Marcadores

terça-feira, 4 de julho de 2023

O galo de Asclépio não é tão prosaico quanto parece

(Contexto é tudo na interpretação de fatos e fenômenos. Quer dizer… conhecimento também é) 

Olá!

Eu ia descendo pelos lados da praça Clóvis para almoçar quando vi a cena, das mais prosaicas, comezinhas, consuetas, corriqueiras, quotidianas, chãs, vulgares, banais. Uma mocinha, bastante jovem, chegou para um grupo de policiais e perguntou onde ficava o Sesc* do Carmo. A cena me rememorou imediatamente a infância. Sempre que eu ia à "cidade" com minha mãe, ela recomendava que eu procurasse um guarda, caso me perdesse. Meu avô, acidíssimo, dizia que era mais seguro procurar um ladrão, talvez movido pelo sabor das borrachadas nas costas. Tirante os maus bofes do velho, estava certa a genitora. Mas a cena da menina me chamou a atenção pela resposta. Um dos homens lhe disse que deveria pegar o metrô da linha vermelha, ir até a estação Itaquera e de lá pegar o ônibus tal. A mocinha em tela olhou o grupo com uma cara de interrogação flagrante, como se dissesse que tinha acabado de chegar de lá. Tivesse perguntado a mim, eu lhe diria para entrar na segunda rua à direita, andar por uns duzentos metros até chegar perto de uma igrejinha, e o Sesc é praticamente em frente. Mas outro guarda lhe disse para entrar na segunda rua à direita, andar por uns duzentos metros até chegar perto de uma igrejinha, e o Sesc é praticamente em frente. O primeiro policial confundiu os Sesc's: o Carmo é na rua do Carmo, rua histórica do centro de Sampa, e o Itaquera é, ora, em Itaquera, parte integrante do Parque do Carmo, o mais conhecido da região e um dos maiores da cidade.

De uma cena tão comum, vem o vírus filosófico causar-me os espasmos. Como somos facilmente confundidos, de modo até mesmo inocente... É óbvio que o policial não queria sacanear a guria, mas o teria feito, caso estivesse só. E eu mesmo já me peguei fazendo coisas semelhantes. No meu pedaço, há duas ruas chamadas Conde, a de Sarzedas e a do Pinhal. Como a primeira é uma meca dos artigos evangélicos, muita gente me admoesta perguntando por ela. "Sabe dizer onde fica a Conde?", é a pergunta frequente. Eu respondo pelo óbvio, mas não posso assegurar qual Conde o transeunte procura. Menomale que são muito próximas, mas hoje pergunto qual delas, para não obrigar o contribuinte a atravessar o complicado miolinho da Conselheiro Furtado.

Mas não é bem sobre isso que eu queria dizer. Antes de estudar filosofia, eu já gostava de filosofia, e lia bastante coisa sobre o assunto. Uma delas era a obra de Platão, especialmente os diálogos socráticos. Um deles, o Fédon, descreve os últimos instantes do mártir grego, e tem uma conclusão que eu, antes do período acadêmico, achava insólita. Acompanhem o trecho final:

“Sócrates declarou que começava a sentir suas pernas pesarem e se deitou com o rosto para cima, como lhe haviam ordenado. O homem que lhe dera o veneno se aproximou e, após ter examinado por um momento seus pés e pernas, apertou-lhe com força um pé e perguntou-lhe se o sentia. Sócrates respondeu que não. O homem apertou-lhe os tornozelos e foi subindo as mãos, mostrando-nos assim que Sócrates começava a esfriar e tornar-se rígido. Quando o tocou de novo, disse-nos que no instante em que aquilo chegasse ao coração, Sócrates nos deixaria. Seu baixo-ventre já se encontrava rijo e frio quando, ao descobrir o rosto que havia coberto, proferiu as seguintes palavras:

- Críton, devo um galo a Asclépio. Por favor, paga minha dívida, não te esqueças.

- Farei isso - respondeu Críton - Tens mais alguma coisa para me pedir?

Sócrates não respondeu a Críton. Um momento depois, teve um tremor. O homem do veneno deixou-lhe o rosto a descoberto: os olhos estavam fixos. Críton aproximou-se e fechou-lhe a boca e os olhos.

Foi desta forma, ó Equécrates, que nosso grande amigo faleceu. Podemos afirmar que foi o melhor homem entre todos que conhecemos, o mais sábio e o mais íntegro”.

Eu fiquei um pouco desconcertado com essa conclusão. Que coisa estranha para se pensar na porta do forno. Há várias últimas palavras célebres: "Pai, em tuas mãos entrego meu espírito" teriam sido as últimas palavras de Jesus. "Eu saio da vida para entrar na história" é o pré-suicídio de Getúlio Vargas. "Espero a saída com alegria, e espero nunca mais voltar", seriam as últimas palavras do diário de Frida Kahlo. E Sócrates, o grande sábio, o fundador do pensamento ocidental, ao invés de uma lição moral definitiva, fala de um galo. Coloquei duas hipóteses: ou Sócrates já se encontrava em delírio, e com isso estava se incomodando com coisas de relevo zero; ou ele era tão ético, mas tão ético, que nem queria deixar a conta da avícola sem pagar, mesmo sabendo que estaria morto em instantes. É algo como acontecia nos tempos de eu-menino. Quem vê os grandes mercados e os inúmeros postos 24 horas não imagina que lá pela década de 70 tudo fechava no domingo, até mesmo em Terra da Garoa. Deu meio-dia do sábado, só na segunda. Isso acabava por formar uma cadeia de solidariedade entre vizinhos quando se precisava de uma coisa qualquer no domingo. Minha madrinha pedia e lá ia eu: "Dona Elza, tem uma lata de leite moça?", "Dona Nair, tem um copo de óleo?", "Dona Lúcia, tem uns três ovos?", com o complemento já decorado - a gente devolve na segunda. Ninguém era prevenido o suficiente, e ocorria de donas Elza, Nair e Lúcia virem pedir leite moça, óleo ou ovos lá em casa também, com a mesma promessa de devolução na segunda. Cumprir o combinado era importante por dois motivos: manter a honra (e não ficar falada) e o crédito. Fico imaginando Sócrates recebendo uma visita inesperada no domingo e indo à casa do seo Asclépio pedir um galo para o almoço. Só que, pelo jeito, ele não devolveu na segunda.

Mas essa foi só aquela anedótica impressão inicial. Há muito mais por trás dessa história, incluindo uma prova adicional da inocência de Sócrates. Vamos dissertar sobre.

Como bem sabemos, a cultura grega era predominante no mundo ocidental nos tempos socráticos. Ela era tão bem costurada que até mesmo um império dominante como o romano recebeu influências preponderantes sobre sua própria cultura, incluindo aí a religião. O paganismo romano era uma cópia quase fiel da religião pública grega, que incluía um amplo panteão de divindades, onde cada deus regia algum aspecto do cosmos. Normalmente, temos uma correspondência entre os deuses gregos e romanos que se materializa quase que somente na tradução dos nomes. Alguns desses nomes ficaram mais marcados no original grego; outros na língua românica e há ainda aqueles que se dividem. Assim, o Zeus grego é correspondente ao Júpiter romano, que é mais conhecido como planeta do que como deus - no plano das deidades, o grego é bem mais conhecido. Já a Vênus romana é um pouco mais falada que a Afrodite grega, em parte por suas famosas esculturas e pinturas, enquanto Eros e Cupido tem um equilíbrio, dependendo do sentido que se quiser aplicar - se o assunto é psicologia, só dá Eros; se for representação do enamoramento, aí é com Cupido. O seo Asclépio não é um chacareiro que empresta galos, mas um semideus, filho do deus Apolo e da humana Coronis, e que é um protetor dos médicos. Segundo o mito, sua mãe foi morta pelo seu próprio pai, que, arrependido, colocou o menino sob os cuidados do centauro Quiron, que lhe ensinou todas as artes de cura disponíveis no conhecimento de então. Asclépio superou o seu mestre, de modo a tornar sua atividade incômoda, já que salvava todos aqueles que lhe chegavam às mãos. Isso estava despovoando o reino de Hades, o deus dos mortos, que foi reclamar com Zeus, o deus maior. Como era costume naqueles tempos antigos, Zeus passou a faca no pobre Asclépio (melhor dizendo, deu-lhe com um raio na cabeça), fazendo-o virar uma constelação**.

Seu nome romano é Esculápio, o que elucida muita coisa. Nome muito mais famoso que Asclépio, seu nome está no símbolo da medicina, o Bordão de Esculápio, um bastão envolvido por uma serpente. Nele, o bastão tem o sentido de domínio, como os cajados dos pastores, que os utilizam para controlar suas ovelhas. Sabe de onde vem a palavra "bordoada"? Vem disso. Já o réptil representa a cura, pela renovação de pele que faz de tempos em tempos. A cobra sai de sua pele antiga como se estivesse renascendo, e é bem comum o pessoal confundir o couro abandonado com uma cobra viva, tamanho o medo que o bicho causa. Além disso, rememora-se que o veneno, uma vez atenuado, torna-se fármaco. Um bom exemplo moderno é o Captopril, extraído como uma cópia do veneno da bothrops jararaca, cuja principal ação é derrubar a pressão arterial da vítima. Bem dosado, o medicamento controla a hipertensão. Desta forma, fica representado o controle sobre o dualismo doença e cura, que era a arte do semideus em questão.

O que isso nos ajusta para a cena final de Sócrates? Que não estamos diante de uma simples restituição de um objeto tomado em empréstimo, mas de um sacrifício. Essa palavra significa "tornar algo sagrado", e, no sentido mais apurado, de tomar um galo comum dentre todos os outros e torná-lo exclusivo da divindade a quem se oferece. O porquê do surgimento desta tradição é muito difícil de obter, eis que envolvem práticas antiquíssimas e multifatoriais. Algumas das explicações envolvem a privação de algo com valor para quem faz a oferta, a doação de uma espécie de força intrínseca da vida que se oferece e uma forma de partilhar alimento entre os deuses e os homens. No sentido prático, entretanto, quem dança é o bicho.

Todavia, o fato de que Sócrates demanda ao amigo Críton que lhe ofereça um sacrifício, muda em muito a justiça da penalidade que lhe foi aplicada. Temos dois itens em sua acusação: desvirtuamento dos jovens, a quem imputa ideias transgressoras; e impiedade, consistida nos desvios à religião oficial.

Ora, a oferenda de sacrifícios não foi uma invenção socrática. Ela é, como eu disse, uma prática imemorial, de complicado desvelamento das origens, e que era prescrita através de ritos bem elaborados no antigo paganismo grego, não consistindo em um rito particular que podia ser levado a cabo a bel-prazer de quem se dispusesse a realizá-lo. Uma oferenda a Esculápio pode ter dois significados. O mais óbvio deles é um agradecimento por uma cura. Não temos notícias sobre padecimentos físicos relevantes, mas era um costume semelhante aos que têm os cristãos, que fazem promessas a santos dedicados a doenças. Sendo um especialista em curas, Esculápio poderia ter sido procurado para mitigar eventuais dores, e, em troca, Sócrates teria oferecido o tal do galo. Mas há uma possibilidade mais profunda, que coaduna com os dizeres de Nietzsche sobre Sócrates. Acompanhem.

Como bem sabemos, Nietzsche não gostava nadinha de Sócrates. Segundo o alemão, é com a ética socrática que a vida instintiva dos trágicos gregos foi abandonada em troca do racionalismo, uma forma de ver e pensar o mundo sob o ponto de vista dos fracos, dos fracassados e dos menos adaptados. A obrigação que Sócrates repassa para Críton é um epitáfio de toda a lógica que se inicia com o socratismo. Vejamos o que ele diz na Gaia Ciência:

“Eu gostaria que também no último instante da vida ele ficasse calado - talvez pertencesse então ainda a uma ordem mais alta de espíritos. Mas, se foi a morte ou o veneno ou a devoção ou a maldade, algo lhe soltou a língua naquele instante e ele disse: ‘Ó, Críton, devo um galo a Asclépio’. Essa ridícula e terrível última palavra significa, para quem tem ouvidos: ‘Ó, Críton, a vida é uma doença’".

Com seu estilo peculiar, Nietzsche nos dá uma boa dica e pode estar certo. Se pensarmos que Sócrates vivia um momento de extrema injustiça, e que ele sentia na pele algo que via pelo mundo, e que, pior ainda, via o desconhecimento daqueles que deveriam conhecer o que é a justiça, é muito lícito pensar que a sua condenação era parte de uma imensa doença, e que a morte era a sua cura almejada. É bem verdade que Nietzsche via tudo isso sob um ângulo absolutamente crítico, um desperdício de energia e de vida, mas não há como não reconhecer que, independentemente de quem tem razão, o fim de Sócrates denota, no mínimo, um erro daquela sociedade, do seu sistema de coisas e, partindo da premissa de que os homens são estruturalmente iguais, repetível em qualquer lugar. A vida é uma doença, diz Nietzsche sobre Sócrates, e, se assim o é, faz bem o grego em render sacrifícios ao deus que o liberta do mal.

Essa é uma das provas de que a acusação contra Sócrates não pára em pé, e como sua morte rompe com qualquer justiça. Isso o aproxima de outros mártires, como discorri neste texto, e falseia a tese de que ele não rendia culto aos deuses da cidade. Talvez tenha sido, nesse sentido, um ato mais de didatismo do que verdadeira devoção, e, com isso, obtendo um sentido mais autêntico do que a restituição de uma mera lata de leite moça, como eu cheguei, tolamente, a pensar. Isso porque contexto e conhecimento precisam se combinar para que não pensemos baboseiras. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

PLATÃO. Fédon. In: Platão. São Paulo: Nova Cultural, 1999. Col. Os Pensadores.

*Para quem não sabe, o SESC é o Serviço Social do Comércio, uma entidade mantida pela iniciativa privada com dinheiro público para manter ações educativas e culturais.

** A constelação de Ofiúco, da qual faz parte Esculápio, é pedra no sapato dos astrólogos, porque, estando entre as constelações de Escorpião e Sagitário, deveria ser um 13º signo do zodíaco.