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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 8º lugar: Itanhandu e o mundo real como base da História

(Como são explicadas as mudanças do mundo? É preciso olhar para fora ou está tudo aqui dentro mesmo?)

“Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, inversamente, o seu ser social que determina sua consciência”

Marx

Olá!

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Quando vim para as Terras Altas da Mantiqueira pela primeira vez, meu fluxo incluiu alguns vai-e-vem. De Passa-Quatro para Itamonte, de Itamonte para Passa-Quatro, e depois de novo e de novo. Não vou ficar explicando essas idas e vindas, sendo suficiente saber que, entre ambas, tinha uma cidade com uma bela fábrica na beira da estrada, e que eu pensava em entrar, sem nunca o fazer. Com o espírito de resgate deste novo périplo, chegou a hora. Vamos conhecer Itanhandu.

O curioso nome da cidade significa “ema de pedra” em tupi-guarani, embora haja outras interpretações possíveis no site da prefeitura (aqui). De toda forma, está correlacionado à bacia hidrográfica à qual a cidade pertence, em especial ao quase onipresente Rio Verde. Esse fato não passou desapercebido na praça central da cidade, onde vemos a ema que abre este texto.

Itanhandu está naquele pedaço mineiro que foi parte do teatro de combates da Revolução Constitucionalista. Para um paulista como eu, é um tanto estranho perceber como há vanglória em um evento de desunião de um país, mas, vá lá que seja, faz parte da história e precisamos compreendê-lo bem.

A igreja matriz é dedicada, mais uma vez, a Nossa Senhora da Conceição. Essa santa é popular no Brasil por derivação direta da devoção dos portugueses, mas, de lá, a questão parece um tanto difusa, não se apegando a um evento tão direto quanto a contada aparição da Santa na Cova de Iria, em Fátima.

Dentro da igreja, relembramos de dois santos praticamente endêmicos desta redondeza: a Nhá Chica (leiam este texto para saber mais)...

… e o Padre Vítor, famoso por ser o primeiro escravo a ganhar os galardões da beatitude.

Estamos em uma cidade que fazia parte do traçado da antiga rede mineira de ferrovias, que causa saudades em tanta gente (leia mais aqui), e a cidade ainda mantém em boas condições a sua estação. O que está em más condições é a qualidade da minha foto.

Na ponte que cruza o Rio Verde, há um pequeno memorial. Este rio, que repeti tantas vezes nessa jornada, tem em Itanhandu as suas nascentes, e a parte rural tem boas trilhas e cachoeiras, especialmente a do Vô Delfim, a mais popular delas.

Mas e a tal fábrica? É uma empresa de laticínios, que produz tudo o que o leite pode dar, em um esquema muito diferente daqueles que são desenvolvidos pelos pequenos produtores.

Enquanto nos pequenos sítios a produção se fecha em um ou dois produtos, no máximo, aqui o que impera é a variedade, sendo que toda a região vende esses produtos, menos românticos, mas mais em conta.

Nos hotéis, por exemplo, é uma presença quase obrigatória a sua manteiguinha, vendida em pequenos tabletes, para uma refeição única. Até mesmo uma cachacinha se acha por lá.

São todos produtos bons, e, embora seja uma indústria, dá aquele arzinho de campo que seduz a gente. Só que, em uma terra conhecida pelos artigos artesanais, feitos por produtores que receberam seus conhecimentos dos pais e que não sabem se os passarão para os filhos, é um pouco estranha a presença de uma fábrica desse tamanho, uma coisa quase contraditória. Mas é desse material que a realidade é feita, de idas e vindas em que não notamos o que está no meio do caminho, e nem o que está por trás das coisas. Talvez devêssemos dar mais atenção a esses detalhes, porque eles dizem muito e explicam tudo.

Se vocês prestarem bem atenção, para além da poesia das coisas que eu falei, há uma proposta para lançar o olhar para a realidade que vai além do mero senso comum, ainda que de forma muito rudimentar. É um método, uma maneira predefinida para se atingir um objetivo. Quando combinamos esse olhar com a análise social, não há como não pensar na metodologia de Karl Marx. Ora, ora, não saia do texto agora, nem sinta raiva, porque eu não sou marxista e não há como excluir sua importância para a filosofia. Mas todas as vezes que eu vou falar deste pensador preciso fazer um rápido disclaimer, para não atiçar a raiva de cabeças mais suscetíveis. Apenas tente compreender de maneira neutra como funciona sua proposta, e, depois, concorde ou discorde. Vamos tentar?

Quando um aluno de universidade ou pós-graduação está para concluir seu curso, ele precisa passar pelo crivo do horrífico TCC, com seu terrível orientador e sua amedrontadora banca. Normalmente, é preciso declarar a metodologia aplicada nos trabalhos, o que é típico para quase todos os cursos: pesquisa de campo, revisão bibliográfica, experimento laboratorial e assim por diante. Nos trabalhos de filosofia, é necessária uma declaração adicional, que é a abordagem de pesquisa filosófica. São várias, sendo que as mais comuns são a fenomenologia, a hermenêutica, o positivismo e as dialéticas, sendo que aqui o caminho se bifurca: há a via hegeliana ou a abordagem marxista, o materialismo histórico-dialético. É sobre esse último que eu vou me debruçar.

Normalmente, os manuais de filosofia costumam destrinchar esse termo para fazer a explicação, mas há um probleminha. A sequência que o nome da metodologia tem fica um pouco invertida, no meu humilde entender. Seria melhor se falássemos em uma dialética material-histórica. Isso porque o fluxo dialético é o seu grande fundamento.

Quando nós observamos qualquer fenômeno em nossa vida, temos a tendência em recortar átomos de tempo, como se aquilo que temos diante dos nossos olhos fosse um retrato que se bastasse em si mesmo. Como exemplo, vou falar de algo que vi agora pouco, ao cair da noite. Da janela do meu quarto, olho para a esquerda e vejo uns cinco ou seis meninos correndo atrás de uma bola. Há a mãe de um deles em vigilância, enquanto dedilha seu celular perto da porta do bar da esquina. Ah, conheço-a; é a manicure do meu prédio sem metafísica*. Os meninos são seus filhos, além do menino da peruana que vende quinquilharias no Brás e os do cachorro louco do segundo andar. Fico observando os passes ainda meio destrambelhados e os gritos intensos, que se multiplicam ao vazar o goleiro (que usa chinelos à guisa de luvas) e atingir em cheio as barulhentas portas de ferro das lojas de essências, causando estrépito e alvoroço, incluindo do cachorro de um deles.

Olhando assim, parece que temos nada mais, nada menos, que nosso prosaico quotidiano, sem grandes novidades no front. Mas um olhar um pouco mais acurado vai fazer com que levantemos inúmeras questões. Por que aqueles meninos estão brincando na rua, e não em uma quadra, ou clube? Por que é necessário ter uma mãe vigiando a brincadeira dos meninos? Até mesmo pode-se perguntar por que o menino no gol está com os chinelos nas mãos, ao invés de luvas. Todos esses questionamentos desnudam as relações de causalidade que levaram àquele momento que observo, tornando claro que houve um sem-número de componentes que a fizeram ficar como é. Não há nada na realidade que não entre em uma relação de anterioridade:  as coisas são como são porque uma série de fatores antes desembocaram nelas. Em suma: a realidade é processo, e o momento nada mais é do que um estrato desse processo.

Mas agora olhemos com mais cuidado para a tola cena em si. Esse cantinho do centro de São Paulo foi apelidado carinhosamente de Faixa de Gaza. Esse nome se dá pelo “pega prá capar” que acontece entre “noias” e polícia, ou, às vezes entre eles mesmos em sua eterna briga pelas pedras. De que processo esse estágio atual faz parte? Da degradação do centro de São Paulo, que, embora completamente estruturado, não atrai habitantes definitivos; dos erros das políticas públicas, que não soube dar destinação a grandes áreas que perderam seu uso, com o mais clássico de todos sendo a antiga Rodoviária da Luz; do aumento do tráfico e da adição de novas drogas, bem mais viciantes e problemáticas, como o crack e o recente k9; da indefinição de políticas de habitação popular; do desinteresse pela parte dos proprietários de imóveis em dar manutenção adequada aos seus bens, e, como esses, muitos outros fatores. Cada um deles, uma vez isolados, também estão inseridos em uma rede de causas e consequências que tem seus próprios fluxos, e a análise tende ao infinito, como se pode perceber.

Por outro lado, a cena em si demonstra uma tranquilidade prosaica, uma certa estabilidade. Mas ela carrega em si mesma todas as condições para ocorrer desequilíbrios. A mãe se obriga a estar lá pela insegurança da Faixa de Gaza, que a usam pela ausência de espaços públicos mais adequados, ou pela impossibilidade de pagar por uma quadra fechada. Mesmo o menino com mãos de chinelo demonstra a falta de condições materiais de ter uma luva, e não apenas o sonho inocente de ser um goleiro de renome. Toda disposição situacional é prenhe de contradições, e aqui vamos encontrar as instâncias dialéticas.

Neste ponto, as teorias de Marx e Engels mostram sua dependência com relação à dialética hegeliana. Já nela, detecta-se a realidade que carrega suas próprias contradições, e como é o trânsito entre elas que movimenta o mundo. Como sabemos, os marxistas têm fortes críticas ao capitalismo, e, de fato, podemos detectar algumas de suas ambiguidades com facilidade. Um dos seus pilares, por exemplo, é a livre concorrência, que determina que as empresas e pessoas poderão utilizar livremente os recursos que desejarem para exercerem suas atividades e conseguirem comerciar, desde que respeitados os limites da lei. Esses limites são óbvios: não se deve escravizar trabalhadores, não se deve explorar atividades ilícitas, e assim sucessivamente. Entretanto, a livre concorrência tem uma doença interna: um dos players pode crescer a tal ponto de se tornar monopolista no mercado. Não há nenhum crime sendo cometido, a não ser o próprio exercício da livre concorrência. Por exemplo, se um empresário tem fôlego financeiro para baixar seus preços a ponto de extinguir a concorrência, não estará descumprindo regras do próprio sistema. Idem quando as empresas de determinado setor se associam para impedir que os preços de seus produtos não baixem além de um certo limite. Para impedir que esses fenômenos ocorram, criam-se leis antidumping, antitruste e assim por diante. Esses nomes em inglês denunciam que não se trata de eventos do nosso capitalismo tupiniquim, mas do centro nervoso do capitalismo mundial, Estados Unidos à frente. Leis são antítese da liberdade econômica, mas que precisam existir para garanti-la. Percebem a contradição?

Isso não é uma exclusividade do capitalismo, mas de todo e qualquer sistema que se observe, porque a estrutura dialética está na medula da realidade. A questão que divide Marx e Engels de Hegel está no fato de que, para este último, a mola propulsora da realidade é o Espírito, uma espécie de fusão entre razão e natureza, que tem um certo caráter metafísico, já que sua definição, como se pode ver, não exclui alguma forma de idealização. No marxismo, esse impulso é outro, baseado no real concreto. Não se trata da exclusão pura e simples de instâncias metafísicas, mas da conscientização de que, independentemente delas, as coisas se desenrolam no mundo palpável, imanente, concreto, material. É na materialidade que se escreve a história e se dão os conflitos dialéticos. Sendo assim, o motor da história somente poderia se dar no plano do material, e Marx e Engels entendem que é o desequilíbrio entre as classes sociais este impulsionador. Patrícios e plebeus, suseranos e vassalos, brâmanes e sudras, esparciatas e hilotas, burgueses e proletários sempre vivem em um estado de tensão, porque há uma permanente diferença entre as condições materiais de cada uma dessas classes: quem tem privilégios, quer mantê-los; quem não os têm, quer obtê-los. Como em todas as sociedades há esse desnível e esse confronto, tudo o que acontece na esfera social se deve, de uma forma ou de outra, a esse fermento.

Perceberam como não há nada de metafísico, espiritual ou idealizado na proposta marxista? Como a análise deve se dar no plano material, com a realidade concreta exposta aos olhos? Eis porque a dialética de Marx e Engels é chamada de materialista, independentemente da existência ou não de qualquer instância transcendental.

Estando as coisas nesse ponto, vamos perceber uma guinada de volta ao pensamento hegeliano. Embora Hegel baseie sua ideia de progresso no idealismo e nas representações, o fato é que ele não exclui a historicidade dos fatos. Mais ainda: ele disserta firmemente sobre o modo como a própria razão é histórica, ou seja, sensível à transformação da realidade e ela mesma sujeita a mudanças no tempo. Entretanto, no campo do marxismo teremos um reposicionamento da consciência, que corresponde a momentos históricos determinados, ou seja, adaptados ao seu próprio tempo. A consciência é entrelaçada com a própria história: a maneira como ela enxerga o mundo está condicionada ao modo como foi historicamente inscrita nas mentes. Metafísica, religião e ética possuem seus valores em razão da variação dos conflitos sociais, se tivermos em vista que a característica fundante das sociedades é a necessidade da interação com a natureza através do trabalho.

É óbvio que, como qualquer outra metodologia, também aqui temos calcanhares de Aquiles. No caso, o materialismo torna boba qualquer pesquisa metafísica, objeto que efetivamente faz parte da filosofia. Talvez a práxis que fundeia o marxismo faça com que não haja muito sentido, mas objetos intangíveis não podem ser proibidos de ser pesquisados. Outra questão é que colocar a régua da luta de classes como único motor da história por vezes faz um efeito de turbilhão, ao invés de espiral dialética, partindo da premissa de todos os aspectos que podem afetar qualquer situação social do mundo, que, pelo princípio de causa e consequência podem chegar ab ovo. Por fim, o materialismo histórico-dialético exige muita habilidade para não se cair em situações forçadas, em antíteses que não existem e em sínteses absurdas. Um marxista empedernido que quer usar a metodologia sem bagagem suficiente pode produzir textos risíveis, totalmente desvinculados da realidade que persegue. E não é isso que se espera de uma boa análise.

Pois bem. Dialeticamente, abasteci minha mochila térmica de objetos materialmente industrializados enquanto vivo propagando as benesses da manufatura artesanal, e venho aqui para contar historicamente meus volteios para vocês. Bons ventos a todos, porque amanhã é dia de ir embora.

Recomendação de leitura:

Marx e Engels tratam de sua metodologia em várias obras. Vou recomendar justamente aquela de onde extraí a epígrafe.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008 

* Entendedores entenderão

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 7º lugar: Alagoa, com queijos e azeites que intuímos como obras de arte

(A intuição é aquele palpite furado ou nossa apreensão direta do mundo?)

“Em síntese, há que se distinguir dois elementos no movimento, o espaço percorrido e o ato pelo qual o percorremos, as posições sucessivas e a síntese dessas posições. O primeiro desses elementos é uma quantidade homogênea; o segundo só tem realidade na nossa consciência”.

Bergson


Olá!

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Eu tinha um carro humildezinho quando vim para estes lados pela primeira vez, o já declamado Bedelho. É uma região predominantemente rural e, portanto, plena de picadas e estradinhas de terra. Alguns dos lugares só são acessíveis por elas e, para os baixos veículos convencionais, é um pouco perturbador encarar trajetos meio longos em caminhos de chão. Por isso, embora estivesse bem perto quando estive em Itamonte, não me animei a enfrentar os quase quarenta quilômetros fora do asfalto. Mas, alvíssaras, temos hoje o carro mais alto e a capa de petróleo quase cru recobrindo o chão vermelho, e, nesta viagem de resgate, Alagoa não podia deixar de estar no roteiro. Vamos a ela.

Pequena como a maioria das cidades da região, Alagoa tem um notável relevo acidentado, com pouca área plana e culturas características de altitude.

A área urbana é bem pequenina, e com escadarias para ligar as ruas de desnível. Lembra-me um pouco o Jardim Guairacá, o bairro onde morava no porão da casa do sogro quando casei, que é cheio dessas escadinhas.

A população é igualmente pequena, menos de 3000 pessoas, mas há alguma amostra de habitações bastante antigas, remanescentes das comitivas de tropeiros que passavam pela região.

A igreja matriz, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, estava inacessível, razão pela qual não fiz uma reportagem minimamente decente, e tirei uma foto bem patife, para manter um registro que fosse.

Alagoa tem esse nome porque, à semelhança de Lagoinha, existia uma lagoa que foi drenada pelos fazendeiros que foram chegando à região. A natureza é generosa, com várias corredeiras no Rio Aiuruoca e no Ribeirão Vermelho, além de cachoeiras e picos, como o Pico do Garrafão ou de Santo Agostinho, da Serra dos Martins ou dos Nogueiras.

Para além dos recursos naturais, eu fui para lá com dois objetivos de cunho gastronômico. Primeiro, fui atrás de azeite, porque lá há um lagar que cresceu muito nos últimos anos. O pessoal permite que a Fazenda Cauré seja visitada, pela guia de um exímio conhecedor do negócio, o Sr. Antônio Carlos, aka Tonhão.

Lá, é possível observar os diversos olivais que produzem diferentes espécies, como as gregas koroneiki e as espanholas arbosana e arbequina.

A paisagem é de tirar o fôlego.

Em outro ponto, fica o lagar que produz o azeite oriundo destes olivais, o premiado Prado e Vázquez.

Além de comercializar o produto, o lagar permite que sejam conhecidas todas as etapas da fabricação e seu respectivo maquinário.

Novamente nas ruas da cidade, fomos dar uma olhada na outra especialidade da cidade de Alagoa, os queijos.

São várias lojas na cidade, já que sua fama tem se redobrado em tempos mais recentes, por terem chegado a um queijo de denominação própria bastante próximo do parmesão, mantendo um quê dos queijos minas típicos.

A variedade apresentada se dá menos no queijo em si e mais nos tempos de cura e adição de elementos distintos, como as castanhas e café, além do fracionamento das peças, porque são produtos bem caros.

Não obstante, são bastante saborosos de fato, merecendo um esforcinho financeiro para conhecê-los. Os prêmios que as lojas ostentam em paredes e estantes provam que a experiência é compensatória.

Azeites e queijos fazem parte não só do patrimônio gastronômico mineiro, mas do aporte intelectivo humano. Suas receitas estão armazenadas em manuais que permitem sua perfeita reprodução, e, dadas tais e tais condições, a mágica acontece e temos produtos que nos alimentam e comprazem. Isso é fruto de nossa característica inteligência, não há dúvida, mas sempre pensei que resta algo a mais, que não é somente fruto de um mecanicismo mental.

É aquela velha história. Faça-se o mais descritivo de todos os manuais, com todos os detalhes possíveis e imagináveis, anexe-se a ele fotos e endereços com vídeos, tabelas e estatísticas. Isso tudo não é garantia nenhuma de que este escriba, inexperiente nas artes alimentícias, tenha sucesso na empreitada. É claro que, se estivéssemos falando de um aviamento de remédio, a história seria outra, já que a indústria farmacêutica trabalha com insumos rigorosamente padronizados. Mesmo eu, que trabalhei em uma mequetrefíssima botica com mania de grandeza, atesto sua honestidade e zelo no cuidado com a saúde humana. Mas queijo não é remédio, azeite não é fármaco. Enquanto as aspirinas da vida necessitam de rigor científico para sua segurança na cura, os alimentos têm como primazia o prazer propiciado pela combinação sensória. Ora (direis), alimentos servem para alimentar, e também precisam passam por filtros de segurança tais e quais os de medicamentos. Sim, meu caro interlocutor imaginário, mas, quando você pensa em uma cápsula, pensa no seu poder curativo. Agora, quando pensa em comida, não pensa em matar a fome pura e simplesmente, mas em curtir o que come.

É nesse ponto em que vemos a porção mais artística, mais estética da comida. A questão aqui não é de reprodutibilidade, mas de criação. Não há ciência no mundo que consiga fazer com que duas avós façam o mesmo macarrão dominical, porque cada uma delas faz consistir o alimento em um ato criativo. Ainda bem.

Eu já mencionei Henri Bergson neste espaço (aqui e aqui), e o fiz sobre seus pensamentos sobre o tempo, mas sua filosofia psicológica não se limita a isso. Ele fazia grandes críticas à excessiva matematização do pensamento pretendida pelo Positivismo, que via ciência em tudo, que, se por um lado prometia uma precisão necessária ao progresso, por outro esquecia que o universo se compõe também do inesperado, do insólito, do ato de criação. Mas isso não o impedia de criticar também o finalismo pretendido pelas religiões. A eterna pergunta sobre o sentido da vida é respondida, costumeiramente, com uma entidade que cria os seres e dá a eles um propósito, mas a verdadeira resposta é justamente inversa: é a consciência que doa sentido para a vida. Isso se explica pelo fato de que cada um de nós pode construir uma cosmovisão própria, sem a necessidade de que se estabeleça uma finalidade comum a todos, com sentido próprio.

Com a crítica tanto ao mecanicismo quanto ao finalismo, o que propõe Bergson? Em primeiro lugar, precisamos compreender um pouco melhor as distinções feitas pelo processo evolutivo: o modo como chegamos a ser o que somos como humanos. Bergson entende que os mecanismos de evolução apontados por Darwin são suficientes para explicar como a humanidade chegou a o que é, mas falta entender seu mecanismo de propulsão. Se não temos os processos quadradinhos que a ciência propõe, nem uma entidade criadora que nos coloca em um plano predeterminado, ainda assim há algum motivo para nossas transformações. E a esse princípio Bergson dá o nome de élan vital (impulso vital, numa tradução direta do francês). Com isso, o nome da corrente que inaugura tem o nome de vitalismo.

O élan vital não é uma ideia propriamente nova, já que é bem semelhante ao conatus de Spinoza, à vontade de Schopenhauer, à vontade de potência de Nietzsche ou às pulsões de Freud, mas guarda sua originalidade por estar ligada diretamente ao processo biológico de evolução. De fato, desde o surgimento do universo, com aquilo que teorizamos como Big Bang ou qualquer outra hipótese concorrente, percebemos que a realidade se desdobra em um fluxo onde é indissociável a presença de energias. Segundo o pensamento de Bergson, toda essa movimentação vai construindo os tijolos que vão desembocar na vida como conhecemos, no lento processo que se iniciou, talvez, pelo desabrochar de aminoácidos no tempestuoso oceano primordial. O élan vital concentrava-se em ponto máximo naquele momento decisivo, de modo a se consubstanciar no ato criativo de se conseguir replicação contínua daqueles compostos orgânicos simples. Esse ímpeto é o motor do processo evolutivo.

E como isso funciona? Lembremos de que Bergson vê o tempo como durée, a duração que não se cronometra, porque as medidas não são significativas para a consciência, e sim da percepção que se tem dele. Ter o tempo como duração significa que esse fluxo impulsionado é a permanente transformação que se operacionaliza por onde encontrarmos esse fenômeno chamado vida. Então podemos deduzir que é intrínseca uma força que se oponha a qualquer tendência de estabilidade. Lembrem-se: Bergson é um antimecanicista e, sendo assim, princípios de inércia não fazem sentido onde houver uma consciência que lance seu olhar sobre o universo.

Entretanto, quando usamos as réguas da ciência, temos a tendência de observar o mundo fora do seu fluxo, como se fosse possível dividi-lo em compartimentos estanques, como se seu continuum fosse linear, e não é isso que vemos em nossas simples observações diárias. Há algo que escapa do racionalismo, mas que não é pura e simplesmente um instinto animal, que apreende de imediato a realidade ainda antes de que toda inteligência possa processá-la. Essa percepção rápida e sagaz é o que chamamos de intuição.

Não, a intuição de Bergson não é aquele palpite furado que damos na véspera do jogo, nem aquela namorada que apostamos que não dará certo com nosso filho. Na verdade, ela é uma contraposição ao pensamento kantiano de que é impossível se chegar ao Ser de qualquer coisa. Da mesma como Heidegger acharia um canal para o contato com o Ser, Bergson entende que a intuição é esse caminho por onde é possível se ter uma dimensão imediata da realidade, mais racional do que um mero instinto, e menos segregadora que a inteligência.

Uma ótima forma é dada por Bergson para perceber a intuição, e eu vou adaptá-la. Embora Alagoa seja uma cidade que esteja crescendo em seu potencial turístico, ainda é pouca gente que a conhece. Se eu, ao invés de colocar quinze fotos neste texto, colocar 150, 1500 ou 15000, se eu fizer um mapeamento completo dos endereços e logradouros, se eu fizer uma filmagem como aquelas dos vlogs de motociclistas, se eu documentar item por item da cidade, ainda assim não será possível substituir a apreensão direta de uma visita. Somente estando in loco temos a apreensão direta que é dada pela intuição, absorvemos o que a cidade é. As fotos e demais badulaques são uma demonstração de como a ciência coleta dados do mundo: sempre através de parcelas, de espacializações. A própria palavra “razão” já é perpassada pela ideia de divisão para que se compreenda o todo pelas partes, uma forma de dissecar a realidade em compartimentos. Já a intuição fornece a realidade como se ela caísse à nossa frente, quase como uma pedra caindo sobre nossa cabeça. A intuição é a percepção rápida e necessária a quem nós, humanos, fomos levamos pela evolução para que não tivéssemos meras reações instintivas quando defrontados com a realidade, mas que levássemos à nossa consciência um preâmbulo dos fenômenos. A intuição é o instinto da inteligência.

A diferença fundamental entre a inteligência e a intuição pode ser captada naquelas perguntas sem resposta. Lembro do programa provocações, apresentado pelo genial Antônio Abujamra, que sempre fazia a pergunta dupla no final da entrevista: o que é a vida? A sacada era genial porque passava a mensagem de que é impossível responder adequadamente. Isso se aplica a qualquer pergunta que tente resgatar a abstração: o que é o amor, o que é a coragem, o que é a beleza, o que é a virtude. São todas elas perguntas em que entendemos interiormente o que são, mas que não conseguimos traduzir em palavras, porque caímos na tentação cartesiana de segregar do objeto a sua definição, como se fosse possível dividir um do outro. É a intuição que tem a função intelectiva de fazê-lo, e, por essa razão, Bergson dizia que era através dela que se fazia possível confrontar as principais questões filosóficas.

A intuição surge no ser humano por conta do próprio processo evolutivo. Retomando o élan vital, as forças criativas da natureza fizeram com que o homem se distinguisse dos demais animais pela capacidade de raciocinar. Só que há um detalhe: esse homem ainda precisaria viver, e isso não seria possível se não houvesse o instinto, e não haveria uma conexão com o restante do meio se não fosse a apreensão imediata da intuição. Nela, o élan mantém toda a sua força criativa, porque é pela intuição que os humanos percebem e redesenham coisas novas. Um artesão de queijos não saberia perceber que seu processo poderia ser melhor se não intuísse isso.

E é por isso que conseguimos, nós humanos, chegar a resultados tão incríveis. A intuição não tem melhor lugar para se expressar do que na obra de arte, e é isso que temos à nossa frente quando nos deparamos com alimentos de tanto sabor e qualidade: a certeza de que alguém “sacou” que era possível obter maior prazer de coisas prosaicas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É na obra A Evolução Criadora que Bergson depôs todo seu esplendor filosófico, mas a questão da consciência sempre esteve embutida nas suas ideias. Por essa razão, recomendo a obra abaixo, de tiro curto, e que ajudará a compreender melhor seus princípios intelectuais.

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. São Paulo: Edipro, 2020.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 6º lugar: Águas de Contendas e a dialética que estrutura a realidade

(Com Hegel, a dialética deixa de ser um exercício de confronto de ideias para ser um espelho da própria realidade)

“A semente é, em si, a planta, mas ela deve morrer como semente e, portanto, sair fora de si, a fim de poder se tornar, desdobrando-se, a planta em si e para si”

Hegel

Olá!

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Prometi, cumpri. Em 2017, eu viajei pela região do Circuito de Águas do Sul de Minas Gerais, e, por lá, passei por todos os parques de águas disponíveis, onde me embebedei pelas mais variadas classes crenológicas, absorvendo sais minerais e oligoelementos a beça, como ferro, magnésio e enxofre. É uma aventura, porque nem todos são saborosos, como se pode supor. Sabor de prego, banana verde e ovo podre são contrapontos anti-hedonistas às propriedades medicinais, mas o espírito de curiosidade vale a aventura. De todos os parques, entretanto, havia um que estava todo abandonado, clamando por uma reforma urgente, e eu proclamei a intenção de aqui voltar para vê-lo recuperado, se fosse o caso. Hoje, seis anos depois, o momento chegou e vim apreciá-lo como se deve. É o distrito pertencente a Conceição do Rio Verde, conhecido como Águas de Contendas.

Águas de Contendas, nome que dá a impressão de se tratar exclusivamente do parque, na verdade é a denominação do pequeno distrito que o rodeia, que possui uma pequena população e comércio igualmente humilde, centralizados na capela de Nossa Senhora da Saúde, nome sugestivo para uma região que proclama as virtudes de suas águas.

O parque de águas daqui é o menor de todas as cidades da região. Entretanto, neste momento em que está todo refeito, ganhou novamente toda a sua dignidade.

As águas aqui disponíveis são bastante semelhantes às de todo o circuito, e foram canalizadas para nichos cobertos. Uma fornece água ferruginosa, com óbvio sabor reforçado de ferro, e boa para supressão de males anêmicos.

Outra contém água magnesiana, de sabor levemente adstringente, a quem a sabedoria popular (além de sabichões pseudocientíficos) atribui terapêutica estomacal, sendo que o que há, de fato, é um razoável poder diurético, o que, por tabela, pode melhorar a pressão arterial.

A bica mais curiosa é a de água gasosa, com alto teor de vanádio, mineral que, segundo se diz, potencializa a ação da insulina, o que seria vantajoso para nós, da turma do sangue doce. É de longe a mais procurada, mas que ninguém se iluda: a quantidade de gás não chega nem perto da de um refrigerante, nem mesmo de águas gaseificadas artificialmente, e também não são duradouras. O melhor é curtir o momento e tomar lá mesmo.

Há ainda uma “bica pública” que é onde os moradores do distrito vão coletar seu líquido do quotidiano, e que está sempre enfileirada. Era principalmente a eles que as mangueiras do tempo de fechamento serviam.

Com o remoçamento do parque, deixamos de ter um terreno próximo do baldio para haver um espaço de convívio e visitação, com parquinho para as crianças…

… e mesas de jogos para os idosos, tudo muito simples e agradável para quem quer passar umas horas de paz.

A reforma trouxe ainda o benefício de se compreender melhor aspectos geográficos e históricos que haviam ficado perdidos no estado em que se encontravam as coisas. Para os primeiros, tornou-se possível reviver o riacho que liga ao Rio Baependi…

… enquanto no outro temos a principal curiosidade do parque, uma pedra que virou monumento, pelo simples fato de que se conta que é nela que o imperador Pedro II se sentou para descansar na longa viagem que fez a região, que também trouxe reflexos na vizinha Caxambu, os quais citei por ocasião da viagem que fiz por lá (aqui).

Satisfeito em ver tinindo um espaço que há seis anos atrás encontrava-se completamente abandonado, imitei o proeminente político e refiz seus passos, enchendo minha garrafa d’água e se sentando na pedra (outra). Não para descansar, mas para refletir.

A palavra “contenda” significa o desajuste por alguma situação onde as partes não chegam a um acordo. Pode, sim, ter o significado direto de luta física, mas é aquele tipo de palavra que tem o sabor de querela que se dá nos cartórios e tribunais, mais feita na base dos argumentos do que dos punhos, como se fosse um debate. Ou seja, uma luta ideal, e não material.

Contendas no campo das ideias são fenômenos absolutamente comuns, que ocorreram reiteradas vezes no transcurso da história. Racionalismo versus empirismo, determinismo versus livre arbítrio, idealismo versus materialismo, dogmatismo versus ceticismo, são apenas alguns exemplos dos intensos debates que volta e meia populam as mesas acadêmicas no decorrer da história. Há uma tendência a um eterno antagonismo? De certa forma, sim, até mesmo porque desde os primórdios da filosofia houve pensadores que compreenderam que qualquer fato ou fenômeno no universo carrega consigo seu próprio oposto, sua própria contradição. Nos mais antigos, o jogo de oposições se dava no âmbito das qualidades: quente e frio, grande e pequeno, alto e baixo. Mais tarde, isso foi para os argumentos e, por fim, às próprias substâncias. Portanto, não temos só debates de ideias opostas, mas oposições que residem dentro das próprias ideias.

O nome disso é dialética, e embora ela exista pelo menos desde a antiguidade clássica, foi com Hegel que ela deixou de ser uma ferramenta filosófica para se tornar um espelho da estrutura real.

Eu já mencionei a dialética hegeliano aqui no blog, como pode ser lido aqui e aqui, mas é um conceito tão central na filosofia moderna que eu senti a necessidade de abordá-la de maneira mais profunda, o que farei agora.

Hegel era um idealista, como bem se sabe. Isso não significa, como pensaria o senso comum, que ele tinha objetivos claros e grandiosos na vida, mas sim que ele acreditava que o mundo existente depende da projeção que uma mente faz sobre ele. Não existe uma relação de conhecimento que exclua uma ideia que se faça presente, representada por um sujeito, um eu-pensante. Ou seja, a natureza só pode ser representada como tal se há uma consciência a observá-la. Por essa razão, Hegel privilegia sobremaneira os mecanismos com os quais se dá a apreensão da realidade e como eles se desenvolvem, não só no ato cognitivo, como também em seu próprio aspecto histórico.

A principal visão com a qual Hegel constrói suas teses é através da dialética. Tradicionalmente, a dialética se constitui pela oposição de polos, como eu já disse, e isso se concretizava pelo debate de ideias, ainda que feito por uma mesma pessoa, que botava ideias opostas para brigar, como fez muito Zenon de Eleia, por exemplo. Não se trata de uma concepção inédita, por conseguinte. A novidade em Hegel é que essa estrutura passa a ser vista em forma de tríades, ou seja, o movimento dialético se dá em três partes, normalmente chamadas de tese, antítese e tese.

Não há nada de errado em se conceber a dialética hegeliana desta forma, mas a questão é que essa apresentação é simples demais. Na verdade, ela é intelectualmente muito mais profunda, e eu estou em um ponto deste humilde espaço em que eu preciso aprofundar conceitos, como até já andei fazendo (exemplos aqui e aqui). Vamos tentar melhorar.

Observe um objeto qualquer. Ele está lá, paradinho, sem que nenhuma ação esteja sendo exercida sobre ele, a não ser a sua visão. Embora possa parecer modorrento, esse ato não está isento de algum tipo de juízo. Ao mirar sobre o objeto, você possui algum tipo de definição dele, e essa definição não precisa estar manifesta na sua voz ou na sua escrita, mas apenas no seu intelecto. Você sabe, por exemplo, características definitórias do objeto, que, sendo uma bola, por exemplo, é redonda, repleta de ar, que rola ao contato com o solo, que se aplica a alguns esportes e così via. Tem também alguns juízos - ela é útil, agradável, bela e outras coisas mais. De qualquer forma, tudo isso parte de um ato intelectivo, fruto de uma abstração: a bola está diante de mim e eu reconheço a relação que eu tenho com ela, de sujeito cognoscente e objeto conhecido.

Daí, o cenário se movimenta. Saindo de uma abstração estática, onde tudo permanece igual a si mesmo, surge uma contraposição. O juízo se movimenta para o seu contrário, iniciando o movimento dialético propriamente dito. Não se trata de uma mera oposição, mas de uma mudança de sinal que o objeto já carrega em si mesmo. A lógica se desloca para o seu negativo, para o contrário do que se tinha posto na consciência. Esse é o momento de propulsão do processo dialético, o momento negativo.

Ok. Pensar por oposição não é propriamente uma novidade, mas Hegel introduz o efeito intelectual sintético em seu sistema. O confronto entre o momento abstrato e o momento dialético “sai do outro lado” quando ambos produzem a síntese. Da oposição entre os dois conceitos, surge um terceiro, que sintetiza ambos, sem excluí-los, mas também sem repeti-los. Essa síntese, como habitualmente chamamos este terceiro momento, é ela mesma triádica, porque ela conserva a disposição inicial da abstração, nega essa mesma disposição e eleva-a a um novo conceito. Esse triplo sentido é conhecido pelo termo alemão aufheben, que pode significar tanto conservação, quanto negação, quanto elevação. É uma nova proposição, que conserva seu antigo teor, que nega o que afirmava anteriormente, e que traz novidade mantendo tanto o que estava na fase abstrata, quanto na fase dialética. Tanta complexidade só pode ser esmiuçada com exemplos, dados pelo próprio Hegel, e nós chegaremos neles.

A fase da tese, por se tratar de um juízo assentado, representa a essência daquilo a que lançamos nosso juízo inicial. Por se tratar de um estado inicial, é aquilo que conhecemos por Ser, residente no intelecto e expresso pelo logos, o conhecimento que temos de tudo aquilo que está em nosso universo circunstante. O movimento dialético nos leva à contradição do Ser, ao Ser destruído, ao Ser inexistente, à antítese do Ser, ou seja, ao Nada. É a presença da natureza que age sobre aquilo que reside no intelecto, representada substancialmente pelo movimento. Se pensamos em um mundo que se move constantemente, o que é que funde o Ser e o Nada? Onde o Ser já não mais é, mas que pode voltar a Ser? É no futuro, no vir-a-ser. A síntese entre o Ser, que já não é mais por seu confronto com o Nada, é o seu movimento através do tempo, o Devir. O Ser mantém sua essência, mas já não é mais o mesmo: seu devir é exatamente o que ele se torna após seu encontro com o Nada. O Ser que ressurge é representado pelo Espírito, não como sinônimo de alma, mas de atividade tipicamente humana, que é produzida a partir de um intelecto. Note que o início do processo dialético temos um logos “em repouso”, e, após a oposição dialética ele é movimentado e transformado. Esse é o sentido.

Confuso ainda? Vamos seguindo porque vai melhorar. O Ser, na fase de tese, portanto, é o que chamamos de ser-em-si, que Kant chamaria de coisa-em-si ou noumeno, o objeto em sua própria essência, conhecido por via da abstração. As coisas que concorrem para modificá-la estão fora do próprio objeto, contradizem o que ele é, e Hegel diz que a antítese é o fora-de-si. Por fim, o devir, que é a síntese entre Ser e Nada, entre essência e oposição, é o retorno-a-si. O Ser volta, no devir, a Ser, carregando o que ele era, modificado pelo que ele não era e retornando ao Ser, pronto para iniciar novamente o círculo dialético.

Vamos aos exemplos práticos. Imagine o trigo, o que é um exercício de abstração. É possível pensar em uma série de características dele: amarelado, em forma de espiga, delicado, produtivo em terras temperadas e assim por diante. Quando nós pensarmos na farinha, não é mais essas características do trigo que nós temos. Ele não é mais amarelado, mas branco; não está mais em espigas, mas triturado; não tem mais delicadeza, porque está empacotado em sacos grosseiros, e não se fala mais em produtividade, porque ele, assim moído, não produz mais. Mas ele agora pode vir a ser pão. O pão é a síntese do trigo, que não deixou de ser trigo porque entregou sua essência à sua negação, a farinha, o trigo contraposto, e seu devir é o alimento, o pão sintético que lhe devolve o ser. 

Vamos sair para algo menos concreto. Imagine um regime de tirania. Sua essência está em possuir os ditames de um indivíduo, que coloca toda uma nação ao seu serviço de acordo com sua vontade. A instância dialética da tirania é a liberdade, ou seja, a possibilidade de que todos exerçam livremente as suas vontades. Mas ela também possui problemas: liberdade absoluta garante que não se dará a cidadania plena, porque haverá invasão contínua entre os direitos das diferentes pessoas. Daí, a síntese entre a tirania e a liberdade é a legislação, que traz da tirania a obediência irrestrita, só que destinadas à lei; e da liberdade, a possibilidade de escolhas, agora balizadas pela lei, tirana no que diz respeito à sua obediência por toda a população, livre no que diz respeito às escolhas dentro de seu escopo.

Outra. Uma pessoa inocente é aquela que não possui maldade em seu coração, que não pratica atos desonrosos. O que é seu par antitético? O vício, a prática de atitudes que causam prejuízo a si e a outrem, como tão bem conhecemos. A síntese entre ambos é a virtude, a característica daquele que conheceu o mal e resistiu a ele. O inocente que conheceu o mal não é mais inocente, porque agora ele precisa exercer seu juízo e nisso consiste ser virtuoso; do contrário, permaneceria inocente.

Vocês devem estar se perguntando: todos esses exemplos parecem a nossa própria história e nossa própria natureza, sempre em constante transformação. E é exatamente isso que Hegel pretende fazer nos entender. A dialética filosófica nada mais é do que uma réplica estrutural da própria realidade. O nosso mundo e nossa vida se movem dialeticamente, em um ir e vir eterno, um fluxo que não se pode deter, de oposições e de devir, como já ensinava Heráclito no seu panta rhei.

Como foram as consequências do pensamento hegeliano? Tem cara que ri de boca escancarada, ridicularizando as ideias ao máximo, como Nietzsche, e tem cara que absorve essas ideias para construir toda uma filosofia da história calcada nessa mesma lógica, como Marx. Vamos e venhamos, não é coisa pequena.

E de lá da pedra que eu estava sentado fechei as contendas mentais que eu tinha e fui encher mais uma garrafinha, agora para pegar a patroa e ir embora, satisfeito em ver que, dialeticamente, o parque que se achava destruído agora renasce. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Compêndio das principais obras de Hegel:

HEGEL, Friedrich. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. São Paulo: Loyola, 1995.