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quinta-feira, 30 de julho de 2020

Sobre o sutil preconceito que mal percebemos tão próximo a nós

Olá!

#BlackLivesMatter

Às vezes o silêncio da noite é um santo remédio para nosso autoconhecimento. No transcurso destes insólitos tempos de pandemia, é bem comum não se cansar o corpo como se deve, por mais que se tente inventar algum tipo de exercício. O resultado é que tem vezes em que você acorda de madrugada e não dorme mais. Noite dessas aconteceu isso comigo, e, como estava frio à beça, fiquei com uma preguiça irremediável de levantar. Fiquei me revirando por um tempo, mas a indolência não melhorou, até que resolvi pegar o celular para ouvir um pouco de música, com os fones de ouvido regularmente instalados nos ouvidos, bem baixinho para não prejudicar os tímpanos e, principalmente, não provocar a cólera da consorte, no sono inocente de uma criança que tomou 10 mg de Valium.

Vou “folheando” as pastas disponíveis, tentando achar algo que já houvesse tempos que eu não ouvia. Saxon? Não, muito barulho. Yes? Meio devagar para uma madrugada. Epitaph? Status Quo? Green River? Blackfoot? Eskaton? Sister Rosetta Tharpe? Sister Rosetta!!! Boa, faz séculos que não a ouço.


Enfileiro as músicas de modo a formar aproximadamente uma hora de escuta, e acomodo-me ao travesseiro com o edredom à altura das orelhas, como se isso melhorasse a audição, e fico lá ouvindo absorvido àquela mistura inédita de blues com country, quase incrédulo de que aquele som era produzido nas antigas igrejas batistas do interior de Illinois, com o típico vozeirão das jazzistas negras, e uma guitarra afiadíssima. O que hoje chamamos de gospel não tem rigorosamente nada a ver com o que agita meus ossículos auditivos nesse momento. Mas a coisa não dura toda a hora prevista. A patroa, que não tinha tomado Valium porra nenhuma, acorda vociferando e obrigo-me a transformar a maratona em meio-fundo, desligando toda a parafernália e quedando-me insone. É aí que entra o silêncio.

Desprovido da distração, pude me pôr a pensar naquele rápido giro pela discografia da artista ianque. Todas as vezes que falamos na origem do megamovimento que virou o rock’n’roll a partir da década de 60, pensamos em antigos negros que tocavam blues, como Robert Johnson, T-Bone Walker ou Howlin’ Wolf. Isso é verdade, mas esses eram artistas em que se podem sentir raízes, mas que ainda estavam muito distantes do que viria a ser aquele ritmo agitado e dançante. Daí para Bill Halley e Elvis Presley há um salto muito grande, e é difícil compreender uma transição tão direta assim. Sister Rosetta é o mais perfeito elo entre ambos os estilos e só se entende o rock a partir dela. Podem pesquisar à vontade e, se houver, digam lá embaixo nos comentários. Não há músico que melhor expressa essa ponte.  Não há Chuck Berry, Little Richard, Gene Vincent ou Jerry Lee Lewis sem uma Sister Rosetta que os explique. Nenhum deles esteve antes por onde ela passou primeiro.

Mas o que ficou para a história não foi isso. Depois de sua morte, ficou guardada em esquecimento até 2007, quando alguém especialmente perspicaz tirou-a do ostracismo para colocá-la no Hall da Fama. Quer dizer, mais ou menos, né? Você que me lê, seja sincero consigo mesmo e só depois corra para o Google. Você conhece a artista em questão? Se sim, deve fazer parte de um grupo que não passa de 5% da humanidade, sendo generoso. Eu mesmo a conheço há uns quinze anos, mas encará-la com sua real originalidade é coisa mais recente, que ocorreu quase que por acaso. Estava um belo dia em algum afazer doméstico quando, perdida pelo meio da audição de uma série de músicas aleatórias, surge aquela canção pulsante, delineada por virtuosismo e energia. Um dos rocks mais n’roll que eu já tinha ouvido*. Com a atenção devidamente chamada, fui observar o ano da gravação. Década de 40! Isso é anterior a tudo o que convencionamos chamar de era rockeira, surgida em 1952 com Rock Around the Clock. E é isso que acontece. Sempre que falamos em “pai do rock”, não pensamos em uma mulher, afastada de um padrão de beleza dominante.  Além de tudo, negra. O “Pai do Rock” é branco, o avô também, e nada disso faz sentido quando mergulhamos na História.

A não ser que eu mesmo faça uma confissão. Enquanto o desfiar do rosário dos meus pensamentos notívagos tinha seu andamento, uma espécie de correlação entre a ausência de reconhecimento da pobre Sister e os acontecimentos dos últimos tempos começou a se desenrolar. Desde o dia 25 de maio do corrente ano, quando a morte do segurança e caminhoneiro negro George Floyd pôs em movimento uma das maiores ondas de protestos a nível mundial que se tem notícia, temos sido convidados a uma reflexão sobre nossa posição no mundo e como enxergamos o outro. O que fez com que esse caso específico desembocasse em seus efeitos é muito difícil de detectar. Afinal de contas, pensando com frieza e cinismo, é mais um caso entre milhares. Para mim, é a famosa gota d’água que transborda o balde, derrubada de seu teto pelo alcance que as redes sociais dão hoje em dia a todos os fatos, para o mal e para o bem. E a minha assunção é essa: construímos barreiras mentais para que alguns de nós sejamos invisíveis. Somente quando acontece algo que nos é estranho  é que o desassossego faz brotar o ser-diferente que emerge para nós, heideggerianamente. E é aí que posso me reconhecer racista. Esse estranhamento pode vir na forma de epifania, como no caso da madrugada insone ao som de Sister Rosetta, ou de alteridade, como em Floyd: o que seria se eu tivesse um joelho em meu pescoço?

E naquela mesma noite, ato contínuo, eu comecei a pensar em qual momento de nossas vidas tornamo-nos racistas, tentando recuar até minha lembrança mais primordial. Não foi um exercício fácil. Na minha infância, como em todo bom bairro operário, havia gente de toda procedência, com o amálgama comum da pobreza. Uns um pouco mais remediados, outros menos, todos acabavam se equilibrando na balança da vida, e isso criava uma certa identidade comum, uma espécie de cumplicidade, o que não evitava que, mesmo lá, houvessem olhares mais tortos para certas direções. Entretanto, era meio difícil perceber, na visão infantil, uma acepção tão contundente assim. Havia os filhos da dona Aparecida, pretos retintos e filhos do medo da noite como Macunaíma, que povoavam os mesmos quintais de todos nós outros. O mesmo acontecia com Luizinho e sua irmã Claudinha, recém-chegados do Nordeste, mesma procedência do Marquinhos e tantos outros. Mas houve um ponto claro, sim, que eu me recordei, e veio de minha casa. Que são normais as aprontações das crianças, isso todos sabemos. Entretanto, algumas transcendem a mera peraltice e passam para o campo da maldade, como puxar as tranças das meninas até elas caírem no chão. Quando eu fazia uma dessas, meu avô cravava: “judeuzinho”. Ok, pode até ser verdade que eu pareça com os judeus do Bom Retiro, com meu cabelo enrolado e barba espessa, mas não é certamente a essa minha característica que o velho atribuía-me o apelido, mas a uma suposta ruindade inerente à etnia então guerreada, além de não ser hebraico, nem de ascendência, nem de religião. Comecei a lembrar de muitas coisas parecidas, fazendo um inventário mais extenso do que eu gostaria, e que prefiro nem enumerar. Ou seja, não dá para passar o pano para as minhas pessoas queridas, nem para mim. E é isso mesmo: o preconceito pior não é aquele explícito, mas o sub-reptício, que nos pega sem que percebamos, como quando chamamos o lápis salmão de “cor de pele”.

Mas eu ainda pensei: pode ser uma tremenda bobagem tentar recuar no tempo em busca de uma origem do meu racismo individual, porque ele pode estar ainda mais remoto, ainda na fase da formação da primeiríssima linguagem, e, da mesma forma que ocorre comigo, acontece com tanta e tanta gente, a sociedade inteira. Inclusive das minorias. Enfim, se temos tanta dificuldade de reconhecer atos de racismo implícitos ao nosso redor, é porque eles estão para lá de arraigados, justamente por nascer junto conosco. E o efeito é mais devastador, evidentemente, em que está no polo fraco.

Uma das primeiras comprovações mais robustas de como as crianças negras são afetadas em suas autoimagens veio dos trabalhos do casal norte-americano Mamie Phipps e Kenneth Clark, raros psicólogos negros que começaram a elaborar suas teses na década de 1930, impulsionados pela segregação escolar inacreditavelmente comum nos Estados Unidos. A ideia essencial era aferir o nível de aceitação da própria raça e da identificação com bons valores em crianças negras na primeira infância, de modo a compreender como suas consciências eram moduladas pelo meio em que viviam.

Os experimentos eram muito simples. Para cada criança participante, eram apresentadas bonecas que tinham variações no tom de pele, sem que nenhuma roupa, além das fraldas, estivesse as recobrindo. Em seguida, eram feitos alguns questionamentos, como qual era a boneca mais bonita, qual tinha a melhor cor, com qual a criança mais gostaria de brincar e qual a mais parecida com a própria criança. Em seus resultados, a dura constatação é que as crianças, em grande maioria, atribuíam boas qualidades às bonecas brancas, e só a elas. Além disso, as crianças sabiam interpretar quais das bonecas representavam negros, mas quando a pergunta era sobre qual boneca era mais parecida com eles próprios, o nível de identificação caía bastante.

Percebem o que indica esta experiência? Duas coisas: que há toda uma construção social que leva as pessoas negras a atribuir valores negativos à sua própria condição e que isso é feito desde a mais tenra idade. Desde muito cedo, uma criança negra já arrasta consigo o peso de uma expectativa de bem-estar muito menor do que com relação a crianças brancas, o que pode levar a um complexo de inferioridade ou a um desvio de objetivos próprios, já que o melhor está no outro, e não em si mesmo. A criança negra já é inserida em um contexto onde ela não é protagonista, e se desvaloriza sem um porquê.
Isso gera insegurança, isso gera medo, isso gera ódio, escalando um após o outro. E é superpositivo que, a partir de uma desgraça como a de George Floyd, as pessoas passem a se mobilizar de verdade, como ocorre com a hashtag mencionada lá em cima, extraída de um movimento que já existia desde 2013, mas que só foi a relevo há pouco; com as diferentes passeatas que vêm ocorrendo ao redor do mundo, com o manifesto de gente famosa, negras ou brancas.

O ponto de viragem para o fim do racismo será indicado quando deixarmos de admirar o fato de que um negro atingiu sucesso. Maju Coutinho não é uma boa apresentadora negra, é uma boa apresentadora; Lewis Hamilton não é um bom piloto negro, é um bom piloto (o melhor, para mim); Silvio de Almeida e Djamila Riberio não são bons pensadores negros, mas bons pensadores; Taís Araújo e Sheron Menezes não são atrizes negras de sucesso, apenas atrizes de sucesso. Cor não pode ser um diferencial para que tenhamos maior ou menor admiração pela pessoa. Dá a impressão de que temos um fenômeno, e isso é prova do nosso racismo.

O céu já dealbava quando por fim peguei no sono novamente, e acordei disposto a escrever este texto, o que custou um bocado, dada a pouca inspiração que me bateu nos últimos dias, o que não deixa de ser uma espécie de alegoria para todo o momento que acabei de descrever. Tem horas em que nossa vontade só funciona na base do empurrão. Eu tenho que abordar o tema, todos devemos. Se for para o bem de mais pessoas que não nós mesmos, está de bom tamanho e é melhor que seja assim. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Existe um álbum ao vivo de Sister Rosetta que foi publicado em 1991, contendo gravações de um show ao vivo em 1960. É a melhor forma de sentir a pulsação de sua música e sua habilidade musical. Em tempo: pode parecer que não, mas nossa heroína tocava guitarra prá caralho.

THARPE, Rosetta. Live in 1960. New Orleans: Southland, 1991. 47 min.

No link abaixo, está contida a pesquisa de 1947 do casal Clark, que foi tão importante que acabou resultando na modificação da lei de admissão de estudantes negros em escolas públicas nos Estados Unidos.


E não se esqueçam que ainda estamos em plena pandemia. Procurem se manter em casa o máximo possível, e, se precisarem sair...
#UseMascara