Marcadores

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 9ª parada: Conceição dos Ouros e o eterno problema do relato

(Confiar em relatos sempre é um problema. Que fará quando ele é base para o estudo científico)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Quando vamos a um destino turístico, nossa intenção sempre é de encontrar alguma marca que distinga aquele local de todos os outros. É verdade que há muitas coisas em comum, pontos geográficos, espaços históricos, eventos culturais, construções religiosas e assim por diante. Mas é sempre interessante quando há algo que faça com que aquela localidade seja única, e de onde eu falarei agora, temos o curioso epíteto de Capital do Polvilho. Vou falar de Conceição dos Ouros, a quem visitei no prosseguimento desta viagem.

A prática da fabricação do polvilho veio da disponibilidade de mandioca, abundante na região. Todas as fábricas ficam na beira da estrada, e trazem um aroma ácido peculiar, proveniente da fermentação do amido. Consegui visitar uma das maiores, a Ourense, de propriedade do seo Romeu, que estava andando pela parte baixa da fazenda quando cheguei e me indicou o escritório para conhecer melhor a história do lugar.

A base para a fabricação do polvilho é a mandioca, raiz comum no Brasil que contém alta quantidade de amido em sua composição. Ela chega nessa fábrica em caminhões que são literalmente tombados para que o produto caia de suas caçambas.

A mandioca é lavada e descascada, para então ser levada a um processo de moagem, que é feito com um contínuo processo de hidratação.

Segue-se um processo de separação do amido e da massa de mandioca. O amido vai com a água para os tanques de decantação, enquanto a massa vai para a secagem, para virar ração para o gado.

Como disse antes, todo o processo consome boa quantidade de água, e a separação dela do amido é feita por decantação. Essa água, rica em ácido cianídrico, é conhecida como manipueira e precisa receber tratamento para não chegar in natura nos rios, porque vai fatalmente contaminá-los.

O que diferencia o polvilho doce do azedo é que esse último entra em um processo de fermentação, onde ficará por umas duas semanas. Depois disso começará um insólito procedimento de secagem, feito em tabuleiros ao ar livre, em um delicado equilíbrio com as intempéries da natureza.

Os meninos que nos atenderam nos contaram um fato único: a necessidade de sair correndo para recolher as esteiras de secagem todas as vezes em que o tempo ameaça mudar, mesmo que seja uma ventania. Isso porque, evidentemente, todo o trabalho fica perdido quando há espasmos violentos no clima.

Perguntei qual seria uma alternativa viável. Explicaram a mim que é possível fazer uma secagem artificial, que desnatura o produto, ou colocar o composto em estufas, mas imagine o tamanho da construção que seria necessária.

O resultado são produtos os mais variados: polvilho doce e azedo, tapioca, preparo para bolo, para biscoito e para pão de queijo.

Mas não fui lá somente para comprar polvilho. Passando para a parte mais administrativa da coisa, Conceição dos Ouros tem esse nome por uma conjunção de fatores. O nome inicial é por dedicação à padroeira do município, Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem orna a pracinha central.

Já a segunda parte diz respeito ao Ribeirão dos Ouros, que tem esse nome porque, no passado, foi encontrada certa quantidade de ouro de aluvião por essa redondeza, o que levou à povoação mais intensa do local. O rio forma uma série de saltos e prainhas para a diversão da galera.

A fundação desta cidade foi responsabilidade do Major Félix da Motta Paes, que doou parte do terreno que hoje compõe a área urbana.

Esse território englobava, principalmente, a redondeza da confluência do Ribeirão dos Ouros com o Rio Sapucaí-Mirim, que incluía a antiga capela de Nossa Senhora da Conceição e seu adro, que hoje é a praça que guarda sua homenagem.

A matriz que leva seu nome hoje é uma igreja grande, e é logo lindeira à praça.

Hoje Conceição dos Ouros tem uma cara um pouco diferente do habitual nas cidades do interior, e, apesar do relevo típico da região, possui avenidas largas e ruas retas, com pouco acompanhamento aos contornos naturais.

Como eu disse, não fui a Conceição dos Ouros só para ver polvilho. A cidade tem no meio natural algumas atrações, e eu achei por bem ir atrás de uma trilha. Nesses tempos modernos, peguei a localização no Google, que, sendo Google, me mandou para o meio do nada. Lá estando, perguntei para um morador que passava sobre a tal trilha, e este me mandou para outro canto. Depois, uma criança me diz que eu estava indo para o lado oposto. Novo fracasso, nova pergunta e, de novo, cara de estranhamento e recomendação de outra trilha, até que desisti e fui admirar uma prainha.

Ninguém aqui quis mentir para ninguém. Nem os habitantes, que não entenderam alguém que vem de outro estado e pergunta por nomes oficiais, nem o Google, que simplesmente reproduz uma informação que foi imputada em seus bancos de dados. A questão toda está na fragilidade das informações não metódicas, que são assim mesmo: apontam para norte ou para sul ao sabor de quem as profere.

Isso é um tremendo problema naquela divisa entre as ciências exatas e as ciências humanas que tratei neste texto, ainda naquele espírito de esclarecer como as Ciências funcionam. Se queremos precisão nos dados, é justamente de um relato que não vamos obtê-la. Mas há momentos em que não temos outro caminho.

Pense, por exemplo, nas histórias familiares. Meus filhos conheceram extremamente pouco os bisavós. Da minha parte para com os avós da minha patroa, a relação era meio conturbada, porque eu era um largado, de tênis sujo e calça rasgada, que estava preocupado em correr para lá e para cá com uma banda cheia de maconheiros, e com o pouco confiável emprego de arquivista em uma grande rede de varejo para não garantir o futuro e blá-blá-blá, tudo isso no dizer deles. Nada mais natural que eu fosse muito pouco em suas casas, principalmente para evitar brigas. Quando tenho algo a contar sobre eles para meus filhos, é sob esse prisma que o faço. Já a consorte trata deles com muito mais carinho, dizendo que a avó dançava, o avô fazia paçoca e essas coisas que os avós fazem. Ela corria para lá quando sua mãe queria pegá-la com fio de ferro ou quando brigava na escola. Tinha colo e doce, e eu também adoraria um lugar assim. De um lado ou do outro, a verdade não vem, porque uma versão é rançosa e a outra é afetiva.

As Humanas sofrem com isso. Por isso, precisa lançar mão de recursos em substituição à precisão das observações das Exatas. Meu exemplinho bretão: no clássico da rua de cima contra a rua de baixo, todas as medidas matemáticas e físicas são pouco passíveis de dúvida – a medida do campinho é mensurável por trenas, a acidez do terreno por PHmetros, a inclinação por hipsômetros, o peso da bola por balanças, a espessura das linhas por réguas, a iluminação por luxímetros, a resistência das redes por dinamômetros e por aí afora. Já a qualidade do jogo, o talento dos atletas, a retidão do árbitro, a competência dos técnicos e a importância das torcidas não têm aparelhos para medir. Tudo depende de uma apreciação subjetiva, que só pode trazer resultados na base do consenso, o que não é fácil de se obter. O torcedor da vitoriosa rua de cima dirá que o jogo foi ótimo, enquanto o infeliz da rua de baixo clamará contra os céus e o goleiro peruzeiro, o gramado ruim, o centroavante caneludo, o juiz caseiro, o técnico burro e até contra os sapos enterrados no pé de suas traves. Partindo da premissa caeiriana de que o rio da minha aldeia é mais belo do que o Tejo por ser o rio da MINHA aldeia, é possível pensar que mesmo a mais isenta das opiniões é eivada de alguma parcialidade, pelos mais diversos motivos. Cada um terá um relato próprio, e é desse minestrone que um sociólogo ou antropólogo precisará tirar suas conclusões.

O exemplo banal do jogo de futebol hipotético podemos espalhar, grosso modo, para qualquer aspecto sociocultural que dependa de depoimentos para ser trazido a claro. E aqui já temos que nos defrontar com a questão axiológica das Ciências: uma área do conhecimento não pode e nem deve possuir valores, mas eles são praticados por pessoas, que inevitavelmente têm os tais. Conciliar essas duas características é um sufoco daqueles. Percebam que um fato é um fato, independentemente do juízo que façamos sobre ele, e ponto. Mas a própria visão que temos sobre o fato depende de muito do que tenhamos já interiorizado em nós.

As Ciências Humanas têm, então, que contornar o problema do relato. Ele é substancial quando tudo o que temos são depoimentos. Vejam que não são somente as Humanas que sofrem com isso: sintomas de indivíduos participando de um experimento com remédios carregam desse mesmo desafio. Uma dor de cabeça após a ingestão de certa pílula nem sempre é causada pelo tal medicamento, que pode ser motivada pela sugestionabilidade do participante. Por isso existem os grupos de controle (leia mais aqui), e também por isso pesquisas quantitativas precisam ser razoavelmente grandes. Um exemplo maravilhoso está acontecendo agora no Brasil (com atraso): o censo do IBGE, aquela pesquisa que acontece a cada dez anos e na qual os recenseadores vêm bater à nossa porta com formulários imensos, e que vale não somente para direcionar políticas públicas, mas que é canônico para qualquer cientista social obter informações. Para uma melhor aferição e direcionamento dos recursos públicos, é preciso que o entrevistado forneça dados os mais precisos possíveis. Tudo vai bem enquanto as perguntas versam sobre quantidades de moradores, parentesco, estado civil, religião. Já entorta um pouco em definições menos objetivas, como raça/cor, e para questões consideradas constrangedoras, como a definição da escolaridade. E, em um país violento, com tanta notícia de vazamento de dados pessoais, a informação sobre renda é, sem dúvida, a menos confiável de todas. Quem se sente confortável em dizer para um estranho o quanto ganha? Se é pouco, é vergonhoso; se é muito, é arriscado. É certo que outras fontes podem fornecer dados sobre o mesmo tema, mas aqui nós podemos perceber como o relato, mesmo em pesquisas quantitativas, pode distorcer a realidade. Fôssemos obrigados a apresentar um holerite, o problema estaria diminuído, porque haveria o confronto com um dado real e objetivo, sem passar pelo filtro das idiossincrasias, mas tornando ainda mais lenta a coleta do survey (para saber mais sobre metodologia de pesquisa social, leia este texto).

Mas para Sociologia, Antropologia, Psicologia, História, Economia e outros, às vezes não há números, somente histórias contadas. Quando a pesquisa depende mais exclusivamente do relato, a dificuldade aumenta muito. Há um fenômeno psicológico que leva um indivíduo a moldar diferentes versões de suas narrativas dependendo do público que vai recebê-lo. Infelizmente não consigo lembrar onde eu ouvi, mas tenho perfeitas lembranças (com toda chance de armadilha da memória assumida) de um caso muito interessante. Um grupo de crianças foi entrevistado por uma equipe de pesquisadores sobre diversos elementos da vida social da escola em que estudavam. Uma das abordagens foi sobre a imputação de apelidos entre os colegas e o nível de desconforto que isso ocasiona, especialmente quando tangenciada a questão racial. Nas reuniões em que o grupo fazia todo junto, o resultado era bem complacente: não havia problemas nos apelidos, que, no final das contas, melhorava a comunicação e personificava as pessoas. Entretanto, estando em entrevistas individualizadas e com sigilo assegurado, outra realidade se descortinava, com a demonstração de grande desconforto nesses apelidos, e sua tolerância se dava pela aceitação dos membros pelo grupo, e não uma verdadeira aceitação própria. É triste, e precisa ser considerado nas conclusões da pesquisa, mas demonstra a dificuldade encontrada – nem sempre conseguimos ter essas sacadas que esclarecem as coisas. Temos uma verdade pública e outra privada, temos perspectivas diferentes dependendo do ângulo que enxergamos um fenômeno, temos posições ativas e passivas em situações que fazem mudar nossa opinião, temos versões que são influenciadas pela carga cultural e pela história de vida que cada um de nós leva consigo, discriminamos as coisas de acordo com a capacidade e conteúdo cognitivo pessoal. Por isso, o relato é um problema tão grande na pesquisa.

Uma pesquisa científica procura uma generalização, e isso é obtido a partir de eventos singulares, que são coligidos até se obter uma linha de tendência, de modo a se obter uma relação causal que resulte em estabilidade e sequência. Desse conjunto, há uma explicação para os fenômenos. Quando o assunto em pauta tem caráter social ou antropológico, é preciso que o pesquisador tenha meios de qualificar o dado que recebe. Um único relato nunca é suficiente isoladamente. O Google, sozinho, manda-me para um morro perdido. O rapaz que por lá passava me mandou para um outro lado, e assim por diante. Se na minha pesquisa eu perguntasse a umas trinta pessoas, certamente haveria uma tendência para procurar em um local mais certo: se umas vinte dessas pessoas falassem para eu cruzar tal pontezinha e virar à esquerda, seria mais provável seu acerto do que o da menininha que me dissesse para voltar para trás e entrar no carreador depois do abacateiro.

E finalmente: perguntar porque a tal menininha me mandou para o outro lado do morro levanta tantas questões quanto a própria busca pela trilha que eu procurava, e daí a quantidade não faz diferença nenhuma, mas sim a sua vida e experiência pessoal, tão singular quanto a correria do pessoal da fábrica de polvilho a cada vez que uma nuvem marota prenuncia a mudança do tempo no fundo do horizonte. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Livro da velha guarda, mas que tem as premissas fundamentais da pesquisa.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. São Paulo: Cortez, 2000.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 8ª parada: Inconfidentes e a confissão como ferramenta filosófica

(Confessar não é só um ato de fundo pessoal, mas parte de um método filosófico)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Desde já, preciso fazer uma confissão. Quando fui a Inconfidentes, cidade que fica no circuito têxtil mineiro, para ver seus crochês, esqueci meu celular no hotel. Por esse motivo, fiquei sem fotos. Fiquei em um dilema existencial: faço meu texto sem fotos ou simplesmente deixo essa passagem de lado e pulo para a próxima? Eu, filho de Dona Irene e neto de seo Salvador, perfeccionistas modelares, tenho dificuldades em me conformar com algumas coisas. Embora saiba que ficou longe da perfeição, resolvi o problema passando novamente na cidade na volta de Bueno Brandão, o que ocorreu à noite. Por esse motivo, peço desculpas aos meus leitores e à cidade de Inconfidentes pela má qualidade fotográfica, mas o que importa mesmo é o teor filosófico do texto, e é o que deu para fazer sem excluí-los da série, algo que ficaria me revirando a consciência permanentemente, embora a única imagem decente é a que vai logo abaixo. Acho que valeu a pena.


Inconfidentes é uma cidade típica do interior sul-mineiro. Cercada pelas montanhas da Serra da Mantiqueira, possui um centro urbano que concentra a maior parte de sua população e extensa área rural. A mancha urbana orbita em torno de sua matriz, a paróquia de são Geraldo Magela.

Diante de seu adro, fica o marco inicial do Caminho de Graças e Prosas, que visa estabelecer vínculos entre as culturas locais e dar guia aos peregrinos.


Para além da religiosidade, Inconfidentes é marcada pela educação universitária, porque lá está instalado um dos campi do Instituto Federal do Sul de Minas, entidade do governo federal especializada nas engenharias do campo, além de várias licenciaturas e algumas tecnologias.

A verdadeira especialidade da cidade está mesmo na área têxtil, da mesma forma que suas vizinhas Jacutinga, Borda da Mata e Monte Sião. Há as mais variadas lojas espalhadas pela região.


Em boa parte, verifica-se a existência de lojas de malhas, com tudo o que lhe é comum, como camisetas e pijamas.

A cidade orgulha-se, no entanto, de sua produção de crochê, o que a diferencia um pouco do tricô monte-sionense e da malha borda-matense.

Um dos distintivos são as árvores que são recobertas pelas tramas de fios, como se fossem monumentos da arte de crochetar. Alguns são tecidos com outras artimanhas da costura, como a combinação com fuxicos.

Outras demonstram a complexidade que se pode obter com a habilidade nestas artes e ofícios, com desenhos que podem ser autênticas tatuagens.

O nome da cidade seria, para um estrangeiro, um tanto curioso. Traidores, como assim?! Mas para nós, brasileiros, tão versados em nossa própria história, é fácil de saber que tudo tem a ver com o movimento que ficou conhecido como Inconfidência Mineira, cuja principal figura histórica é Tiradentes. Chega de ironia e vamos dar uma espanada nos alfarrábios.

A Inconfidência Mineira foi um movimento que nasceu da reação às coletas de impostos pela coroa portuguesa, ainda no século XVIII. Foi um movimento multiforme e heterogêneo, que englobou especialmente camadas de elite da Província das Minas Gerais, mas que não se limitou a elas.

A questão toda gira em torno da tão conhecida sanha por riquezas da relação colônia-metrópole entre Brasil e Portugal. Fazer as viagens exploratórias na época das grandes navegações não era nada barato, e a melhor maneira de custeá-las era obter recursos nas terras descobertas. Se pudesse ser em ouro, melhor ainda.

Entradas e bandeiras foram criadas para buscar todo tipo de produto que pudesse representar divisas para a metrópole. Nessas buscas, encontraram minérios valiosos no território em que hoje se encontra Minas Gerais, o que, inclusive, lhe batizou. O busílis está na relação entre abuso da coroa e febre d’argent que povoa o imaginário desde sempre. O reino de Portugal exigia que um quinto de todo ouro encontrado fosse encaminhado para lá. Para tanto, todas as descobertas deveriam ser levadas às casas de fundição, onde o minério bruto era transformado em lingotes com a marca real e a arrecadação do quinto já era feita na fonte. Largar 20% de tudo o que você coletou não era algo aceito confortavelmente por todas as pessoas, em especial quando não é revertido em nada que lhe seja aproveitado. Por conta disso, muito ouro era extraviado pelos caminhos adjacentes à via principal de circulação, a Estrada Real (de quem já fiz um belíssimo texto, aqui). Se a guarda capturasse essas cargas, babau. Se não, o contrabando se concretizava e o danadinho se locupletava.

Mas a controvérsia nem era essa. O caldo entornava com a derrama, uma coleta de impostos suplementar que a coroa portuguesa realizava sempre que sua meta arrecadatória não era atingida. Para arrecadar os recursos da derrama, pouco importava o que viria pela frente, desde que a quota fosse complementada, incluindo o confisco de bens e objetos de ouro. Dizia-se que a derrama não servia unicamente para fins arrecadatórios, mas também para punir os desvios de metal, que continuavam a ocorrer, a despeito da instituição das casas de fundição. A ausência de critério nessa coleta era objeto de imensa revolta, e foi na iminência de uma delas que surgiu o movimento da Inconfidência Mineira.

Esse movimento tinha seus objetivos pouco claros, porque cada um queria uma coisa, mas, grosso modo, era uma conjuração separatista, que pretendia inaugurar em Minas Gerais um novo Estado, e aproveitariam o descontentamento popular com o decreto de uma nova derrama. Entretanto, a alcaguetagem rolou solta e o movimento foi desfeito, cujo principal evento histórico foi a execução de Tiradentes, uma espécie de bode expiatório com a discutível cara de Jesus. A formação de um panteão heroico para a república brasileira fez com que essa história, que havia ficado mais ou menos engavetada, voltasse à tona, e, sendo um acontecimento mineiro, há muitas e muitas referências espalhadas por todo o estado, incluindo o nome da cidade em tela.

O nome dessa conjuração, do qual derivou a denominação de Inconfidentes, tem o ponto de vista do reinado português. Afinal de contas, inconfidente é aquele que é infiel, desleal, que não confessa seus próprios propósitos. Portanto, quem deu o nome que ficou mais conhecido ao movimento foi o ângulo de visão do lado de lá. Fosse o contrário, seria conjuração, aqueles que juram causa juntos, e se fosse neutro, seria revolta ou coisa semelhante. Seja como for, a palavra remete à confissão, à admissão de algo que não se dá abertamente, e esse é o mote do presente texto. Evidentemente, do ponto de vista filosófico.

Hajime Tanabe é o único filósofo japonês que eu conheço, pelo menos até hoje. Nem é tanta vantagem assim, porque ele tem grandes influências ocidentais no seu pensamento, mas, mesmo assim, é muito interessante de conhecer, porque ele acaba fazendo uma transição entre o pensamento mais material da Europa com uma certa espiritualização comum em terras orientais. Ele dizia que toda a arte de filosofar parte de uma confissão. Mas o que é confessado quando se filosofa? Essencialmente, a própria ignorância. É preciso reconhecer que nada se sabe para buscar compreender o mundo.

Ora (direis), foi preciso esperar até o século XX para se chegar a essa conclusão? O "só sei que nada sei" socrático era uma mera ilusão de ótica? Não vamos ter uma versão nipônica da maiêutica dos gregos? Não, meu rigoroso interlocutor. Eu também tive essa sensação nos primeiros contatos que tive com o professor japonês, mas a questão fundamental está no ângulo que se enxerga, o da Fenomenologia.

Tanabe esteve na Europa bem no momento em que Husserl desenvolvia seu método de investigação filosófica. A Fenomenologia procura ter a noção de que há sempre uma consciência que tem contato com os fenômenos (tudo o que existe e acontece no universo), e que essa consciência nunca é pura, sempre recoberta por várias camadas de cultura, o que faz com que qualquer coisa que seja observada seja feita de maneira absolutamente particular. Se cada um de nós vê o universo pelo prisma de sua própria consciência, então são mais de oito bilhões de universos diferentes sendo vistos. Por isso, a Fenomenologia preconiza que a primeira parte de qualquer análise deve considerar a remoção de todos esses vernizes que recobrem nosso conhecimento.

Isso é feito, pela clássica imagem de Husserl, colocando o conhecimento entre parênteses, ou seja, deixando tudo o que imaginamos conhecer quietinho num canto enquanto vamos fazer o contato com o objeto de estudo despidos de valores prévios ou de conceitos concebidos anteriormente. Quando observamos qualquer coisa no mundo, existe uma atitude natural e intuitiva, que é justamente colocar essa coisa dentro de um contexto conhecido por nós. Isso nós fazemos sempre e não há nada de errado nisso, até por uma questão de sobrevivência. Mas quando o assunto é reconhecer o que há de essencial nesse fenômeno que observamos, é preciso deixar de lado o conhecimento prévio. Eu não vou descartá-lo, mas vou suspendê-lo. Esse colocar o conhecimento entre parênteses é o que ficou conhecido como epoché.

Eis aqui que Tanabe encontra a premissa socrática da ignorância. Tudo o que eu sei sobre qualquer coisa está banhado da minha própria consciência, e essa é moldada pelo modo como absorvi tudo o que eu pretensamente conheço. Ou seja, ao aplicar a epoché fenomenológica, só me resta reconhecer que nada conheço.

Mas não parece uma premissa radical demais? Se pensarmos em nosso mundo acelerado, onde as informações precisam ser entregues como produtos de consumo, veremos que aquilo que conhecemos como “verdade” ganhou um estatuto novo, mais vinculado a uma criação mental de um desejo do que a uma correspondência entre um fenômeno e o que se diz dele. Pensem no que se diz sobre direita e esquerda, sobre nazismos e comunismos, sobre Terra plana e Terra no centro do universo para se ter ideia da dificuldade de se alcançar uma verdade indubitável. Isso é tão evidente que se cunhou o termo pós-verdade, onde a posição de quem propaga a informação é mais importante do que os fatos despidos da opinião de quem olha para eles. Uma abordagem fenomenológica tornou-se imprescindível para quem quer manter um mínimo de coerência entre o que se se vê e o que se relata, e o único meio de se obter isso é admitir que seu conhecimento prévio é pobre e caduco.

Embora adira ao pensamento fenomenológico, Tanabe não deixa de deitar as raízes do seu pensamento em um sabor oriental. Como diz o Budismo e seus filósofos (vide este texto), a busca pela iluminação passa essencialmente por um esvaziamento do próprio eu. Esse esvaziamento, quando refletimos na assertiva fenomenológica da consciência, é o próprio processo pessoal de retirada sucessiva de todos os conhecimentos prévios que podemos ter sobre qualquer coisa. A vacuidade budista tem, portanto, a mesma natureza da epoché husserliana. A busca do eu (a consciência) é uma remoção sucessiva de tudo o que é não-eu. Só a consciência despida tem a capacidade de atingir uma essência, e, nesse sentido, o primeiro passo está no reconhecimento da ignorância: uma confissão feita para si mesmo.

Comecei este texto falando sobre a necessidade de fazer uma confissão, e, no final das contas, acabo por mostrar como ela vai muito além de um mero ato íntimo ou de uma obrigação religiosa, chegando até mesmo a ser uma prescrição obrigatória na Filosofia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O português é pobre em material de Tanabe, restringindo-se a uns poucos artigos. Recomendo essa obra em italiano para conhecê-lo melhor.

TANABE, Hajime. Filosofia come Metanoetica. Milão: Mimesis, 2011.

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 7ª parada: Bueno Brandão e a (in)cômoda sensação de não ter escolhas

(Fazemos tudo de nosso gosto e vontade ou temos uma mão que nos guia passo-a-passo?)

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Depois da noite dos queijos e morangos colhidos frescos, o tempo deu uma boa firmada. É estranho. Neste ano da graça de 2022 (momento dos acontecimentos da viagem, não do texto), temos tido temperatura mais baixa do que o convencional, com bastante chuva. Os tontos que negam o aquecimento global se locupletam quando isso acontece: "tá vendo? Onde tá o aquecimento?". Mas hoje não. Sol a pino e mais de trinta graus, mesmo na altitude. É a senha para procurar água fresca. Vamos a Bueno Brandão.


Estamos aqui em uma cidade com média de altitude um tanto elevada, mesmo para os padrões serranos que vivemos nesses dias, sendo que a praça central está a 1300 metros.


Nesta mesma praça, as bicas fornecem água mineral bastante útil para um dia especialmente quente.

Em um outeiro que a torna mais um pouco elevada, fica a paróquia de Bom Jesus, com sua arquitetura meio maneirista e escadaria cercada por jardins.


Bem aos seus pés, encontramos o Centro de Apoio ao Turista, onde conseguimos um ótimo mapa da cidade. Além do receptivo, é um local onde também há muito artesanato e uma biblioteca, sem contar que é um belo edifício.

Antes de pegar o rumo para as cachoeiras, demos um pulo à Vinícola Fidêncio, onde fomos bater um papo com o próprio, além de bebericar os muitos produtos que lá existem. Não é um bom lugar para motoristas responsáveis.

Já no caminho para a Cachoeira dos Machados, uma curiosidade: um castelo medieval em plena estrada. Causa estranhamento, sabendo que o Brasil, na época dos castelos, tinha no máximo as ocas dos índios. Disseram-nos pertencer a um médico de nome Bispo de Sá e que o aluga para casamentos e outros eventos.

Mas vamos ao principal. No curso do Rio das Antas, encontramos a Cachoeira dos Machados 1. Dada a chuvarada dos últimos dias, estava bastante barrenta, mas, mesmo assim, é bastante bonita de ver. Fica dentro de um sítio de hospedagem, o que garante uma estrutura bem legal para o visitante.

Depois do almoço, fomos procurar outra cachoeira para passar a tarde. Chegamos a uma das principais, a Cachoeira dos Félix, com água de nascente cristalina.

Seu acesso exige uma bela descida a pé, onde os proprietários utilizaram mais de seiscentos pneus para construir seus trezentos e tantos degraus. O problema é a volta.

Além do tradicional poço e da água geladíssima, o lugar possui uma trilha ao longo do curso d'água formado.

Reclino em uma pedra para me secar, fico observando o espetáculo da natureza construído na minha frente. E é aqui que me dá a sanha de filosofar. Deveria estar pensando na beleza que vejo à frente, ou no almoço, ou na morte da bezerra, mas os pensamentos me vêm à cabeça, sem que eu possa evitar. Por que será que é assim? Olho para a cachoeira e há o impulso de pensar em uma mão que montou tudo aquilo, mas logo eu fixo o foco na cabeleira líquida que fica na crista da água que cai e vejo as pequenas gotas que se destacam.

Se houvesse um construtor, a natureza não teria tantas imperfeições, penso eu. Entretanto, um fato se descortina inexorável: aquela gota que eu miro está exatamente lá onde eu a vejo agora.

A pergunta que me brota é: essa gota está aí por um acaso? Ela não poderia, sei lá, estar sendo bebida por um bicho, enchendo as ruas de uma cidade, sendo processada por algum corpo, refrigerando algum motor, parada num vaso criando mosquitos, no canto dos olhos de uma menina triste, ou ela tinha que estar exatamente aí, caindo com aceleração de 9,8 m/s de uma altura de 40 metros, para contemplação de um gordo barbudo, mas sem bigode, que também não controla o fato de estar fazendo exatamente estes questionamentos? Vivemos em aleatoriedade ilusória? Nossos passos são predeterminados?


Uma das regras mais características da Ciência é a capacidade de fazer previsões. Se eu dispuser de algumas informações fundamentais, conseguirei estabelecer com precisão como um fenômeno se desenrolará. Por exemplo: se eu der um chute em uma bola com força tal, direção tal, atrito do campo tal e força do vento tal, é inevitável que ela vá para um local perfeitamente calculável. Se não foi, faltou algum fator, e não uma mãozinha metafísica marota.

Isso encantou o físico Piérre-Simon Laplace, que, ante todas as descobertas realizadas por Isaac Newton et caterva, verificou a possibilidade de que absolutamente tudo no universo era previsível. De fato, em uma cabeça matemática como a de nosso herói, toda a natureza podia ser reduzida a fórmulas, como acontece com a gravidade, a gravitação, as forças magnéticas e todas as outras. Em um contexto onde todos os fenômenos naturais estivessem sistematizados nas formulações, seria possível prever qualquer acontecimento, vaticinando o futuro de qualquer molécula.

Ocorre que Laplace viveu em uma época onde ainda não se conhecia a mecânica quântica. Se houvesse vivido, veria que as coisas não são assim "simples". Não que seja impossível de se fazer previsões nessa área da Física, mas há dificuldades inerentes ao princípio da incerteza de Heisenberg, cientista alemão que cuidou da mensurabilidade de partículas subatômicas. Segundo este princípio, quanto mais sabemos sobre a velocidade de uma partícula, menos sabemos sobre sua posição, porque não se consegue manter o par de referenciais. Para que eu saiba com precisão onde uma partícula estará daqui a um intervalo de tempo, eu preciso conhecer ambas as variáveis, e se eu não tenho a certeza do dado presente, também não tenho do dado futuro. Dessa forma, o funcionamento universal é caótico, e não organizado, como adoraria Laplace, e o que teríamos são probabilidades, e não determinações. Não vou me aprofundar na questão, porque não manjo dos paranauês e já é o suficiente para o que quero propor aqui.

Embora seja lícito supor que nosso pobre Laplace provavelmente se sentiria decepcionado com seu palpite furado, não podemos descartar a possibilidade de, um dia, o princípio da incerteza ser resolvido e que sua profecia volte a fazer sentido. Se pensarmos muito radicalmente, lembraremos que tudo é feito de átomos, inclusive o sistema nervoso por onde trafega os pulsos elétricos que nos fazem perceber o mundo. Se há chance de se prever todo o movimento cósmico, podemos talvez pensar que mesmo nossos pensamentos são predeterminados, como a gota da cachoeira.

Será que isso faz sentido? É uma discussão longa, que se arrasta há tempos. O velho Santo Agostinho, por exemplo, já dizia que, se não somos livres para escolher, não há sentido em falar de racionalidade. Um ser racional é aquele que possui predisposição para fazer opções, inclusive aquelas que redundam no mal. Se assim não fosse, não existiria sentido no pecado: quem não pode escolher, não pode ter culpas pelos atos e escolhas. O livre-arbítrio, nesse caso, é um dom divino que dá ao homem capacidade de guiar sua própria vida, ainda que seja pelo mal. Já na Reforma Protestante, Lutero prefere dar mais ênfase à graça divina, colocando para o homem a fé como meio salvífico, e não suas escolhas. Calvino vai mais fundo ainda, reabilitando a predestinação (vide), tendo como fundamento as afirmações bíblicas de onipotência divina. O homem recebe sinais de sua graça, mas nada pode fazer em relação à sua sina, apenas viver de acordo com as regras que lhe são dadas. Volta e meia vejo algum floreio dizendo que há escolhas dentro da predestinação, mas, infelizmente, são argumentos cheios de contradições lógicas.

Com o advento do Positivismo, a escola filosófica que festejou a ciência como solução para todos os problemas e que só colocava como conhecimento válido aquele redutível a fórmulas, a hipótese do determinismo foi elevada aos altares, principalmente com Hippolyte Taine. Já aqui, tínhamos que todo o aspecto ambiental e genético influenciava na maneira como um ser humano pensa, inclusive colocando muito na conta o fator racial. 

Embora o Positivismo de Comte e o Determinismo de Taine tenham sofrido duras derrotas com a tecnologia de guerra, que demonstrou que o aperfeiçoamento humano tinha mais a nos por medo do que esperança, o fato é que, por outras vias, a ideia de um universo ordenado inclusive a nível da pessoa ganhou força a partir do século XX. O próprio marxismo se encarrega de demonstrar parcialmente como a ideologia e as superestruturas delineiam um mundo pelo qual os pensamentos são movimentados dentro de limites. As relações estruturais de uma sociedade são construídas de acordo com a proposição da manutenção dos status quo, especialmente na questão econômica. A partir disso, todo o conjunto político, judiciário, religioso e, no limite, interrelacional é construído, de forma a escrever o trajeto por onde os componentes da sociedade pensam.

No entanto, é com a corrente do Estruturalismo que a ideia de um determinismo social passa a ganhar mais corpo. Grosso modo, o Estruturalismo entende que todos os aspectos humanos derivam de relações com um sistema estabelecido, e é sobre essa estrutura que toda a realidade se assenta. Por exemplo, nós gostamos de futebol porque estruturalmente esse esporte está inserido tanto na nossa cultura, quanto em nossas relações econômicas, já que ele movimenta vários recursos. Nativos da ilha de Tonga não têm futebol na sua lista de preferências porque ele não faz sentido lá, não pertence às suas estruturas. O Estruturalismo, mais que uma corrente filosófica, é uma maneira de pensar o mundo, e tem seus braços na Linguística, na Antropologia, na Psicologia, na Sociologia e assim por diante.

Um estruturalista diria que as pessoas se adaptam à estrutura social à qual pertencem, e isso guiaria sua maneira de pensar. Notaram que sabor forte de causalidade que isso tem? Algo é assim porque anteriormente tais condições eram assado, de forma a moldar o presente. Isso, por exemplo, ajudaria a explicar porque estou na cachoeira nesse momento. Se eu for recuando no tempo, verei que estou aqui porque tirei um descanso, porque trabalhei por um determinado período, porque entrei em um determinado emprego, porque estudei para um determinado trabalho, porque me senti atraído por uma determinada carreira e assim para trás. Cada um dos pontos de inflexão já estaria descrito na própria relação de causa e efeito: como eu recebi uma educação específica, tive uma história específica, ouvi opiniões específicas e fui formado em uma cultura específica de uma casa específica, cada escolha que fiz na vida não poderia ser diferente do que foi, e a escolha, na verdade, é uma mera ilusão.

Mas o meio é tão engessante que torna absolutamente inviável a escolha do indivíduo? Não é o que pensam os existencialistas, por exemplo. Para eles, não faz sentido entender o ser humano como se fosse qualquer outro objeto no universo. Uma pedra, uma bola, um aspirador de pó ou uma agulha de costura, sejam naturais ou manufaturados, não possui o elemento volitivo que nos caracteriza. No limite, nem mesmo um animal, porque a ele cabe seguir seus instintos e cumprir suas necessidades imediatas. Dono de abstração e capacidade de escolha, não há como estabelecer um plano predeterminado que dirá o que uma pessoa será. Ela, no final das contas, sempre trará consigo uma consciência e uma liberdade para fazer suas escolhas, mesmo que não seja nenhuma. Os existencialistas entendem que um determinismo, seja ele qual for, nada mais faria do que ocupar um lugar de divindade, que preestabelece cada lugar para cada coisa no universo, o que é um erro, reputam eles. Por muitas vezes, nossas precondições sociais e históricas estabelecem limites da mesma forma que as religiões fazem, ao impor coações no que podemos ser, e, aí sim, temos um destino desenhado.

É evidente, no entanto, que o meio gera a rede de influências inegável nas escolhas do contribuinte. Uma pessoa que more em uma cidade com um time vitorioso terá uma bela motivação para torcer para ele, mas isso não pode ser imposto como regra. Portanto, a partir do Existencialismo, temos um direcionamento para o mesmo universo probabilístico da mecânica quântica, incerto por nossa capacidade de escolha, mas com algum grau de previsibilidade, dado o ambiente que nos cerca e baliza limites.

E de repente eu já nem estou mais olhando para a gota que se perde no restante da água, com a visão perdida de quem pensou e se perdeu, já passando para a próxima questão, escolhendo (ou não) o que fazer logo em seguida. Eis uma das grandes desvantagens em não se seguir uma religião: os fieis já tem tudo isso pronto, tudo isso dado, seja para estabelecer a necessidade de se fazer escolhas, seja para deixar tudo na mão de seu deus. Tudo deve ser pesado e sopesado, e a incerteza é sempre o resultado final.

Desvantagem? Não sei. Também disso não tenho certeza. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para o ótimo Santo Agostinho. Discorde de tudo o que ele diz, mas saboreie a construção de argumentos com lógica impecável.

SANTO AGOSTINHO. Sobre o Livre-arbítrio. São Paulo: Vozes, 2021.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Os verdes mares de onde não há mar – 6ª parada: Bom Repouso, com morangos e estátuas que não sabemos quanto durarão

(O que vem depois que a chave da religião no Brasil virar?) 

"Pregam a doutrina humana os que dizem que assim que a moeda tilintar na caixa, a alma voará para fora do purgatório" - Lutero 

Olá!

Clique aqui para acompanhar as outras paradas do trajeto

Quando estávamos saindo da pequena Tocos do Moji, observamos uma coisa estranha nos morros. Uma série de cabaninhas semicirculares ocupavam grandes extensões da parte rural, o que notoriamente constituíam estufas. Mas o que seria tão delicado e estaria sendo cultivado sob elas? A resposta veio rápido, na forma de pórtico de entrada da cidade de Bom Repouso.

É que Bom Repouso é a principal produtora de morangos do estado de Minas Gerais. É tipo assim: Bom Repouso está para Minas como Atibaia

está para São Paulo.

O resultado é uma curiosa cobertura de estufas pela região rural, em um sistema que promete proteger as delicadas frutas das intempéries e dos gulosos pássaros.

Como você está na "boca da botija", pode escolher frutas de acordo com seu gosto, incluindo chulapas deste tamanho.


Os preços são bem baixos, algo como um quarto do que você paga na feira, com o frescor de quem acabou de colher a fruta. Eu aproveitei algumas caixinhas para fazer um jantarzinho com a patroa, juntando com queijo e a indefectível cerveja.


A cidade meio que vive em função do morango, com vários armazéns dedicados à sua venda ao longo da estrada. Além disso, há o aspecto religioso, e bastante marcante é a matriz, dedicada aos santos Sebastião e Roque.

Da mesma praça dessa igreja, vê-se a grande (grande mesmo) atração turística da cidade: o santuário de Nossa Senhora das Graças, com sua enorme estátua.


Trata-se da imagem mais alta da América Latina dedicada à santa, tendo mais de vinte metros de altura.


O simbolismo contido nesta imagem vem da comparação de Maria com a nova Eva, que veste um manto da cor do céu e pisoteia a cobra que representa o mal.


O tamanho da imagem impressiona, especialmente quando comparada à pequena igreja que lhe ladeia, pouco maior que uma capela.


Não menos impressionante é o quanto a subida do morro é íngreme. Como eu entrei com pouco embalo, achei em determinado momento que precisaria completar a subida a pé.


Vencida a pirambeira, entretanto, tem-se uma vista panorâmica muito bonita da cidade, tanto da área urbana…


… quanto das plantações de morango que já ficam bastante próximas.


Isso reflete que a fé dos católicos ainda é muito presente nas cidades menores do interior, e o quanto seus habitantes ainda são tocados pelas antigas tradições do Brasil colonial. Mas há mudanças em ritmo acelerado que ainda chegarão por aqui, e não tarda muito.

Uma das possibilidades da diminuição das paisagens compostas por signos de matriz católica seria uma aplicação mais rigorosa dos conceitos de laicidade do Estado, tema que abordei neste texto link da série "o que ele é e o que ele não é". Em tese, a partir da promulgação da Constituição, não deveríamos ter dinheiro público aplicado em prol de uma religião, mesmo que ela seja majoritária. É claro que essa regra não deve ser absoluta, nem universal. Há muito patrimônio histórico que está coligado à questão religiosa, e, neste caso, a manutenção é da história, e não da religião. Dessa forma, faz sentido que se aplique verbas públicas em entidades religiosas. Outra discussão diz respeito ao turismo. Embora nesse caso eu não tenha tanta convicção da natureza dos gastos, é fato que cidades como Aparecida, Trindade e Nova Trento vivem em função da religião, e investimentos públicos podem se justificar pelo retorno financeiro à cidade. Fora dessas circunstâncias, a regra do Estado laico deveria se aplicar com mais critério. Mas a ameaça ao primado católico está muito longe da laicidade. É muito mais provável que a questão se agrave com o crescimento exponencial do Protestantismo no país, especialmente na forma do neopentecostalismo.

Embora a miríade de denominações tenda ao infinito, há algumas características comuns nelas que confrontam diretamente o Catolicismo de forma mais ou menos comum, o que pode ser um problema e tanto dentro de poucos anos. Vamos entender um pouco melhor.

O Protestantismo possui um fato histórico inicial bastante bem marcado, que constitui as 95 Teses sobre as Indulgências de Martinho Lutero. Ele foi um monge agostiniano que viveu entre os séculos XV e XVI, ou seja, em plena Idade Média. Como estava em desacordo com a doutrina das indulgências da Igreja Católica, resolveu expor seus ideais publicamente na porta do castelo de Wittenberg. As indulgências ou endoenças constituíam a remissão total ou parcial dos pecados cometidos por uma pessoa arrependida. O sacramento da confissão era suficiente para que um fiel se visse livre da pena espiritual pelos seus pecados. Entretanto, na doutrina católica, era preciso pagar pelo dano material causado pelo pecado, e acreditava-se que havia a pena temporal a ser remida, o que deveria ser cumprido no purgatório, uma espécie de mistura entre colônia penal e escola, onde as almas já desencarnadas sofreriam "correções físicas" com o objetivo de remover os males causados a outrem. As indulgências serviriam para que o tempo de permanência da alma no purgatório fosse diminuído ou mesmo extinto. O grande problema que Lutero via nas indulgências era menos de natureza teológica (embora também existisse) do que pela prática de simonia, a venda de objetos sagrados e sacramentais. Essa era uma prática corriqueira da Igreja Católica na época em que Lutero expôs seu ideário, e justificava-se pela necessidade de dar manutenção à grande estrutura de templos católicos.

Fundamentalmente, as teses diziam que os certificados de indulgência esvaziavam o arrependimento do fiel, pelo fato de que se desfazia a necessidade da busca pela contrição sincera e de se evitar o pecado, bem como colocava em segundo plano outras possibilidades de remissão, como as obras de caridade e os atos de misericórdia, que possuíam um efeito prático muito mais visível que a aquisição de indulgências.

A princípio, Lutero tomou um certo cuidado em não se colocar em confronto direto com o papado, mas, uma vez recusando-se à retratação, foi considerado herege e se colocou a desenvolver sua nova igreja. Embora o Luteranismo tenha mantido mais pontos de contato com a prática católica do que parece qualquer culto evangélico de hoje em dia, de lá já brotaram algumas das principais diferenças que foram adotadas pelas mesmas e se mantém até os dias de hoje.

Basilarmente, as diferenças fundamentais entre católicos e protestantes são as seguintes:

Primado da Bíblia: é indiscutível que a Bíblia seja o primado doutrinário e teológico tanto para católicos quanto para protestantes. Entretanto, os protestantes reputam unicamente a Bíblia como fonte válida de textos para serem interpretados com relação a sua fé, em uma doutrina conhecida como sola scriptura. Entendo que há algo de contraditório nessa maneira de pensar a Bíblia. Basta se pensar que qualquer interpretação sobre a Bíblia está fora da Bíblia, e caímos desta forma em um daqueles paradoxos circulares. Já o Catolicismo entende como fontes doutrinárias válidas a tradição e o magistério da igreja. A primeira diz respeito aos costumes adotados pelos primeiros cristãos que vieram preencher certos vazios teológicos que a leitura direta da Bíblia, especialmente dos Evangelhos, produziu na formação dos rudimentos do Cristianismo. Já a segunda é referente a autoridade que a igreja tem para se autoorganizar e fornecer respostas e formação de dogmas que escapam a leitura direta da Bíblia. Também possui suas contradições, uma vez que as diferentes decisões são tomadas ao longo de tempos distintos que envolvem realidades muito divergentes, seja de caráter geográfico, seja de caráter histórico.

Papado e sacerdócio: a Igreja Católica possui uma estrutura hierárquica bastante rígida, e que é traduzida por uma escalada na carreira de acordo com a evolução do sacerdote. Acredita que o legado da igreja foi deixado diretamente de Jesus para São Pedro, e que esse episódio estabeleceu aquilo que ficou conhecido por papado. Como São Pedro foi martirizado na cidade de Roma enquanto exercia seu sacerdócio, ficou estabelecido que era essa a cidade em que ele exercia seu episcopado, e desde então o bispo da cidade de Roma é considerado o Papa, líder da Igreja Católica em todo o mundo. A partir deste ponto mais alto da pirâmide sacerdotal, a carreira eclesiástica se divide entre os bispos (incluindo aqueles com funções especiais, como os monsenhores, os cônegos e os cardeais) os presbíteros (que comumente chamamos de padres) e os diáconos, que possuem a função de serem ministros da palavra. Antes disso, há funções pré-eclesiásticas, como o acolitato e o leitorado, traduzindo um longo tempo de preparo para o exercício das funções sacerdotais. Os protestantes não reconhecem a transmissão direta da autoridade de Jesus a Pedro e menos ainda o valor do papado. Sua estrutura é muito mais maleável (com a notável exceção do Anglicanismo, onde o rei da Inglaterra é considerado o líder máximo), possuindo estruturas muito mais locais e pulverizadas. A formação de um pastor é extraordinariamente mais rápida que a de um padre, o que, se por um lado prenuncia um preparo menor, por outro desfavorece a existência de uma casta sacerdotal.

Sacramentos: são rituais que expressam sinais divinos da presença do deus cristão. No Catolicismo, eles são sete e percorrem toda a vida do fiel: batismo (introdução da criança na igreja), eucaristia (renovação do ato sacrifical de Jesus), crisma (confirmação pública da fé adotada no batismo), matrimônio (opção pela vida conjunta para a formação familiar), ordenação (opção pela vida sacerdotal), confissão (para absolvição dos pecados) e unção dos enfermos (para preparação dos moribundos à morte). Nas igrejas evangélicas, esses sacramentos, via de regra, são apenas dois: batismo e eucaristia, com diferenças significativas. O batismo de crianças não é admitido, porque somente a partir da idade da razão uma pessoa pode tomar uma decisão de fé consciente, e a eucaristia, apesar do caráter sacramental, é antes um memorial da última ceia do que propriamente uma transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo, como creem os católicos. Os protestantes, especialmente os mais recentes, possuem ritos bastante semelhantes aos católicos, como os "óleos ungidos" (sic), e os matrimônios, embora existentes, não têm caráter sacramental, sendo considerados mais uma apresentação do compromisso dos noivos à comunidade.

Celibato: embora não seja uma condição histórica, a igreja católica adotou o celibato para uma entrega total do sacerdote à sua comunidade e, subsidiariamente, para não existirem transtornos no sustento de famílias pela igreja. Já os pastores, em sua maioria, não abrem mão de sua vida fora da igreja, o que significa que podem manter suas atividades financeiras e sua vida social, incluindo aí o casamento. São, inclusive, fortemente estimulados a isso.

Veneração dos santos: para os católicos, os santos são pessoas que se destacaram das demais por sua vida cristã vívida e modelar. Por esta razão, seriam dignos de ser elevados aos altares, mas na condição de veneráveis, já que a adoração seria reservada somente a Deus. Os protestantes entendem que essa interpretação é um macete para a idolatria, condenada veementemente pelo Velho Testamento. As igrejas mais tradicionais, inclusive, se negam mesmo a utilizar imagens impessoais, como é o exemplo da cruz.

É aqui que a porca torce o rabo, especialmente pela predileção dos católicos à figura de Nossa Senhora. Realmente a coisa é polêmica, se observada a olho vivo e faro fino. Se é aceitável a alegação da força modelar dos santos, é bem verdade que é evidente que a veneração extra concedida a Santa Maria transcende em muito ao que pode ser depreendido dos Evangelhos. Com exceção de São Lucas, as referências a ela são esparsas e a colocam mais como uma via útil e fornecedora de aspecto humano à divindade neonata. Toda a reverência adicional, como a virgindade perpétua, a assunção aos céus, a concepção sem pecado original e outros dogmas são oriundos da tradição e do magistério, justamente as fontes que os protestantes não aceitam. Por esse motivo, a estátua daquele tamanho deve arder nos olhos evangélicos como se tivessem levado um borrifo de fumaça na cara.

Hoje ainda não temos grandes ocorrências, até porque os católicos ainda são muitos e os alvos das santas metralhadoras ainda são religiões de influência africana, com toda dose de racismo contida no ato, mas as estatísticas demonstram que o arco está se movendo, com um agravante: as novas denominações pentecostais aproximam-se mais e mais do poder. A nova bancada evangélica chega a 20% dos deputados, o que representa a maior bancada temática do Congresso. Como a população evangélica se aproxima hoje de 30% do total, é provável que essa representação continue aumentando. Chegará um momento em que poderão ser invocados princípios do Estado laico (vejam vocês) para que não se permitam mais a construção de imagens públicas, principalmente dessa magnitude. Já pararam para pensar nisso?

Eu, na minha posição atual, tenho pouco a lamentar. Mas, com um pedido de perdão a quem pensa diferente, entendo que a troca de guarda tem um aspecto triste. É que a liturgia católica é belíssima, indo além do seu significado para os fiéis para uma dimensão cultural muito profunda. Ela tem uma complexidade que se estende por todos os seus tempos, com estrutura específica para cada um deles, sendo que vários dos seus elementos se repetem, enquanto vários ganham novos sentidos no decorrer do ano.  Não é simples de se acompanhar a liturgia católica. Trabalhei anos a fio nos meus tempos de fé e era preciso, para seguir com critério, uma boa antecedência para preparar tudo. O encaixe das músicas que se adequem à liturgia da celebração é bastante exigente para o músico. Nada em uma celebração é vazio de significado, e isso traz uma carga cultural enorme, talvez maior do que a igreja se digne a esclarecer aos seus fiéis, e isso é um enorme problema: quando você não compreende o que está fazendo, tende a se enfastiar. Enquanto isso, nos protestantes mais modernos, a cerimônia é extremamente simples, com o molde leitura-pregação-louvor se repetindo quase sempre. Dessa simplicidade, brota uma compreensão fácil, mais próxima das pessoas.

Mesmo estando fora da religião, entendo que há um valor intrinsecamente cultural e artístico que se perde na substituição de um modelo por outro. Mas aí é uma mera opinião. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

As teses de Lutero são muito fáceis de achar na internet. Segue um endereço que as contém:

LUTERO, Martinho. 95 teses sobre as indulgências. Disponível em https://www.luteranos.com.br/lutero/95_teses.html. Acesso em 31.12.2022.