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domingo, 31 de julho de 2022

Sobre a navalha de Ockham, que não é uma mera implicância metodológica

(Vou detalhar um pouco mais a navalha de Ockham, que é muito comentada, mas pouco explicada) 

Olá!

Já tive a oportunidade de apresentar meu cachorro neste humilde espaço. Meu, não; de verdade, ele é da minha filha, mas é como se fosse, principalmente na hora dos perrengues. E ele tem passado por um dos brabos. Isso me colocou numa clínica veterinária nos últimos dias.

Enquanto eu estava lá sentado, contendo o ímpeto do adoentado, porém ainda energético vira-latas, escutei o bate-papo de uma das veterinárias com outro dos consulentes, versando sobre as vantagens da utilização do óleo de ozônio no tratamento de afecções cutâneas (justamente um dos malefícios do cliente que eu trouxe). Minha espinha arrepiou do "coquis" ao cerebelo, e provavelmente eu faria de conta que iria ao banheiro para fugir, mas a consulta já estava paga, e não havia muito mais a fazer.

O fato é que outra veterinária fez o atendimento. Observou as lesões, pediu exames e agendou retorno para apurar a moléstia do pobre cão, recomendando alguns medicamentos para o interregno entre ambas as visitas. Maliciosamente, introduzi o tema do óleo, afirmando ter ouvido dizer de seus efeitos miraculosos e se não era o caso de se fazer utilização. Ela me olhou com cara reprovativa e afirmou ser melhor um spray de Rifocina, o que a coloca, para meu gáudio e alívio, no campo dos médicos cooptados pela indústria farmacêutica que tanto conspira contra a saúde pública e a economia popular. Em outras palavras, uma daquelas pessoas que confia na ciência.

Lá vem você com a mesma polêmica de sempre, dirá um imaginário interlocutor. É verdade, já abordei muitas vezes este tema, e continuarei abordando. Não só porque a ciência brota da filosofia, o que torna a temática correlata, mas também, e principalmente, porque precisamos fazer aquilo que podemos para combater a ignorância, seja ela qual for. Que, como se pode observar do pequeno relato acima, não é privilégio de ninguém: nem do fazedor, nem do doutor.

Nós somos povoados de incertezas. A ciência e a filosofia não chegam à verdade, mas à probabilidade, à verossimilhança. A verdade, para ser bastante franco, não existe. É simples constatar a falta de firmeza que ela tem. Qualquer critério que adotemos trará problemas. Um argumento de autoridade, por exemplo, é completamente falho. Não há como assegurar que um mentiroso contumaz não diga algumas verdades, nem que a mais preciosa de todas as sapientes autoridades não escorregue algumas vezes com a realidade, pelos mais diferentes motivos. Os sentidos também se iludem, e os conhecimentos se atualizam. Portanto, o melhor que temos é a aproximação, e não o alcance da verdade incontestável.

A história da evolução científica é a história do aperfeiçoamento dos seus métodos. Como o nascedouro de qualquer ideia é uma concatenação lógica, já a partir daí é possível embutir limites no pensamento. É como quando queremos achar explicações para aquelas coisas comezinhas, bem do dia-a-dia. Você quer achar a coleira do seu cachorro, e ela não está no lugar habitual. Você vai primeiramente procurar em outros cantos da casa, e não em cima do telhado. Isso é normal, isso é lógico. E por quê? Porque há uma linha que te leva por um caminho simples, que deve ser a primeira solução para um problema. Esse é um atalho que facilita a sua vida, que te faz seguir pelas sendas mais óbvias. Você só vai procurar caminhos mais espinhosos depois de esgotar os mais simples. Além disso, achar a tal coleira embaixo do sofá não te trará novos questionamentos, mas achá-la dentro do forno vai levantar novas questões. Essa simplicidade na busca lança mão de uma técnica conhecida como navalha lógica.

Uma navalha lógica é um "dispositivo" metodológico que elimina certas qualidades de argumentos, de modo a delimitar adequadamente o tamanho de um campo de estudo ou de ferramentas a serem utilizadas em determinada área. A mais conhecida hoje em dia é o princípio da falseabilidade de Karl Popper, a quem descrevi neste texto. Esta premissa diz que uma afirmação científica é aquela que pode ser provada falsa, ou seja, pode ser colocada experimentalmente em uma situação em que é provada errada. O dragão na garagem de Sagan e o bule interplanetário de Russell são exemplos de afirmações que podem sofrer a ação da navalha da infalseabilidade. Afirmações que não podem ser falseadas não estão no escopo da Ciência.

Mas a mais célebre de todas as navalhas lógicas é conhecida como Navalha de Ockham. Já dei uma palhinha sobre ela neste texto, mas é preciso falar mais sobre ela, porque a maneira como surgiu é muito mais sofisticada do seu enunciado pode fazer supor, porque ela faz parte de um corpus que foge de uma mera disposição em praticar ciência de uma determinada maneira.

A primeira questão diz respeito a um cenário improvável. Guilherme de Ockham, o pensador que pôs na pedra o princípio da navalha, é um frade franciscano vivendo em plena Idade Média, quando a autoridade da igreja estava ainda na crista da onda histórica, com consequências nada agradáveis aos seus opositores. A parte mais conhecida da navalha fala no princípio da parcimônia, do qual falaremos melhor mais tarde, mas desde já podemos pensar: como um religioso pode desencaixar Deus de suas relações racionais com tanto conforto e cara-de-pau?

A resposta vem na forma de oposição ao pensamento de celebridades como Santo Anselmo e São Tomás de Aquino, cujo cerne filosófico está na conciliação entre fé e razão. Para o frei Guilherme, esse é um erro crasso. A grande chave do pensamento dos filósofos medievais era criar uma hierarquia entre fé e razão, com primazia da primeira. Guilherme de Ockham coloca na mesa a seguinte premissa fundamental: Deus é onipotente. Pergunte a qualquer religioso minimamente instruído e ele concordará indisputavelmente com essa assertiva. Se Deus é onipotente, ele pode tudo, não é mesmo? Ele pode inclusive subverter a lógica que reside por trás da razão, e qualquer uso que queiramos fazer dela tem que levar isso em consideração. Por esse motivo, não há como estabelecer uma hierarquia entre fé e razão: elas são irreconciliáveis para um deus que pode tudo.

Esse é o primeiro passo da aventura intelectual de Guilherme. Mas a coisa vai além. Costumeiramente, ouvimos falar de sua navalha como um princípio metodológico, mas ele é muito mais profundo que isso, porque vai até a raiz metafísica das aplicações lógicas. Vamos ver isso no detalhe.

Uma das maiores discussões da Idade Média diz respeito à questão dos universais. Em brevíssimo resumo, um universal em filosofia é uma característica comum dos diferentes entes de uma mesma espécie, que lhe dá uma essência. Por exemplo, vemos diferentes jogadores de futebol espalhados pelo mundo, cada um com sua peculiaridade: uns são mais baixos, outros são mais fortes, alguns mais habilidosos, tem quem seja mais importante taticamente e por aí vai. Olhados um por um, são todos diferentes entre si, mas eles têm um ponto em comum - são todos jogadores de futebol. Essa coisa que os unifica é o chamado universal, um conjunto de características que lhes é comum. Em qualquer lugar do mundo, reconhecemos um jogador de futebol porque ele carrega essa essência. A pergunta medieval era se existia algum lugar onde essa essência perfeita existia de fato, não nos indivíduos jogadores de futebol, mas em um local onde ela existisse em si mesma. Essa é a posição realista, que parece estranha, mas que era defendida por gente do tamanho de Platão e Santo Agostinho. Por outro lado, havia pensadores que viam o termo "jogador de futebol" (nem existia futebol na época) como uma mera designação para aqueles que praticavam o esporte vindo da Bretanha. A essência do jogador de futebol residia em cada um dos indivíduos que encarnava esse papel, e não em um mundo modelar que nosso universo sensível reproduzia. O que existe não é O jogador de futebol, mas ESSE jogador de futebol, o indivíduo, sendo que o termo era um mero designativo, um nome. Por isso, essa posição era conhecida como nominalista.

A aplicação de Ockham começa na discussão da metafísica aristotélica, que, como sabemos, desemboca nas ideias de São Tomás e rega a doutrina cristã de então, especialmente na visão de como Deus interage com os fenômenos universais. Frei Guilherme é um nominalista, que reconhece como raciocínio válido aquele que parte da observação de cada um dos fenômenos naturais. É através do indivíduo que se parte para a generalização, e não o contrário, como amariam dizer os realistas. Então essa coisa de essência que reside em um mundo à parte é, no mínimo, inatingível pelo intelecto. Antecipando o pragmatismo moderno, se é assim, nada tem a nos dizer.

Essa proposição vai bater diretamente na teoria das causas de Aristóteles. Para o estagirita mais famoso do universo, toda a realidade se articula através de um sistema de causas, que vão determinar forma, matéria, origem e finalidade de cada coisa. Eu já escrevi sobre isso no blog, por isso não vou repetir, mas Guilherme de Ockham põe em evidência duas predisposições metafísicas que, segundo ele, são meros penduricalhos na investigação científica. A causa eficiente é uma ilusão. Prefigurando o problema da indução de David Hume, ele nos ensina que a necessidade de causa e consequência é enganosa, ou, no mínimo, não importa. Nós temos por habitualidade que um fenômeno segue outro, que lhe dá origem, mas nem sempre essa assertiva é razoável. Não há nenhuma implicação lógica em dizer que o Sol não nascerá no dia seguinte. Temos essa convicção por todos os dias amanhecermos com os raios de luz nos olhos, mas não há impedimento para que um dia isso não aconteça, seja qual motivo for.

O mesmo pode ser aplicado à causa final. Um princípio científico, no entender de frei Guilherme, não deve propor uma finalidade para os fenômenos. Se ela existir, vai para além da ciência. Um raio não cai do céu para partir a cabeça de um incauto. Um raio cai porque houve um evento meteorológico que o produziu. Se rachou o contribuinte no meio, azar. É cruel, mas a finalidade é uma explicação a mais que precisa ser dada que praticamente inviabiliza uma teoria.

Notem como várias arestas vão sendo aparadas para quem se propõe a investigar um fenômeno qualquer. A proposta é, grosso modo, diminuir a quantidade de penduricalhos necessários para formar hipóteses e dar um critério de escolha de pesquisas. Não é bem a questão de ser simples, mas de reunir menos entidades. Quando colocamos aquelas famosas formulações lógicas, que começam com p e vão caminhando para o final do alfabeto, o ideal é que tenha menos letras possíveis.

A navalha de Ockham atua no princípio da economia da razão. Como se fosse a água colocada no filtro do café, a realidade procurará o caminho mais intuitivo, o mais fácil possível de se fazer em seu caminho rumo à xícara. Ela não fugirá dos efeitos da gravidade, e só desviará da linha reta onde estiver obstaculizada. A razão é a capacidade mental de refletir a natureza da realidade, e ela é "construída" de modo a seguir exatamente essa tendência.

Outro postulado que a navalha atende é o princípio da parcimônia. Sua explicação, por si só, já remete à própria operação lógica: cada entidade colocada em uma relação é um fator a mais a ser provado e considerado, ou seja, é uma chance a mais de erro. Quanto menos entidades existirem numa relação, menores serão as chances de que uma delas desmonte a tese central. Percebem como a tese do freizinho não é uma mera imposição metodológica, como se fosse a arbitragem das fontes da ABNT? Portanto, o princípio básico é a simplicidade, representada pela maior limitação possível aos componentes que atuam em uma teoria. Se várias hipóteses explicam igualmente bem um mesmo fenômeno, devemos escolher aquela que possui o menor número de premissas. 

Um exemplo bastante simples diz respeito ao modo com o qual animais terrestres chegam a ilhas isoladas nos oceanos. Pássaros chegam voando, é óbvio, mas há roedores e lagartos que não poderiam chegar da mesma forma, causando aquela estranheza que nós vamos aproveitar agora. Quais são as hipóteses cabíveis no caso? Vamos colocar três. Uma diria que Deus criou essas espécies diretamente no lugar em que elas se encontram. A segunda imagina que estão lá dispersos por ação da panspermia cósmica, e a última pensa que para lá migraram através das balsas de vegetação.

Na primeira, temos uma resposta com aparência de simplicidade: vontade divina. Mas daí surge uma série de implicâncias. A primeira é saber qual dos mais de três mil deuses do panteão de mais de três mil religiões existentes neste mundão de meu deus. Daí, vamos para as motivações: porque habitar a ilha com espécies semelhantes às existentes em outras partes do mundo? 

Na hipótese panspérmica, temos explicado porque a ilha está populada: minúsculas vidas latentes chegaram à Terra através de meteoros, meteoritos e outros objetos espaciais que entraram na atmosfera. Mas isso só explica o modo como chegaram lá. Não diz de que parte do universo surgiu a forma de vida original, nem como resistiu à viagem espacial necessária e o mais básico de tudo: de onde vieram?

Já a balsa de vegetação precisa de um amontoado de restos de plantas, capaz de se desprender do canto onde repousa e com resistência suficiente para carregar insetos, lagartixas ou até pequenos mamíferos por um mar que esteja relativamente manso, porém com correnteza bastante para transportar seus involuntários marinheiros para longas distâncias.

Qual das três explicações envolvem menos entidades? Qual responde melhor à observação e à reprodução? A teoria da balsa, de repente, parece a mais idiota. Mas ora vejam: ela é testemunhável. Embora não nos dirijamos até a praia com o intuito de ficar vendo bichinhos desesperados ao perceberem se afastar da costa, o fato é que estão lá, sem motivos, nem objetivos. São visíveis e experienciáveis, sem a necessidade de terceiros ad hoc, como a divindade e o extraterrestre, que são introduzidos na tese para trazer explicações desnecessárias, cujo propósito foge daquele fenômeno: provar a influência de deus nos fundamentos das espécies ou teorizar a existência de vida extraterrestre. A navalha, neste caso, apontaria que é preciso primeiro provar que a hipótese das balsas é errada, para depois partir para outra. 

Há um cuidado a se tomar, no entanto. Sempre que não compreendemos adequadamente uma situação que se coloca à nossa frente, tendemos a simplificar o que vai por trás. Um grande exemplo do perigo do reducionismo está no mundo da informática. Todas as vezes que vamos validar um sistema, invariavelmente vem a demanda do botãozinho. Ah, coloca um botãozinho pra fazer isso, um botãozinho pra fazer aquilo. Quando você apresenta o orçamento, o cliente se revolta: mas é só um botãozinho, que preço é esse? Que prazo é esse? Não se percebe as ações que o clique no botãozinho disparará. No extremo, pode até ser um foguete rumo à Lua, porque tudo fica sintetizado naquilo que é aparente. Então a navalha de Ockham não pode ser utilizada como uma armadilha do reducionismo. O que ela preconiza não é a simplicidade indiscutível. Muitas hipóteses simples são insuficientes. Pegue a descrição da cascata de coagulação sanguínea e perceba o quanto ela é complicada. É uma longa cadeia de fatores que são disparados um após o outro, sendo que um somente acontece após outro acontecer - uma enzima estimula uma proteína que se encontra inativa e que transforma certas substâncias em outras, por três vias possíveis. Há inúmeras explicações mais simples, mas que se provaram incorretas. Portanto, decorem, crianças. A simplicidade que a navalha de Ockham preconiza não é absoluta, mas um guia de conduta na pesquisa. 

Eis então, meus escassos leitores, como o desenvolvimento do pensamento filosófico é cheio de nuances. A navalha de Ockham normalmente se apresenta nos compêndios como um postulado metodológico para a pesquisa filosófico-cientifica, mas seu nascedouro não é uma mera convenção, e sim um desenvolvimento que parte da metafísica mais consagrada de sua época. É assim que a filosofia deve ser: uma ferramenta da ousadia. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tem muita coisa em português, mas este livro é suficiente.

OCKHAM, Guilherme de. Lógica dos termos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

O café filosófico do quotidiano - Dos aromas aos fundamentos da realidade

(O vaporzinho de café é, basicamente, ar. Algo tão simples pode dar fundamento a tudo o que existe?)

Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio. Nós mesmos somos e não somos.

Olá!

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O brasileiro se considera o habitante da terra do café, um dos poucos orgulhos nacionais. Não é, pelo menos como origem, como já contei para vocês neste texto, mas, se contarmos a quantidade de produção, aí sim, estamos por cima da sacaria. Não é nem o caso de se fazer aquela velha discussão da qualidade que vai para o exterior, e da zurrapa estapafúrdia que nos resta, até porque há ótimos cafés que ficam em Pindorama, bem mais caros, é bom que se diga. Mas é um tal de prensa francesa, cafeteira italiana, filtro japonês, suporte americano, que nem parece que vamos além da velha (e válida) calcinha da véia. Mas é um engano, para nossa alegria. Há alguns métodos bastante interessantes produzidos por aqui, trabalhados com seriedade para obter o melhor de nossos melhores grãos. É o caso do porta-filtro Koar.


Ele é fabricado em vários materiais, mas o que eu tenho aqui em casa é um de cerâmica, trabalhado em fornos de alta temperatura como os produtos fabricados em Cunha. É um método que vem recebendo cada vez mais consideração, entrando como modalidade nos concursos de baristas. Há um bistrô em Taubaté chamado Fryda Café, que não me patrocina, mas que recomendo, cuja principal especialidade é exatamente o artefato tupiniquim, que já lhe rendeu prêmios.


A intenção do Koar não é só ser bonito. A lógica por trás de sua manufatura está no formato serrilhado do cone, para evitar que o filtro fique colado em suas paredes, mesmo quando é escaldado.


Isso faz com que o método tenha duas características singulares. A primeira é possibilitar um by-pass para quem gosta de um café mais aguadinho (carioca, como se diz), sem a necessidade de se adicionar água depois do processo, bastando despejá-la em uma das ranhuras do utensílio.


A segunda, e mais decisiva, é a aeração que o sistema proporciona, já que o ar não está presente apenas pelo percurso da água no próprio pó, mas nas laterais do cone de passagem.


Para quem trata o café com seriedade, sabe que é necessário fazer uma pré-infusão antes da completa percolação. É o que a gente chama de blooming, palavra inglesa que significa algo como “florescer”, e corresponde àquele primeiro contato com a água que libera os aromas mais impactantes do café. No Koar (que não me patrocina também), é quase um estado da arte. A aeração faz uma crema que não é em qualquer lugar que conseguimos.



Nome do utensílio: porta-filtro de cerâmica

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: baixa

Espessura do pó: média

Dinâmica: o pó é despejado em um filtro já saturado com água quente (esta saturação precisa ser lenta para evitar que o filtro cole nas paredes do utensílio). Realiza-se uma pré-infusão de trinta segundos, para depois despejar o restante da água em três ataques.

Resíduos: Nenhum

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: médio

São eflúvios, diria um poeta, aquelas sutis emanações que acariciam nossos sentidos. Mesmo quando não são visíveis, são ativadores da nossa percepção mais profunda, aquela ligada ao prazer e ao bem-estar.

Neste pequeno planetinha azul, esférico até onde eu sei, os melhores laboratórios não conseguem reproduzir o vácuo quase absoluto que existe em certos rincões deste universo. É muito estranha a sensação de que não há molécula de nada por milhões e milhões de quilômetros, um vazio tão completo que foge à nossa limitada capacidade de entendimento, na nossa cabecinha descontínua. Especialmente pelo fato de que, por qualquer parte que possamos pensar, o vazio não é de fato vazio. Um quarto fechado, uma garrafa tapada, uma câmara vedada, qualquer uma dessas representações são símbolos de vazio, mas que contém algo de material: o mais comum dos fluidos, o mais presente dos gases: o ar. Se pensarmos em uma lufada de café nas narinas, o que realmente ativa nossos sentidos é uma milésima parte da nuvenzinha. O que mais há é ar mesmo.

Excluídas as metrópoles mais poluídas e as florestas mais devastadas, pensamos no ar como algo que não tem cor, não tem cheiro, não tem gosto. Podemos notá-lo pelo tato ou pela audição, mas mesmo assim sob condições especiais: um vento que se esfrega nas vidraças dos edifícios, uma respirada mais forte na hora agá do… você sabe do que. Só que há tal habitualidade que não nos tocamos da existência do ar, e é com isso que os exercícios de meditação dos orientais trabalham - sinta o ar que penetra nas suas narinas.

Os gregos conjuminavam essas coisas, assim como nós fazemos ainda hoje. A diferença é que temos anemômetros e detectores que permitem saber da existência dos ares por toda parte, enquanto eles usavam a massa cinzenta e toda sua capacidade lógica. Eles se punham a deduzir as coisas sem ter nenhum instrumento à mão, e o faziam não só com uma precisão impressionante, mas com uma elegância quase lírica.

Os primeiros registros dessa aventura vêm de mais de 2500 anos atrás, na região da Jônia, mais especificamente da cidade de Mileto. É verdade que hoje esta cidade fica na Turquia, mas na época pertencia à Magna Grécia que imbuía toda a região com sua cultura. De lá, temos a aurora da coruja de Minerva e sua tríade inicial é composta por Tales, Anaximandro e Anaxímenes, sendo que já tratei mais aprofundadamente dos dois primeiros. Eu não tencionava mais tratar do tema da arché, porque eu mesmo já estou com gastura de tanto falar sobre origens da Filosofia e das coisas do cosmos, mas eu estava em dívida com a última perna do tripé e vou pagá-la agora. Sentem-se e acompanhem, será interessante.

Pensar a arché é transpor a linha que existe entre o que vemos e o que está além dos nossos sentidos. Evidentemente, podemos atribuir os fundamentos da realidade aos deuses, mas desde logo havia gente que se incomodava com soluções fáceis e conformistas, sem respaldo nas experiências que todos podem obter. Percebam, no entanto, que os primeiros filósofos não excluíam o componente metafísico da parada, mas procuravam dados da realidade para responder à pergunta: de que são feitas todas as coisas?

Os três milésios tinham uma hierarquia acadêmica entre si. Tales foi mestre de Anaximandro, que, por sua vez, foi preceptor de Anaxímenes. Isso não impediu que cada um tivesse sua própria concepção sobre os elementos primordiais. O que há de comum: existe um elemento que é subjacente a toda a realidade, que origina todas as coisas, que lhes dá sustentação e para o qual tudo retorna após seu ciclo de existência, independentemente de se tratar de seres vivos ou não. Enfim, há um monismo que lhes põe em acordo: a natureza é redutível a um único elemento. Agora, com relação a qual seria esse elemento, temos discussões. Tales vê que se trata da água, um elemento natural e material. Anaximandro dá sofisticação a ele, e pensa que a própria água tem um substrato, ainda material, mas extremamente mais plástico e indefinido, a quem dá o nome de ápeiron. Já Anaxímenes volta a pensar em um elemento detectável no universo material, mas entende que o ar tem mais predicados para ser esse elemento.

Talvez a proposta do ápeiron de Anaximandro fosse impalpável demais. Uma substância que preenchia todos os espaços, que podia tomar a forma de qualquer elemento e que se estendia do microscópico ao infinito ultrapassava as barreiras do empírico para ser aceita sem saltos lógicos. Entretanto, Anaxímenes aproveita certas características para aplicar ao seu ar, que não é uma mera substituição da água talesiana.

De fato, há algumas semelhanças entre água e ar, como a unicidade da substância, mas o ar de Anaxímenes pode atingir tal sutileza que abarca até mesmo o mundo espiritual. Para ele, a alma é composta por um ar de espessura tão fina que foge da possibilidade de percepção tátil. A prova de que as almas se compõem de ar vem do fato de que respiramos, e enquanto fazemos isso alimentamo-las do sopro que lhes é necessário. Quando um corpo morre, o primeiro efeito é a parada da respiração, que deixa de alimentar a alma pela sua extinção, e é o que chamamos de morte. Todo o processo que vai após isso é um retorno das diversas matérias ao princípio fundamental, deteriorando-se e soltando seus componentes na natureza, até o completo desaparecimento. É o corpo voltando ao ar, que novamente se espalhará e agrupará, para a constituição de novos corpos, em um ciclo sem fim.

Este é um ponto onde o ar se aproxima do ápeiron. Anaxímenes pensa em um ar infinito, que tem a capacidade de se estender para o mais longínquo dos espaços, e lá constituir seus corpos. A diferença fundamental é que as formas que se adotam não se dão por um elemento indefinível, mas que se condensa ou expande de acordo com a necessidade do objeto que se forma. Se o universo é infinito, infinito também é o elemento que lhe preenche.

A escolha do ar como elemento primordial em Anaxímenes está na dinâmica que observamos nos fluidos gasosos. É com ele que nascem os conceitos de distensão e condensação. Quanto mais o ar se condensa, mais ele se solidifica, e um diamante nada mais seria do que ar extremamente denso. Por outro lado, quanto mais se rarefaz, mais se assemelha ao vácuo, passando pelos estados da alma, do fogo e de tudo o que parece vazio, sem o ser. Portanto, há uma graduação: o ar mais adensado se transforma em névoa, em água, em terra, em rocha. Mais rarefeito, em fogo, em alma, em vácuo.

O ar possui, desta maneira, a maior plasticidade possível do universo. Pode ser comprimido em formas diminutas, e estendido a distâncias imensuráveis. Como se observa nos ventos, tem uma mobilidade que nenhum outro elemento consegue ter. Anaxímenes percebe que o ar sai da boca de um ser humano tanto para esfriar quanto para aquecer. Não é bem verdade? Quando damos uma tostada no dedo, a primeira coisa que fazemos é soprá-lo, ou seja, jogar ar. Quando queremos polir uma lente, baforejamos o mesmo ar, agora quente, para proporcionar umidade, conseguindo diferenciar a temperatura unicamente pela velocidade com que é impelido e o formato que adotamos com a boca. Tudo é uma só e mesma coisa, embora sob a aparência das mais distintas substâncias.

Por tudo isso, podemos perceber como Anaxímenes prefigura Heráclito ao dizer que o mundo está em permanente transformação, inclusive com a síntese feita na frase da epígrafe, que poderia ser confundida facilmente em uma prova do Enem. Mas, por outro lado, também antecipa a impressão de Parmênides de que as mudanças e impermanência são meras aparências: o que está por trás de tudo é uma única substância. Ele explica a motricidade universal de um modo que Tales não havia feito e corrige a tendência esotérica de Anaximandro, importada do Orfismo. Desta forma, embora Anaxímenes pareça meio sem graça frente ao pioneirismo de Tales e à sofisticação de Anaximandro, o fato é que, dentre os jônicos, é aquele que melhor utiliza as ferramentas filosóficas, ao fazer uso intenso da lógica, e essa é a verdadeira evolução em seu pensamento: embora a filosofia não se restrinja ao círculo empírico, ainda assim sua especulação não é um livre pensar que se afaste de um mínimo regramento, a perder-se da realidade.

Do ar que se fluidifica ao aroma suave, porém presente de meu icatu vermelho moído em espessura média, vem o aviso de que minha primícia matinal está às portas, cuja sorvedura me trará o mínimo ânimo para combater a preguiça e encara a tragicomédia de mais um dia. Bons ventos (e ares) a todos!

Recomendação de site:

Adivinhem… Anaxímenes produziu uma obra chamada Peri Physeos (De Natura, em latim), mais um de tantos “Sobre a Natureza” que foram produzidos na ocasião, mas que foi quase que completamente perdido. Livra a cara o fato de existirem alguns comentadores contemporâneos, que já mencionei em outros textos deste blog. Sendo assim, vou recomendar um site que contém uma linha do tempo bastante concisa, e que pode ser consultado por quem tem vontade de entender por onde percorrer os primeiros passos da história da Filosofia ocidental. É o NetMundi, cujo endereço está logo aí abaixo.

https://www.netmundi.org/filosofia/2017/linha-do-tempo-filosofia-pre-socraticos/

terça-feira, 12 de julho de 2022

Sobre livros românticos sem romance

(O Romantismo é a tradução do amor para a literatura, certo? Se você respondeu que sim, melhor pegar os livros do ensino médio e relê-los)

... e nos olhos dela brilhava um clarão assassino quando alguém se atrevia a lhe resistir ou contradizer.

Olá!

No último texto que publiquei, fiz uma referência a um passado meio remoto, para levar um exemplo de como esperamos encontrar as coisas da mesma forma que deixamos, mesmo que seja após um tempo bastante longo. Não vem ao caso os motivos aqui, porque já destrinchei a coisa toda lá, então meu convite é para que o leiam, se o assunto lhes interessou. Entretanto, e por isso trago o tema novamente à baila, o resgate não se deu de forma automática, e eu fiquei algum tempo caçando qual teria sido um fato bem distante cuja impressão seja bastante distinta da que tenho hoje em dia.

Eu pensei em lugares, em comidas, em pessoas, em histórias e em músicas. Nesta última categoria, relembrei de um monte, mas havia o problema de que volta e meia eu retorno à audição daquelas que eu gosto. Com isso, a experiência fica invalidada. Mas eu consegui recordar de uma específica, que me incomodou muito na época. Trata-se de Wuthering Heights, da inglesa Kate Bush.

É uma música de andamento lento, muito triste, falando em tom choroso de uns tais de Cathy e Heathcliff, cantada com voz acutíssima pela mencionada cantora em seu trabalho de estreia, no longínquo ano de 1978, em um modelo de voz que viria posteriormente a ser consagrado no Brasil pela Tetê Espíndola. Não é de se admirar que um moleque de oito anos, viciado pelos primos mais velhos na energia do hard rock e na sofisticação do progressivo ouvisse uma música desse estilo como quem ouve os rangidos de um motor sem óleo, mas o grande problema estava na quantidade industrial de reproduções da precitada, que fez sucesso até dizer chega. Era só ouvir o arpejo daquele pianinho e o “aroluáili” inicial para os neurônios ativados por esse estímulo se retorcerem, gerando a má impressão persistente.

Quando realizei a experiência mental citada no começo, fui buscar a música em um spotifái da vida para medir minha reação. Eu imaginava que ia passar batido, de modo a não causar nenhum tipo de espécie, mas neurônios são como elefantes: nunca esquecem. Responderam como antigamente: não! de novo não! E cheguei à conclusão: é um belo contraexemplo, e não o modelo que eu queria me apegar. Por isso, fui correr atrás de outra coisa, chegando à cidade paranaense que vocês leram lá.

Tempos depois da explosão da canção (um bom tempo depois), fiquei sabendo que a mesma era baseada no único livro da escritora inglesa Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes, e que era, fundamentalmente, uma coleção de citações das falas da personagem Cathy, que clama fantasmagoricamente por Heathcliff, seu estranho amado. O livro fazia parte de uma coleção vendida em bancas de jornal que meu pai comprou para enfeitar a estante. Eu já era um leitor frequente e consumi praticamente todos, incluindo a obra em questão. Bem mais recentemente, a Folha lançou uma coleção chamada "Mulheres na Literatura", da qual o tomo é o de número 21. Já retomo minhas impressões sobre ele.

Eu fiz a leitura d’O Morro dos Ventos Uivantes há muito tempo já, conforme narrado acima, e, impulsionado pelo resgate da música, fui buscar umas resenhas para reavivar as memórias. Fiquei admirado com a quantidade de advertências que diziam não se tratar de um livro romântico, como se o movimento de mesmo nome significasse um período monotemático da literatura, dominado unicamente pelo amor. Não, meninos; não, meninas.

Primeiramente, é preciso confirmar que o livro em questão é, de fato, pertencente à escola literária conhecida como Romantismo, mais especificamente (embora haja inúmeras características que lhe sejam exclusivas) da corrente do Ultrarromantismo. E aqui, não temos como evitar dar uma escovada na História, para que possamos compreender bem a confusão que se faz, especialmente porque não só a literatura, mas a própria filosofia é banhada pelo contexto do momento em que ocorre.

O Romantismo é um fenômeno que se iniciou nos fins do século XVIII, que foi marcado como o pico do Iluminismo, representado pela Revolução Francesa. Seu principal motor era a ideia de que a racionalidade era o que de melhor existia nas relações humanas e que, a partir dela, haveria de se extinguir as tiranias e os grilhões repressivos. No entanto, a Revolução não resultou senão em novos despotismos, como foi seu subsequente período do Terror, e o resultado foi um clima de desilusão nos círculos intelectuais. Como consequência dialética, a ênfase no racional e sua capacidade de guiar os destinos caiu em descrédito, e uma nova tendência de pensamento surge, onde os sentimentos são colocados em evidência. A questão é que, uma vez retirada a razão de seu trono, demonstra-se que os sentimentos são ingovernáveis, como o antigo revolucionário que agora se torna tirano. A maneira como se apreende o mundo e como se dão as relações humanas são agora povoados pela ambivalência, porque há o confronto das subjetividades: quando eu coloco meus sentimentos em oposição ao de meu interlocutor, não há régua racional que possa balizá-los.

O movimento romântico, tanto na filosofia quanto na literatura, afastando-se da razão imperativa, vai se embeber da intuição. Como mais tarde sintetizaria Schopenhauer (que não pode ser enquadrado como romântico), o desejo se sobrepõe à razão de maneira permanente, e o principal desejo humano, movido até mesmo pelo instinto de preservação, é a infinitude. Entretanto, como se sabe, ela é inatingível, embora perpetuamente desejada, e o resultado é a igualmente perpétua angústia de se ver insatisfeito. Ainda assim, é possível ao ser humano fazer aproximações: a natureza é representação da vida que surge e ressurge, sendo uma das sínteses possíveis do infinito que o sentimento humano busca em seu íntimo. Nessa perspectiva, a morte deixa de ser o fim, mas a busca por mais e mais infinito, já desalojada das limitações do envoltório terreno. Assim, mesmo nas fases em que o movimento está mais aferrado ao valor dos sentimentos, a morte representa um valor que transcende sua finitude: a liberdade, outro dos maiores valores dos românticos. A grande questão é que a realidade existe, e o romântico percebe que, ao sair de seu transe psicológico, há um enorme descompasso entre o que sente e o que vê, de modo a buscar um modo de pensamento escapadiço, dando mais importância ao ideal do que ao real. Toda filosofia e literatura idealista do período se deve a isso - daí surge a nação idealizada, o povo originário e puro, os heróis virtuosos tão típicos de então.

O livro de Emily Brontë contém todas essas características? Sim e não. Ele está no contexto do Romantismo, mas já se encontra em um outro momento da corrente, em que a própria exacerbação dos sentimentos é exacerbada. O idealismo aproxima-se de seu esgotamento e tende cada vez mais para o pessimismo, que se reflete no derramamento cada vez maior dos personagens. A morte não é mais uma solução por sua aproximação com a eternidade, mas para se fugir ao sofrimento, e começa a ser vista como extinção. Eram os tempos do mal du siécle, uma tradução do espírito depressivo e desesperançado por uma realidade sem solução. Seu nome em inglês, spleen, tem a ver com o humor produzido pelo baço, que a medicina antiga acreditava ser a produtora dos estados de melancolia (leia mais aqui). O romântico, neste ponto da história, é essencialmente um triste, um inconformado que já se desesperançou. Desse predomínio, passa a vigorar um desejo pelo mórbido e pelo sobrenatural. Os personagens passam a se autodestruir e apresentarem-se cada vez mais doentios, tanto física quanto psicologicamente, a ponto de considerar o inferno como alternativa menos dolorosa do que a própria existência. As obras desta escola já beiram o gênero do horror, trazendo muitas influências dos romances góticos, abordando o medo, as distorções dos sentidos e a loucura. Ler um livro do Ultrarromantismo passa a afetar psicologicamente também quem lê.

Percebem o problema em afirmar que O Morro dos Ventos Uivantes não é um livro romântico? Isso acontece porque, na imensa maioria dos casos, o sentimento exacerbado no tema central das obras é o amor, mas aqui nesta obra ele está com seu sinal trocado, o ódio. De fato, quando falamos que um casalzinho é muito romântico, não pensamos em suas brigas e desavenças, ou do quanto um pode fazer de mal ao outro, mas na delicadeza do trato entre ambos, na necessidade da presença um do outro, na superação das barreiras sociais ou qualquer outra circunstância em que um sentimento mais forte vai servir de amálgama para sua factibilidade. Essa é a concepção que o senso comum faz do termo Romantismo.

Acontece que, como expliquei logo atrás, o romântico no uso comum é muito diferente do romântico literário. Sim, é verdade que o amor é um sentimento e um daqueles sentidos com mais intensidade, a ponto de reverter seu sinal e poder ser traduzido em dor e em ódio, mas ainda assim estamos falando em sentimentos. O Romantismo trata de qualquer sentimento exasperado, seja qual for. Toda saudade é imensa, toda ternura é indescritível, todo valor custa a própria vida, todo medo extrapola os limites do racional, e não só todo amor é como se fosse o último.

É aqui onde O Morro se enquadra, em um romantismo que não fala de amor. Mas se livro em tela não fala de amor, qual é o sentimento que o perpassa? Quem o lê, cravará de cara: vingança. Mas a vingança não é exatamente um sentimento, e sim a execução de uma reconvenção contra quem deu causa a uma dor. E mesmo que sejamos concessivos, a vingança é um sentimento derivado, cuja anterioridade e componente essencial é o ódio. O romance em questão é um longo desfiar de ódios acumulados, recebidos e devolvidos na mesma moeda, cujo motor é uma cadeia de desajustes de relacionamentos.

O Ultrarromantismo desemboca nos contos de terror, como já disse, mas aqui temos uma característica que torna esta obra única: o que há de mais aterrorizante é que não é ultrapassada a barreira do sobrenatural. As aparições são, antes de uma real fantasmagoria, uma condição psíquica autoimposta, como se o último objeto de vingança fosse o próprio protagonista.

Já se disse que ódio e amor são o mesmo sentimento, e, como em um espelho, um é reflexo do outro. É um pouco difícil de se comprovar essa afirmação, porque não dá para afirmar empiricamente que pessoas que odeiam amam com a mesma intensidade. O que é possível pensar é em que nível do amor o ódio pode se opor. E aquele apresentado pelos personagens do livro está muito próximo do embate físico, violento tanto no âmbito corpóreo (como de fato vemos em algumas cenas) quanto no psicológico, e principalmente nele. Há um ódio de contato, assim como há um amor que exige contato. Este é um motivo pelo qual podemos assinalar que é um livro banhado de erotismo. Naturalmente, não no aspecto sexualizado que o termo remete, mas àquele paradigma de amor corpóreo que mencionei neste texto, um ódio que exige presença, até mesmo no perturbar psicológico: não é só uma saudade que abate o ânimo, mas uma necessidade de causar sofrimento a si mesmo no plano das reações orgânicas, uma maneira de transformar um mal psicológico em mal físico, que vai comprovado no beijo na amada morta, ou nos caixões violados para se dê o contato entre os cadáveres. O ódio que deriva da inversão do amor vem de um sentimento cúpido, possessivo, doentio, e não daquele tipicamente romantizado amor límpido, purificado, desinteressado. Aliás, esse estudo da psique dos personagens aproxima O Morro dos Ventos Uivantes de seu movimento sucessório, o Realismo. Esse é um dos motivos pelos quais não há enquadramento confortável para tal obra. 

As impressões gerais que o livro me causa são paradoxais. Eu não sou dos maiores fãs do estilo romântico. Aliás, embora seja necessário reconhecer que o estilo tem grandes obras, no âmbito filosófico elas são muito menos relevantes que as de outras escolas, pelo simples fato de que seu idealismo magnificado não para em pé. A questão é que, embora prescinda de provas, a filosofia precisa de lógica, e o exagero dos românticos se afasta de qualquer observação minimamente calcada na realidade. E aí é sempre fácil de comparar: embora não se queira tirar o valor literário de nenhuma dessas peças, um filósofo, em linhas gerais, preferirá Germinal a Os Três Mosqueteiros; Em Busca do Tempo Perdido a O Conde de Monte Cristo; Memórias Póstumas de Brás Cubas a O Tronco do Ipê, dentre tantas outras. 

A história em si que é narrada tem muito pouco de original: um triângulo amoroso que, como eu disse, não tem bons princípios e nem final feliz. Mas ele simplesmente imanta que vai lê-lo. Sendo assim, precisamos olhar para o aspecto formal. Ele é absolutamente impecável, e mesmo em sua tradução é possível perceber a poética por trás da escrita. É um livro escrito para fazer mal, e consegue isso, principalmente porque não recorre a monstros para assustar. Isso é ruim? Essencialmente não, porque às vezes precisamos tomar chacoalhões, mas é preciso disposição para encarar um ensaio dos limites da maldade humana.

Há uma questão recorrente ao estilo, não obstante a originalidade específica que este livro carrega: como os sentimentos não são sentidos, mas derramados, há momentos em que ele fura a parede da suspensão da descrença. Embora não se peça de um romance que ele seja crível, há um ponto em que o desencaixe se torna tão grande que toda a lógica subjacente vai por água abaixo, o que dificulta um filosofar natural em cima da obra, e este é um defeito a ser considerado.

Para além disso, O Morro dos Ventos Uivantes tem momentos brilhantes, como nas aparições da coprotagonista na janela do quarto de leitura, onde a dúvida é posta de frente ao leitor: estamos diante da manifestação "real" de um espírito, temos a autossugestão causada pelo ambiente lúgubre ou trata-se do afloramento da loucura induzida a si mesmo? Não se trata de um falso dilema - a compreensão da obra se dá nessas pequenas decisões que o leitor precisa ter no seu transcurso. Ou seja, a autora não pega na mão de quem a lê. Outro ponto interessante é o completo desconhecimento das origens do personagem Heathcliff - não se sabe de onde ele vem, não se sabe de onde vem sua inaudita fortuna, e isso faz com que não carimbemos nele motivos para sua ira para além dele mesmo, o que nos permite colocar qualquer um em sua condição, embora a suspeita de ser ele de origem cigana busque mais colocá-lo fora do círculo da família do que atribuir características que seriam inerentes a uma etnia.

Enfim, é uma obra para reações dúbias, mais importante (para este escriba) pela maneira com a qual foi escrita do que pela sua temática em si, com suas virtudes e seus defeitos, que me trouxe um certo desagrado na primeira leitura, embora o simples fato de me ter levado a escrever sobre ela já me faça vê-la com outros olhos, muito mais simpáticos do que outrora. É assim que as coisas são. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Por óbvio, o livro que permeou este texto. Há inúmeras versões disponíveis no mercado e em sebos, havendo até mesmo para consumo via internet. Vou indicar a edição que tenho em minha casa.

BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2017. Col. Mulheres na Literatura. Vol. 21.

terça-feira, 5 de julho de 2022

O café filosófico do quotidiano - A transformação é a grande permanência universal

(Depois de tanto Parmênides, é hora de falar de Heráclito)

Tudo o que se vê não é igual ao que a gente viu a um segundo, tudo muda o tempo todo no mundo

Olá!

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Quem sou eu prá dizer que não vou mais voltar a um assunto…

Já apresentei toda sorte de métodos de extração de café aqui para vocês, e a lista segue crescendo. Quem me acompanha de perto já percebeu que, embora o maior intuito dessa série seja filosofar, há um claro sentido técnico também, menos na tentativa de ensinar alguém a função de barista (que eu não tenho), mais em colaborar no desenvolvimento da ideia que resultou no corpo principal do texto. Por esse motivo, sempre tem um pouco de didatismo aqui também, não se assustem.

Ainda que não seja uma divisão absolutamente canônica, temos em maioria dos métodos divididos em dois grupos: os cafés coados e os infundidos, em sua maioria prensados. Cada um tem suas virtudes e seus defeitos. Coar café geralmente dá um líquido mais límpido e menos cheio de resíduos, enquanto prensar mantém mais óleos e dá melhor corpo. Haveria de ter alguém que procurasse juntar o melhor dos dois mundos, e o resultado de uma das melhores tentativas resultou no Aeropress.


O processo de extração deste método consiste em aproveitar um grande êmbolo que abriga o pó moído e água suficiente para quatro xícaras padrão (daquelas de 50 ml). Como é possível antever, garante-se uma certa pressão com essa mecânica, o que dá uma certa aceleração no processo de infusão, que não fica tão longo quanto em uma prensa francesa.


O segredo do duplo método está no elemento vazado acoplado ao êmbolo, onde se encaixa um filtro de papel circular, finíssimo.


Para realizar a extração, tem-se então que realizar a pressão no pistão contra o filtro, de modo a vazar o café diretamente no decanter, o que dá um resultado que combina bom corpo e zero resíduos.


Nome do utensílio: Aeropress

Tipo de técnica: Misto (coado sob pressão)

Dificuldade: média

Espessura do pó: a critério. No entanto, o mais típico é adotar uma moagem que vai da média para a fina.

Dinâmica: Coloca-se o pó em um recipiente em forma de seringa, onde o mesmo ficará sob infusão por alguns minutos. Ao término do tempo, instala-se um filtro no aparelho e pressiona-se um embolo suavemente em um decanter.

Resíduos: nenhum

Temperatura de saída: média

Nível de ritual: alto


Todo o cuidado dos fabricantes não se dá somente por conta das frescuras de gente metida a connoisseur, como este escriba que vos rascunha. Todos esses pesos e medidas vão tentar encontrar uma coisa muito difícil e muito desejada: a padronização. Mas como conseguir que algo seja igual se sabemos que nada se mantém, como nos diz Lulu na epígrafe?

Embora digamos que prefiramos ser metamorfoses ambulantes, como ensinaria Raul, o fato é que temos em nós uma espécie de sintomas de permanência, e isso faz parte de nossa humanidade. É bem simples de fazer um exercício mental, e vou dar um exemplo que pode ser rememorado por qualquer um, com suas experiências próprias. Quando eu era menino de até meus treze anos, minha avó paterna fazia viagens semestrais ao norte do Paraná, mais especificamente a uma pequena urbe chamada Tapira, onde morava seu pai, com um irmão seu. Ela se propunha a custear a viagem de um dos netos mais velhos, e fazia um rodízio entre eles, eu incluso. A cidade era verdadeiramente pequena, e, como meus parentes moravam na zona rural, era preciso sincronizar bem o ônibus, que partia uma única vez ao dia. Se perdêssemos, só na base da carona. O caminho até lá era chão batido até um patrimônio chamado Gleba Quatro, de onde haviam mais quatro quilômetros de caminhada no areião, três deles desafortunadamente em aclive.

(Meninas e meninos, tudo isso pode lhes parecer muito estranho nestes tempos de zap e outros comunicadores instantâneos. Mas o fato é que mesmo telefones fixos eram raros. Meus tios não eram pobres a ponto de não ter uma carroça que nos buscasse. O problema era essencialmente conseguir se comunicar com eles, porque não existiam cabos para ter telefone. Tudo o que estava disponível eram cartas, que eram despachadas para caixas postais que eram verificadas semanalmente. Não dava para combinar com um mínimo de precisão por correspondência os horários de chegada – qualquer intercorrência que atrasasse a chegada faria com que os parentes ficassem como bobos esperando).

Adiantemos o ponteiro para 2020, cerca de quarenta anos depois. Tapira é uma cidade que, com um pouco de boa vontade, fica na rota de Cascavel, essa sim uma cidade de porte razoável, onde meu menino mais velho morou por três anos. Todas as minhas lembranças daquele lugarejo são hoje efetivamente parte do passado. A estrada de terra, a mercearia de beira de estrada, a igrejinha do Alto Café, as três ruas da “cidade” que agora são dez... Embora não tenha surgido uma grande metrópole no lugar, o fato é que não há nada reconhecível dos tempos em que eu vinha para cá, nem mesmo o armazém que fazia as vezes de rodoviária. 

O que eu queria? Que nada tivesse evoluído? Não, apenas tenho em mim a sensação de permanência que todos têm, representada pela memória e pela expectativa que ela se torne concreta novamente à nossa frente.

São Inúmeros os exemplos: vamos na casa de nossas avós esperando comer uma macarronada tão saborosa quanto sempre, vamos na Javari querendo ver um JuveNal tão aguerrido quanto o último, vamos viajar para Marmelópolis e queremos achar uma pasta de marmelo tão boa quanto a de quatro anos atrás, vamos para Itamonte e tememos congelar na água gelada do Escorrega, mas a macarronada está com um molho mais ácido, o JuveNal foi bem mais chocho, a pasta de marmelo está mais aguada e o Escorrega não estava tão frio, a ponto de não avermelhar a pele. Nós temos consciência da alternância dos fenômenos. Sabemos que tudo varia, tudo muda, mas esperamos, aí inconscientemente, achar tudo como antes, em um sentimento de estabilidade que não existe. 

É desse fluido que é feita a realidade, e por isso achamos tão complicado compreender a verdadeira natureza das coisas. Parece existir algo que é sempre igual na realidade, por mais que nos pareçam diferentes. Como conseguimos afirmar que um chihuahua e um rottweiler são cães, se até mesmo mecanicamente é difícil imaginar que eles cruzem? Mas o fato é que chamamos os dois de cachorro, por mais diferentes que sejam. Parece que ambos têm a mesma semente, e floriram absolutamente cada um para um lado.

Para onde vai a velha percepção parmenidesiana? Como podemos concluir que nada se move, que tudo é sempre igual a si mesmo, que tudo é o uno, que tudo não passa de uma armadilha lógica que não encontra eco em nada do que nos circunda? Poderíamos pensar nos ciclos, como os dias que sempre nascem, os anos que sempre se encerram, a flora que sempre brota, a chuva que sempre cai, mas a chuva de ontem não foi a chuva de anteontem. Não foi a água do mesmo mar que evaporou, não foi a mesma terra que ela molhou, não foi o mesmo tempo que ela levou. Nessas urbanescências dos tempos modernos, nem são os mesmos compostos químicos que recobrem os carros e os coloca a enferrujar.

A verdade parece bipolar como os acometidos pelo mal psíquico de mesmo nome. Sempre que pensamos na afirmação de algo, já surge de pronto sua negação, como se fossem pontos de parâmetros. Sabemos que algo é quente porque sabemos o que é o frio, que o vazio se contrapõe ao cheio, o leve ao pesado (apesar de Kundera), o novo ao velho. Ou seja, há uma eterna alternância entre extremos, como se uma estranha imantação quisesse atrair um fenômeno que está do lado de lá. Parece que estou falando de política, mas não só. Até porque entre um extremo e outro há toda uma miríade de nuances, e o mundo se desenrola entre elas.

Bom… então o que verdadeiramente é a verdade? Uma constância com aparência de alternância ou uma transformação travestida de permanência? Esse é o debate que atribuem a Parmênides versus Heráclito, em mais um desses trânsitos entre extremos que mencionei no parágrafo anterior. Mas essa é uma definição superficial. Para quem começa a estudar agora, pode ser didático, mas meia hora de leitura é suficiente para fazer notar que ambas, mais do que serem opostas, são complementares.

Já cansei de falar de Parmênides neste espaço, dele e de seus Blue Caps, então entendo que fiquei em débito com seu antípoda de Éfeso, que é colocado no âmbito dos primeiros ontologistas, sem deixar de ser um naturalista.

É a ele que se atribui o panta rei, uma das mais famosas assertivas de toda a Filosofia. Tudo flui, e não se banha duas vezes no mesmo rio, porque nem nós somos os mesmos, nem o rio, mesmo que o banho seja daqui a cinco minutos. Heráclito é o filósofo da mudança, da transformação e do devir. Ele vivia em um tempo onde os primeiros pensadores ainda buscavam a arché, o princípio originário de todo o cosmos, e ele mesmo trouxe sua proposta, só que seguindo uma rota um tanto alternativa.

De fato, a busca pela arché supunha que no substrato da realidade estivesse um elemento constante, e as mudanças de características de cada um comprovam um dinamismo universal que girava em torno de seus diferentes estados. Só relembrando um exemplo, Tales via que a água era o meio físico pelo qual todas as coisas se constituíam. Dela, se obtém facilmente os três estados da matéria, ela surge nas cavernas escuras, brota das pedras, surge dos poços, poreja dos corpos, evapora para os céus e retorna para a terra. Embora tome qualquer aspecto, volta sempre para sua forma fundamental. A água que é gelo também é vapor, é solvente universal, é item de sobrevivência e morte, é rio.

É exatamente esse rio que Heráclito olha para deduzir que a arché é mais do que algo físico. Todas as vezes em que olhamos para nós mesmos, que seja de um segundo para o outro, já temos alguma coisa de diferente. Ao digitar essa frase, já tive que colher algo de minha memória e que se transformou em escrita. Releio e já tenho essa impressão regravada, mais presente do que antes. É como cada passo que dou dentro do rio. Cada metro cúbico, cada balde, cada gota e cada molécula já são outras. mesmo que uma delas volte a passar, será companhia de bilhões outras que nunca correram esse curso, e assim é com tudo no cosmos.

Não se trata de não imaginar que não exista um fundamento comum em tudo o que existe. É isso o que constitui a arché heraclítica do universo: o eterno devir, a permanente transformação. Já não é um substrato físico, mas ontológico. É natural do próprio ser estar em contínua mudança, de ir para lá e para cá, se transmutando em Ser e não-Ser, ad aeternum

Heráclito chama o elemento de sua arché de fogo, mais pelo plano simbólico do que constitutivo. A explicação é simples, bastando perguntar a qualquer químico qual é a aplicação mais frequente para efetuar combinações entre elementos: o aquecimento. O fogo, quando pensamos em transformações, é o elemento mais representativo, ainda mais porque ele faz nascer substâncias novas e a elas calcina, dando-lhes fim. O fogo nunca é imóvel, como é a água congelada, a terra sem ventos ou o ar engarrafado. O fogo surge e desaparece sempre dando sua presença – nada onde há fogo permanece igual, nem ao menos em sua aparência.

Sendo da maneira que diz Heráclito, deveríamos perceber o universo como caos contínuo, mas isso não acontece. Notamos ordenações e ciclos, a ponto de possibilitar a Ciência como o ofício das predições. Ocorre que da luta dos contrários nasce uma harmonia detectável unicamente pela razão. De fato, sabemos que o jovem de hoje é o velho de amanhã. Sabemos que o café quente esfriará, e sabemos que as águas que nos banham, ainda que não sejam as mesmas, estão no lugar contínuo a quem chamamos de rio. Desta forma, a presença do logos, a capacidade humana de se diferenciar dos animais, a herança divina da qual falava Heráclito e seus contemporâneos, é a chave da interpretação do universo… o logos dá a ordem no meio da "bagunça".

Se Parmênides diz que o Ser (a essência) é o fundamento de tudo, Heráclito diz que o devir é exatamente este Ser, essa essência. A permanência e imutabilidade deste Ser do universo está exatamente nisso: em sua permanente e imutável dinâmica.

Com isso tudo, neste texto que enchi de paráfrases e referências, podemos concluir que há mudanças e permanências, sendo que a principal das estabilidades é na ausência delas, e daí vem uma clave ética muito importante, semelhante à que já ouvimos vinda da década de 80:

Faça tudo o que você estiver fazendo como se fosse a última vez, porque efetivamente é. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

Heráclito compôs mais um dentre tantos De Natura típicos de sua época, do qual restou certa quantidade de fragmentos, que podem ser encontrados no livro abaixo:

HERÁCLITO. Fragmentos Contextualizados. Trad. Alexandre Costa. São Paulo: Odysseus, 2021.