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sábado, 19 de novembro de 2011

Banquetes e filmes de arte

Olá!

A Filosofia tem a capacidade de dialogar com qualquer tipo de assunto. Sendo assim, quando falamos em obra de arte, tudo é passível de análise, desde a mais primorosa sinfonia até o mais medíocre fanque (recuso-me a chamá-lo de funk, estilo de gente como Parliament, Tim Maia, Earth Wind & Fire e até mesmo Red Hot). Para detectar se uma peça tem real valor artístico ou não, é simples. Quando a obra é boa, discute-se seu valor intrínseco, ela é o próprio objeto do debate (concordando ou não). Se é ruim, discute-se o contexto em que ela surgiu, como foi possível gerar uma porcaria deste naipe, que sociedade é essa que produz tal aberração e outras avenças. O importante é: em minhas andanças acadêmicas, deparei-me com uma série de obras de arte surpreendentes. De fato, a arte é o grande campo da liberdade, e sem dúvida é irmã de sangue da Filosofia, no sentido em que consegue dar modelos às doutrinas filosóficas (e, em uma relação dialógica, ser objeto de estudo mútuo) e tratar dos temas filosóficos de maneira mais, digamos, compreensível. Por isso, a obra de arte é imprescindível ao professor de Filosofia que leva a sério sua área de conhecimento e seus alunos.

Muitos filósofos, como Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche levaram a arte tão a sério que julgaram impossível viver sem ela, reputaram-na como método para sobreviver, para não justificar o suicídio. A arte teria o papel de oferecer suporte a uma vida que deve ser negada, dominada pela vontade e suas imprecisas representações, para ficar no exemplo de Schopenhauer.

Um bom exemplo para ilustrar como a arte pode dar significado à vida é dado pela obra-prima do dinamarquês Gabriel Axel, “A festa de Babette”. É um filme que contém alguns elementos típicos do cinema europeu: ritmo contido, leitura psicológica dos personagens, relação coerente entre a ficção e os fatos históricos. Mas o filme vai além. É uma belíssima interpretação das amarras dogmáticas e do quanto um artista dá valor à sua criação. Nietzsche amaria, com certeza.


(Atenção: daqui para baixo vou revelar itens importantes do enredo do filme – é o famoso spoiler – se alguém se interessar em assisti-lo, é melhor parar por aqui, e depois continuar a ler o texto).

O cerne do enredo está na fuga da personagem central, a precitada Babette, cozinheira francesa, por conta dos combates oriundos da Comuna de Paris (vide abaixo um pequeno resumo do que foi este evento). Ela se desloca à Escandinávia, onde é acolhida por uma pequena comunidade luterana ultraconservadora, que vive em um sistema de reclusão quase eremítico, de relações endêmicas e avesso ao externo. O ambiente é opressivo, mas as pessoas parecem conformadas com sua situação, temerosas que são de incorrer nos menores pecados. Tal ambiente não é especialmente propício a Babette, oriunda de um país católico e tido como “moderno demais” para comunidade tão diversa.

Acontece que, após 14 anos de convívio, Babette fica sabendo que ganhou um prêmio na loteria francesa, solucionando assim seus impedimentos para regressar a Paris. No entanto, como modo de agradecer sua acolhida, decide preparar um autêntico banquete francês para os membros do povoado, que se preparam para a homenagem do centenário de seu fundador.

O efeito inicial é uma desconfiança generalizada. A dogmatização faz com que os moradores da aldeia tenham certeza de que estarão cometendo pecado mortal ao se entregar aos prazeres terrenos. Alguns chegam a pensar em sortilégios, em ação demoníaca.

Curiosamente é do próprio externo que chega a solução. O militar oriundo da comunidade, de tanta confiança de seus co-irmãos, quebra a resistência dos comensais, que lentamente começam a desturvar sua visão, até atingir um clima de catarse geral. A festa inicia-se de verdade, uma verdadeira celebração à vida. Nietzsche, neste momento, certamente choraria de emoção.

O desfecho do filme se dá com o clima de despedida após o banquete. Mas Babette não vai mais embora: ela gastou todo o prêmio na confecção das iguarias, na compra do melhor vinho, até mesmo na decoração. Questiona-se que motivos a levaram a fazê-lo. A resposta é desconcertante. O que importa para ela é executar sua arte, disponibilizar seu talento. Isso vale mais do que qualquer dinheiro. Sua gratidão vai além da acolhida recebida – a aldeia é sua platéia, o receptor de uma estética que lhe é cara. Todos os valores típicos – o dinheiro, a pátria, a liberdade – são secundários para o verdadeiro artista. São passageiros, a criação é o que fica. Mais ainda: é a visão de mundo particular, única, personalizante, sua marca no mundo, exclusiva. É a arte reconhecida como motivo da vida. Agora sim, Nietzsche desmaiaria.

O filme, no final das contas, é um libelo contra o preconceito, contra as posições dogmáticas, a favor da vida e da estética. Belíssimo.

Recomendação de cinema:

AXEL, Gabriel. A festa de Babette. Filme. Dinamarca, 1987. 102 min.

(A Comuna de Paris foi um governo de origem proletária que assumiu o poder após a queda do imperador Napoleão III. Teve a duração de 40 dias, e teve seus membros massacrados em sangrentos combates, que resultaram em cerca de 80000 execuções).

Um comentário:

  1. Professor, assisti o filme. Que espetáculo! Muito obrigado pela indicação! O enredo é fantástico! A fotografia, a música, a voz das irmãs, além da beleza... Tudo sublime! Muito obrigado!

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