanjo, uma espécie de protetor da igreja, e que ganhou uma imagem logo no caminho de entrada. Aqui, as abelhas jataí formaram uma pequena colmeia bem aos seus pés. Como não têm ferrão, foram deixadas lá impunemente.



Todos os santuários espalhados pelo mundo têm exatamente essa mesma capela, cujas características principais são o pequeno campanário puxado a corda e o frontão recoberto de trepadeiras. A própria silhueta da igrejinha é um dos símbolos mais consagrados desta congregação.



Apesar de sua simplicidade exterior, possui um altar-mor bastante rebuscado, em madeira trabalhada, onde é possível ler, em latim, uma das principais divisas do movimento. Já devidamente traduzido, as palavras ao redor da santa significam “os servos de Maria nunca perecerão”.



A devoção pela imagem da Santa fez com que os diversos santuários de Schöenstatt espalhados por Pindorama se tornassem centros de peregrinação, que, nos dias mais festivos, costumam encher muito. A pequena capelinha não dá conta de tanta gente e, para esses momentos,  há uma quadra que tem uma capacidade bem maior.



Além disso, existe um serviço de apoio aos peregrinos, chamado de Casa São José,  que vende pequenos artigos, alimentos e lembranças, e pelo que entendi, agencia repouso para pessoal que vem de longe.



Entre os alimentos, há pães,  bolachas e doces feitos no próprio convento pelas irmãs da caridade.



Uma nova tradição que vai se formando é o Mattertone, cuja embalagem se transforma em um presépio quando desmontado. Eu achei que havia alguma coisa de diferente no produto em si, mas se trata de um panetone comum, daqueles de frutas cristalizadas e passas.



Além dos campos e arvoredo, há vários espaços de devoção espalhados pelo parque. Um dos mais buscados é o velário em forma de capela. Dá para comprar suas velas ali mesmo.



Outra peça artística é uma imagem estilizada de Nossa Senhora das Dores, a Maria que chora aos pés da cruz pelo seu filho recém-morto.



Existe uma cerimônia central para o Catolicismo que é chamada de Vigília Pascal, uma espécie de memorial de espera pela ressurreição. Nesta celebração,  existe um rito denominado Benção do Fogo,  de onde é extraída a chama que acende o Círio Pascal, uma grande vela que se renova anualmente, e que representa a luz do Cristo renascido. É um ritual riquíssimo, pleno de simbologias que explicam muito da lógica litúrgica cristã. Essa pira em forma de globo certamente é utilizada para essa ocasião.  Não sei dizer se tem algum outro uso, mas é uma peça que nunca vi semelhante. 



O padre Josef reaparece na forma de memorial, com um incensário igual à pira mencionada anteriormente.



Por fim, como já estávamos próximos ao Natal, havia um singelo presépio montado entre a capela e a Casa São José, uma criação artística atribuída a São Francisco de Assis.



As irmãs bolaram um esquema diferente para que o pessoal pudesse interagir com a decoração do presépio. A cada compra ou contribuição feita no bazar, o adquirente ganhava uma estrela onde podia ser escrita uma mensagem, um pedido, um agradecimento ou coisa que o valha, para depois amarrá-la à cerca de bambu ao redor da cena. Para não ficar de fora, tacamos uma frase que não é propriamente cristã, mas que também não é de todo profana: "gracias a la vida, que me ha dado tanto".


É o começo de uma música de Violeta Parra, que ficou eternizada na voz de Mercedes Sosa, e que serve de fato de agradecimento por tudo o que eu tenho andado e visto de belo, inclusive este santuário. Os mais ortodoxos talvez fiquem um pouco irritados pelo uso de um versinho que ficou aderido aos movimentos de esquerda da América Latina, mas com certeza os padres da Celam** de Medellin não achariam ruim nem um pouco. Afinal de contas, pode parecer blasfemo agradecer à vida ao invés de agradecer a Deus, mas de que forma podemos dissociar um do outro? Não existirá algum ponto onde ambos se confundem, se mesclam, se imiscuem?

A pergunta sobre a natureza de Deus perfez toda a Idade Média, que muitas vezes é  chamada de Idade das Trevas por conta da cessação dos avanços científicos e da monotemática filosófica, colocando a divindade no centro de suas especulações. Se é verdade que o teocentrismo desestimulou o olhar ao cosmos como ele é em si mesmo e de fato refreou o humanismo e o interesse científico, é preciso ter em mente duas coisas que contradizem essa informação: em primeiro lugar, a visão especulativa não era meramente teológica,  com muitos outros temas sendo tratados no período,  ainda que ligados secundária  ou tributariamente à questão Deus. E depois, mesmo quando o assunto era ainda de domínio da Teologia, a engenhosidade que certos pensadores o trataram é digna de causar admiração mesmo em apóstatas,  como eu.

Um desses foi o alemão radicado na Itália Nicolau de Cusa, que foi um dos intelectuais que apagaram a luz do pensamento medieval na virada para o renascimento. Certo: ele ainda trouxe a temática teocêntrica, o que não o retira do medievo. Mas é certo também que ele começou a juntar alguns fragmentos que viriam desembocar nas visões de Roger Bacon e de Baruch de Espinoza, como veremos.

Tente imaginar o infinito. Pense na vastidão do espaço sideral, visto com o mais poderoso telescópio espacial jamais criado. Aquilo que de mais longínquo for enxergado, mesmo que esteja a bilhões de anos-luz, será  redutível a nada no âmbito do infinito. Ou, como propôs  Nicolau de Cusa, imagine a si mesmo no interior de um círculo de dimensões infinitas. Em uma área finita pequena, será possível perceber uma curvatura. Entretanto, a cada vez que se aumentar o diâmetro deste círculo, menor será a percepção desta curvatura, de modo em que haverá  um momento  em que não será possível detectá-la a olho nu, sendo necessário o uso de instrumentos para fazê-lo, até  o ponto em que mesmo o mais fino deles não será capaz de diferenciá-lo de uma reta. Em um círculo infinito, é como reta que os seus limites se apresentarão, seja qual for a posição da qual se observe. Esse exercício mental pode ser aplicado a qualquer figura geométrica: quadrados, triângulos, pentágonos e così via. E dessa forma torna-se a nós impossível compreender o infinito. O fato é: não temos equipamento cognitivo capaz de entender dimensões infinitas, pelo simples fato de que nossa mente tem uma espécie de estrutura lógica que opera com comparações que, no limite, vêm do mundo finito em que vivemos. Basta que se raciocine no seguinte: quando dizemos que uma pessoa é baixinha, pensamos que ela é pequena em relação às outras pessoas. Quando dizemos que um dia é seco, pensamos que ele é seco em relação aos outros dias. Quando dizemos que uma cidade é longe, pensamos que ela é distante com relação a outras cidades. Qual é a régua com a qual mensuramos o infinito? Com o que podemos medir algo cujo tamanho escapa da nossa capacidade de comparação? Podemos usar a matemática, mas o mesmo fenômeno ocorre: a matemática prevê o infinito, mas não dá ferramentas para que possamos materializá-lo.

Nicolau de Cusa explica que a natureza de Deus é exatamente a mesma do infinito, e que, portanto, é incabível buscá-lo por critérios cognitivos humanos. Deus coincide com o infinito, tanto na ausência de limites, quando na incapacidade humana de ser compreendido. A assunção dessa incapacidade é o que ele vai chamar de douta ignorância, titulo de sua magnum opus, da qual falaremos daqui a pouco. De Cusa adota uma teologia negativa, ou seja, não se descreve Deus pelo que ele é, mas pelo que ele não é. É o que existe ao alcance do intelecto humano.

Nicolau era um neoplatônico, ou seja, regressava em parte ao pensamento agostiniano, em contraposição ao aristotelismo adotado por São Tomás de Aquino. Dois eram os pontos dessa retomada de Platão: existe um modelo de perfeição do qual todas as coisas existentes se espelham e que todas essas cópias nunca alcançam a perfeição do próprio modelo. Nicolau pensava que esse modelo de perfeição advinha do próprio Deus, sendo que todo tipo de modelo era estabelecido nele próprio. Assim, absolutamente tudo do universo partia de Deus em si mesmo, e não de um mundo das ideias apartado do universo sensível, como diria Platão. Entretanto, aqui retomamos o problema do infinito. Está estabelecido que Deus tem a mesma natureza do infinito, e o conhecimento humano só consegue racionalizar coisas finitas. Temos aí um desvão na possibilidade de conhecer, sendo que Nicolau especula algo que somente a moderna ciência viria a sistematizar: o conhecimento nunca é absoluto, e se dá por aproximação. A cada vez que descobrimos e aprendemos algo novo, não significa que temos a totalidade do conhecimento possível, mas que nos tornamos mais próximos daquilo que consiste a essência daquilo que buscamos. Estamos mais próximos da curvatura do círculo infinito, embora nunca cheguemos a ele, porque não temos como apreender a perfeição. Isso nos traz outra consequência: Deus não é cognoscível através da razão, como adorariam aqueles que querem provar a sua existência, mas também não é através da emoção, o que não faria sentido. Deus é percebido através do próprio cosmos, imperfeito como ele é em suas partes, porque em cada parte do cosmos Deus está plasmado. É como dizer que em cada homem está contida a humanidade inteira, porque, por menor que ele seja, carrega consigo a essência do ser humano. É assim com o universo: em cada pequena parte, há a essência de Deus.

E é nisso que consiste a douta ignorância. Não se trata de uma posição passiva, que reconhece sua impossibilidade de conhecer e resigna-se à suspensão dos juízos, como fazem os céticos. É em parte como o reconhecimento socrático, que não se imiscui da busca pelo saber, mas que sabe de suas próprias limitações. O intelecto tem sede de saber por sua própria natureza, assim como o pulmão tem necessidade de ar e o coração existe pelo seu sangue. Assim, mesmo sabendo que jamais poderá alcançar Deus, ao se buscar mais conhecimento por qualquer coisa no mundo, é do próprio Deus que o douto ignorante se aproxima.

Não é legal tudo isso? Mesmo que não se concorde com qualquer uma dessas assertivas, há que se reconhecer que são ideias geniais e muito bem construídas. Isso é a marca principal da Filosofia. Bons ventos a todos e cuidem-se com carinho.

Recomendações:

De Cusa não é leitura fácil, mas não me eximirei de indicar sua obra principal.

CUSA, Nicolau de. A douta ignorância. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.

O Santuário de Schöenstatt é muito bonito e plenamente visitável, mesmo nestes tempos pandêmicos, com um pessoal de atendimento muito atencioso. Segue o endereço do templo.

Santuário de Schöenstatt – Tabor da Permanente Presença do Pai
Rodovia Dom Pedro I, Km 78
Jardim Brogotá
Atibaia/SP

Aproximadamente 70 Km a partir do centro de São Paulo

* Os palotinos são padres que seguem a ordem de São Vicente Palotti, oficialmente denominada de União do Apostolado Católico.

** CELAM é o Conselho Episcopal Latino-Americano, cujos maiores eventos são as Conferências Gerais, realizadas de tempos em tempos, onde são  produzidos os documentos que guiarão a conduta dos bispos de toda a região. A conferência de Medellin teve um forte conteúdo social, aproximando o episcopado de um viés político que desagradava muito os setores mais conservadores. Foi de uma destas conferências, por exemplo, que houve a sistematização das Comunidades Eclesiais de Base, das quais já dei um bom exemplo de funcionamento neste texto.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Pequeno guia das grandes falácias - 53º tomo: o estilo sem substância

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

O centro de SP é a própria imagem do caos. Carros e pessoas se confundem e se amassam nas praças e ruas estreitas, típicas de um tempo em que sequer se sonhava com automóveis e caminhões, apenas as carroças e tropas de burros. Afinal de contas, a Capital da Vertigem é uma das cidades mais antigas do Brasil, que nasceu como uma espécie de repouso para quem acabava de vencer a subida da Serra do Mar. Por conta disso, o centro mais histórico não tem lá muito para onde se expandir, a não ser que se derrube tudo (ainda mais do que já se derrubou).

Eu moro em uma dessas ruas estreitas e cheias de lixo, como já contei para vocês, e há bem poucos prédios onde more mais gente ao meu redor. Por isso, as noites são o exato oposto dos dias: um silêncio que permite ouvir os morceguinhos vindo se saborear com as mariposas de minha arandela. E isso se repete todas as noites. Quer dizer, quase todas…

Eu normalmente não me incomodo com ruídos da vizinhança. São normais e eu mesmo já fiz muito barulho, principalmente quando ainda tentava viver de rock’n’roll (veja, veja e veja). O guaio é quando você é acordado pelo ribombar das bazucas do carro de algum infeliz quando você já está na cama. E olha que eu não durmo cedo. De tempos em tempos, o mesmo fenômeno se repete, e vem gente que não sei nem de onde para fazer um chaveirinho de pancadão na rua paralela à minha. Só não podemos dar esse nome com acerto e precisão porque o repertório é menos de funks cariocas e mais daquilo que se convencionou chamar de sertanejo universitário.

Bem… até isso me faz filosofar, mesmo com toda raiva do mundo. E a verve poética que me chega ao ouvido me faz lembrar da falácia do estilo sem substância. Vamos entender isso.

O amadurecimento nos traz um viés crítico que tira um ranço típico da juventude. Eu, por exemplo, impunha a mim mesmo um detestar de certas tendências justamente por não estarem na mesma caixinha à qual eu me propunha a estar. Só que eu fui me livrando desse tipo de bobagem, à mesma media que o cabelo começou a rarear e a barba a embranquecer. Acho que isso já aconteceu com todo mundo. Hoje em dia, o samba que eu dizia não gostar passou a fazer parte de meus acervos, como também a bossa nova, o fado, o baião, o tango. Só do tal sertanejo eu nunca consegui livrar a repulsa.

Eu não falo daquele sertanejo mais raiz, feito por aquilo que costumávamos chamar de dupla caipira. Esses eu respeito e até gosto, porque não só são músicas mais puros e intuitivos, mas também porque dão o testemunho vivo do êxodo rural que tanto afligiu nossos antepassados. Também não falo de aperfeiçoamentos musicais mais sofisticados, como Almir Sater, Renato e Chico Teixeira, Passoca, Pereira da Viola, Braz da Viola, Paulo Freire e outros. Desses, eu tenho discos e recomendo neste espaço (aqui). Meu problema é com uma linha de música que teve seus primeiros sinais na década de 70, foi para a grande mídia na década de 80 e se transformou nisso que ouvimos hoje.

Vou pedir desculpas para quem é fã do estilo. Não estou aqui pregando verdades absolutas nem fatos imutáveis, como bem ensinou Nietzsche, e pode até ser que (quem sabe?) venha a apreciá-lo um dia. Portanto, lembre-se que se trata de um mero suporte para exemplificar o que eu quero e não me xingue, apenas discorde. Para tanto, vou colocar minha biografia mais uma vez a meu serviço.

Eu creio que esse bode com a vertente vem do meu pai, com um grande reforço da minha mãe. O que acontecia era que o velho era muito fã de duplas, como sói acontecer com pessoas vindas do interior. E ele gostava muito de ficar ouvindo suas musiquinhas pela manhã, antes de sair para trabalhar, em um programa do Zé Béttio, muito famoso quando eu era criança. Pior ainda nos finais de semana, quando, já bêbado, o genitor perdia a tramontana e desandava a pôr suas longas estradas da vida no último volume, seja no radinho de pilha, seja na vetusta vitrola da sala. Minha mãe fazia esgares de desânimo, e aguardava pacientemente o indefectível sono do patriarca para primeiro baixar o volume à metade, depois mudar para um som qualquer no rádio e finalmente desligar o aparelho por completo, técnica esta que garantia o sono contínuo do patriarca. Um belo dia meu pai apareceu em casa com um aparelho três-em-um*, que vinha guarnecido com duas caixas acústicas. Eu fiquei todo empolgado com aquele equipamento caro, e me prontifiquei a ajudá-lo a desemaranhar os fios e planejar a distribuição pela sala. Minha mãe observava tudo com a cara contrafeita, quedada silente. Meu pai nem notou, mas eu sim, e fui perguntar para ela o porquê, em local discreto. "Agora só vai faltar montar um galinheiro no quintal", disse. Minha mãe tinha um jeito meio cifrado de falar as coisas.

No disco de teste, entendi perfeitamente o mal disfarçado azedume da minha mãe. "Quando olho na parede e vejo o seu retrato, as lágrimas ganham meu rosto num pranto sem fim", foram os versos inaugurais berrados pelo National SS8000, comprado em prestações na Casa Bahia. E o meu pai era o protótipo do homem que encarava uma compra como uma conquista. Como era duro conseguir comprar qualquer coisa do gênero, um aparelho desses era uma das pequenas vitórias do homem suburbano, saído de sua terra para tentar superar, por pouco, sua miséria rural. Ficou por dias e dias e dias desfiando sua pequena coleção de elepês e compactos, pouco incrementada porque, ora essa, era preciso pagar a cara regalia. Minha mãe estertorava enquanto tentava tirar o atraso de suas costuras, e agradecia aos céus porque a estridência do motorzinho de sua máquina de costura encobria um pouco a cantilena chorosa que saía das caixas. É bem fato que já a essa época a velha tinha desesperançado do casamento, e tudo o que meu pai fazia lhe irritava, mas também é verdade que meu pai ficou enciumado com sua máquina de fazer chorumelas, até eu compreender que ninguém mais tiraria proveito dela, e também eu fui aprofundando meu azedume, a ponto de me mandar para a rua todas as vezes em que começava o recital.

Tá… mas por que eu superei o desgosto com o sertanejo raiz e não com sua derivação mais popularizada? É difícil de explicar, mas eu acho que tem muito a ver com o vazio do seu universo. Vou traçar uma rota das minhas percepções pessoais.

Até a década de 60, o padrão da música sertaneja era a dupla acompanhada por viola e violão tocados pelos próprios cantores, algumas vezes também por sanfona. Os vocais adotavam um padrão onde um dos integrantes usava uma voz cantada na terça baixa da tônica, que por sua vez era cantada pelo outro membro. Trocando em miúdos, um cantava a melodia principal, e o outro cantava em um tom um pouco mais baixo, padrão que persiste até os dias de hoje. Entretanto, até esse momento, as duplas procuravam fazer uma espécie de acorde vocal**, sem que uma voz tivesse muito destaque com relação à outra. Os temas falavam da vida no campo e das saudades da vida simples do interior. Esse tipo de composição é possível de ouvir em Tonico e Tinoco, Pedro Bento e Zé da Estrada, Belmonte e Amaraí, e os melhores de todos, Pena Branca e Xavantinho.

A partir da década de 70, houve uma mudança de rumo, com a introdução de instrumentos de sopro, teclados e violinos. A temática tipicamente caipira é substituída por um romantismo transbordado e trágico. Com relação à técnica vocal, passou-se a dar destaque muito maior à primeira voz. A harmonia das duplas mais antigas foi substituída por um floreio cada vez mais destacado do cantor principal, com agudos mais e mais penetrantes, enquanto o outro virou uma espécie de capacho sonoro. Os representantes máximos dessa escola são Milionário e José Rico, mas lá também estão Trio Parada Dura, João Mineiro e Marciano, Duduca e Dalvan, Mato Grosso e Matias e outros mais.

Do meio para o fim da década de 80 o fenômeno foi exacerbado, chegando o pesadelo mais autêntico. A eletrificação da sonoridade aproximou as duplas de um conceito industrial e das músicas tocadas nas rádios FM, onde são praticamente abandonados os instrumentos originais: viola, violão e sanfona são substituídos por guitarras e teclados, como qualquer banda mainstream. A romantização das temáticas chega ao seu ápice, de forma a ganhar o desonroso apelido de "música de corno", e o campo cantado como objeto da nostalgia praticamente deixa de existir. A única manutenção do antigo sertanejo são os vocais com o baixo na terça, sendo que, em alguns casos, a segunda voz é um mero grunhido, enquanto a primeira faz o tímpano tremer de tão esganiçada. Isso nasce especialmente com Chitãozinho e Xororó, mas se estende até hoje, sem perspectiva de mudanças: Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, João Paulo e Daniel, Bruno e Marrone... É exatamente esse tipo de som que estampa meus tímpanos nessas inglórias noites.

Ora (direis de novo), se fosse um funkão carioca, com sua peculiar repetitividade e pobreza lírica, não seria pior ainda? Não, e eu explico. Primeiro que a repetição excessiva tão típica do ritmo, apesar da irritação inicial, vai variando para uma sensação nauseabunda típica dos excessos, que, no final das contas, desemboca no mesmo efeito entorpecente dos mantras e das ladainhas. Ou seja, ainda que seja um daqueles sonos que não propiciem descanso, o fato é que você acaba dormindo pelo tédio. E o mais importante: os funkeiros, ao contrário dos sertanejos, não se consideram grandes artistas que fazem obras do mais puro enlevo musical. O funk carioca, já foi dito, é uma espécie de não-arte, de não-música, um dadaísmo harmônico, uma negação musical. Sabem que são provocadores e que incomodam, porque há toda uma crítica à futilidade e excessiva sexualização de suas letras, e apelam justamente para esse sentido meio marginal. Isso é proposital, nenhum deles quer se arrogar virtuosismo. Não é isso o que fazem os sertanejos. Eles se consideram verdadeiramente ótimos, porque se cercam de bandas formadas por músicos renomados, usam equipamentos da mais alta qualidade, possuem motorhomes que mais parecem mansões e pagam caro para que especialistas em músicas de mercado componham seu repertório. O resultado são espetáculos onde tudo é grandioso, que ocupam enormes espaços, que consomem imensos recursos, que arrastam descomunais multidões, que auferem titânicas quantias, mas que, do ponto de vista puramente artístico, é vazio. Suas letras não dizem absolutamente nada, e não pelo fato de serem populares, mas por não estimularem o cérebro de ninguém. Uma comparação rápida:

Enquanto Cartola fala assim de amor...

Queixo-me às rosas
Mas que bobagem, as rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

...e Orestes Barbosa fala assim...

A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando o nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão
E tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão

... Simone e Simaria falam assim...

Adoro quando corro pra você, assustada
Você é o meu herói, matador de baratas
E depois de tudo a gente dá risada

... e Leandro e Leonardo falam assim:

Em vez de você ficar pensando nele
Em vez de você viver chorando por ele
Pense em mim, chore por mim
Liga pra mim, não, não liga pra ele

Compreendam novamente que minha crítica é absolutamente pessoal. Não precisam me dizer quem é mais rico, quem come mais quem, e que, enquanto eu filosofo pobre em um apartamento velho de mais de setenta anos, os precitados não só vivem abastados pela sua música, mas por inúmeras outras atividades que os tornam ainda mais nababos. Existirá quem os mesmos detestem, como filósofos ou professores, e isso não os empobrecerá nem um cruzado de mel coado, mas o fato é que sua produção não tem conteúdo algum. Por trás dos músicos renomados que eles contratam, dos equipamentos da mais avançada geração, das luzes mais ofuscantes de seus shows, há o vazio. Um autêntico ensopado de pedras preciosas, as mais caras de todas, que não alimentam ninguém. Uma forma elaboradíssima sem conteúdo algum. Um estilo sem substância.

Como eu disse lá no começo, e também como já contei neste texto, quando estou deitado e impossibilitado de dormir, sempre me resta a Filosofia, girando pela minha cabeça inerte. É que o furor me tira o sono, mais do que o próprio barulho, e aprofundar os pensamentos não deixa de ser uma maneira de tirar o foco do inferno sonoro. E começo a lembrar de quantas vezes uma bela forma oculta um conteúdo inane. Isso é especialmente válido na retórica. Quantas e quantas vezes um discurso empolado carrega uma construção que fica muito aquém do valor semântico em si. É exatamente o que vemos expresso nas sentenças atenuantes típicas da figura de linguagem conhecida como eufemismo, com uma de suas variações conhecida por circunlóquio, a palavra rodeada, como o próprio nome diz, e que serve para suavizar uma expressão que, dita diretamente, pode soar agressiva ou antipática. O caso mais clássico são aquelas palavras que são proibidas, como morte, câncer ou diabo (leiam mais aqui). Usa-se uma série de expedientes para não se falar a palavra maldita, e enriquece-se uma forma que tem um conteúdo muito mais simples e direto. O que é mais conciso de se dizer? Que fulano morreu ou que foi dormir com os anjos ao lado do pai?

Ainda aqui temos diferentes formas para expressar o mesmo conteúdo. O grande problema acontece quando damos estatuto de verdade para alguma expressão meramente por sua forma mais elaborada. É aqui que temos uma falácia, aquela que mencionei na abertura: o estilo sem substância.

Nesse tipo de falácia, a construção de uma estética é prioritária para o convencimento de quem ouve. Alguns dos casos mais clássicos são os dos políticos, que possuem uma espécie de “quintalzinho” moral de onde não devem sair, para fins de não ferir susceptibilidades do eleitorado. Isso inclui uma fala sem vacilos, um olhar direto, uma amplitude vasta de qualquer temática (ainda que sem substância), uma certa agressividade com adversários, a rejeição a temas polêmicos, um discurso favorável à moralidade reinante e um ensaboamento para assuntos que lhe são problemáticos. Essa espécie de gabarito é quase uma unanimidade nos tempos do Brasil República, que demonstrou um desgaste muito grande nos tempos atuais, embora a recentíssima eleição para prefeituras tenha demonstrado um regresso do político clássico ao poder. Talvez seja esse mais um dos fatores que ajudaram os dois últimos presidentes eleitos a chegar ao cargo: o discurso fora do padrão. Dilma Rousseff com sua fala confusa e o atual mandatário com seu estilo bronco são, de certa forma, mais um elemento do anticonvencionalismo de quem buscava algum ar de mudanças.

É claro que é perfeitamente possível falar argumentos válidos e sólidos com termos rebuscados. O grande problema acontece quando o estilo deixa a visão crítica obnubilada pela estética do discurso, e é mesmo uma tendência que sejamos seduzidos por palavras bonitas, pelo simples fato de que há duas instâncias lutando em nossa cabeça: a da veracidade do argumento em si e a da forma como ele é proferido. Às vezes esta última é que faz o jogo ser vencido. Ou perdido.

Bons ventos a todos!

Recomendações de audição:

Vamos só de música caipira hoje. Comecemos pelo esplêndido álbum de Almir Sater, somente instrumental (daí seu nome). Em alguns momentos, esse disco beira o folk prog, dada sua elaboração e habilidade na execução. Se alguém quiser saber como pode soar bem uma viola, é aqui. Sua música mais conhecida é Luzeiro, o tema de abertura do programa Globo Rural. Mas escutem com atenção à música Doma.

SATER, Almir. Instrumental. São Paulo: Som da Gente, 1985. 29:16 min. 1 LP.

Falei de Pena Branca & Xavantinho como a melhor dupla caipira no estilo antigo que conheço, embora sua carreira não tenha se desenvolvido exatamente na época do sertanejo raiz. A referência que faço aqui junta a eles outro grande da música sertaneja, Renato Teixeira. Desse jeito, mato três coelhos com uma só paulada. E é ao vivo, para não deixar dúvida do talento de ninguém. A versão em CD tem cinco musicas a mais. Muita atenção ao violino de Zé Gomes, um daqueles músicos ocultos que todo mundo deveria conhecer.

PENA BRANCA & XAVANTINHO; TEIXEIRA, Renato. Ao Vivo em Tatuí. São Paulo: Kuarup, 1992. [73:21]. 1 CD.

Por fim, vamos de Passoca, escrito assim mesmo. Não se trata exatamente de um artista do âmbito sertanejo, mas da Vanguarda Paulistana (de quem ainda falarei um dia), o movimento oitentista que chacoalhou o underground de Sampa. Coloquei aqui essa recomendação exatamente para mostrar um intercâmbio: um movimento rico lançando mão de uma música rica.

PASSOCA (Marco Antônio Villalba). Sonora Garoa. São Paulo: Barclay, 1984. 31:58 min. 1 LP.

* Para quem é mais jovem e nunca viu um desses, um três-em-um era um aparelho que era composto por um toca-discos, um toca-fitas e um receiver de rádio. Sua sonoridade era distribuída em caixas acústicas, normalmente duas, que eram instaladas separadamente, de forma a permitir o efeito estereofônico.

** Em teoria musical, um acorde necessita de, no mínimo, três notas para serem combinadas. É claro que não é possível constituir um acorde com apenas duas vozes, mas a sensação buscada nesse caso é de unicidade.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Eclesiastes e sua Filosofia do Tempo - outras observações sobre o livro mais filosófico da Bíblia

Pensamento!
Mesmo o fundamento
Singular do ser humano
De um momento, para o outro
Poderá não mais fundar
Nem gregos, nem baianos...

Gilberto Gil - Tempo Rei

Olá!

Tempos atrás, em uma dessas turnês etílicas que fiz a Monte Alegre do Sul, aproveitei uma promoção de lichias que ocorria em uma pequena chácara na beira da estradinha que leva ao distrito de Mostardas, quase na saída da cidade. O preço estava muito bom, dada à safra generosa daquele ano, e o dono permitia que se chupassem frutas à vontade, enquanto se deslindava a aquisição da sapindácea de origem chinesa, tão bem adaptada ao clima tropical da Ilha de Vera Cruz. Enquanto a patroa usava toda a sua verve otomana para negociar vantagens, fiquei de namoro com um pé de manga gigantesco que havia na entrada da pequena herdade. Todo cheio de frutas ainda verdes, estava tão carregado que era fácil de pegar várias mangas só esticando a mão. Imaginei se não haveria nenhum problema em aviar uma delas à minha algibeira, mas não o fiz sem expressa autorização do chacareiro. Chega de falar difícil. Eu queria era mesmo pegar uma manga. Perguntei-lhe:

“O senhor me autorizaria a tungar uma dessas, mesmo verde?”

Sua resposta foi simples o suficiente para me ensinar algumas coisas: “Essa manga ainda não é de tempo. Se você levar, não vai ter proveito. Ela vai apodrecer antes de ficar madura. Espera um pouquinho”.

Foi até o fundo da roça, de onde era possível ver outras mangueiras. Trouxe-me outras mangas, iguais-que-nem para olhos urbanos. E disse:

“Essas sim. Pode esperar uma semana que elas vão ficar boinhas. Se estiver com pressa, embrulha no jornal que em três dias já dá para comer, mas não vão ficar tão gostosas”.

Atrevi-me a perguntar qual seria a diferença entre o produto de ambas as árvores, e o homem me explicou que há um tempo exato para que uma manga possa ser colhida com proveito. Demonstrou algo sobre a textura da casca, mas eu não consegui perceber a diferença, falando que sim apenas para parecer educado. Mas foi dito e feito: uma semana depois as mangas estavam realmente boinhas para consumo. Há, realmente, um tempo para plantar e um tempo para colher. E isso me remete ao Eclesiastes.


Ora (direis),
justo você vai falar de religião? Não, vou falar de Filosofia. Quando falamos deste livro, temos diante de nós o escrito mais filosófico de toda a Bíblia, que se aproxima muito de pensamentos que trafegam entre o ético e o lógico, e se afastam do metafísico, como acontece com o Budismo, para citar um exemplo. Eclesiastes, ou Qohelet, não se propõe a contar uma história, a desfiar moral, a fazer elegias e louvores... Eclesiastes se propõe a filosofar, e essa é nossa matéria-prima. E sua filosofia é tão rica que há muito que extrair dele. Comecei há tempos atrás, em uma postagem que me rendeu muitas visualizações, e da qual recomendo muito a leitura antes de prosseguir aqui. Fica a seu critério, incomum leitor.

No texto mencionado, depuro como Qohelet assume a posição parmenidiana de mudança como ilusão, baseada em uma de suas frases fundamentais: não há nada de novo debaixo do sol. Mas é no terceiro capítulo do escrito que encontramos o elemento que permeia e dá substância a todo o sentido desta conclusão: o tempo.

Vamos ver. A assertiva sobre a manga do meu caro sitiante encontra-se perfeitamente gravada nos dizeres do filósofo que redigiu Eclesiastes, com toda a carga poética que lhe é peculiar:

“Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou. Tempo de matar e tempo de curar; tempo de demolir e tempo de construir. Tempo de chorar e tempo de rir; tempo de gemer e tempo de dançar. Tempo de atirar pedras e tempo de ajuntá-las; tempo de abraçar e tempo de apartar-se. Tempo de procurar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar e tempo de costurar; tempo de calar e tempo de falar. Tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz" – Ecl 3, 1-8.

Tudo tem seu tempo, seu momento correto de acontecer, e a nós resta aguardar. Como eu disse, há um fundo lírico muito intenso na maneira como Eclesiastes cuida da questão do tempo, especialmente no navegar chiaroscuro das suas dicotomias, mas num primeiro olhar temos uma afirmação que pouco passa do intuitivo. Afinal de contas, é quase que uma característica universal humana pensar em oposições. Mas notem que, por trás desse véu de poesia que fica entre o simples e o ingênuo, há um significado mais profundo.

Vamos falar rapidamente sobre a dialética como ferramenta filosófica. Grosso modo, seria a arte do diálogo na busca de respostas às questões que mais nos afligem. Entretanto, quando pensamos no jargão, a dialética não é uma mera troca de ideias, e sim uma espécie de polarização entre conceitos, onde as ideias colocadas em pontos opostos vão se “combatendo” para extrair uma conclusão nova. Já nos tempos de Zenon de Eleia, talvez contemporâneo ao autor de Eclesiastes, o uso de contradições que caminham de um lado para o outro eram construídas para se tentar espelhar a realidade. Este foi um filósofo que se alinhou muito a Parmênides e, como tal, apostava na permanência perpétua do Ser. E usava muitos paradoxos para justificar suas teses*. Entretanto, a percepção da mecânica dialética, desse trafegar entre opostos, foi, ao longo do tempo, transbordando de uma mera ferramenta filosófica (como ocorre com a Lógica) para constituir uma verdadeira Filosofia da História: a estrutura com a qual a História (ou seja, nosso tempo realizado) se movimenta, lembra em muito a dialética que nasceu com os pré-socráticos e desembocou com toda sua majestade no Geist hegeliano e em sua derivação mais famosa, o materialismo histórico-dialético de Marx (leiam mais aqui). Para resumir, estes filósofos entendiam que a História não se deslinda linearmente, como se o tempo fosse um grande vetor movido pelo acaso ou por uma divindade, mas ao sabor de suas contradições, em uma espécie de zigue-zague.

A Filosofia do Tempo de Qohelet já dizia isso, com todas as letras, embora seu tom pessimista pareça lhe tirar um bom tanto de objetividade. É preciso lembrar que as terras judaicas viviam de mão em mão no período em que esta obra foi escrita, sob domínio de assírios, babilônios, persas e romanos, sucessivamente.  Mas isso não oculta outra característica que vem embutida nesse modelo dialético. Poderíamos achar estranho que tanto apoio na dialética esteja situado em um texto que, apesar de filosófico, não deixa de ser religioso. A volatilidade do tempo percebido, que migra de lá para cá dá uma sensação de impermanência que não coaduna com um deus. Mas é nisso que Eclesiastes é diferente dos demais textos bíblicos em geral, na sua adaptabilidade a circunstâncias que escapam do teológico.

Ao se pensar em estados extremos, obrigatoriamente somos levados a pensar em tudo o que está entre ambos. Em uma régua de trinta centímetros, temos o ponto zero e o ponto trinta, o começo e o final. Tudo o que é possível de medir com essa régua está entre esses dois pontos. A dicotomia entre esses limites carrega consigo uma outra constatação que fica mais em seu substrato: o tempo é uma totalidade. Essa ideia é tão poderosa que vai ser retomada, das mais diferentes maneiras, por outros filósofos ligados à Religião, como Santo Agostinho e Boécio, e até mesmo na moderna ciência de Einstein. Como é isso? O semear e o colher são os limites que perfazem a vida de um vegetal. Representam o ato gerador de seu nascimento e sua morte, princípio e fim - alfa e ômega, em um linguajar mais místico. Entre alfa e ômega, tudo o mais na realidade simbólica representada pelo alfabeto está incluído, tudo está lá. Da mesma forma, tudo o que ocorre no tempo está situado entre esses dois extremos: o brotar, o crescer, o dar frutos, o desfolhar, o definhar. Todas as dicotomias expostas por Eclesiastes vão sempre no mesmo sentido: entre o amar e o odiar há todas as nuances destes sentimentos, entre o chorar e o rir existem todos os aspectos dos estados de espírito. Ele corrobora toda essa informação no seu versículo 11, onde diz que...

“As coisas que Deus fez são boas a seu tempo. Ele pôs, além disso, no seu coração, a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra divina de um extremo ao outro” (grifo nosso)

... o que indica que não só a dança dos extremos, mas a presença permanente dos tempos. Que tempo? O tempo percebido, porque segundo ele mesmo, não é dado compreender ao homem a dimensão completa do tempo sempre presente.

Já falei sobre a questão da duração (durée) em outro texto, sob o prisma de Henry Bergson. Nela, temos uma discrepância entre o tempo mensurável e o tempo intuído. É aquela sensação de que um bom jogo de futebol passou como um raio e um jogo modorrento se arrastou infinitamente. Não, ambos os jogos duraram noventa minutos em uma medida de relógio, mas a sensação peculiar a cada um de nós se dá pela intuição, e daí a impressão de diferença entre os tempos. Mas a duração à qual Eclesiastes se reporta é outra. Seu sentido é que o tempo é como um imenso tecido onde todos os pontos já estão devidamente alinhavados:

“Reconheci que tudo o que Deus faz dura para sempre, sem que se possa ajuntar nada, nem nada suprimir (...) Aquilo que é, já existia, e aquilo que há de ser, já existiu; Deus chama de novo o que passou”.

Aqui, podemos enxergar uma forma de determinismo, ou, no jargão religioso, de predestinação. Lembremos que estamos diante de um texto que, embora filosófico, é também teológico. Estando o tempo todo presente, e sendo ele uma criação divina, cabe a Deus determinar que acontecimentos estão disponíveis para serem tornados presentes. Mas, nesse caso, como podemos enxergar o futuro?

O futuro é sempre hipótese. De certa forma sabemos o futuro. Não na forma de previsibilidade de que os métodos científicos dizem, mas no reconhecer a dialética dos tempos. Sempre sabemos que qualquer situação não é estanque, mas que ruma para o seu oposto, o que dá até um medinho quando as coisas estão boas. É bem verdade que essa linha invisível tem lugar para parar, mas há sempre um ponto em que a direção chega e se inverte de mão. E sabemos que isso acontecerá, ainda que não saibamos quando ou como… Há uma discrepância entre aquilo que gostaríamos que acontecesse e aquilo que sabemos que vai acontecer. Ao primeiro sentimento, damos o nome de esperança, mas este é um sentimento subjetivo, ligado aos nossos desejos e vontades, sem a necessidade de nenhuma conotação egoísta, mas da nossa própria natureza desejante. Já o segundo sentimento existe como nosso conhecimento dessa natureza dialética dos acontecimentos. Ainda que não queiramos, sabemos do rumo para a morte, enquanto também sabemos que outros seres nascerão, e estes também perecerão. Sabemos que por mais que sejam belas as paisagens naturais e as obras humanas, também estas terão um fim, e no campo devastado haverá quem vislumbre a chance de uma criação ou um novo florescer. Sendo assim, o futuro existe na forma de espera.

Note-se, portanto, que o tempo vivido não é pura predeterminação, mas uma série de eventos inevitáveis que devem ser encarados por cada um de sua maneira própria, e não como uma pura reação mecânica que já estaria escrita em algum livro qualquer. A proposta do autor de Eclesiastes para defrontar a espera representada no futuro é muito próxima à que foi imaginada por seu provável contemporâneo grego, Epicuro. Já delineei a ética do prazer deste filósofo helênico neste texto, mas dou uma rápida repassada na mesma. A humanidade tem um propósito comum: a felicidade. Seja um objetivo terreno ou uma esperança para outro plano, o fato é sempre o mesmo – todos querem ser felizes. As vias para chegar a este intento podem ser muito diferentes entre si, mas os epicureus observavam que a senda do prazer era, de longe, a mais apropriada e menos dolorosa. Era mais fácil buscar o prazer do que resistir à dor, como preconizavam os estoicos. Entretanto, o prazer aqui pensado não é aquele do poder, da fama, do sexo ou da mesa, mas o fato de se tornar prazenteiro qualquer ato que se pratique na vida. Uma caminhada que se faz pela manhã, uma flor que se cheira, o trabalho que dá forma a um objeto, uma água pura que se beba no rio, tudo isso são pequenos atos que, quando se quer a felicidade, são transformados em prazer. Os dizeres de Qohelet são muito próximos a essa mesma ética do prazer simples, como se pode ver no versículo 22:

“E verifiquei que nada há de melhor para o homem do que alegrar-se com o fruto de seus trabalhos. Esta é a parte que lhe toca. Pois, quem lhe dará a conhecer o que acontecerá com o volver dos anos?”.

Daqui temos uma contradição à própria ação do homem discutida nos capítulos anteriores: a vaidade (hevel) e a futilidade que retira o sentido da vida. Qohelet nos diz que não nos importa uma preocupação doentia com o futuro, porque ele já está posto, não nos cabe fazer mais do que esperar. Sabemos o que vem, mas não como vem, e angustiar-se com isso é inútil. A vida existe no presente, e é nele que deve ser vivida. Parece meio terreno demais, e é, até mesmo porque boa parte da crítica é favorável à tese de que Eclesiastes nasceu primeiro como um escrito puramente filosófico, para somente depois receber seus elementos teológicos. De qualquer forma, repito o que eu disse no meu primeiro texto sobre este escrito fabuloso: é um texto humano, que pode interessar como conhecimento até mesmo para o mais arraigado ateu. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto de Eclesiastes é facílimo de encontrar na internet. Para compor este post, utilizei a seguinte versão:

https://www.bibliacatolica.com.br/en/biblia-ave-maria/eclesiastes/3/

* Não vou me alongar muito em Zenon porque já estou preparando um texto bem mais detalhado sobre sua metodologia dos paradoxos.