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quinta-feira, 23 de junho de 2022

Sobre acreditar em alguma coisa e confrontos entre fé e razão

(Fé e razão são difíceis de conciliar. Mas por que tentar fazê-lo?)

Diante da incerteza da capacidade humana de refletir, ou eu caio no desespero, ou eu me apego a alguma coisa - Montaigne

Olá!

Náusea, engulhos, suor frio, queda de pressão, sensação de morte. Tudo isso são sintomas de que vem vindo por aí uma bela chamada de Juca, a famosa revolta estomacal. Eu me defendo até o último segundo de uma dessas, tamanho o ódio que eu tenho de vomitar. Mas, apesar de nojento, é um ato que representa uma bela metáfora: a de expulsar de dentro de si algo que lhe faz muito mal. E isso se aplica a qualquer atitude que tenha natureza confessória.

Do que estou falando? De sair do armário? Isso também, mas não só. Teve um filme dos anos 2000 chamado O Casamento de Romeu e Julieta, puro entretenimento, e dos bons. Ora (direis), tu, que afirmas deter-se silente em tua sala nas noites escuras para pura reflexão, se detém em comédias românticas popularescas de atores globais? Sim, meu chato interlocutor. São duas coisas: a primeira é que sou um humano como qualquer outro, e que se diverte com pastelões também, mesmo sem nenhuma profundidade intelectual. E a segunda é que a Filosofia é extraída do quotidiano mesmo. É dele que brotam os fenômenos, e destes que nos surgem as abstrações. No filme em epígrafe, há um momento tal em que o protagonista, corintiano dos quatro costados, explode de sua condição de existência falseada. Quem nunca viu, é uma boa pedida para dias que não demandem grandes imersões.

Todos nós temos esses momentos de expulsão do incômodo que é não se manifestar de modo autêntico. Ficamos retendo certas características de nós mesmos pela conveniência, pelo medo de sofrer, pela falta de capacidade de lidar com o preconceito e via discorrendo. Só que nem sempre dá para segurar. Por muitas vezes, a coisa sai na forma de erupção, notadamente quando se sofre uma indignação, outras vezes é falado com extremo cuidado, para que não se firam suscetibilidades. E outras vezes sai espontâneo, como foi meu caso.

Eu já contei para vocês como foi todo o meu processo de sair do ambiente religioso, mas não lhes disse como foi a primeira vez em que se deu essa assunção, porque uma coisa é se reconhecer descrente, e outra é divulgar essa condição. A imensa maioria das pessoas que me conheceu como religioso ainda pensa que eu sou assim, pelo simples fato de que não me incomodo muito com isso e não faço proselitismo reverso. Mas a primeira confissão foi extremamente prosaica, por uma afirmação quase tola, mas que acabou saindo sozinha. Eu estava validando uma lista de especificações com uma analista chamada Paula, referente a um daqueles projetos intermináveis, quando eu admoestei pelo milagre que seria seu término. "A gente sempre tem que acreditar em alguma coisa", disse ela, lançando mão da frase pronta. Minha resposta foi imediata: "não… não precisa não. Acreditar é sempre uma desculpa para o desespero". Ela encolheu os ombros como quem entende que não adianta discutir com um mamute. A menina Paula é muito good vibe, meio pendente para o esotérico, então não abriu questão com minha manifestação. Você que lê talvez nem ache que eu tenha feito uma confissão de não-fé, mas essa foi a primeira vez em que a descrença passou a fazer parte da minha imagem pública.

Mas a colocação da colega de trabalho é interessante em se pensar. Mesmo que eu já tenha ouvido essa afirmação outras vezes, isso não tira o seu sentido. Afinal de contas, a questão de não acreditar em divindades não nos leva a não crer em nada.

Não crer em nada é o significado de ceticismo, vindo do grego skeptikos, aquele que pergunta. Já falei sobre como esse termo se confunde com o ateísmo, e, principalmente, rendi um texto sobre a importante escola da filosofia helenista que se formou ao redor do conceito. É, de fato, muito desanimador chegar à conclusão que nada pode ser conhecido, e, por isso, depois de seu surgimento, essa linha de pensamento passou por duros testes, já começando logo de cara com os filósofos ecléticos, que trataram de afastar do seu patrimônio justamente seus princípios principais: há tantas variabilidades na maneira como um ser humano pode perceber o mundo que só nos resta a epoché, a suspensão do juízo que traria a paz de espírito para aquele que se sentia sequioso de saber.

O pior para a corrente ainda estaria por vir, contudo. Com o advento do teocentrismo da Idade Média, assumir que racionalmente não é possível se chegar a uma verdade colidia de frente com a ideia de um deus todo-poderoso que fornece dogmas com valor de verdade absoluta. Como não era muito saudável se contrapor ao pensamento oficial, os céticos se tornaram não só raros, mas até mesmo abafados.

Essa realidade seguiu até o período conhecido como Renascença. Com o ressurgir do Humanismo, os pensadores passaram a se sentir encorajados a refletir fora do eixo platônico-aristotélico, que foi mantido por todo esse tempo através da patrística agostiniana e pela escolástica tomista, respectivamente. Voltaram à cena as escolas éticas helenísticas, estoicismo e epicurismo à frente, mas também o desprendimento das certezas divinas permitiram o reflorescimento do ceticismo. É aqui que teremos como protagonista Michel de Montaigne.

A proposta deste filósofo francês era bastante semelhante à que eu tenho neste humilde espaço, sem nenhuma pretensão a comparação. Ele escrevia na forma de ensaios, um gênero literário que não se pretende desprendido da realidade, mas que não carrega todo o rigor filosófico e científico de um artigo, sendo mais um raciocínio inicial que estimule os leitores ao aprofundamento do que uma resposta sobre determinada questão. E a temática de Montaigne é exatamente a mesma que adoto: o quotidiano, as experiências do dia a dia com o que elas nos levam a pensar, por mais que derivassem de ações corriqueiras, triviais, comezinhas. Exatamente como quando se atribuem milagres a conclusões de projetos.

Isso não significa que destas impressões só brotem meras opiniões. Um ensaio produz aquilo que pode ser uma espécie de itinerário mental para uma obra mais aprofundada, mas que precisa ser registrada para render seus frutos. Aliás, a metáfora é excelente: só brota a semente que é plantada, e o ensaio é exatamente essa semente.

Mas a uma coisa esse estilo de escrita e de pensamento conduz: em Montaigne há mais perguntas do que respostas. E é aí que vem a retomada dos antigos céticos. A filosofia medieval, imediatamente anterior ao Renascimento do qual nosso caro francês faz parte, baseava-se quase por inteiro na pesquisa de Deus e sua interação com o homem e o universo. Mas o novo pensamento humanista devolve aquele espírito mais terreno e interpessoal, que se volta para questões sobre a ética e o conhecimento. E novamente não temos respostas unívocas. Montaigne faz sua pergunta fundamental: se o homem não se entende a si mesmo, como quererá interpretar coisas imensamente mais abstratas, como a natureza divina?

Os céticos do helenismo conduziam a questão de forma a suspender o juízo, e certamente o fariam na causa em tela. Nós já temos perturbações demais em nossa vida terrena. Aprofundar-se em temas insolúveis é só uma motivação a mais para insatisfazer o espírito, só que, neste caso, é evitável o espernear pela solução. Ocorre que Montaigne vai concordar com a impossibilidade do conhecimento, mas não com a epoché. Isso porque os céticos antigos viam o conhecimento das realidades universais, mas Montaigne enxerga a experiência particular como algo tão válido quanto. Quando se quer chegar à essência do humano, é àquela essência do pensador singular. Um homem tem para si a sua sabedoria e a observação da vivência de sua comunidade, e é sobre esses que poderá auferir o seu conhecimento. Como o próprio filósofo dizia, cada um é sábio para sua própria sabedoria.

Temos, portanto, que o sistema de ceticismo de Montaigne atinge as verdades universais, mas não no universo percebido individualmente. Claro que isso traz intercorrências. A pergunta que se dá, naquele momento de transição do medievo para a Idade Moderna, é como ficava a questão de Deus. Concordam comigo que nada mais universal e necessário que uma entidade de quem tudo parte e a quem tudo retorna? Se eu não me fio nem em conclusões terrenas, que fará com as coisas do mais alto misticismo? Montaigne seria, portanto, um agnóstico?

A resposta é: não. Montaigne reconhece os limites humanos para o conhecimento racional, mas entende que a percepção de deus vem de outra fonte: a fé. A primeira colocação é destronar o ser humano de sua própria arrogância. Quando se compara com um animal, o homem tende a se colocar em um lugar especial e privilegiado, por possuir as características de abstração e racionalidade. Todavia, é exatamente por raciocinar que o homem sofre. Um animal não teme, não se desespera, não se angustia, apenas vive e, em certa medida, é "feliz" por isso, já que sobrevive e, enquanto isso ocorrer, cumpre sua função no mundo. De nossa parte, sofremos com tudo isso, justamente por termos a capacidade da razão. “Porque pensa, o homem peca; porque pensa, o homem é indeciso; porque pensa, o homem se inquieta; porque pensa, o homem se desespera” é o leitmotiv desse raciocínio montaigneano. Desta forma, notem que há uma grande desconfiança com a razão, que por um lado é o grande distintivo da humanidade, e por outro é o principal motor da interpretação do universo, e por isso, a cada vez que colocamos a razão diante de um problema, acabaremos concluindo que sabemos muito pouco, e mesmo esse pouco com muitos limites.

Voltamos então à questão de deus. Para Montaigne, não se pode medir deus pela régua da razão. Tomás de Aquino já dizia que, onde uma causa defrontar razão e fé, esta última deverá prevalecer. Montaigne é mais radical nesse sentido, já que fé e razão não são relacionais entre si. Todas as vezes em que se tentar enxergar deus pela lupa da razão, encontrar-se-á a falha, porque deus conversa com os homens através de outra via, a via da fé. O nome dessa corrente é fideísmo, que pode ser definida pela separação entre a fé e a razão: podemos crer em coisas que não são redutíveis a raciocínios, porque o ser humano não se resume a pensamentos. Se o homem não tem a certeza dada pela racionalidade, ainda lhe resta olhar para a tradição e confiar naquilo que sua intuição diz.

E só então voltamos à inferência da coleguinha, que se coaduna tão bem com a epígrafe. Não há nada de errado em se crer em alguma coisa, seja lá qual for. É possível, inclusive, crer em alguma forma de transcendência que é independente de uma deidade, como já fazem os budistas da corrente theravada. Quando nos reconhecemos ateus, temos que ter em mente o mesmo cuidado ao se alinhar com uma posição política.  Existe uma tendência em se fechar um pacote pronto de ateísmo: a religião é um mal, religiosos são menos inteligentes, a razão é um primado indisputável, uma vergonha por um passado religioso, uma vida que se resume a si mesma e assim por diante. Nada disso.

A questão das crenças é personalíssima, e pode ser influenciada por tantos fatores que não dá para sintetizar nem em um tratado, quanto mais em poucas mal digitadas linhas, e apartá-la da racionalidade não é um erro de conceito. Talvez seja até mesmo uma tendência humana, como se fosse uma predisposição genética em se defender do desespero que Montaigne menciona. Eu hoje não vejo necessidade em crer, mas não consigo ter certeza disso. Talvez não haja um deus, mas outra coisa lá fora, mesmo uma vida após a morte, em um formato que não consigamos sequer imaginar, da mesma forma que não podemos cravar o que se passa em um buraco negro. Filosoficamente, é uma suposição tão honesta e válida quanto qualquer outra. Mesmo que eu não creia nela. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Montaigne escreveu sobre tudo, mas sua posição cética e seu confronto com o fideísmo pode ser bem compreendida pelo ensaio abaixo:

MONTAIGNE, Michel. Apologia de Raymond Sebond. In: Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

E já que mencionei o filme, segue sua citação:

BARRETO, Bruno. O Casamento de Romeu e Julieta. Brasil: Disney Pictures, 2005. Cor. 93 min.

terça-feira, 7 de junho de 2022

O café filosófico do quotidiano – as sistematizações do pensamento eleático na visão de Melisso de Samos

(Arrumar as coisas não é só uma atividade prosaica. Melisso de Samos mostra isso)

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

A gota d’água foi um potinho de cal virgem, um humílimo e quase desprezível recipiente onde é armazenado um pozinho fino e esbranquiçado, meio puxado para o sujo. É aquele típico negócio que usamos para quase nada em nosso meio urbano, mas quem cozinha sabe para o que ele serve: criar uma casquinha nos pedaços de abóbora quando é feito aquele doce em pedaços. Duas horas de molho em uma tigela que os recubra de água é o suficiente para a magia da química ocorrer.

Mas por que gota d’água? É que para encontrar o malfazejo, foi preciso baixar dois armários cheios, compostos por mixes de panelas, batedeiras e comidas. Explico melhor. Os armários de casa são organizados na base do caos. Compras novas entram onde há uma vaga, sem muito critério divisivo. Isso faz, naturalmente, com que tudo o que é mais usado fique na frente, enquanto as raridades vão se afundando em meio ao turbilhão. É o que em Contabilidade se chama de LIFO - last in, first off. Em bom português, o último a entrar é o primeiro a sair. É uma prática vetada pelos melhores manuais e pela legislação, porque sobrevaloriza o estoque, mas estamos falando em desordem mobiliária, e não em finanças e arrecadações. Claro que há um fator de comodidade em se encaixar qualquer badulaque onde existir vaga, mas também um efeito colateral considerável: vencimento dos produtos que vão parar na rabeira. Tudo isso alimentado pelo desânimo de ficar procurando miudezas que foram parar atrás de caçarolas.

O pior é que a cal nem estava lá, mas em um armarinho do corredor de entrada, um daqueles acontecimentos que concluímos com um “ora vejam só”. Mas é nesses momentos que misturam cansaço com ódio que a patroa costuma encontrar forças. Ela baixou TODOS os armários da casa entre mesas, camas e poltronas e resolveu inspecionar item a item, para lhes dar ordem definitiva e proporcionar desânimo a este escriba. Botou-me para correr atrás de caixas e instalar prateleiras, de modo a multiplicar o espaço disponível. Deu lugar às coisas de fogão, aos alimentos e aos eletrodomésticos, de modo a isolá-los por completo uns dos outros. Avaliou um por um dos objetos para lhes dar armazenamento, destino ou livramento, jogando fora uma boa porção de coisas vencidas. Colou etiquetas nos organizadores, criou corredores para visualização dos artigos de fundo e ameaçou-me com greves de silêncio e outras coisas para convencer-me a dar manutenção ao novo formato.

Devo admitir que ficou bom, e casos como o da cal estão, ao menos temporariamente, resolvidos. Sua sanha organizatória não parou, sendo estendida neste exato momento para o guarda-roupas e cômoda do quarto. Se ela fica feliz assim, para mim está ótimo. Entretanto, essa narrativa toda chegou até aqui por um motivo muito simples. Dentre pimentas mofadas e canecas amassadas, surgiu um artefato que estava guardado sem uso, em estado de zero: um porta-filtro Melitta, o mais clássico dos métodos de preparo de café, somente superado pelos coadores de pano no quesito tradição.


Nunca que eu lembraria dele, mas uma vez reencontrado, puxei pela memória todo o contexto de seu surgimento. Foi numa compra corriqueira de mercado, quando a patroa o viu na cor favorita, esse roxo bandeiroso que vocês viram acima. Como eu já tinha outros métodos disponíveis, foi ficando no armário, e sendo empurrado cada vez mais para trás, quase vítima de preconceito. Mas não se trata disso. É um método dentre outros, com suas virtudes e seus defeitos, cuja principal característica é ser o mais popular de cá da Terra de Santa Cruz. Dele, é possível extrair um café tão bom quanto com qualquer outro. E é o que fiz tão logo o reencontrei, como se fosse uma rememoração da parábola do filho pródigo.


Não há muito o que comentar, a não ser que os cuidados básicos e evidentes devem ser tomados: água de boa qualidade, escaldar o filtro, aquecer o conjunto. De resto, um bom café em moagem média fará seu percurso até o pequeno furo contido na base. Este método, que segundo o site da empresa foi criado pela dona de casa Melitta Bentz, foi o primeiro a adotar um processo de filtragem por papel, que reduz a quantidade de resíduos quase a zero, e os métodos semelhantes nada mais são do que aperfeiçoamentos da ideia desta senhora, como a percolação em giro, os furos mais pronunciados (que evitam o amargor da bebida) ou outras traquitanas mais ou menos inventivas.


Nome do utensílio: porta-filtro Melitta

Tipo de técnica: percolação com filtragem por elemento de papel

Dificuldade: baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: introduz-se um filtro de papel de tamanho apropriado no porta-filtro, com dobra cruzada nas costuras, para depois realizar-se um escaldamento no mesmo. Deposita-se café moído em ponto médio no filtro. Despeja-se água suficiente apenas para umedecer todo o pó (blooming). Após cerca de trinta segundos, realizam-se ataques de modo a não ultrapassar o limite do filtro ou do porta-filtro.

Resíduos: nenhum

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: baixo-médio

Tomar um cafezinho passado na Melitta fez-me refletir sobre toda a arrumação que a patroa levou a cabo nos armários de casa, e como essa atitude por vezes é necessária em tudo o que fazemos, incluindo em nossas ideias. Como estou diante de um originador de diferentes métodos, passa-me pela cabeça os mecanismos de aperfeiçoamento que cada uma das evoluções traz para uma maneira de fazer as coisas, especialmente a noção de sistema e sistematização.

Quando a patroa retirou tudo dos armários, classificando cada um dos artigos de acordo com suas semelhanças e diferenças e alocando em espaço determinado, ela organizou um arranjo caótico em um sistema, ou seja, articulou um conjunto de regras onde antes elas não existiam. Praticamente em tudo é possível embutir sistematizações, e por vezes elas são vitais, como no caso caseiro ou na reunião de experiências que versam sobre um mesmo assunto, como nas revisões sistemáticas (ora vejam). Isso permite que as diversas correntes sejam unificadas em uma só, e como o espírito científico visa a aproximação com a verdade, podemos observar que uma visão limita e complementa as demais. Enfim, uma sistematização nada mais é do que transformar os objetos de um campo em um arranjo concertado, que é exatamente a definição de sistema.

Um exemplo do nosso dia-a-dia. Todas as vezes que você vai a um banco, uma lotérica, um guichê qualquer ou um caixa e encontra filas além do normal, temos o argumento clássico: o sistema está lento. Além de ser uma desculpa universal, significa que algo fora do escopo normal está acontecendo - excesso de usuários, condição imprevista, problemas de rede e etc. Um sistema de informática nada mais é do que um arranjo de instruções construído para processar determinadas informações. Estas informações soltas não tem significado algum. O que significa um número 50 fora de um contexto? 50 reais? 50 pessoas? 50 minutos? Por esse motivo, as informações precisam estar corretamente organizadas para produzir os efeitos desejados. Além das instruções, um sistema pressupõe dados de entrada e de saída, um meio por onde as informações transitarão e demais que-tais. Por esta razão, falhas em toda essa sistematização farão com que as coisas deem errado. Apreendido o problema, a correção será incorporada ao sistema e este será aperfeiçoado.

Sistematizações não são novidades. Elas sempre ocorreram no campo filosófico, algumas vezes de maneira espontânea e não registrada, outras vezes de maneira mais sistemática (rá, rá, rá). A melhor amostra que posso pensar agora é a sistematização do pensamento eleático, levada a cabo por Melisso de Samos, autor de mais um De Natura, tão constante entre os intelectuais gregos.

Vamos começar explicando a bagunça. Já falei exaustivamente sobre Parmênides nesta casa, tanto que nem vou relacionar aqui. Dentro do movimento dos pré-socráticos, sua concepção de busca das essências foi absolutamente original. Enquanto os seus contemporâneos procuravam a arché em um elemento que se apartasse da sensibilidade, mas que ainda assim fizesse parte da natureza cosmológica, o eleata a buscou em seu aspecto ontológico, aprofundando muito mais o nível de abstração desta pesquisa. Ou seja, enquanto Tales e sua turma tentavam deduzir o elemento que origina a natureza, Parmênides questiona o que é a natureza em si mesma. É muito mais fácil compreender que as coisas são feitas de água do que entender o que faz com que a água seja o que ela é, não é mesmo?

Então Parmênides estabeleceu que essa essência presente no cosmos é o Ser, como se a própria existência se identificasse com a essência. Um dos seus fundamentos é sua oposição ao nada, ou ao não-Ser. Quando Parmênides fala sobre esse não-Ser, está se referindo a um nada absoluto, que não pode ser detectado pelos sentidos e nem mesmo pensado. É só fazer um exercício mental para compreender: se tentarmos pensar no nada, não conseguiremos. Podemos pensar em um grande espaço vazio, mas o espaço não é o nada. Podemos pensar em um objeto que estava sobre uma mesa, mas agora não está mais lá; só que o passado existe, então o passado não é o nada. Podemos pensar até mesmo em uma completa ausência, mas ausência de que? Tudo o que pode ser pensado existe, até mesmo os seres imaginários, que se constituem de bricolagens de outros seres, da forma que ocorre com um dragão ou uma cuca. Mas existem nas mentes. Conclusão: o não-Ser, ou o nada, não podem ser pensados.

Embora muito complexo, o pensamento de Parmênides influenciou muita gente em seu tempo e à frente dele, com seu efeito mais evidente em Platão. A tese do Mundo das Ideias platônico diz que existe um lugar de onde parte o modelo de tudo o que existe. Desta forma, existe o coelho ideal, a cadeira ideal, a rua ideal, o ser humano ideal, que plasmam todos os seres do mundo sensível como cópias imperfeitas. O coelho, a cadeira, a rua e o ser humano existentes sempre tem diferenças com relação aos ideais, de forma a possuir imperfeições que não existem em seus originais. Agora, pense no seguinte: se você for a uma dessas feiras de design, verá cadeiras projetadas por arquitetos de interior como nunca foram vistas antes, verdadeiras estranhezas que somente um conceito de cadeira preexistente pode nos fazer reconhecê-las. Esse conceito já estabelecido é exatamente a cadeira perfeita que reside no mundo das ideias, a cadeira essencial e imutável de Parmênides. Como o pensamento platônico exerce influência até os dias de hoje, por tabela podemos dizer que com Parmênides acontece o mesmo.

Entretanto, é inevitável, segundo o princípio da entropia*, que a baderna aumente se não existir um princípio balizador. As ideias de Parmênides já traziam um antecedente de Xenófanes e levavam a derivações de Zenon e outros pensadores, que, estando esparsos pela Magna Grécia, fazia com que diferentes conclusões fossem possíveis. Sendo um conhecido estrategista militar, Melisso viajou por todo aquele mundo intelectual e recolheu de toda parte as evoluções da escola eleática. Além disso, acabou por produzir material próprio, onde corrige alguns pontos que entendia estarem obscuros ou não plenamente formulados. 

Entretanto, onde Melisso concorda e onde corrige as doutrinas eleáticas? Para saber, é preciso primeiramente listá-las. Vamos lá.

  1.       O Ser é incriado. Se houvesse algum momento em que ele surgisse, deveria surgir do não-Ser, o que é incoerente;
  2.        O Ser é incorruptível, porque, se o fosse, estaria destinado ao não-Ser, o que também é ilógico;
  3.        O Ser não tem passado e nem futuro, por dedução do que foi afirmado anteriormente. De fato, se tivesse passado, referir-se-ia a um momento em que não era, e, se tivesse futuro, em oposição, teríamos um momento em que ele não será. Daí que ele é um todo no tempo, eterno;
  4.        O Ser é imutável. Se não fosse, ele se mudaria para algo que ele não é, ou seja, se transformaria no não-Ser, o que não faz sentido. É também homogêneo. Se não fosse igualmente distribuído, haveria locais onde ele é “mais” Ser do que em outros, o que é absurdo;
  5.        O Ser é imóvel. Se ele se movesse, rumaria para um ponto onde não está agora, e em seu lugar restaria o vazio, que é o não-Ser, que, como vimos até agora, não existe;
  6.        O ser é completo e perfeito. Por ser completo, é preciso intuir que o Ser cabe dentro de seus próprios limites, e por ser perfeito, pensa-se que sua forma deve ser a que faculta sua melhor distribuição. Parmênides e seguidores entendem que a forma mais perfeita é a esfera, por ter todos os seus pontos aparentes equidistantes do centro, não apresentar arestas e não criar faces distintas;
  7.        O não-Ser é ininteligível. Estando identificado com o nada, e este não podendo ser pensado, conclui-se que o não-Ser não existe, nem em instâncias abstratas;
  8.        Qualquer sensação de mudança do Ser no não-Ser é uma ilusão dos sentidos. É uma questão de engano da opinião dada pelas aparências superficiais do que seria o verdadeiro Ser. Entretanto, é reconhecido o caminho das aparências plausíveis, porque é através delas que os fenômenos (as manifestações do Ser) podem ser expressos. Não é uma mera opinião, mas demonstração de como o cosmos nos aparece via sentidos.

No seu trabalho de sistematização, Melisso é bastante concorde com a maioria desses princípios. Entretanto, ele possui um certo espírito materialista que traz algumas discordâncias com alguns pontos. Ele se contrapõe à noção de finitude esboçada por Parmênides e ratificada pelos demais eleatas. De fato, a esfera pensada por esses intelectuais dava uma noção de fronteira que era incongruente com a impossibilidade do não-Ser. Se este “objeto” existisse, estaria forçosamente limitado com alguma coisa que não seria o Ser, restando unicamente o nada para sê-lo. Desta forma, o nosso sâmio reescreve os limites do Ser simplesmente derrubando-o: o Ser é infinito. Mais ainda: a própria arché ganha um novo conceito a partir daí, porque, não tendo limites, o Ser não pode ser múltiplo, porque ser mais de um significa ser, de certa forma, uma contradição à ilimitação. A arché é o Uno, na concepção de Melisso.

Como corolário, temos que o Ser não pode ser corpóreo (a esfera, mesmo a pensada pelos eleatas, não deixava de ser um corpo), porque ainda mais aí teríamos que ter a noção de limite. Um corpo, como bem mais tarde pensaria Descartes, é res extensa, ou seja, coisa com tamanho. Se Melisso nos diz que o Ser é ilimitado, não faz sentido em imaginá-lo com extensão, característica indisputável dos corpos. Qualquer figura que o represente, mesmo a esfera parmenidesiana, é inadequada.

A segunda contradição que Melisso encontra nas doutrinas eleáticas diz respeito ao campo da opinião, afirmando ser a mesma sempre inválida. De fato, uma opinião brota da percepção que temos dos sentidos. Se estes fossem capazes de apreender a realidade, levando em consideração a permanência e imobilidade do Ser, teríamos que, ao fitar um objeto qualquer, essa primeira impressão deveria ser eternamente a mesma. Entretanto, é cediço que percebemos alterações nas coisas. Hoje vemos uma planta, ela está florida. Amanhã, já tem suas pétalas enrugadas, e depois já começam a cair. Portanto, a percepção que temos das coisas vai na contramão daquilo que a razão reconhece como Ser autêntico. E qual dos dois, razão ou percepção, é capaz de atingir o Uno? Evidentemente a primeira. Mas as opiniões, mesmo as aparências plausíveis, se formam por via dos sentidos, que enxergam o Ser como algo variável. Diante do discurso racional, elas não têm validade alguma.

Notem como todo o pensamento dos eleatas é complexo, mas foi a sistematização engendrada por Melisso de Samos que permitiu que ele tivesse ao menos um encadeamento lógico sob parâmetros bem assentados. Se essa história de Ser parece mera coisa de lunático, é uma questão de parecer individual, mas não dá para dizer que as afirmações dos eleatas não podem ser baixadas a fórmulas lógicas bem construídas, e é daí que veio toda a sua força. Se você encaixar a definição de Ser em um deus, por exemplo, verificará que ela faz sentido, porque muitos de seus predicados são utilizados igualmente nas diferentes religiões.

Acho que não tenho mais nada para falar sobre pré-socráticos, mas, se aparecer nova inspiração, não se preocupem, cá estarei com minhas mal digitadas linhas. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

MELISSO. Sobre a Natureza ou Sobre o Ser in Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

*É só uma zoeira com um termo distorcido pelo discurso criacionista. Leia mais aqui.