(Vou detalhar um pouco mais a navalha de Ockham, que é muito comentada, mas pouco explicada)
Olá!
Já
tive a oportunidade de apresentar meu
cachorro
neste humilde espaço. Meu, não; de verdade, ele é da minha filha, mas é como se
fosse, principalmente na hora dos perrengues. E ele tem passado por um dos
brabos. Isso me colocou numa clínica veterinária nos últimos dias.
Enquanto
eu estava lá sentado, contendo o ímpeto do adoentado, porém ainda energético
vira-latas, escutei o bate-papo de uma das veterinárias com outro dos
consulentes, versando sobre as vantagens da utilização do óleo de ozônio no
tratamento de afecções cutâneas (justamente um dos malefícios do cliente que eu
trouxe). Minha espinha arrepiou do "coquis" ao cerebelo, e
provavelmente eu faria de conta que iria ao banheiro para fugir, mas a consulta
já estava paga, e não havia muito mais a fazer.
O
fato é que outra veterinária fez o atendimento. Observou as lesões, pediu exames
e agendou retorno para apurar a moléstia do pobre cão, recomendando alguns
medicamentos para o interregno entre ambas as visitas. Maliciosamente,
introduzi o tema do óleo, afirmando ter ouvido dizer de seus efeitos
miraculosos e se não era o caso de se fazer utilização. Ela me olhou com cara
reprovativa e afirmou ser melhor um spray de Rifocina, o que a coloca, para meu
gáudio e alívio, no campo dos médicos cooptados pela indústria farmacêutica que
tanto conspira contra a saúde pública e a economia popular. Em outras palavras,
uma daquelas pessoas que confia na ciência.
Lá
vem você com a mesma polêmica de sempre, dirá um imaginário interlocutor. É
verdade, já abordei muitas vezes este tema, e continuarei abordando. Não só
porque a ciência brota da filosofia, o que torna a temática correlata, mas
também, e principalmente, porque precisamos fazer aquilo que podemos para
combater a ignorância, seja ela qual for. Que, como se pode observar do pequeno
relato acima, não é privilégio de ninguém: nem do fazedor, nem do doutor.
Nós
somos povoados de incertezas. A ciência e a filosofia não chegam à verdade, mas
à probabilidade, à verossimilhança. A verdade, para ser bastante franco, não
existe. É simples constatar a falta de firmeza que ela tem. Qualquer critério que
adotemos trará problemas. Um argumento de autoridade, por exemplo, é
completamente falho. Não há como assegurar que um mentiroso contumaz não diga
algumas verdades, nem que a mais preciosa de todas as sapientes autoridades não
escorregue algumas vezes com a realidade, pelos mais diferentes motivos. Os
sentidos também se iludem, e os conhecimentos se atualizam. Portanto, o melhor
que temos é a aproximação, e não o alcance da verdade incontestável.
A
história da evolução científica é a história do aperfeiçoamento dos seus
métodos. Como o nascedouro de qualquer ideia é uma concatenação lógica, já a
partir daí é possível embutir limites no pensamento. É como quando queremos
achar explicações para aquelas coisas comezinhas, bem do dia-a-dia. Você quer
achar a coleira do seu cachorro, e ela não está no lugar habitual. Você vai
primeiramente procurar em outros cantos da casa, e não em cima do telhado. Isso
é normal, isso é lógico. E por quê? Porque há uma linha que te leva por um
caminho simples, que deve ser a primeira solução para um problema. Esse é um
atalho que facilita a sua vida, que te faz seguir pelas sendas mais óbvias.
Você só vai procurar caminhos mais espinhosos depois de esgotar os mais
simples. Além disso, achar a tal coleira embaixo do sofá não te trará novos
questionamentos, mas achá-la dentro do forno vai levantar novas questões. Essa
simplicidade na busca lança mão de uma técnica conhecida como navalha lógica.
Uma
navalha lógica é um "dispositivo" metodológico que elimina certas
qualidades de argumentos, de modo a delimitar adequadamente o tamanho de um
campo de estudo ou de ferramentas a serem utilizadas em determinada área. A
mais conhecida hoje em dia é o princípio da falseabilidade de Karl Popper, a
quem descrevi neste
texto.
Esta premissa diz que uma afirmação científica é aquela que pode ser provada
falsa, ou seja, pode ser colocada experimentalmente em uma situação em que é
provada errada. O dragão na garagem de Sagan e o bule interplanetário de
Russell são exemplos de afirmações que podem sofrer a ação da navalha da
infalseabilidade. Afirmações que não podem ser falseadas não estão no escopo da
Ciência.
Mas
a mais célebre de todas as navalhas lógicas é conhecida como Navalha de Ockham. Já dei uma palhinha
sobre ela neste
texto,
mas é preciso falar mais sobre ela, porque a maneira como surgiu é muito mais
sofisticada do seu enunciado pode fazer supor, porque ela faz parte de um
corpus que foge de uma mera disposição em praticar ciência de uma determinada
maneira.
A
primeira questão diz respeito a um cenário improvável. Guilherme de Ockham, o
pensador que pôs na pedra o princípio da navalha, é um frade franciscano
vivendo em plena Idade Média, quando a autoridade da igreja estava ainda na
crista da onda histórica, com consequências nada agradáveis aos seus
opositores. A parte mais conhecida da navalha fala no princípio da parcimônia,
do qual falaremos melhor mais tarde, mas desde já podemos pensar: como um
religioso pode desencaixar Deus de suas relações racionais com tanto conforto e
cara-de-pau?
A
resposta vem na forma de oposição ao pensamento de celebridades como Santo
Anselmo e
São Tomás
de Aquino,
cujo cerne filosófico está na conciliação entre fé e razão. Para o frei
Guilherme, esse é um erro crasso. A grande chave do pensamento dos filósofos
medievais era criar uma hierarquia entre fé e razão, com primazia da primeira.
Guilherme de Ockham coloca na mesa a seguinte premissa fundamental: Deus é
onipotente. Pergunte a qualquer religioso minimamente instruído e ele
concordará indisputavelmente com essa assertiva. Se Deus é onipotente, ele pode
tudo, não é mesmo? Ele pode inclusive subverter a lógica que reside por trás da
razão, e qualquer uso que queiramos fazer dela tem que levar isso em
consideração. Por esse motivo, não há como estabelecer uma hierarquia entre fé
e razão: elas são irreconciliáveis para um deus que pode tudo.
Esse
é o primeiro passo da aventura intelectual de Guilherme. Mas a coisa vai além.
Costumeiramente, ouvimos falar de sua navalha como um princípio metodológico,
mas ele é muito mais profundo que isso, porque vai até a raiz metafísica das
aplicações lógicas. Vamos ver isso no detalhe.
Uma
das maiores discussões da Idade Média diz
respeito à questão dos universais. Em brevíssimo resumo, um universal em
filosofia é uma característica comum dos diferentes entes de uma mesma espécie,
que lhe dá uma essência. Por exemplo, vemos diferentes jogadores de futebol
espalhados pelo mundo, cada um com sua peculiaridade: uns são mais baixos,
outros são mais fortes, alguns mais habilidosos, tem quem seja mais importante
taticamente e por aí vai. Olhados um por um, são todos diferentes entre si, mas
eles têm um ponto em comum - são todos jogadores de futebol. Essa coisa que os
unifica é o chamado universal, um conjunto de características que lhes é comum.
Em qualquer lugar do mundo, reconhecemos um jogador de futebol porque ele
carrega essa essência. A pergunta medieval era se existia algum lugar onde essa
essência perfeita existia de fato, não nos indivíduos jogadores de futebol, mas
em um local onde ela existisse em si mesma. Essa é a posição realista, que
parece estranha, mas que era defendida por gente do tamanho de Platão e Santo
Agostinho. Por outro lado, havia pensadores que viam o termo "jogador de
futebol" (nem existia futebol na época) como uma mera designação para
aqueles que praticavam o esporte vindo da Bretanha. A essência do jogador de
futebol residia em cada um dos indivíduos que encarnava esse papel, e não em um
mundo modelar que nosso universo sensível reproduzia. O que existe não é O
jogador de futebol, mas ESSE jogador de futebol, o indivíduo, sendo que o termo
era um mero designativo, um nome. Por isso, essa posição era conhecida como
nominalista.
A
aplicação de Ockham começa na discussão da metafísica aristotélica, que, como
sabemos, desemboca nas ideias de São Tomás e rega a doutrina cristã de então,
especialmente na visão de como Deus interage com os fenômenos universais. Frei
Guilherme é um nominalista, que reconhece como raciocínio válido aquele que
parte da observação de cada um dos fenômenos naturais. É através do indivíduo
que se parte para a generalização, e não o contrário, como amariam dizer os
realistas. Então essa coisa de essência que reside em um mundo à parte é, no
mínimo, inatingível pelo intelecto. Antecipando o pragmatismo moderno, se é
assim, nada tem a nos dizer.
Essa
proposição vai bater diretamente na teoria das causas de Aristóteles. Para o
estagirita mais famoso do universo, toda a realidade se articula através de um
sistema de causas, que vão determinar forma, matéria, origem e finalidade de
cada coisa. Eu já escrevi
sobre isso
no blog, por isso não vou repetir, mas Guilherme de Ockham põe em evidência
duas predisposições metafísicas que, segundo ele, são meros penduricalhos na
investigação científica. A causa eficiente é uma ilusão. Prefigurando o problema
da indução
de David Hume, ele nos ensina que a necessidade de causa e consequência é
enganosa, ou, no mínimo, não importa. Nós temos por habitualidade que um
fenômeno segue outro, que lhe dá origem, mas nem sempre essa assertiva é
razoável. Não há nenhuma implicação lógica em dizer que o Sol não nascerá no
dia seguinte. Temos essa convicção por todos os dias amanhecermos com os raios
de luz nos olhos, mas não há impedimento para que um dia isso não aconteça,
seja qual motivo for.
O
mesmo pode ser aplicado à causa final. Um princípio científico, no entender de frei
Guilherme, não deve propor uma finalidade para os fenômenos. Se ela existir,
vai para além da ciência. Um raio não cai do céu para partir a cabeça de um
incauto. Um raio cai porque houve um evento meteorológico que o produziu. Se
rachou o contribuinte no meio, azar. É cruel, mas a finalidade é uma
explicação a mais que precisa ser dada que praticamente inviabiliza uma teoria.
Notem
como várias arestas vão sendo aparadas para quem se propõe a investigar um
fenômeno qualquer. A proposta é, grosso modo, diminuir a quantidade de
penduricalhos necessários para formar hipóteses e dar um critério de escolha de
pesquisas. Não é bem a questão de ser simples, mas de reunir menos entidades.
Quando colocamos aquelas famosas formulações lógicas, que começam com p e vão
caminhando para o final do alfabeto, o ideal é que tenha menos letras
possíveis.
A
navalha de Ockham atua no princípio da
economia da razão. Como se fosse a água colocada no filtro do café, a
realidade procurará o caminho mais intuitivo, o mais fácil possível de se fazer
em seu caminho rumo à xícara. Ela não fugirá dos efeitos da gravidade, e só
desviará da linha reta onde estiver obstaculizada. A razão é a capacidade
mental de refletir a natureza da realidade, e ela é "construída" de
modo a seguir exatamente essa tendência.
Outro
postulado que a navalha atende é o princípio
da parcimônia. Sua explicação, por si só, já remete à própria operação
lógica: cada entidade colocada em uma relação é um fator a mais a ser provado e
considerado, ou seja, é uma chance a mais de erro. Quanto menos entidades
existirem numa relação, menores serão as chances de que uma delas desmonte a
tese central. Percebem como a tese do freizinho não é uma mera imposição
metodológica, como se fosse a arbitragem das fontes da ABNT? Portanto, o
princípio básico é a simplicidade, representada pela maior limitação possível
aos componentes que atuam em uma teoria. Se várias hipóteses explicam
igualmente bem um mesmo fenômeno, devemos escolher aquela que possui o menor
número de premissas.
Um
exemplo bastante simples diz respeito ao modo com o qual animais terrestres
chegam a ilhas isoladas nos oceanos. Pássaros chegam voando, é óbvio, mas há
roedores e lagartos que não poderiam chegar da mesma forma, causando aquela
estranheza que nós vamos aproveitar agora. Quais são as hipóteses cabíveis no
caso? Vamos colocar três. Uma diria que Deus criou essas espécies diretamente
no lugar em que elas se encontram. A segunda imagina que estão lá dispersos por
ação da panspermia cósmica, e a última pensa que para lá migraram através das
balsas de vegetação.
Na
primeira, temos uma resposta com aparência de simplicidade: vontade divina. Mas
daí surge uma série de implicâncias. A primeira é saber qual dos mais de três
mil deuses do panteão de mais de três mil religiões existentes neste mundão de
meu deus. Daí, vamos para as motivações: porque habitar a ilha com espécies
semelhantes às existentes em outras partes do mundo?
Na
hipótese panspérmica, temos explicado porque a ilha está populada: minúsculas
vidas latentes chegaram à Terra através de meteoros, meteoritos e outros
objetos espaciais que entraram na atmosfera. Mas isso só explica o modo como
chegaram lá. Não diz de que parte do universo surgiu a forma de vida original,
nem como resistiu à viagem espacial necessária e o mais básico de tudo: de onde
vieram?
Já
a balsa de vegetação precisa de um amontoado de restos de plantas, capaz de se
desprender do canto onde repousa e com resistência suficiente para carregar
insetos, lagartixas ou até pequenos mamíferos por um mar que esteja
relativamente manso, porém com correnteza bastante para transportar seus
involuntários marinheiros para longas distâncias.
Qual
das três explicações envolvem menos entidades? Qual responde melhor à
observação e à reprodução? A teoria da balsa, de repente, parece a mais idiota.
Mas ora vejam: ela é testemunhável. Embora não nos dirijamos até a praia com o
intuito de ficar vendo bichinhos desesperados ao perceberem se afastar da
costa, o fato é que estão lá, sem motivos, nem objetivos. São visíveis e
experienciáveis, sem a necessidade de terceiros ad
hoc, como a divindade e o extraterrestre, que são introduzidos na tese para
trazer explicações desnecessárias, cujo propósito foge daquele fenômeno: provar
a influência de deus nos fundamentos das espécies ou teorizar a existência de
vida extraterrestre. A navalha, neste caso, apontaria que é preciso primeiro
provar que a hipótese das balsas é errada, para depois partir para outra.
Há
um cuidado a se tomar, no entanto. Sempre que não compreendemos adequadamente
uma situação que se coloca à nossa frente, tendemos a simplificar o que vai por
trás. Um grande exemplo do perigo do reducionismo está no mundo da informática.
Todas as vezes que vamos validar um sistema, invariavelmente vem a demanda do
botãozinho. Ah, coloca um botãozinho pra fazer isso, um botãozinho pra fazer
aquilo. Quando você apresenta o orçamento, o cliente se revolta: mas é só um
botãozinho, que preço é esse? Que prazo é esse? Não se percebe as ações que o clique
no botãozinho disparará. No extremo, pode até ser um foguete rumo à Lua, porque
tudo fica sintetizado naquilo que é aparente. Então a navalha de Ockham não
pode ser utilizada como uma armadilha do reducionismo. O que ela preconiza não
é a simplicidade indiscutível. Muitas hipóteses simples são insuficientes.
Pegue a descrição da cascata de coagulação sanguínea e perceba o quanto ela é
complicada. É uma longa cadeia de fatores que são disparados um após o outro,
sendo que um somente acontece após outro acontecer - uma enzima estimula uma
proteína que se encontra inativa e que transforma certas substâncias em outras,
por três vias possíveis. Há inúmeras explicações mais simples, mas que se
provaram incorretas. Portanto, decorem, crianças. A simplicidade que a navalha
de Ockham preconiza não é absoluta, mas um guia de conduta na pesquisa.
Eis
então, meus escassos leitores, como o desenvolvimento do pensamento filosófico
é cheio de nuances. A navalha de Ockham normalmente se apresenta nos compêndios
como um postulado metodológico para a pesquisa filosófico-cientifica, mas seu
nascedouro não é uma mera convenção, e sim um desenvolvimento que parte da
metafísica mais consagrada de sua época. É assim que a filosofia deve ser: uma
ferramenta da ousadia. Bons ventos a todos!
Recomendação
de leitura:
Não
tem muita coisa em português, mas este livro é suficiente.
OCKHAM,
Guilherme de. Lógica dos termos.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.