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domingo, 31 de dezembro de 2023

Três anos de nulla dies sine linea. Bom ou ruim?

(Um ano é uma coisa... três anos são outra, totalmente diferente)

Olá!

Neste último dia do ano da graça de 2023, além das habituais revisões de ações e omissões, tenho uma efeméride de pequena monta para o universo, mas que faz todo o sentido para este espaço cada vez menos frequentado: há três anos que adotei a disciplina do nulla dies sine linea, ou seja, todo santo dia ou dia santo escrever alguma coisinha que fosse, para dar andamento neste meu humilde trabalho. Não deixei de falar sobre o fenômeno por ocasião do seu primeiro aniversário, como pode ser lido aqui. Uma nova análise parece ser necessária, decorrido o tempo e das coisas que não são mais como eram.


Isso porque acontece que três anos são três anos, mudam-se histórias inteiras da humanidade nesse espaço de tempo e eu segui por estes 1095 dias com fidelidade canina, mantendo a imaculada conceição de linhas, parágrafos e páginas preenchidas, sem perder um dia sequer, fossem dias de alvíssaras ou de alquebramento, de nascimento ou de velório, de alfa ou de ômega, porque tudo inspira, tudo motiva, para o bem ou para o mal. E a camada subterrânea que sustenta isso é composta por uma dúvida cruel: é bom ou ruim?

Se eu estou levantando o questionamento, é sinal de que existe algum tipo de controvérsia nele. Como em tudo na vida, há mais de um lado. O bom, eu já disse naquele texto de dois anos atrás: um regramento sempre induz uma produtividade mais alta e dá um sentido de responsabilidade na execução da tarefa. Credo! Está parecendo aqueles consultores de empreendimentos, e esse já me coloca do lado ruim, onde tudo fica forçado, longe da espontaneidade que sempre gostei de pôr nos meus textos. Nunca caí na armadilha do truque sujo de escrever somente por escrever, como se fosse uma superstição, aquela coisa de desvirar o chinelo para a mãe não morrer, mas houve longos trechos que eu precisei reescrever inteiros, dada a ojeriza que me causava sua leitura posterior, seja pela escrita açodada, seja pela precariedade das ideias ainda mal nascidas. Será que não acaba sendo o próprio paradoxo do método que me impus?

Voltando para o lado positivo, nunca é ruim fazer uma revisão. Isso porque deixamos escapar ideias mal expressas e erros de português mesmo. Claro que não sou um conservador castiço, daqueles que invalidam todo um conjunto filosófico em nome de uma vírgula mal colocada, mas é sempre bom lembrar que um texto é composto não só das linhas das quais é escrito. Muito do que está nele vem de uma conjunção de inspiração e conhecimento. Isso acontece, vejam vocês, até com o mais técnico dos textos, justamente porque é preciso saber transmitir ideias e conhecimentos, e nisso consiste a arte do texto bem escrito.

Só que a coisa vai de mal a pior. Com a modéstia escondida no baú, não falo de mim mesmo, mas do mundo que me cerca. Vejo os cursos que o pessoal de capacitação do meu serviço acham importantes, e os conteúdos ficam entre o risível e o soporífero. Mas há outras pessoas que enfrentam alguma dificuldade naquela coisa de coesão, coerência, concisão e congêneres. É muito raro encontrar alguém que efetivamente saiba o que está escrevendo, e os tempos de escrita e abreviaturas zapzapeanas agravam a dificuldade linguística. Um texto começa sua beleza por um ponto muito mais simples do que estilo, criatividade ou rebuscamento. Começa pela sua correção. E isso tem se perdido cada vez mais.

É bem verdade que perpassa em mim momentos de arrogância, que são finalizados por insights dolorosos, que me põe para baixo em alguns momentos, numa longa cadeia de causas e consequências que por vezes me desarmam, e só uma disciplina quase religiosa me repõe no caminho.

Vou dar uma amostra. Quando eu ainda escrevia letras de músicas, lá pelo início da década de 90, criei o seguinte verso…

“É espremer o sumo 'inda antes dos sarmentos”

… com o delambido apóstrofo e tudo. A música se chamava “Levógiro”, que, em atomística, significa o elétron que gira no sentido da esquerda, o lado errado, o anti-horário, que é imprescindível na relação das forças, mas justamente por fazer força ao contrário. Aí um belo dia veio a centelha: quem sabe que porra é um sarmento? Quem saberá o que é levógiro e, mesmo sabendo, quem conseguirá estabelecer a relação entre o giro para esquerda e a vida torta, principalmente porque o título não é mencionado nenhuma vez na música? Para quem eu quero falar além de mim mesmo?

Compus pouquíssima coisa depois disso, pouca mesmo, mais para finalizar alguns textos que eu tinha começado do que para trazer poesia a novas ideias. Teve seu lado bom, porque minha cabeça migrou para a filosofia, mas o reconhecimento da inutilidade de suas obras é sempre doloroso, e a coisa foi ficando tão para escanteio que, de repente, não me vi mais escrevendo nada, para que ninguém pudesse entender. Escrever letras de música sertaneja eu deixo para os especialistas na área.

Parte dessa conclusão, entretanto, não vem de uma assunção de meu pernosticismo, mas do duplo fator desconhecimento-preguiça que eu sei existir nesse nosso Brasil varonil, Terra Papagalia que judia de seus filhos lhes negando o alimento intelectual. É muito comum por estas plagas que a dificuldade de um texto já seja motivo para que se desista dele de bate-pronto, o que é péssimo, tanto para compreender quanto para se fazer compreender.

Emerge que alguma coisa seja feita. Não se trata de mero purismo, mas conseguir uma comunicação a mais próxima possível da realidade que se busca espelhar começa por um domínio mínimo do código. E isso tem se demonstrado difícil de conseguir. Vou dar um exemplo bem próximo a mim.

Trabalho com especificação de requisitos. Isso significa que eu vou pegar informações com o cliente para descrever o que um módulo de informática qualquer deve fazer. Eu trabalho com a fase mais macro, mais grossa, gerando documentos que o cliente possa entender, e repasso esses artefatos para que um analista os refine e transforme em uma linguagem mais técnica, para que os desenvolvedores possam realizar seu trabalho. Trocando em miúdos, eu trabalho mais do lado do cliente, enquanto o analista trabalha mais do lado dos desenvolvedores. Minha linguagem está mais para a regra de negócio; a do analista, para a regra de sistema.

Acontece que, ainda que o conhecimento técnico do analista não esteja sendo colocado em questão, o fato é que por vezes parece que o gajo esqueceu que ele precisa escrever em português. Não se trata de pugnar por questões de estilo, mas de algo mais básico: a inteligibilidade dos textos. Um texto que não pode ser bem compreendido não cumpre sua função, e sempre gera entendimentos dúbios, o que pode ser fatal na área de sistemas. Depõe contra o próprio analista, já que o cliente sempre poderá afirmar que não era aquilo o que queria, e um texto cheio de ambiguidades abre margem para essa escapadela marota. Portanto, embora gerundismos e repetições de palavras possam geram textos feios, porém inteligíveis, não são ainda o que há de pior. O problema está na ambiguidade que se obtém a partir da escrita deficitária, e, num campo onde sempre estamos inferiorizados (quem trabalha em informática sabe do que estou falando), damos ao verdugo a peia que será aplicada em nossas costas.

Na equipe com a qual trabalho, temos doze analistas de requisitos. São todos bons na área, bons mesmo, mas poucos se salvam no aspecto que mencionei acima (já peço desculpas a algum deles que vier a ler este texto, mas eles sabem o quanto eu sou chato). Eles alegam que precisam lidar com muitos textos em inglês, o que é verdade, mas é a base sólida na língua mãe que te dá a salvaguarda. Quando eu faço as revisões, vira um festival de rabiscos vermelhos, como se fosse a correção de uma prova colegial. Às vezes, o nível de incompreensão é tal que preciso chamar o analista para entender o que ele quis dizer. Em geral, a ideia central está certa, mas tão mal redigida que perde todo seu sentido. E isso me enche de desgosto.

Dei uma recomendação ao chefe geral: faça uma estante com livros de autores clássicos, do tipo Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e outros, e disponibilize para os analistas. Quem for "pego" lendo um desses livros, não terá nenhum tipo de desconto, porque seu valor será considerado o mesmo de um curso técnico. Parece jocoso, mas não é. É uma maneira de induzir algo que já deveria ter sido feito no processo educacional. Aprender a escrever bem passa pela etapa de aprender a selecionar as leituras. Não se pode esperar conseguir de um livro de piadas aquilo que está disponível em um clássico da literatura. É só isso.

Eu procuro, sinceramente, exercitar o melhor português possível nas minhas escritas. Ele não é perfeito, porque, justamente por ser rica, é uma língua complexa, cheia das mumunhas e macetes. Em média, meus leitores conhecidos dizem que escrevo bem, que me faço claro e não cometo grandes bobagens ortográficas e gramaticais. Certo: há muita escrita que eu coloco no coloquial, para dar algum tempero de conversa, mas a grande chave está na capacidade de se fazer compreender. Se eu te falo e você me entende, está cumprida a tarefa. É disso que eu estou falando.

À parte disso, e voltando ao assunto principal, a eficácia do método se mostrou declinante no transcurso do triênio. O mundo perfeito seria amplificar o grito de guerra para nulla dies sine eidos, em flagrante maçaroca que mistura latim e grego, mas para sintetizar a ideia de que não basta a linha, que, por si só, pode ser mera perfumaria, mas um desenvolvimento mais inteiro, mais coerente, que expresse uma ideia mínima. Só que, se no primeiro ano eu bati recordes de produtividade, a partir do segundo eu voltei à mesmíssima vaca fria de sempre, inclusive com muito declínio nos últimos tempos. Este ano, por exemplo, tive um belo de um vazio nos últimos meses, que deram uma triste machucada nas estatísticas. É que a gente é vítima das circunstâncias, inevitavelmente. Tem horas em que os miolos viram tripas, e não é muita coisa boa que se consegue pensar nesses termos. Enquanto eu comecei o processo durante a pandemia, e havia de fato algum tempinho sobrando, a vida que se aproxima da normalidade nos afasta desse mesmo tempinho. A pandemia, se é que podemos chamar de lado positivo, trouxe uma chance de nos tornarmos mais organizados, na melhor acepção dessa palavra. Uma vez absorvidos os benefícios de achar espaços e horários, poderíamos levar para todo o restante da existência uma organização, com margem, é bem verdade, mas com uma espécie de guia.

Mas, que nada. A partir do momento em que você se encontra de novo com a vida, ela volta a te dominar, empurrando velhos hábitos goela abaixo, e tudo volta como antes, com suas novas programações virando um tempo bonito na memória, no más. É bem certo que nossa inércia ajuda a atrapalhar, e pouco lutamos para não se deixar levar pelo arrastão, mas isso é um bom tanto pelo cansaço. Eu já estou meio de saco cheio da vida, admito. Há momentos que o nulla dies sine linea vira nulla dies sine cruce, lema de uma ordem cristã que propugna que carregar cruzes diariamente é a essência de sua fé. Eu vejo o lado espinhoso da frase, e em nada isso me agrada.

Só que continuo gostando de escrever, e isso, por enquanto, não vou deixar para trás. Tenho prazer legítimo em retomar antigos textos, verificar quais estão devidamente expressos, quais necessitariam de melhorias, e até de quais eu me arrependo, porque sempre há tempo (enquanto há vida) de revisá-los, de acrescentar coisas, de atualizá-los para o momento atual. Essa é a magia do formato blog: te dar uma precisão cronológica. É possível ter um espelho do seu pensamento no decorrer do tempo, e isso é muito bom. 

A questão agora é se, afinal, vou abandonar a estratégia do nulla dies sine linea ou se pretendo mantê-la. Isso vou decidir amanhã, dependendo até mesmo do meu estado etílico. Bons ventos a todos e um bom ano novo!

Recomendação de leitura:

O termo nulla dies sine linea foi criado por Plínio, o Velho, conforme contei há três anos. Entretanto, seu registro na pedra só veio na Idade Média, pelas mãos do sacerdote e literato Polidoro Virgílio. Segue indicação do livro em que o faz, em espanhol.

VIRGÍLIO, Polidoro. Libro de Proverbios. Madri: Akal, 2007.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 2º lugar: Soledade de Minas e a questão do momento em que as saudades deixam de ser positivas

(O que é a saudade senão a presentificação eterna do passado. Isso é um problema?)

Que é, pois, o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bastante clareza para exprimir a ideia com palavras? E, no entanto, haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas conversações? Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.

Santo Agostinho


Olá!

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Quando estive no Circuito das Águas pela primeira vez, eu vi que existia um trem maria-fumaça que cortava um trechinho, já não mais comercialmente, é óbvio, mas como atração turística. Ele saía de São Lourenço, mas, como precisava comprar a passagem antecipadamente, fiquei a ver navios… ops, trens. O passeio chegava até Soledade de Minas, mas não cheguei a ir até lá. Chegou a hora.


Soledade de Minas é daquelas cidades bem pequenininhas, cujo estereótipo diz ser daquelas que pararam no tempo. Ser o ponto final do passeio do Trem das Águas se explica pela sua velha estação de trem, ainda bem preservada, com as peculiaridades de época que a tornam interessante.

Nos dias em que há viagens, que traz para cá pelo menos umas 100 pessoas por vez, há uma grande quantidade de boxes onde são vendidos artesanatos vários. Nos outros dias, tudo fica fechado, à espera do tempo passar.


Ao lado da estação, há uma cascata artificial que promete refrescar os dias mais quentes, e que se tornou uma espécie de ponto de encontro da cidade. Neste lugar, funcionava a caixa d’água da estação ferroviária, que foi deslocada para seu local original.

O afluxo de turistas para cá se justifica pelo material ferroviário cá existente, que explica uma boa parte de como funcionavam os transportes anteriores à segunda metade do século XX, como o ladeamento do leito dos rios…

… e os equipamentos predominantemente fabricados em madeira, ao contrário do que acontece com os aços e plásticos usados hoje em dia. Nos dias de movimentação, ainda há um museu ferroviário que contém peças e artigos ligados à atividade.

Quem é insistente ainda consegue vaguear pela cidade e encontrar as casas dos artesãos, onde se pode aprender alguma coisa sobre as técnicas e criatividade na confecção das peças.

O pessoal te trata como gente da família, convidando para um café e uma cachacinha, tão típicas desta região.


Este lugarejo tinha um nome curioso, que derivava daquela propensão natural que tínhamos para nomear os locais por onde passamos com narrativas de suas histórias: Ponte dos Teixeiras. Isso aconteceu porque foram dois irmãos com esse sobrenome que se dispuseram a construir uma ponte sobre o Rio Verde, para ligar as duas vertentes do vale, e o povoado que se aglomerou ao redor acabou ganhando esse topônimo até que viesse a transformação em distrito.

O nome definitivo é derivado da Fazenda Soledade, que abarcava a maior parte de seu território, e cujo dono mandou erigir uma capela em homenagem à santa que dava o nome à propriedade, Nossa Senhora da Soledade. A capela cresceu e virou a igreja que podemos ver logo abaixo. Como vocês bem sabem, eu costumo visitar e fotografar todas essas igrejas do interior, porque é muito frequente que registrem boa parte da história de suas localidades, mas, no caso, o portão fechado impediu até mesmo uma foto melhor.

Aqui encontro uma confluência de intuições. Do nome da cidade, extraio a representação da mistura de saudades com a solidão. Segundo os católicos, a morte de Jesus traz esses sentimentos confusos que uma mãe sente ao ver seu filho na morte, sozinha e imediatamente saudosa. Por outro lado, a temática da linha de ferro e da locomotiva a vapor traz as reminiscências dos mais antigos e a curiosidade dos mais jovens. De uma cidade que tem a saudade até no nome, vem a mim a seguinte reflexão: o que é essa tal de saudade? Por que temos apego ao passado?

A coisa inicial a se pensar é que a saudade é indissociável do tempo, porque não há saudade sem distância temporal, como é óbvio. Então nós vamos mais uma vez tentar compreender a concepção de tempo de Santo Agostinho para fazer o nosso exercício. Já falei dela mais de uma vez, mas é tão genial que não posso deixar de mencioná-la a algum novo leitor que vier passear por este espaço.

Agostinho de Hipona, filósofo norte-africano que viveu nos primórdios da sistematização do cristianismo, imaginava o tempo não como uma mera sucessão de momentos, como um longo rosário em que futuro se torna presente e que se esvai em passado, tipo uma linha de produção, mas como uma grande folha elástica, onde todo o tempo está presente de uma só vez. Isso significa que passado, presente e futuro não são meros sucedâneos, mas que estão todos juntos na grande camada dos acontecimentos chamada tempo, e o que temos de verdade são três presentes: o passado é presente através da memória e o futuro é presente pela via da expectativa. Como funciona isso?

Aprendemos que existem três tempos: o passado, para as coisas que já aconteceram; o presente, para retratar o momento atual, e o futuro, o universo das coisas que ainda virão. Quando pensamos objetivamente, percebemos que apenas um desses tempos de fato existe: o presente, aquele minúsculo momento em que a realidade se desdobra. Passado e futuro não possuem materialidade, não é possível exercer sobre eles nenhuma ação, porque não estão disponíveis para nossa intervenção.

Ou seja, o passado não existe mais, e o futuro não existe ainda. O tempo no mundo fora de nós é o primado do instante. Mas nós podemos pensar no passado e no futuro, e eles existem em nossa mente. E é nesse campo psicológico que Santo Agostinho distingue um local onde passado e futuro convivem com o presente: o tempo do mundo não é o mesmo que o tempo da alma. 

Efetivamente, o tempo passa para nós e passa para a pedra, mas a pedra não tem essa percepção, mesmo que os ventos ou o rolar pelo morro a desmanche. Para nós, o passado existe pelas lembranças que temos, de bons e maus momentos, de aprendizados que obtivemos, da nostalgia e das reminiscências. O passado existe pela memória. Já o futuro existe pelos nossos planos, pela nossa consciência de dever fazer, pela espera de bons ou maus acontecimentos. O futuro existe pela expectativa.

Mas, segundo Agostinho, passado e futuro só existem quando são presentificados. E como isso acontece? A cada vez que temos uma recordação, a nossa consciência busca um fato já existente no tempo, que está na memória e o resgata para o momento atual, ou seja, o presente. Idem com a expectativa futura: vislumbramos uma possibilidade ou um plano qualquer é trazemos ele à nossa consciência, tornando-o presente. No plano da alma (aka psique), está tudo posto e presente.

Mas se tudo é presente, por que temos a sensação de que o tempo flui? Como podemos explicar a sensação de que as coisas perduram, mas que não são eternas? O tempo não pode ser confundido com a eternidade. A questão de termos todo o tempo posto não significa que ele aconteça simultaneamente, do contrário seria eternidade, que, na perspectiva agostiniana, é o exato oposto do tempo. O presente é quase um não-ser de Heráclito, já que está em uma constante transformação e, além disso, pode ser reduzido a uma porção infinitesimal. O tempo pode ser dividido entre passado, futuro e presente justamente pela ação da extensão da consciência, que busca coisas no passado e no futuro. É com esse trânsito entre os presentes da alma que o tempo dura.

É aqui que vamos fazer a confluência com a saudade. A saudade sempre se calca em uma presentificação de um fato passado específico, que resulta da extensão da consciência ao passado que é trazida ao presente, e que um dia teve uma representação que proporcionou algum tipo de prazer. A saudade não é mera lembrança - é lembrança boa, senão não seria saudade.

Ter saudade tem um fundo de tristeza, porque ela sempre representa ausência e perda. Ocorre que por vezes ela se torna insuportavelmente grande quando uma pessoa passa a substituir expectativas por memórias, o que costuma se agravar com o transcorrer da idade. Isso é evidente em si mesmo: por mais que sejamos otimistas e vejamos o mundo pelo prisma da satisfação com a obra concluída, o fato é que a vida está no fim, e o passado grita, enquanto o futuro silencia. O problema é quando as saudades viram apego pelo passado. Tudo o que a pessoa faz acaba apontando para trás, como se nada do presente valesse a pena, e nada do futuro trouxesse esperança. Dá para explicar? Freud explica.

Nós tendemos a ter uma memória distorcida de nossos fatos passados, especialmente quando somos crianças. Isso se aplica a tudo - fatos, fenômenos, pessoas, objetos. Vamos de exemplo. Quando eu era pequeno, volta e meia ia a Poá, pequena cidade da metrópole que, àquela época, era famosa pela sua água mineral e suas chácaras. Eu tinha parentes lá, daqueles que a gente visita só de vez em quando - tio Manuel, primo Adriano, prima Leonice e assim vai. O caminho para lá era ladeando a ferrovia, que pegávamos a partir da Penha de França. Em uma dessas vezes, a mais antiga que eu me lembro, havia uma sinaleira da via férrea que me impressionou. Era idêntica a um semáforo de cruzamento, só que imenso. Era facilmente explicável, já que o maquinista precisava enxergar a sinalização a uma distância considerável. Isso me levou a representar os desenhos livres da escola com ferrovias de semáforos imensos, uma coisa até recorrente, prova de que fiquei impressionado. Já da última vez que vi a tal sinaleira, dei-me conta de que, se de fato era maior que uma convencional, não fazia tanta impressão assim, a ponto de se tornar um motivador de criatividade. Confesso que fiquei um pouco decepcionado, mas isso demonstra que nossa memória infantil distorce para maior as coisas.

Freud não deixou passar batido esse tipo de sentimento. Ele disse que era bastante comum acharmos nossos pais mais perfeitos do que eram de fato. O pai parecia mais forte; a mãe, mais bela. Essa sensação se constrói em cima do que ele chamava de princípio do prazer. Isso funciona sob a égide da necessidade que o equipamento psíquico de uma pessoa tem em procurar a maior quantidade de prazer possível, ainda que isso represente distorções da realidade.

Pensem bem em quantas vezes filtramos o passado, de modo a fazê-lo parecer muito melhor do que efetivamente foi. Temos a tendência a esquecer eventos negativos (desde que não sejam traumáticos) e a sobrevalorizar eventos positivos justamente porque nosso cérebro se acomoda melhor a uma memória forjada do que a uma realidade mais dolorosa, desinteressante ou vergonhosa.

Isso acontece porque o princípio do prazer tende a se opor ao princípio da realidade. O primeiro é composto pelas pulsões instintivas, que buscam satisfazer necessidades individuais, aquela coisa do “eu quero, e quero mais”. A principal expressão dessas necessidades instintivas está justamente no prazer, que é uma satisfação turbinada: além de ser necessário, é bom. É um extravasamento de energias internas que, no entender de Freud, são mais bem sintetizadas na sexualidade, embora outros defensores da psicanálise não o entendam limitado a isso. O princípio do prazer é isso - a irrefreável e imediata necessidade de satisfação.

Só que há limites impostos pela realidade externa. Esses podem ser físicos e morais, dependendo de quem impõe o limite, a natureza ou a sociedade. Há um princípio limitante dentro do próprio inconsciente, que é o instinto de sobrevivência. Se ele não existisse, é provável que a humanidade não sobrevivesse, porque iria arriscar tudo para se ver propiciada mais e mais prazer. Também não existiriam comunidades, dado o extremo egoísmo do princípio do prazer, que impediria relacionamentos solidários. Dessa forma, é o confronto entre os princípios do prazer e da realidade que permite a vida existir. Mas ele existe, e provoca pressão. Evidentemente, existe um certo desconforto nesse confronto, mas há parâmetros onde ele é considerado normal e saudável. mas há momentos em que há problemas.

O princípio do prazer faz remissões excessivas ao passado quando o indivíduo tem dificuldades em abandonar momentos que são considerados mais prazerosos do que os atuais. É como se o passado elástico de Santo Agostinho fosse presentificado a todo momento, em uma sequência interminável de reiterações da memória, substituindo a vivência do presente e as expectativas do futuro, e as saudades se tornam mais importantes e significativas do que as novas experiências, como se fosse impossível o presente e o futuro trazerem prazer a este contribuinte. O grande problema é que, aqui também, o princípio da realidade age, o que causa grande angústia para quem vive essa situação.

A guerra entre id e superego (vide) sempre coloca o ego em xeque, de modo a fazer nossa parte consciente não compreender, muitas vezes, porque sofre. Há dois problemas essenciais: o passado sobrevalorizado não permite que o indivíduo se conforte no presente, e, confrontado com a realidade, ele perde. Quando vamos a um restaurante que há tempos gostávamos, ficamos decepcionados, e achamos que sua qualidade caiu. Nem sempre isso é verdade. Pode-se simplesmente ter-se mantido o mesmíssimo padrão de qualidade, mas minha memória desenhava experiências muito mais prazenteiras do que são de fato. O objeto perdido não é mais o mesmo, mas ele é desejado, e isso coloca-nos na posição de quem se prende excessivamente às próprias saudades.

Soledade de Minas é isso e não é isso. É possível que o dono original da fazenda que lhe deu gênese quisesse se referir unicamente à santa, mas também poderia estar pleno de apego ao passado, ou apenas gostasse muito de sua terra há algum tempo, e a quisesse homenagear por isso. Nada mais. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Já havia recomendado o capolavoro de Santo Agostinho neste post, e o farei novamente. Só que eu achei uma edição online, o que pode facilitar a vida de todo mundo. Segue a citação.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Disponível em

< https://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf>. Acesso em 16.12.2023.

 

Com relação ao princípio do prazer freudiano, uma boa referência é o livro abaixo:

FREUD, Sigmund. Romances familiares. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 1º lugar: Campanha e as representações simbólicas que nos acompanham

(Vamos rodar o pequeno mundo de novo, e por lá vamos achar cobras e símbolos)

Olá!

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“Aprendamos, senhores, a sonhar, e então talvez possamos encontrar a verdade. Mas evitemos publicá-los antes de colocar os sonhos à prova do mundo real.” - Kekulé

Quando eu conto no meu serviço que eu não programo minhas férias, quase ninguém acredita. É que meus colegas costumam comprar com antecedência e parcelas suas estadias em lugares bem assentados, às vezes até no exterior, coisa que nunca fiz. Eu pego alguns dias quando me dão, e vou para onde é possível. Isso vai de uma dupla tendência minha: de não me endividar e de não criar gigantescas expectativas. Para quem vai ao mundo de mochila como eu, não faz imensas diferenças se vai ser hoje ou na semana que vem. E meto as caras, sem saber se vou encontrar estada. Quase aconteceu dessa vez.

O fato é que, mais uma vez, quando eu e a patroa pegamos a bagagem, não sabíamos muito bem para onde ir. Havia o problema do feriado: ir para grandes destinos corresponderia a grandes gastos e pequenas chances de achar lugar. Fizemos um meio termo, indo para o Sul de Minas Gerais mais uma vez, desta feita para passar por cidades que tínhamos deixado para trás em nossas três viagens anteriores, o que fizemos. Começamos passando a noite em Lambari, já que conseguimos achar um único quarto penduradíssimo, graças a um atraso pelo seu ocupante, e teríamos que deixá-lo já no dia seguinte. Deu tudo certo no final das contas e começamos a jornada pela cidade de Campanha.

Campanha é uma cidade que, embora não possua grandes mananciais de água mineral, nem mesmo um parque de águas, faz parte do Circuito de Águas Mineiro porque seu território era imenso, e abraçava todas as cidades do circuito, como a citada Lambari, Cambuquira, Caxambu, São Lourenço e tantas outras. Praticamente todo o Sul Mineiro era a área desta cidade, formando uma grande reunião de diversidades, mais ou menos como ocorreu com Mogi das Cruzes em São Paulo. Porém, esta última manteve, mesmo após seu grande desmembramento, uma área ainda bastante grande (é o maior município da região metropolitana, excluída a capital) e uma população bastante significativa, de aproximadamente 450.000 pessoas. Já Campanha ficou bastante reduzida, com uma população que tem em torno de quinze mil habitantes. Seu núcleo central, no entanto, ainda preserva boa parte de construções originais, dando bom exemplo dos estilos arquitetônicos nascidos no império.

Entretanto, o exemplo mais ostentativo que poderia estar disponível não existe mais. Um solar oitocentista que servia como residência para duas das famílias mais ricas do sul de Minas Gerais foi consumido pelo fogo em 1996, e dele só restaram as colunas de sustentação em pedra e os fundamentos do piso térreo. Hoje as ruínas estão sob responsabilidade da Universidade Estadual de Minas Gerais.


Consegui fotos do imóvel original e do incêndio que lhe reduziu a pó no trabalho “Entre Passagens e Memórias: as Ruínas de um Sítio Arqueológico Histórico Mineiro e os Indivíduos que o Reafirmam”, dos pesquisadores Leonardo V. Klink e Dora Shellard Corrêa. Era, de fato, muito belo.

Restou ao lado do local a praça do Obelisco, em frente à qual está situada a Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída no finzinho do século XVIII.

Aliás, o obelisco é esse, um distintivo fálico típico para representar uma identidade coletiva local e demarcar datas significativas para essa comunidade. Aqui, temos a rememoração da elevação à condição de vila e de transformação em município.

Outro marco arquitetônico importante de Campanha é a sua igreja principal, a Catedral de Santo Antônio, construída em taipa de pilão. Seu tamanho é atípico para igrejas construídas nesse material, sendo uma das maiores do Brasil.

Na praça defronte, muita coisa típica de cidades do interior, como o coreto, as barracas e as homenagens aos próceres da terra, dentre os quais o filho mais célebre desta terra, o cientista Vital Brazil, biólogo que foi o criador do soro antiofídico.


Um pouco mais abaixo, em meio a estas e outras construções históricas, está a sua casa.

A casa por si só já é uma amostra interessante da arquitetura da época de sua vida, mas também abriga um museu com várias fotos, documentos e objetos, muitos dos quais cedidos por outras instituições, como, por exemplo, o Instituto Butantan de São Paulo.

Há diversas amostras de animais peçonhentos, com painéis explicativos das descobertas de Vital Brazil, especialmente da lógica por trás de suas ações. Olhem uma estranha “cortina” feita com o couro de uma imensa sucuri:

Não somente há material científico, mas bastante informação pessoal de sua vida, como as pinturas retrativas dele e de suas esposas. à esquerda, sua primeira mulher, Philipina, de quem ficou viúvo em 1913. Do outro lado, Dinah, com quem se casou em 1920.

Dentre outras curiosidades, uma mais ou menos sinistra, que não se usa mais: sua máscara mortuária.

Agradecemos à simpatia da Tainara, que enriqueceu nossa visita com muitas informações sobre a vida e o trabalho do cientista, além dos dados sobre a construção em si.


Como se pode ver logo na entrada da cidade, na primeira foto, há uma representação do filho ilustre segurando uma serpente. É a reprodução de uma de suas fotografias mais famosas, e carrega, além do significado concreto, uma simbologia bastante forte: a do homem dominando a natureza. Afinal de contas, sabemos que as cobras são bichos perigosos desde sempre, e uma picada em épocas anteriores à criação do soro deste mesmo Vital Brazil significava grande perigo à vida. Essa relação de medo e até encanto criou um sem-número de histórias que envolvem esses bichos fascinantes. Isso pode ser demonstrado pela imensa quantidade de lendas envolvendo o réptil, algumas delas fundantes de nossa sociedade.

Evidentemente, quando olhamos concretamente para a questão, observamos que serpentes deixaram de ser problema nas grandes cidades e, por ações como a de Vital Brazil, diminuíram muito no meio rural. Se for possível haver um frasco de soro antiofídico nas proximidades, o risco de acidente por picada diminui consideravelmente. Mas não diminui a quantidade de referências simbólicas, que permanecem com a mesma força de sempre, e talvez possamos deduzir que o símbolo é ainda mais poderoso do que o próprio fenômeno por ele é representado.

Quando você quiser ter uma dimensão exata do medo que a serpente traz, procure por uma pessoa que tenha vivido por longos anos na roça. Eu tenho como exemplo meus sogros, que viveram no interior do Paraná até se casarem, quando finalmente vieram para São Paulo. Em uma época em que os meios de salvaguarda para acidentes com cobras eram ainda escassos, encontrar uma bicha dessas enrolada embaixo da cama era um temor recorrente. O sogrão nem se incomoda com baratas e outros bichos; o que são eles diante de um animal com peçonha mortífera? Já a sogra se arrepia até de ver uma cobra na tevê, que fará se o fizer pessoalmente? Então a primeira carga simbólica que temos é o medo, que é bastante eficiente para múltiplas causas. Mas os símbolos são tudo isso mesmo?

A lógica do símbolo é inerente à humanidade. Enquanto a vida é, para a esmagadora maioria dos animais, uma função biológica, para nós, os caniços pensantes, os bípedes implumes, tem seu melhor significado no plano social, sintetizado em especial na nossa cultura, que não se constrói sem símbolos. Basta saber que é necessária a existência de todo um sistema simbólico para expressar a linguagem, parte integrante não só dos aspectos emocionais, mas do próprio mecanismo racional da mente. Não existe linguagem sem símbolos, simples assim. Isso dá uma dimensão aproximada da sua importância na nossa constituição como seres humanos. Para remeter a conteúdos com altíssima carga simbólica, que substituem uma narrativa concreta, muitas vezes eles são os únicos recursos que temos. É o caso das lendas e relatos de criação, que veremos já, já. Como não temos nenhum relato direto de um evento tão seminal para a história da humanidade, é natural que se busquem explicações com base em deduções e, óbvio, simbolizações.

Sabemos que os animais são utilizados em profusão no plano simbólico. Uma borboleta é símbolo de beleza e transformação; uma tartaruga, de paciência; um cavalo, de inexorabilidade; um cão, de fidelidade e assim sucessivamente. Entretanto, como a serpente é vista como um ser dual, sua simbologia é muito mais complexa. Ao mesmo tempo que tem seu decantado perigo, também é vista como animal sagaz, que se vira com uma limitação física inimaginável para nós, humanos. Quando olhamos para a concepção filosófica grega, por exemplo, notamos que a serpente é a síntese do pharmakon, a substância que tanto serve para remédio quanto para veneno, e isso é refletido no distintivo da medicina, representado por uma cobra que se enrodilha em um bastão, conhecido como báculo de Esculápio (de quem falei bastante neste texto). E a medicina moderna comprova como esse símbolo pode ser concrescível. A substância conhecida como Captopril, consagrada para tratamento de hipertensão, é originária da estrutura química do veneno da serpente bothrops jararaca, porque se percebeu que os indivíduos vitimados por seus ataques eram acometidos por uma queda abrupta de pressão arterial, resultando em parada cardíaca, sua principal causa mortis.

Esse é o motivo pelo qual a serpente é um símbolo múltiplo, e carrega consigo aspectos que podem ser negativos, como a perspectiva de morte e de sofrimento, ou positivos, como a astúcia e a sagacidade (como se virar sem ter membros?), além de ser um dos melhores símbolos de renascimento, como a fênix que ressurge das cinzas. Vamos falar sobre isso no decorrer do texto.

Sabemos como o medo é um motor em nossas vidas, e, quando ele é exacerbado, faz com que tenhamos não somente ele em si, mas uma reverência. O objeto do medo ganha não só uma vontade de distanciamento, mas uma espécie de admiração, porque é uma representação de poder, e isso transforma a relação com que nos damos com ele. E isso influencia toda uma cultura. Quando pensamos em mitos fundantes onde tenhamos o uso simbólico da serpente, é impossível não pensar no Gênesis, a narrativa abraâmica de criação do universo. Nela, após toda a criação estar concluída, temos a confrontação entre a divindade e a criatura na forma de desobediência. Diz a história que foi dada toda a liberdade aos homens para dominar a Terra, alimentando-se daquilo que melhor lhe apetecesse, exceto dos frutos da árvore do centro do jardim. Tudo deu certo até a serpente induzir o casal originário a descumprir a ordem divina, o que originou toda forma de sofrimento que conhecemos até hoje. As religiões mais simplistas e literalistas dizem que a serpente representa a ação diabólica, que se opõe a deus. No entanto, uma visão mais elaborada permite supor que a serpente aqui utilizada é a representação da vontade de autonomia dos homens perante as determinações divinas, o que é considerado um mal, tendo em vista que a explicação para a proibição vem na forma de ameaça: certamente morrereis*. A serpente, aqui, portanto, significa o espírito transgressivo inerente ao humano, e, com sua derrota, estabelece-se uma relação hierárquica basilar do modo de vida ocidental, que podemos verificar até hoje em nossa estrutura social. A lição que fica é que a humanidade precisa temer seus próprios impulsos, e retraí-los em nome de uma autoridade superior. Nietzsche ama até a raiz da medula.

Outro significado atrelado às serpentes está na estrutura cíclica da existência. Como eu disse um pouco atrás, as cobras representam uma constante renovação, como a fênix que ressurge das cinzas. Isso vem desde o tempo de esplendor do império egípcio, e costuma ganhar representação na forma do ouroboros, a cobra que morde a própria cauda (vide aqui um exemplo). Esta representação certamente está vinculada ao fato de que as cobras são animais que renovam sua pele de tempos em tempos, e aparentemente o fenômeno faz parecer que uma cobra saiu de dentro da outra, como se a pele deixada para trás fosse uma vida que se abandona para retomá-la em um novo revestimento. Esta construção simbólica é tão poderosa que ajudou a solucionar um difícil problema químico do século XIX, embora possa parecer revestido com a aura de lenda. August Kekulé era um químico alemão que tentava desvendar a estrutura molecular do benzeno, um solvente líquido de aroma bastante peculiar. Era um problema difícil, porque a maneira com a qual os elétrons se organizavam em sua órbita era contraditória. Cansado de tanto estudar, começou a cochilar à frente de seus livros, quando lhe surgiu a imagem de uma cobra que mordia o próprio rabo. Ela saltava e se apresentava risonha, como se escarnecesse do cientista, como se dissesse: “idiota, olha a forma que você busca”. Ao se tornar novamente em vigília, Kekulé deduziu que a molécula de benzeno poderia ser descrita exatamente como o ouroboros: em forma de anel, com o compartilhamento dos últimos dos elétrons de sua cadeia. Não se trata de um mero exercício de vaticínios por meios místicos, mas um formato de pensamento que estava expresso nos sonhos através do símbolo. Não é sensacional?

Com uma temática tão abrangente, não é de admirar que a cobra seja um símbolo quase universal. Aqui mesmo no Brasil há inúmeras lendas que incluem o sagaz réptil, sempre como sinal de perigo e de esperteza, algumas vezes de maldade, de extinção, de vingança. Boitatá, Cobra Norato, a gigantesca serpente adormecida sob a igreja da cidade de Silvânia, pronta para despertar e devorar todo mundo se a mesma for derrubada; a serpente que cresce sem parar sob a cidade de São Luís, e que a arrastará para o fundo do mar quando encontrar seu rabo e inúmeras outras existem aos borbotões em um país que convive com ofídios em todo o seu território, demonstrando como a humanidade é mesmo toda parecida, como diriam os estruturalistas.

O resumo todo da ópera é que temos uma série de histórias e sentimentos que não tem como ser materializados, a não ser através dos símbolos. Sua aplicação primária é arbitrária, nascida a partir de um indivíduo, mas que possui fácil consenso, porque há alguma relação de semelhança ou contiguidade entre representação e representado, como a cobra e a morte, e a coletividade à qual esse indivíduo pertence facilmente vê evocado os mesmos sentimentos, adotando o símbolo. É fácil de fazer um exercício. Procure pensar no amor materializado. Você vai pensar na esposa, nos filhos, nos pais, em uma grande obra de caridade, em algum santo, em um coração, sei lá. Como se trata de uma abstração, não será possível imaginar um amor concreto, apenas seus reflexos: a patroa, os rebentos, etc. Eles não são o amor em si, mas representações simbólicas do amor, que as pessoas como um todo sentem e compreendem. Idem ocorrerá com qualquer outro sentimento - saudade, ternura, ódio, medo… Uma das melhores representações do medo é formada por um animal astuto e agressivo, que, por parecer reencarnar, é eterno. A serpente é um símbolo e tanto para concretizar o medo, dentre outras simbologias.

Depois de visitar a casa de Vital Brazil, fomos procurar um lugar para comer em Campanha, atividade obrigatória para quem está em Minas Gerais. Até a próxima cidade e bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para o interessante livro abaixo, onde os antropólogos se dedicam longamente à interação entre os símbolos e a constituição das diferentes culturas humanas.

WHITE, Leslie; DILLINGHAM, Beth. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

* E que, no final das contas, nem foi verdade, já que, apesar das punições, o casal original continuou vivendo e populando a Terra.

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Navegações de cabotagem – A Breganha de Taubaté e a indefinida loucura que insistimos em não ver

(A loucura não é mais o que pensávamos, mas ainda não é o que sabemos)

A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê

Daniela Arbex

Olá!

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Certos “espíritos” que não existem mais na Capital da Garoa ainda podem ser vistos nas cidades de interior, mesmo as maiorzinhas. É aquela coisa de procissões que atravessam por bairros, defuntos velados em casa, vendedores que batem de porta em porta, praças lotadas nos domingos e outras coisas que ficaram esquecidas nas metrópoles. Taubaté está entre as tais maiorzinhas, mas ainda conserva estas tradições, como já falei sobre a Casa do Figureiro. Mas existe um evento dominical que é tão célebre na região do Vale do Paraíba que chega a ser considerado uma atração turística da cidade. Trata-se da Breganha.

Breganha? Que nome é esse? É uma corruptela da palavra “barganha”, adaptada do linguajar popular para indicar trocas diretas feitas entre donos de objetos, com aquelas famosas pechinchas tentando fazer um valor mais camarada. É tradicionalíssima em Taubaté, porque existe, segundo algumas fontes, desde o século XVII, mas, na redondeza do Mercado Municipal, está há mais de um século.

Não era prática incomum no momento em que surgiu. Os tropeiros que saíam do litoral paulista rumo aos campos de minérios na região de Minas Gerais tinham pontos de parada em seus longos trajetos onde faziam pequenas compras que iam além do comércio estritamente necessário ao seu labor, e isso atraía à beira dos mercados pessoas que traziam miudezas.

A Breganha tem de tudo, novos e usados, secos e molhados, desde manufaturas para produtos tipicamente locais…

… até produtos realmente usados, mas que são vendidos a um preço tão baixo que ainda encontram compradores. Volto já, já a falar sobre isso.

Há algumas velharias, entretanto, que são de fato interessantes, com valor de coleção ou de reposição difícil. Vejam a quantidade de câmeras fotográficas analógicas. Algumas são antigas até para um cara da minha idade.

Por essa razão, a Breganha é insólita e tem valor turístico, já que escavadores podem achar artigos que, de fato, possuem uso de relevo ou raridade, a preços de fato pequenos, com a possibilidade de negociar trocas e pechinchas, como se fazia nas feiras livres até não muito tempo atrás. Mas há também toda sorte de velharia onde se tenta exercer a criatividade para conseguir utilidade. Há artesãos que passam por aqui pelo simples fato de encontrar algum objeto que os inspire, como um prego velho, uma lata enferrujada e outras coisas que só encontram proveito no engenho mental humano...



... bem como há coisas belas, históricas e úteis por si só. Tem de tudo, em resumo.


Há, no entanto, o entorno, e lá, como em qualquer cidade maiorzinha, vemos um universo inteiro de pedintes. Eles estão não somente em Taubaté, mas existem em profusão nas feiras mais conhecidas, como a popularíssima feira do Glicério ou na chiquérrima feira do Pacaembu. Aqui, estão aqueles que não conseguem estar no miolo, mas nas beiras, esperando suas migalhas. São os miseráveis, os bêbados, os drogados, os mendigos, aqueles a quem a bebida e a desgraça fizeram soltar os miolos, ou, do contrário, por não terem o juízo todo, ficaram excluídos do mundo do trabalho, não tendo forma de ganho que lhes sustente.

Mas é muito discutível que os pedintes que rodeiam os mercados e as feiras sejam chamados de loucos. Esta é uma designação genérica para aqueles que não se integram ao meio social por ter algum tipo de deficiência cognitiva. Mas vejam só como é o mundo. Enquanto a patroa negociava uma sapateira de madeira, eu vi que tinha um moço na saída da Breganha que estava sentado quieto, com um saco de tampinhas que ele parecia admirar, uma por uma. Pegava uma do saco e ficava olhando e olhando, depois outra, e mais outra. Ele ficou por lá até alguém berrar para ele, do outro lado da rua:

"Ô, doido! Sabe onde tem mais uma tampinha?" - apontando para sua genitália, naquelas brincadeiras típicas de quinta-série, e saiu dando risada sozinho. O doido meneou a cabeça e se limitou a dizer: "eu que sou o doido…", e continuou na sua atividade de doido.

Aquilo me colocou a pensar e a lembrar de algumas histórias. Não são somente contos inocentes que surgem através da cambaia definição que damos aos transtornos mentais, mas desventuras que terminam mal. Vejam só.

O nome fictício era Silvio. Era um homem em uma faixa de idade incerta, mas que flutuava entre os 30 e 40 anos. Um cidadão periférico típico dos princípios da década de 80, com as mesmas características de qualquer um. Ou quase. De externo, era portador de estrabismo divergente discreto, o famoso zarolho. Isso já lhe rendia uma pequena dificuldade de enxergar e uma grande dificuldade de se relacionar, já que ele encarou por toda a sua vida aquela velha pecha de ter um olho em deus, outro no diabo. Mais que isso, o problema de visão o afastava dos empregos mais decentes, e, em casa de oito irmãos, isso era uma questão.

Esse ainda não era seu pior problema, entretanto. Sua volumosa família, pai, mãe, irmãos, não era exatamente unida, e a lei da evolução ganhava naquela apertada casa de três cômodos um microcosmo que seria fascinante, se não tivesse seu aspecto desumano. Lá, Silvio (nome fictício) era a personificação do mais fraco. Em qualquer disputa era o errado, o que tinha que ceder, o que tinha que apanhar. Se havia alguém em posição de ser descartado, era ele.

De resto, alguns poucos hábitos marcantes. A dificuldade visual lhe fazia assistir a televisão muito de perto, e gostava de se enfiar em seu quartinho nas tardes de domingo para assistir o Silvio Santos, seu fictício xará, tomando uma garrafa de soda limonada, seu refrigerante preferido. Causava incômodo por seus arroubos e lhe construíram um quartinho do lado de fora da casa, para que por lá tivesse suas manias.

Diziam ser louco. De fato, foi parar uma vez no sanatório, aviado pelo padre da paróquia em que militava. Excesso de nervosismo, o diagnóstico, que lhe dava acessos de fúria. Mas, por tudo o que ouvi, nada mais tinha do que um transtorno de humor, algo que qualquer Ritalina resolveria. Alternava períodos de grande quietude com acessos de explosão verbal, no más. Sem quebradeiras, sem violência física, mas com momentos de muita gritaria. E este comportamento não era imotivado. Vinha do espírito belicoso da casa, sempre cheia de brigas, de todos contra todos. Todos gritavam e se enervavam, mas era nele que estava colado o rótulo: o Silvio, de nome fictício, tinha doença na cabeça. Entre todos, é o que sofria as piores consequências, porque tinha menos ligeireza de pensamento, talvez. Ou porque fosse menos desprovido fisicamente, não sei dizer, só ouvi dizer.

Das irmãs, tinha a peia nas costas; dos irmãos, os punhos mesmo. Do pai, a indiferença e da mãe o olhar complacente, embora não lhe poupasse a censura. De todos: é o doido. Família de mineiros, viviam lhe prometendo colocar no trem, mesmo que esse não existisse mais. Já falo mais sobre ele.

Numa tarde de domingo, Silvio tomou um copo de soda. Não a limonada de sua preferência, mas a cáustica. Estupidamente, deram-lhe leite como socorro, inócuo diante da alcalinidade do preparado. Foi parar no hospital e, estando com o trato digestivo todo calcinado, lá ficou por meses, em permanente alimentação parenteral. Diziam que cometeu sua derradeira loucura por um amor mal resolvido, mas que ninguém chegou a conhecer. Aliás, nunca se soube de que naquele momento estivesse a namorar ou mesmo pretendendo. Só que a narrativa ganhou unanimidade, pois trazia alívio a todos que pudessem sentir alguma culpa. Morreu seco como a figueira bíblica, e no seu enterro havia muita choradeira. Todos os irmãos bradavam por perdão. "Perdão, meu irmão, me perdoe"... Mas por que pediam perdão, se a causadora da desgraça foi uma paixão arrebatadora? Que culpa poderiam ter nisso para tantas escusas? De uma das bocas, eu ouvi que não foi por loucura que ele tivesse, mas por loucura que lhe impuseram. É a boca mais confiável de todas, e a única que eu acredito nesse imbróglio.

O tema da loucura é tabu porque é embaraçoso e espinhoso. Já se dizia que de poeta e louco todo mundo tem um pouco, e as abordagens atuais sobre saúde mental parecem corroborar cada vez mais isso. É importante que seja assim, para que se desmistifique cada vez mais os padrões de comportamento. Há momentos em que eles, por si só, já são removidos da norma pelo simples fato de causar estranheza, sem que qualquer prejuízo seja evidente, tanto à pessoa, quanto a quem a cerca. Quem de nós não tem seus momentos de esquisitice? Guimarães Rosa fala sobre isso em seu rápido conto "Sorôco, sua mãe, sua filha" de maneira brilhante. Fala da história de um homem simples, lavrador viúvo que leva sua mãe e sua filha até a estação do "trem de doido", a composição que leva os acusados de loucura até o manicômio de Barbacena, de onde nunca sairão, o mesmo trem que prometiam enfiar o pobre Silvio (nome fictício). A única loucura aparente de sua filha é uma canção suave, que ela canta de maneira meio alheada. olhando para o céu. Na hora de embarcar no vagão, sua avó, mãe de Sorôco, começa a entoar o mesmo canto. Depois que o trem parte, é a vez do próprio Sorôco retomar a melodia, o que também é feito pouco a pouco por toda a gente que veio acompanhar a partida e lhe dar solidariedade. A beleza subjacente ao conto está na repetição das mesmas ações que levaram a menina a ser encaminhada ao sanatório por todos, um fenômeno comum que é considerado loucura ou normalidade de maneira seletiva. 

Também Lô Borges, outro mineiro, captou com maestria esse espírito de exclusão com todos que caem na vala comum da loucura. Vou colocar aqui a letra de sua música "Trem de Doido":

Noite azul, pedra e chão

Amigos num hotel, muito além do céu

Nada a temer, nada a conquistar

Depois que esse trem começa andar, andar

Deixando pelo chão os ratos mortos na praça

Do mercado

 

Quero estar, onde estão

Os sonhos desse hotel, muito além do céu

Nada a temer, nada a combinar

Na hora de achar meu lugar no trem

E não sentir pavor dos ratos soltos na praça

Minha casa

 

Não precisa ir muito além dessa estrada

Os ratos não sabem morrer na calçada

É hora de você achar o trem e não sentir pavor

Dos ratos soltos na casa, sua casa.


O eu-lírico se põe na posição dupla do alheamento dos doidos que embarcam para a reclusão e na metáfora dos ratos, a praga indesejada de quem só se quer o extermínio. Fala de mercado, fala de praça, fala dos ratos. Fala da exclusão dos indesejados.

Esse trem de doido era a maneira com a qual os mineiros tratavam o deslocamento de pretensos doentes mentais para o manicômio de Barbacena, cujo nome oficial era Colônia, localizado na região do Campo das Vertentes. Por lá, existia um amplo complexo que utilizava os métodos consagrados até a segunda metade do século XX para controle de doenças mentais: eletrochoques, sossega-leões, camisas de força e outros procedimentos que visavam controlar os surtos psicóticos dos pacientes. Era o que se imaginava possível de se fazer à época.

O que havia de mais triste, entretanto, era que lugares como Barbacena se tornaram pontos de despejo dos indesejáveis, os ratos da canção de Lô Borges. Para lá iam pessoas que teriam tratamento em suas casas, em suas cidades, mas que eram consideradas irremediavelmente insanas, e que precisavam de controle permanente. Pior ainda: para lá iam não só os considerados loucos, mas aqueles que tinham qualquer atitude que pudesse ser considerada desvio de conduta, como as "meninas namoradeiras" que tinham vida sexual ativa, e que destoavam da moral da época. Iam aqueles que tinham tendências homossexuais, os que não se davam com o trabalho, os que não se enquadravam no modelo social, enfim.

Todas essas histórias estão contadas no chocante livro da jornalista Daniela Arbex, recomendado abaixo, que nos conta como inúmeras vidas foram dizimadas naquele hospital, em um período histórico que vem sendo chamado de Holocausto Brasileiro, dados os pontos de coincidência com o evento ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que 60 mil pacientes morreram no Colônia, seja pelos excessos cometidos nos “tratamentos”, seja pelas condições sanitárias abaixo de qualquer crítica, pela alimentação precária ou pelo frio. Era um imenso quarto de despejo, mais infecto que o mais ordinário dos valhacoutos. Os próprios internos eram encarregados de fazer a pouca comida disponível, acumularem-se para se proteger do frio e enterrar os mortos. Mais não conto, porque é livro de leitura obrigatória.

Hoje em dia, o modo como é encarada a doença psíquica mudou demais, para nosso gáudio. Os profissionais “psi”, em que pesem eventuais tropeços, passaram a ser vistos com mais respeito, e fazer terapia deixou de ser sinônimo de tratamento para malucos, mas de um hábito saudável de quem reconhece não ser um super homem infalível. Fala-se muito em depressão hoje em dia não porque o modus vivendi moderno a favoreça, mas porque ela é uma condição mais estudada e compreendida. Falamos em TOC, em TDAH, em transtorno bipolar porque hoje somos capazes de entender que o cérebro é uma máquina complexa e sujeita a defeitos, mas que não faz sentido jogá-los todos no senso comum da loucura, que deveria ter uma definição bem mais restrita, ou mesmo inexistente. É bom que todas as questões de saúde mental sejam adequadamente segregadas, porque a vala comum tende a produzir tratamentos comuns, mas a camisa de força não serve para qualquer coisa, se é que serve para alguma.

Um porém. Tenho alguma preocupação com essa maneira com a qual a coisa está sendo levada, e para tanto vou dar um exemplo. A atriz Letícia Sabatella, talentosíssima, de quem já vi peças de teatro dignas de meus textos (aqui), foi diagnosticada com autismo, como pode ser lido aqui. A par disso, lembro que tenho uma vizinha que também tem uma filha autista. A menina é uma graça, alegre, lépida e saudável. Quero dizer que não há nada fisicamente que denuncie sua condição, mas a dificuldade de comunicação que ela tem é digna de nota. Ela vive efetivamente em um mundo próprio, e só sai dele quando alguma condição especial e desconhecida mesmo de sua mãe faz com que ela peça água, praticamente sua única verbalização de vontade. No mais, praticamente nenhuma interação existe, e é difícil até mesmo conseguir escola para ela.

Não é possível nenhum nível de comparação entre as duas condições. Se alguém conviver com a atriz, talvez a ache um pouco estranha, no máximo. Tipo distraída, ou incomodada com coisas pequenas. Eu que vejo a menina todos os dias, compreendo que suas limitações vão muito, mas muito além disso. Não entendo que, ainda que falando de níveis diferentes, possamos colocar ambas no mesmo bojo. Uma não teve impedida uma carreira de sucesso e reconhecimento público, a outra quase que luta para sobreviver. Neste sentido, a classificação tende a ir ao sentido oposto do desejado: e de generalizar, ao invés de especificar, exatamente como se chamam os loucos da Breganha. Como não sou especialista da área, não vou ficar dando pitacos, mas é uma sensação que tenho e que gostaria de externar.

Então, se aquele moço que estava com as tampinhas na Breganha pudesse me ouvir, eu diria para ele não ligar para quem o chama de doido. A humanidade erra demais e provavelmente o faria no seu caso, que mereceria mais atenção social do que propriamente psíquica. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Vão de trambolhão hoje. A primeira é o famoso livro de contos de Guimarães Rosa, que já continha sua peculiar maneira de contar histórias.

ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969.


Depois, vai a música transcrita, uma pérola dentro de um disco fantástico, um hard rock no meio da MPB para provar todo o ecletismo do movimento.

BORGES, Márcio; BORGES, Salomão. Trem de Doido. In: Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1972.


Como não poderia deixar de ser, o essencial livro-denúncia da jornalista Daniela Arbex, contendo toda a desgraça que foi a existência dessa instituição.

ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Genocídio: 60 mil Mortos no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.


E, finalmente, a Breganha em si, que pode ser visitada todo domingo de manhã, no endereço abaixo:

Feira da Breganha

Av. Des. Paulo de Oliveira Costa, 1030-1054

Centro

Taubaté/SP

A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo