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terça-feira, 19 de março de 2024

Para lá da serra que eu vejo na janela – 7º episódio: Jaguary de Cima e a peregrinação que vale para fora da religião

(Vejo peregrinos e me pergunto se ainda é possível que exista sentido delas para mim) 

A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Camus

 

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Depois de dois dias alocados no distrito do Vale do Bom Jardim, acabamos pegando amizade com a dona do chalé. Eu sou um cara que normalmente falo menos do que escrevo, que é o inverso da patroa. É com isso que nós conseguimos pegar muitas referências dos lugares que visitamos, e, para isso, nada melhor do que trocar ideias com os locais. Neste caso, a charla valeu uma visita para outro distrito do município de Camanducaia, onde poderíamos contemplar a natureza de um bairro ainda mais alto, e com bastante história e boa comida. É Jaguary de Cima, e vamos para lá.

O nome do bairro é devido ao rio que tem parte de suas nascentes lá no alto, e que vai serpenteando por entre as montanhas até desembocar no estado de São Paulo, não tão longe dali. Ele forma várias prainhas e tem muitos saltos no trajeto, bons para dar uma molhada nas costas.

Apesar das culturas rurais espalhadas pela região, as formações montanhosas fazem com que ainda haja um bom tanto de mata nativa, já que não é tão simples de praticar agricultura em desníveis tão expressivos. Isso faz com que ainda seja possível encontrar muitos recantos de mata densa e dá uma pequena ideia de como a Mantiqueira era recoberta originalmente.

O principal ponto turístico é a Fazenda Esperança, uma antiga herdade de meados do século XIX que ainda guarda muitas de suas características originais.

Para dar mais guarida ao seu aspecto histórico, a fazenda possui alguns equipamentos que demonstram como foi sua vida no decorrer dos tempos. Um deles é um museu, que mantém sua estrutura elevada de época e uma série de objetos e utensílios utilizados pelos moradores em tempos passados.

Muitos desses objetos são artigos corriqueiros, da vida de ofício e de afazeres domésticos, dando uma dimensão de deslocamento no tempo para um momento histórico onde os trabalhos eram realmente mais manuais.

Outros fazem remissão discreta ao contexto histórico que levou ao povoamento não só daquela região, mas de todo o estado de Minas Gerais: os tropeiros que partiam do litoral e que para lá levavam víveres e de lá traziam produtos agrícolas.

Do lado de fora, há uma parafernália que chamamos de trapizonga. Trata-se de um conjunto de monjolos que são acionados alternadamente por um conjunto de chavetas dispostas em um eixo que, por sua vez, é movimentado através de uma roda d'água. Da próxima vez que alguém chamar algo por esse nome, saiba que a sua origem não é sinônimo de coisa desconjuntada, mas de mecanismo complexo.

Também há plantações e pomares espalhados pela área, sendo que as figueiras estavam em plena produtividade. Muito do que se serve no restaurante – ótimo – é produzido na própria fazenda.

A estrada que leva ao distrito tem uma característica toda própria. Ela faz parte do Caminho da Divina Providência, uma rota de peregrinação criada por um grupo de jovens da paróquia de São José, da cidade de Limeira/SP, no meio da década de 80. Faz a linha a mais reta possível até a cidade de Aparecida, no Vale do Paraíba, destino final de diversas romarias.

Todo o caminho é marcado pelo propósito da peregrinação mencionada. Logo no começo da estradinha que leva a Jaguary, uma pequena capelinha já é ponto de parada para os devotos que se preparam para encarar aquele trecho de subida.

E é exatamente uma igreja dedicada à mesma santa que informa ao caminheiro que ele chegou ao povoado.

Estamos praticamente no meio do caminho que vai à terra da padroeira desta Pindorama. Daqui, são mais 127 quilômetros em meio a vales, matas e muita terra nos calçados.

Disponível em https://tvjaguari.com.br/caminho-da-divina-providencia-38096/

Eu cruzei com dois grupos de romeiros pelo caminho. Fiquei com vergonha de fotografá-los, como se fossem curiosidades de circo. Um deles era bem grande, com umas cinquenta pessoas e um guia. Já o outro era bem menor, mais motorizado e com bastante idosos, mas igualmente bem organizado. São caminhadas que levam dias, e demandam muitos pontos de parada e apoio, geralmente conseguidos com membros das comunidades religiosas que se distribuem pelo caminho.

As peregrinações são importantes nas religiões porque carregam uma boa dose de conteúdo sacrifical. A ideia é que ninguém faz nada, se faz fácil. Se eu sair de casa para peregrinar até a Catedral da Sé, peregrinarei por trezentos metros, o que é uma tapeação contra a divindade, ou seja, eu posso até ir à catedral, mas sem esse teor de sacrifício que é a longa caminhada. Elas fazem muito sentido quando se relembra das grandes caminhadas que eram necessárias no passado para ir de um lugar a outro, que atravessavam os campos (per agro, ou através dos campos, em grego) quando evidentemente não existiam aviões para se deslocar fisicamente, nem internet para fazê-lo virtualmente.

Houve momentos em que eu quis fazer alguma peregrinação desse tipo, principalmente a famosa rota de Santiago de Compostela, na Espanha. Mas aí tem a grana e eu me contentaria com Trindade, Bonfim ou Aparecida mesmo. Confesso que não se tratava exatamente de uma questão de fé, de alcance de graça ou de coisa parecida, mas porque o espírito de romaria me parecia muito atraente, aquela coisa de se percorrer uma estrada como se fosse uma metáfora para a vida. Hoje esse sentido não existe mais.

Para quem é religioso (de fato) é bem isso: o caminho representa a vida terrena. Cada pedra que se tropeça pode ser entendida como as dificuldades para a manutenção da fé, e o destino final, aqui uma igreja ou outro lugar santo, é a vida eterna, onde se retornará à divindade à escolha.

E para um ateu? A experiência vale?

Não no mesmo sentido, é óbvio. Seguindo a mesma alegoria, há uma divergência muito grande: não há nada no fim do caminho, a não ser a morte. Se partirmos da premissa de que não há transcendência, o fim é o fim. O que resta, então? O caminho.

O caminho representa uma mudança de foco no que normalmente seria a peregrinação. Pode-se até enxergar que o trajeto é como um tapete vermelho de igreja, que leva do pórtico ao altar, e isso realmente faz muito sentido no âmbito religioso, mas, novamente, o que temos aqui é um plano secundário. Agora imagine uma estrada que leva para um barranco. O que importa é só ela, e não o que está no fim. 

Por esse motivo, a caminhada da peregrinação dos sem-fé é mais importante do que a chegada. E isso é prova do absurdo que é a existência.

Qual das duas é melhor? Sem dúvida, a do religioso, admito. Eu às vezes me pego pensando: qual não seria a decepção daquele que acreditou a vida inteira e, chegando no fim, não vê nada? Mas se tudo acaba, acabou, inclusive a chance da decepção. Acreditando, pelo menos não se teve a angústia.

Quer dizer… isso quando a crença é legítima, né? Eu vejo choro e desespero sob qualquer condição. Pela lógica religiosa, uma morte deveria ser comemorada, e não lamentada. É a passagem para a vida eterna, onde poderemos rever os pais, parentes e amigos que se foram. Em outra lógica, é o caminho completo, uma etapa que obrigatoriamente deveria ser cumprida. Mas choramos nos enterros, lamentamos de saudades. Acho que isso demonstra que somos todos agnósticos. É aquela velha história: não há ateu em avião caindo, não há religioso enfartando. Não temos certeza nem disso.

Só que a escolha não é possível. Quando se crê, se crê; o resto é autoengano. Só atingimos algum nível de reconforto quando cremos de verdade em alguma coisa. Crer da boca para fora é, digamos, ilusão para quem o faz e jogo sujo com a teórica divindade. Por assim dizer, está fora da regra do jogo, como tentou Pascal em sua aposta.

O ser humano é um ser dividido entre o sim e o não permanentemente. Há uma grande dificuldade em se enxergar as diversas nuances possíveis entre dois pontos distintos, e isso se reflete até mesmo em nossa argumentação, forçando dicotomias onde há multiplicidade. Sendo assim, se não há vida após a morte, só resta o desespero. Mas, se houver, não temos a justa medida do que nos fará ser agraciados pela vida eterna ou banidos ao fogo eterno. Ou seja, a angústia persiste. E se nada há, o que nos dá sentido? Desde Aristóteles acredita-se que a causa final do ser humano é a felicidade, mas como esta pode ser conciliada com a perspectiva da morte, com a ideia de que todo o castelo de cartas se desmancha com o vento? Sendo assim, só resta concluir que a vida é absurda.

Não é que o mundo e a natureza sejam absurdos em si, mas é a nossa necessidade de sentido que os tornam assim. Pelo contrário, as coisas se movem de acordo com a lei que lhes rege, e isso é para absolutamente tudo, menos para ela, a humanidade.

Por esta razão, a vida tem um aspecto trágico incontrolável. Por mais que se busque sentido na existência, ele não existe por si só. Agarramo-nos aos deuses por mais óbvia que seja a sua inexistência, criamos mundos futuros por não nos conformarmos com nossa finitude. O Calígula de Camus pede que se lhe traga a lua. Ele não a quer porque é louco, mas porque quer algo que não pertença a este mundo. Ele quer a lua, ou a felicidade, ou a imortalidade, qualquer coisa que se possa chamar de absurda, qualquer coisa de fora do mundo, justamente para justificar sua existência.

O absurdo é o aspecto trágico permanente e incontrolável da existência. O mundo desmente sozinho a religião, porque as respostas que elas dão são ainda mais absurdas que o próprio universo que se move por si mesmo. Kierkegaard lembra do exemplo de Abraão. Não é a execução de seu filho o absurdo, já que é uma exigência de deus para provar sua fidelidade canina, mas o fato de Abraão ter aceitado a incumbência, algo contraintuitivo até no universo dos animais ditos irracionais. Ela é uma prova tão inequívoca do absurdo que até mesmo é enviado um anjo para impedi-lo*.

A solução é mais simples, porém mais dolorosa a quem se prende somente à perspectiva da morte. Heidegger já dizia que a humanidade nasce para a morte, e esse era, de certa forma, o auge da sua existência. Tudo o que vai para frente é inatingível, exista ou não. Dessa forma, sendo irresoluta, a vida é absurda porque a consideramos assim. Camus, no mito de Sísifo, propõe algo que se assemelha aos que os antigos céticos já propunham: nunca chegarei ao conhecimento de nada, mas isso não significa que ficarei parado. Transmudado para a existência, esse pensamento se desloca para a tarefa infindável de Sísifo, sua pedra que sempre rolará morro abaixo. No que é diferente nossa vida? Ela é vivida no trânsito da montanha, para cima e para baixo, e é na revolta contra o destino inexorável que vivemos. Não adianta que os deuses tenham castigado Sísifo pela eternidade: ele reverte a vingança caso tenha achado um norte em seu próprio destino. De lá, na subida da montanha, sempre teremos uma vista bonita, uma paisagem curiosa, um céu que se alonga ao infinito e que nos traz perguntas mais edificantes do que o mero peso que se carrega. Imaginar Sísifo feliz corresponde a nos convencer de que a vida pode valer a pena, mesmo que não tenha desfecho, porque o seu propósito é dado diariamente, no momento e no lugar em que estamos, seja lá qual ponto da caminhada for.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Como já mencionei o mito de Sísifo anteriormente, vou recomendar a peça Calígula, onde Camus também fala do absurdo da existência sob um ponto de vista desvinculado da religião. Curto e fascinante.

CAMUS, Albert. Calígula. In: Calígula seguido de O Equívoco. Porto: Livros do Brasil, 2002.

* Embora um deus onisciente deveria saber que seria obedecido, tornando dispensável todo o evento. Mas o absurdo se manifesta estruturalmente, e não só episodicamente.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Para lá da serra que eu vejo na janela – 6º episódio: Vale do Bom Jardim e o momento em que teremos uma quarta ferida narcísica

(Balançar na rede me afasta do meu mundo, e me leva a pensar qual será o próximo passo para que nos reconheçamos mais e mais inferiorizados)

É que Narciso acha feio o que não é espelho

Caetano

 

Olá!

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Eu me casei em um mês de janeiro e, por conta disso, sempre procuro fazer um agradinho para a patroa quando é chegado esse mês. Até não muito tempo atrás, dados os limites financeiros, costumávamos comer na pizzaria, ao invés de fazê-lo em casa. Hoje em dia, já dá para pensar em alguma coisa mais arrojada, e temos feito curtíssimas viagens, de três ou quatro dias, onde comemos, bebemos e celebramos a vida.

Não foi diferente neste ano. Como é viagem de tiro curto, não dá para errar, e o negócio é fazer uma reserva. Só que eu errei. Sendo janeiro, pensei em pular para o polo oposto e procurar um destino de inverno, e raciocinei: será que desta vez dá para fazer as trilhas de Monte Verde sem chuva? Eu já havia viajado para lá, e peguei um interessante contraste de chuva e sol, e gostaria de revê-la, desta vez a seco. Só que os aplicativos de hotéis não se limitam a pesquisar a localidade desejada, mas uma área ao seu redor com um raio generoso. Estupidamente, olhei uma oferta atraente, vi fotos do lugar e fechei questão. Só que fui parar 20 km de terra longe dali, ainda em Camanducaia, mas em um distrito chamado Vale do Bom Jardim.

“Você deve ter ficado puto”, pensará você. Pior que não. É um lugar muito bonito, tranquilíssimo, que ainda não está na crista da onda do turismo, afastado de excessos de rodas por causa da chegada exclusiva por estradas de terra, mas é inevitável que logo chegue lá, dada a quantidade de construções de casinhas e chalés pela redondeza. Dá para perceber claramente a estrutura geográfica que dá nome ao lugarejo ao observar a paisagem pela estradinha.

Sendo assim, não fiquei aborrecido, muito pelo contrário. O Vale é um lugarejo simples, cheio de morros e fundos, com um clima bem ameno e repleto de caminhos de chão.

Se temos um vale, é sinal de que temos um rio, e este é o Rio Jaguary, cuja nascente não está muito longe dali e que vem formando saltos e cachoeirinhas por todo o seu trajeto. Bem de frente ao chalé que aluguei havia uma, de água muito limpa.

Havia uma mesa esperta bem na beira do rio, e fui matar uma saudade que eu tinha desde o tempo em que as crianças eram pequenas: fazer um piquenique de café da manhã. Parece coisa de namoradinhos, mas ninguém disse que esses pequenos romantismos não dão colorido à vida.

Quando vamos a lugares assim, dizemos que presenciamos paisagens bucólicas. Esse é um termo muito típico do Arcadismo, a corrente literária que pregava um retorno à natureza. Temos muito disso aqui, como as aves pouco conhecidas nos centros urbanos (aqui, temos um coró-coró)...

… as castanheiras que emprestam o nome à colina e ao sítio que as contém…

… daquelas portuguesas, que comemos cozidas ou assadas, e que perfuram os dedos dos incautos…

… as plantações de marmelo típicas do Sul de Minas…

… a igrejinha à qual o povo acorre nos fins de semana e nas festas de guarda, com o sino que retine chamando os fiéis…


… e o sol que se põe atrás da serra, coisa tão rara de se ver em megalópoles como São Paulo.

Um pouco de tecnologia, entretanto, não vai nada mal.

Como estamos na Mantiqueira mineira, não dá para deixar de pensar em comida, naturalmente. A Casa Velha, sem qualquer patrocínio (estamos aceitando) é um daqueles lugares em que comemos gemendo, tamanho o sabor dos pratos ali servidos.

Mas à noite, o negócio é uma italianíssima parceria de pizza e vinho.

E, no fim da tarde, uma atitude simples e reconfortante… balançar na rede e olhar o tempo passando, o céu escurecendo e a noite chegando, enquanto as mariposas começam aos poucos a chegar.

É no balanço da rede que eu me percebo, pelo menos por alguns instantes, fora da grande rede em que se transformaram nossas vidas. E é assim que eu me percebo absorvido por elas: exatamente na sua ausência. Batemos recordes de moléstias mentais, não somente porque hoje elas são reconhecidas como tais, mas também porque vivemos em um mundo onde, como nunca, recebemos informações em quantidade que não conseguimos processar. Eu, que sou low profile em matéria de informática (até mesmo porque trabalho com essa desgraça), estaria recebendo notificações aos borbotões de sites que nunca ouvi falar, mensagens e status de WhatsApp, novos vídeos do YouTube e tantos outros acessórios da vida contemporânea, e certamente estaria tentado a vê-los todos, deixando para lá um contato mais íntimo com o mundo que me cerca.

Tentar achar os porquês das atitudes da vida contemporânea é um desafio que tem incomodado o pessoal das humanas atuais. Não foge muito, no meu entender, do nosso próprio narcisismo, e gostaria de fazer uma tentativa de discorrer sobre isso. Como em filosofia as coisas nunca são tão simples, vou ter que fazer um regresso à mitologia grega, e explicar um pouco como se desenhou o mito de Narciso, o personagem que deu substrato ao modo de vida que vivemos até hoje.

Tudo começa com a ninfa Eco, cuja história vai se entrecruzar com a do jovem mancebo. Uma ninfa era uma espécie de divindade que protegia algum aspecto da natureza, como já falei neste texto. No caso específico de Eco, ela era uma oréade, que estavam ligadas às montanhas e às grutas. Eco era regida por uma autoadmiração, voltada especialmente para sua melodiosa voz, e isso fazia com que ela falasse, falasse, falasse e falasse.

Certa feita, Zeus, um dos maiores especialistas em puladas de cerca que se tem história, estava andando pelo meio das oréades para conseguir um belo desfrute, mas não obtinha favores de Eco, que preferia ficar ouvindo sua própria voz. Entretanto, a ciumenta deusa Hera, desconfiada das longas ausências do marido, resolveu dar uma investigada pelos lados das montanhas. Para não permitir que Hera visse seu marido em pleno ato com suas colegas ninfas, Eco aproveitou de sua verborragia, puxando papos cada vez mais longos com a ciumenta deusa, a fim de permitir que Zeus escapasse. Mais tarde, quando se tocou da falcatrua, Hera condenou Eco a apenas repetir as últimas palavras de seus interlocutores, de modo a não mais praticar sua arte oral. Deprimida, Eco passou a viver isolada pelos bosques, onde ficou até seu encontro com o jovem Narciso.

Este jovem era filho do deus Cephisus com a ninfa Liríope. Sua principal característica era uma incrível beleza, além de uma autossuficiência sem igual. Como a visão da antiga Grécia sobre a sexualidade era muito diferente da que temos hoje em dia, Narciso era visto e desejado por todos, homens e mulheres, e também pelas ninfas, notadamente a já citada Eco. Entretanto, sua vaidade não lhe permitia se ver seduzido por ninguém, nem mesmo pela belíssima tagarela. O encontro dos dois se deu durante uma caçada na região onde a ninfa havia se refugiado. Vendo-o ao longe, a pequena entabulou um diálogo limitado pela sua maldição e, quando finalmente se aproximou, o amor-próprio de Narciso fez com que a pobre moça fosse repelida com duras palavras e soberba infinita. Envergonhada, a menina terminou por se ocultar no fundo das cavernas, e lá definhou até se transformar em pedra, restando viva unicamente sua voz, na forma das repetições tão comuns que encontramos dentro desses lugares.

A arrogância do jovem não passou despercebida da deusa Nêmesis, que, testemunhando a dor de Eco, estabeleceu uma vingança: Narciso pagaria seu ato através de um amor impossível -  a paixão por si mesmo. A concretização se deu em outro dia de caçada. Estando fatigado pela faina, Narciso se aproximou de uma fonte e sobre ela se debruçou, a fim de pegar água. Foi quando se deu a famosa cena da visão no reflexo, e o início de uma paixão irremediável. A cada vez que tocava a superfície, a imagem desaparecia, para se materializar novamente em segundos. Narciso tentava beijar sua imagem, mas o mesmo acontecia. Sem conseguir se distanciar e também sem alcançar seu objetivo, o jovem cada vez mais se depauperava, até perder toda sua força e morrer. No lugar de seu corpo, brotou a bela flor que leva seu nome.

Essa história simbolizava tantas outras na espécie humana que acabou por se tornar a narrativa da autoimagem que suplanta a própria visão que não consegue sair de si mesma, de forma a originar inúmeras inspirações poéticas, como o verso da epígrafe, ou a nominar princípios psicológicos, como fez Freud.

Quando Freud escreveu seu livro “O Mal-estar na Civilização”, as sociedades ocidentais viviam um momento em que se viram defronte a um paradoxo retumbante. No século XVIII, o Iluminismo removia o pensamento das superstições religiosas, enquanto no século XIX o Positivismo creditava à ciência um mundo de avanços em todas as dimensões. O que tínhamos no começo do século XX? A maior guerra que se teve notícia, com recursos tecnológicos nunca sonhados antes. A ciência que traria uma qualidade de vida nunca sonhada era a mesma que produzia os artefatos mais mortais jamais arquitetados. Essa encruzilhada em que a humanidade se colocou vinha agravada pelo descolamento das divindades, que agora não admitiam regresso, tendo em vista as descobertas que o próprio conhecimento científico trazia, e que a retirava do lugar especial que imaginava ter. A humanidade passava a se olhar em seu reflexo e, como Narciso, começa a definhar em sua imagem autoconstruída. Alguns desses eventos eram tão marcantes ao desmonte dessa imagem própria que Freud deu o nome de feridas narcísicas ao fruto dos golpes que os homens, vistos como coletividade, sofreram no seu eu, todas no âmbito científico.

A primeira delas se dá através de Copérnico. Resumidamente, cria-se que o planeta representava o centro do universo e, consequentemente, todos os astros giravam ao seu redor. Quando observados puramente no plano intuitivo, não tem erro. Observamos o Sol, a Lua e as estrelas descrevendo um círculo nos céus e concluímos fácil que estamos no meio. E o que isso significa? Que estamos em uma posição central, que somos agraciados por Deus, que o universo todo foi feito para nós. Se ainda não o temos todo em nossas mãos, é daqui do meio que poderemos alcançá-lo.

Mas, mesmo sendo intuitivo, um olhar um pouco mais atento via coisas inexplicáveis. Por que há estrelas que começam a andar para trás, contrariando todo o movimento típico de leste para oeste? Por que algumas dessas mesmas estrelas parecem maiores ou menores no firmamento, dependendo da época do ano? Para explicar esses fenômenos no contexto do geocentrismo, eram necessárias hipóteses estapafúrdias, como epiciclos e excentricidade. A resolução que Copérnico deu era de uma simplicidade irritante: não, não estamos no centro. Quem está no centro é o Sol. Nós estamos girando junto com os demais planetas, na periferia, em pé de igualdade com nossos irmãozinhos cósmicos.

Um pouco mais adiante, vieram Darwin e Wallace. A princípio, e por séculos, cria-se que todos os seres vieram prontos e acabados através de um criador, que os colocou no mundo de acordo com sua vontade para cumprir uma determinada função. O ápice era o ser humano, um ser mais próximo do que eram as próprias divindades, capaz de criar e de abstrair, que não vive só por viver, como qualquer outro ser.

Entretanto, a observação cuidadosa da realidade já fazia com que a emergente comunidade científica percebesse que os seres não eram estáveis, e que se transformavam no decorrer de longos lapsos de tempo. O que Darwin e Wallace notaram foi que essa transformação não se dava ao léu, mas através de pressões ambientais que levavam à seleção dos entes mais bem adaptados. Mais ainda: como essa pressão era exercida sobre indivíduos, as diferenciações não eram unívocas, gerando distinções dentro de uma mesma espécie. Isso faz surgir o conceito de ancestral comum, sendo que as espécies parentes eram aquelas que guardavam maiores semelhanças. Pepinos e melancias, minhocas e sanguessugas, gatos e leões, macacos e homens. O homem é um primata dentre outros, que um dia no passado foi um único animal, o tal ancestral comum entre nós e os macacos. Nós somos macacos. Nada mal para quem é a imagem e semelhança de deus.

A finalização veio no começo do século XX. Já fora do centro do universo, já um animal como outro qualquer, a humanidade ainda se arrogava a condição da racionalidade. O homem pode crescer como autêntico patrimônio universal porque tem a lógica como seu principal componente e o conhecimento como sua grande ferramenta. Sua genialidade pode ser resumida na fecundidade de seus inventos e descobertas, no avanço tecnológico e na criatividade artística. Nenhum outro animal tem qualquer semelhança com esse bolsão de benesses potenciais.

Entretanto, um esbarrão na rua, que qualquer lógica deduz a falta de intenção, já produz simulacros de MMA entre dois machos alfa. Aliás, a violência é espetáculo que atrai milhões, desde o tempo dos gladiadores até os ringues modernos. A lógica não vale nada diante dos afetos. Os lapsos fazem esquecimentos em momentos vitais. Os atos falhos fazem com que digamos aquilo que não queríamos, e nunca sonhamos o que queríamos, mas o que surge em nossa cabeça, bom ou ruim. Nós estamos sentados em um lugar pacífico, sem nenhuma preocupação aparente, e do nada vem os medos, as vergonhas, as aflições. Nossos afetos fazem com que tomemos atitudes que não têm como serem chamadas de racionais. O controle que temos sobre nossa mente é extremamente menor do que aquele que julgávamos ter. Nossa porção racional é ínfima dentro do conteúdo total da nossa psiquê. Freud descobre que o inconsciente é muito maior e mais atuante do que a consciência. Há uma guerra entre o instinto animal por um lado, e pela repressão socioambiental pelo outro, de forma não perceptível aos sentidos, mas que pressiona a porção consciente de forma muito difícil de lidar, e essa é uma usina de problemas emocionais, neuroses e psicoses à frente. Achávamo-nos racionais, mas não o somos.

Será que esses caras eram malvadões que queriam diminuir a humanidade, que é a pérola da criação divina? Não, nada disso. Eles quiseram uma visão mais realista, mais factual, menos transcendente do que é o universo. É aquela coisa: quando somos crianças, explicações do tipo cegonha são suficientes para satisfazer a curiosidade de como os bebês são encaminhados. Na medida em que crescemos, passamos a querer saber mais, a exigir mais, e estamos sempre aperfeiçoando nossos conhecimentos. Precisamos não só compreender a dinâmica dos nascimentos, mas como se formam os diferentes órgãos, os pulsos nervosos, e até mesmo em que momento exato começa esse fenômeno chamado vida. Foi assim com os novos saberes que resultaram nas feridas narcísicas, e ainda não pararam. Depois de Copérnico, vieram Brahe, Kepler, Hubble. Depois de Darwin, vieram Weiseman, De Vries, Dobzhansky. Depois de Freud, tivemos Wertheimer, Rogers, Gazzaniga.

Em resumo, o nosso narcisismo coletivo, marca de nossas sociedades, é profundamente afetado à medida que a ciência avança e descobre cada vez mais sobre nós mesmos. O homem é encapsulado por muito menos estruturas que pensava e é muito mais parelho a todo o resto da realidade circunstante. A cada golpe desses, o mundo deixa de ser um grande quintal feito sob medida para a humanidade, que passa a se tornar cada vez mais um ponto indefinido em um gigantesco universo. Sozinho. Pelado. Embaixo das pontes.

Estamos à espera da próxima ferida narcísica e isso deve ser um bom motivador para nossa busca incessante por informações, essencialmente para não ser pegos no contrapé, embora as outras feridas tenham demonstrado que isso é inevitável. Seria até possível defender que a quarta ferida já existia antes mesmo da terceira, com a constatação marxista de que os homens nunca conseguem ser neutros, sendo que toda sua ação é ideológica. Tudo o que você come, tudo o que você admira, tudo o que você quer, tudo o que você interpreta e percebe do mundo ao seu redor está banhado de ideologia, de preformatações que se constituíram a partir de uma cadeia de ações e reações vindas das disputas entre as diferentes classes sociais. A ideia não é exatamente nova, lembrando que já o velho Aristóteles dizia que o homem é um animal político. A novidade em Marx vem na forma de alienação, um conceito de Feuerbach aplicado à vida social, onde o homem aceita a condição imposta pelo seu lugar na escala social sem ao menos se dar conta disso.

Mas isso é uma espinha na virilha se comparada com as verdadeiras feridas, e penso que a próxima está em pleno desenvolvimento, paulatino como sempre, mas aparente como nunca, ainda exercendo seu fascínio, mas já despertando seus medos. Vamos a ela.

Eu nunca fui exatamente um entusiasta do xadrez, mas o noticiário fez muito barulho em meados da década de 90, quando o atual campeão mundial da época, o azerbaijano (então soviético) Garry Kasparov, foi convidado a enfrentar um computador em uma partida similar às que aconteciam entre grandes mestres. Não era exatamente uma novidade, que já ocorria desde a década de 80, sempre com vitória humana. Só que, naquele mês de maio de 1997, aconteceu. Era a segunda vez que Kasparov enfrentava o Deep Blue, uma máquina especificamente configurada para jogar xadrez, com ampla capacidade para processamento de cálculos. A vitória foi longe de ser confortável, e poderíamos considerar inúmeros fatores: algum vacilo do humano Kasparov em um dia especialmente ruim, a hiperespecialização do Deep Blue, preparado com um nível de especificidade que não lhe daria mais nenhuma aplicação ou algum tipo de trapaça, vá lá. Houve acusações de que a IBM, fabricante do computador, fez algum tipo de manipulação, porque, de fato, se recusou a fornecer os prints dos logs de cálculo do Deep Blue a Kasparov, alegando sigilo autoral. Houve até mesmo teorias da conspiração dizendo que havia um pool de jogadores assessorando o computador, para forçar a vitória e obter uma sobrevalorização do preço das ações da IBM no mercado. Mas o caso é que o fato foi um ponto de inflexão na maneira como olhamos essa tão comentada disciplina nos dias atuais: a inteligência artificial.

Eu dei pitacos sobre esse tema nesse humilde espaço (aqui e aqui), e imagino que, se for possível reduzir a mente a algoritmos, teremos uma grande possibilidade de construir máquinas que pensem por si. Não é que uma vitória em um torneio de xadrez ou a composição de um texto no ChatGPT, ou ainda um comercial que imite uma cantora famosa vá fazer com que nos consideremos superados em nossa inteligência, mas temos diante de nós um caminho inequívoco e do qual não vamos voltar atrás. Esse é um momento chave, em que reconheceremos em breve que não somos mais os seres que possuem a melhor capacidade cognitiva no planetinha azul já bastante acinzentado, e, nesse momento, teremos a quarta ferida completamente exposta às moscas da nossa inferioridade. Como vamos lidar com essa situação, é uma pergunta que não tenho como responder. Eu, de minha parte, vou fazer como faço com a morte: sem ter como especular, vou esperar, e é tudo.

Para finalizar, resolvi colocar esse texto no conjunto que escrevi que fui à região bragantina, não porque este pedaço de terra fique lá, mas porque falei de Monte Verde naquele contexto, então achei por bem agrupar tudo por lá. Bons ventos a todos!

Recomendações:

É um repeteco, mas não há problemas quanto a isso, principalmente porque é um tema que rende bem mais que um post.

FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Civilização. São Paulo: Cia. Das Letras, 2011.

 

E a música da epígrafe, um grande clássico da MPB:

VELOSO, Caetano. Sampa. in: Muito - Dentro da Estrela Azulada. Rio de Janeiro: Phillips, 1978.

quinta-feira, 7 de março de 2024

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – Epílogo: sobre café e objetos de culto que não são sagrados

(Chegando ao fim, com um brinde na forma de um cafezinho)

“Se os deuses, cada um em seu momento, saem do templo e se tornam profanos, vemos que o relativo à própria sociedade humana entra no templo progressivamente”

Marcel Mauss

Olá!

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Este é o texto em que fecho a série sobre mais uma viagem que realizo. Desta vez, procurei todas as cidades em que, de uma forma ou de outra, estive muito perto de vir em outras jornadas, mas que acabaram não acontecendo. Desta forma, dei cabo daquela sensação de incompletude que temos ao olhar para um álbum de figurinhas e o vemos com lacunas, sendo que inclusive tratei do tema em um dos posts. É uma mania que peguei da minha mãe. Ela sempre tratava suas tarefas com esmero, por vezes exagerado. Lembro, por exemplo, de quando ela confeitava bolos. Dava umas onze da noite e a peça estava ótima, dez com louvor. Mas ela ficava ainda por toda a madrugada, buscando detalhes impensáveis, como as manchinhas nas costas das renas de Natal. “Existem renas sem manchinhas nas costas?”, questionava a genitora. Sei lá, dizia eu, na minha insensibilidade valiam muito mais as horas de sono perdidas. É claro que não se compara o que fiz agora, mas parece ter a mesma matriz, e, agora, respiro aliviado, livre da sensação de ter perdido oportunidades em outros momentos. Com isso eu fechei todo o território? Não, sempre falta alguma coisa. Mas quando eu passar por Dom Viçoso, Olímpio Noronha, Natércia, Heliodora, Piranguçu ou mais alguma, acrescento a esta lista e vida que segue.

O mais curioso é que, apesar de ter passado por oito cidades diferentes (e mais uma rápida passada em Caxambu para rever amigos), não me hospedei em nenhuma delas. Viajei em um feriado, imprudentemente, mas consegui uma daquelas promoções de desistência, do tipo pegar ou largar, e fiquei em um chalezinho muito bonito em São Lourenço. Como já fiz um belo texto sobre esta cidade, não vou me repetir, obviamente.

Isso não significa que eu não tenha feito nada pela cidade, muito pelo contrário. Estamos no Sul de Minas, a terra onde se produz o melhor café do Brasil nos dias de hoje, e é natural que, em uma cidade com quase 50.000 habitantes e um tanto grande de turistas, haja bons lugares para se sorver um café como se deve. Bons, não… dos melhores.

Não se trata de fazer propaganda, até porque não estou ganhando um único trocado com isso (mas não seria nada mau). É apenas mais uma maneira de relatar para vocês minhas experiências pessoais e entrecruzá-las com filosofia, o legítimo motor deste espaço. E, no caso, é mandatório que eu relate minhas preferências e o que elas têm a dizer ao mundo. Isso passa pela devoção aos bons cafés, que tanto aprecio, e pelo fato de que estou perto de autênticos templos desta arte.

É que a Unique é uma espécie de Vaticano do café especial, um dos top of minds quando o tema é esse, como é Omo para sabão em pó, Coca-Cola para refrigerantes, Aspirina para comprimidos. Para qualquer pessoa do ramo, essa é uma referência de ponta da língua. A Unique é mais um negócio no mundo do capitalismo, mas que oferece o que esperamos: produtos de alta qualidade com preço razoável.

Só que, para além de produzir seus cafés, a Unique tem uma cafeteria, que, no final das contas, representa esse templo a que me referi. Eu não viria para São Lourenço perdendo a oportunidade de prestar meu culto, sintetizado nas xícaras de arábica de 80+ pontos. 

Aqui nós temos um pacote completo, que inclui explicitamente as etapas de produção, sem que nada fique fora do âmbito da compreensão do cliente. Talvez não tenha tanta relevância para quem se ocupa unicamente de tomar algumas xícaras, mas para quem quer compreender a si mesmo como apreciador, é muito relevante que haja um didatismo desse nível, incluindo o processo de torra e o sensorial que ele causa. Já ouvi falar de muita gente que não suporta o sabor do café, mas ama seu aroma, especialmente quando está sendo torrado. Aqui, é possível ter a experiência definitiva.

Nem só de Unique São Lourenço viverá. A cafeteria CWC vem com outro conceito, menos rastreador de origens e processos, mais voltado à seletividade. Yirgacheffe, sudan, laurina, gesha, starmaya, pacamara e outros grãos de nome difícil estão disponíveis em versões requintadas, servidas em taças e feitos com a água mineral local, para garantir mínima interferência nos sabores.

CWC significa Coffee Work Club, e consiste em um espaço de coworking, um modelo de negócio que se fortaleceu muito a partir da pandemia de COVID, baseado no compartilhamento de espaços para necessidades transitórias, como reuniões de negócios, realização de trabalhos mútuos ou trabalho remoto ocasional. É normal que haja formas de comer alguma coisinha nesses locais, mas aqui a coisa foi levada tão a sério que acabou se tornando o mote, e não o acessório.


Como trabalha com grãos seletos, é irremediável que se queriam estabelecer parâmetros e fazer comparações. Para tanto, eles criaram uma espécie de menu degustação onde são oferecidas três bebidas distintas, para serem tomadas em uma ordem predeterminada e entremeadas por goles de água, para limpar o paladar. É muito bom para conhecermos cafés que são produzidos em outras partes do mundo, e traçar um paralelo com os produtos que tomamos aqui.

Aí vem aquele meu velho e chato interlocutor imaginário (uma espécie de má consciência nietschena com influências de Bilac?) e vem com suas perguntas metidas a embaraçosas: Ora (direis), como um morador da cidade de São Paulo, com seus inúmeros cafés para todos os tipos e gostos, com ambientes instagramáveis, adoção de gatos, métodos e grãos do mundo inteiro, se surpreende com uma cidade do interior? Minha resposta se dá em duas camadas. A primeira é semelhante à intuição de Bergson, de quem tratei há pouco tempo (aqui). Neste exato momento, eu estou cercado de milhares de pés de café por todos os lados, bastando andar três ou quatro quilômetros a qualquer direção que eu vá para dar de frente com eles. Aliás, não. Basta pôr a cabeça para fora da cafeteria que eu já os vejo.


É possível haver conhecimento sem esse contato e consequente apreensão direta? Pode ser que sim, não nego. Afinal de contas, há médicos que não operam, advogados que não vão a tribunais, mas que, de uma forma ou de outra, tiveram o contato mais íntimo possível com seu objeto de estudo. Por que seria diferente com o café? Aqui, há a fusão entre o ponto natural de surgimento com o ponto final do consumo, e isso enriquece a bagagem do apreciador, nem que seja pelo puro prazer de conhecer ou comparar suas tatuagens com um cafeeiro de “carne e osso”.

A segunda é que tanto Unique, quanto CWC sintetizam duas formas de lidar com o café que são ambas interessantes e igualmente válidas. A Unique percorre o ciclo completo do grão, começando da própria terra e chegando até a xícara, cumprindo, dessa forma, todas as etapas da produção. Já a CWC explora outro aspecto: a integração do café à produtividade de outras áreas, a partir do momento em que oferece um lugar onde você pode passar o dia inteiro, inclusive os úteis. São modelos inovadores e que, por isso, guardam encantos especiais como seus cafés.

É normal que a apreciação faz com que tenhamos mais cuidado com os costumes que temos. Onde trabalho, há a indefectível garrafa térmica de café, mas são daqueles produtos que tornam peremptórias as adições, seja de açúcar ou adoçante, dada a baixa qualidade da beberagem. Isso faz com que eu apele a recursos, como um coador que percolará grãos moídos no dia, ou um drip coffee maroto, que exige apenas um pouco de água quente. Mas o ato do preparo chama a atenção dos colegas, e, uma vez interpelado, eu abro a torneirinha mesmo: porque o grão tal, porque o método xis, porque a moagem ypsilon, e assim vai. Nem todos acham isso bonito, muitos, inclusive, observando um certo pernosticismo de minha parte, o que não é mentira. A grande pergunta que me fazem quando começo a falar empolgadamente de café é porque tanta deferência com momento tão fugaz. Tem café na garrafa, para que perder tempo e pagar caro? Bem…

Quem pugna pela utilidade das coisas, geralmente está segregando interesses. Pergunte para um defensor do útil se ele torce para algum time de futebol. Que utilidade tem o futebol? E as novelas? Dificilmente alguém pratica somente coisas úteis, mas aí temos uma questão de parcialidade. Meu lazer é útil, o do outro não é.

Não estou aqui falando do pragmatismo como escola de pensamento filosófico, mas como visão de vida. O pragmatismo filosófico é a corrente de pensamento que pugna por uma visão prática da filosofia, para que a mesma sempre procure resolver problemas, e não se perder em divagações infinitas de pouco aspecto efetivo. Essa é uma visão como qualquer outra, concordemos com ela ou não, e é muito levada em consideração dentro da filosofia estadunidense, apenas para dar um exemplo. Minha questão é com uma certa má vontade com quem quer enxergar além do propósito empírico das coisas do mundo, lembrando que uma das grandes características do ser humano é justamente ser abstrato, transformar fatos em significados, e trabalhar sentido onde ele, aparentemente, não existe.

Quando alguém fala dessas “inutilidades” tira de relevo as coisas que dão colorido para a vida. Basta que se pensem nos sentidos. Não me basta ouvir, mas ouvir boa música; não basta ver, mas ver belos quadros, sentir cheiro de bons perfumes, sabor de ótimos cafés. Se os sentidos só servem para a utilidade, onde estamos sendo diferentes dos demais animais?

É com o nascedouro da apuração dos sentidos que vem um dos melhores designativos da raça humana: sua capacidade de abstração para dar significado a coisas que, em um sentido prático, não teriam valor algum. E isso desemboca, inclusive, em todo o bojo cultural de um grupo, com seus cultos e celebrações inclusos.

Na verdade, há que se compreender um pouco melhor o conceito de lugar de culto. É óbvio que ele sugere a ideia de espaço religioso, mas nem sempre é preciso criar esse vínculo. Existe uma espécie de cola social que faz com que até o mais empedernido dos ateus tenha laços sociais, e ele pode ocorrer de vários modos, sem que haja uma objetividade concreta e palpável. O exemplo mais próximo é o do futebol. Quantos estádios já receberam o epíteto de templo? Wembley, Santiago Bernabeu, Camp Nou, Giuseppe Meazza/San Siro, Maracanã, até mesmo a Rua Javari para a comunidade da Mooca. Aliás, peguemos este último, que costuma lotar nas manhãs de domingo, antes da macarronada na nonna. O pessoal não se reúne naquele pequeno campo simplesmente porque gostam do futebol à moda antiga. Eles estão lá porque há todo um conjunto de representações simbólicas que somente se materializam lá: primariamente, a união em torno de causas comuns, o pertencimento ao tradicional bairro, a resistência da agremiação que o representa, e (por que não?) o prelúdio do faustoso almoço, ele mesmo uma continuação mais particularizada de cada grupo do culto. 

Essa cola social não é tangível, mas é fartamente explicável pela nossa boa e velha necessidade gregária. Talvez seja um pouco cruel com nossas romantizações, mas há uma razão muito prática para que gostemos de estar juntos: a sobrevivência. É claro que tal característica está lá no fundo do desenvolvimento de nossa espécie, e não é crime algum fazer algumas ilações de fundo metafísico sobre essa tendência à reunião.

Já nos primórdios das formações das comunidades, havia algum tipo de especialização baseada em divisão de tarefas, enfatizadas pelas necessidades específicas. Assim, a turma que precisava caçar fazia seu preparo e orava para suas divindades da caça. Estando todos juntos, faziam essas ações com coesão, de modo a fixar ritos. Extensivamente, esse comportamento foi se estendendo para outras atividades, resultando em espaços de culto cada vez mais sofisticados, e que foram desembocar nas atuais igrejas.

Mas uma casa de café pode ser considerada um local de culto? Vai depender do que consideramos como tal. Se é necessária uma transcendência, ela está na importância estética que se dá aos aromas e sabores. Em termos materiais, tomar um café nada mais é do que uma atividade alimentícia, partindo da premissa de que se trata de uma bebida estimulante, e não meramente nutritiva. A partir do momento em que se pensa na questão da experiência íntima com o grão, a coisa atinge níveis de subjetividade que vão para além da mera imanência. A importância da experiência faz com que se saia da prosaica atitude de se tomar um café só para pegar ânimo ou acompanhar um pãozinho, e ganha aspecto ritualístico.

Aí é que está a importância de se conhecer as origens e os processos do café. Alguém é cristão sem conhecer Cristo? Maometano sem conhecer Maomé? Budista sem saber quem é Buda? O mesmo se aplica ao time do coração, ao músico favorito, ao café. É quase o ensinamento de Epicuro: obter prazer em tudo significa simplificar o conceito de prazer. Ora, ora, direis (novamente), o prazer simples, no caso, não seria beber teu café e ponto final? Não é contraditório ter que se aprofundar em um assunto para dele extrair contentamento? É que meu inconveniente interlocutor se esquece de que prazer simples não é sinônimo de prazer preguiçoso. Em um mundo onde a internet nos leva a qualquer lugar em segundos, buscar informações é fácil e completa a experiência. Só que nem isso é necessário. Basta que se pegue a embalagem do café para aprender muita coisa, como o grão que se sorve, as notas que o q-grader indica, o perfil de torra, a origem que lhe explica o terroir e tantas outras informações que não são vitais, mas que dão esse colorido que eu falei e que tiram alguma coisa de seu lugar comum, de sua profanidade. E é assim que temos a cafeteria transformada em ponto de culto: ao reunir em si o ânimo celebrativo de conjuntos de pessoas que compartilham desse mesmo interesse ou, melhor dizendo, dessa mesma paixão.

É assim que se formam novos laços. Quando realizamos uma ação qualquer aqui dentro, estamos não só realizando trocas de dinheiro por produtos, mas de elementos simbólicos. Não estamos apenas comprando e vendendo, mas estabelecendo alianças que se consubstanciam no interesse comum. Eu não dou só meu dinheiro ao vendedor, dou minha confiança de que terei para mim um bom atendimento - uma retribuição. Também quem me recebe espera de mim o reconhecimento pelo bom atendimento - outra retribuição. A cadeia social não se dá somente no comprar e no vender, no dar e no receber, na troca de elementos palpáveis. Dá-se na retribuição. Dessa forma, o café não é mais uma mera mercadoria, mas um compartilhamento, porque, novamente, não há só o material, mas o símbolo: o café que eu tenho nas mãos, e que veio das mãos da garçonete, e que foi feito pelo barista tem um significado de aliança. Estamos todos aqui em seu nome.

É como dizia o antropólogo francês Marcel Mauss: há algo de dádiva em cada ato social que cometemos. Isso significa algo divino? Não, mas sim que em todas as relações humanas não se bastam somente no que há de interesse em jogo, como o café que se compra e o café que se vende, mas aquilo que vai além dessa mera relação comercial. O sorriso ao passar a xícara é dado, não é vendido. Idem com o “obrigado” que é devolvido, não é recebido. É nessas dádivas que as relações sociais se fixam e se intercambiam no interior de cada uma dessas tribos, de modo a lhes dar coesão.

É meio que a prova de que as sociedades provavelmente nunca serão cem por cento secularizadas. A sacralidade não se vincula unicamente a divindades, mas sobre isso, já discorri neste texto, a quem recomendo a leitura.

E vou ficando por aqui. Não sei quando volto a fazer uma nova viagem nesse estilo turnê, mas o fato é que minha pauta está cheinha e preciso correr para não perder o controle. Bons ventos a todos e até a próxima!

Recomendações:

Primeiro, o artigo de Marcel Mauss que trata do conceito de dádiva nas relações sociais.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naif, 2003


Depois, especificamente com relação a este texto, seguem os endereços das duas cafeterias mencionadas. Se eu tivesse que indicar uma sequência, vá primeiro na Unique e depois na CWC, para pegar balanço e ir se acostumando com esse universo:

Unique: Via Othon de Carvalho, 1020 - Vale dos Pinheiros, São Lourenço - MG

CWC: Av. Comendador Costa, 669 - Centro, São Lourenço - MG


Por fim, a relação de cidades por onde passei, com sua distância calculada a partir do centro da cidade de São Paulo, mais especificamente da Sé, onde moro:

Campanha 285 Km

Soledade de Minas 312 Km

Virgínia 299 Km

São Sebastião do Rio Verde 284 Km

Aiuruoca 357 Km

Águas de Contendas 327 Km

Alagoa 317 Km

Itanhandu 266 Km


Já o chalé em que fiquei hospedado fica na Pousada Campestre, que, embora esteja em área rural, fica muito perto da própria Unique. Recomendo bastante, pela qualidade das instalações, pelo preço convidativo e pela gentileza de seus atendentes.

Pousada Campestre (Loisana e Vlamir): Estrada da Bomba, S/N - Palmela, São Lourenço - MG