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quarta-feira, 31 de maio de 2023

O café filosófico do quotidiano – sobre o que são arquétipos (de fato)

(Não... arquétipos não são isso que aparece no YouTube) 

Olá!

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Métodos de escoar um bom café não são apenas uma experiência estética de aromas, sabores e visuais, mas também da percepção de como a mente humana pode ser engenhosa e oferecer soluções simples para dificuldades aparentes. Tenho um desses exemplos na minha frente, um belíssimo artefato conhecido como Chemex.


A origem desse método é das mais interessantes, e tem uma boa parte de fábula. Diz-se que era hábito entre os laboratoristas a utilização de instrumentos de seu trabalho para obter café nos momentos em que não havia melhores oportunidades para fazê-lo. Com isso, um balão de ensaio era utilizado como recipiente…


… enquanto era aproveitado um filtro de laboratório para passar o café, o que era feito através da sua dobra dupla e montagem com uma folha para um lado, e três folhas para o outro.

Conhecendo esse costume, um químico alemão resolveu patentear a ideia e produzi-la em escala, adicionando uma pega de bambu para facilitar a utilização pela patuleia. Esta pega é unida ao conjunto através de um cordão de couro, que lhe dá estilo e ajuda (segundo o fabricante) a evitar acidentes por quedas.


Para os dias sem filtro de papel, é sempre possível apelar para o filtro metálico que costuma ser oferecido com o conjunto.



Nome do utensílio: Chemex

Tipo de técnica: percolação em filtro de laboratório

Dificuldade: Média

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um filtro de papel quadrado é redobrado e inserido no bocal do utensílio, com o lado triplo sobre o sulco de serviço. Após escaldamento, o pó é despejado no fundo do cone formado e a água é despejada aos poucos, com cuidado para não afundar o conjunto para o interior do recipiente.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio/alto

O Chemex tem essa história legal, de transformar um determinado uso em outro, sem perder sua referência anterior, mas já demonstrando como nós, humanos, somos criativos e fazemos a roda girar. E eis que eu me vejo diante de uma situação semelhante, de transformação de usos, mas que aponta para o lado inverso: o uso inapropriado de termos que foram cuidadosamente burilados, de modo a desvirtuá-lo por completo. Vou dar mais detalhes.

Não me interesso unicamente por Filosofia, mas por coisas igualmente importantes e por bobagens variadas também. Por isso, os algoritmos do YouTube me indicam coisas dos mesmos níveis: tem palestras as mais crânio possíveis e as mais rematadas fanfarras, às vezes coligadas entre si pelo finíssimo fio de um termo. Eu volta e meia pesquiso sobre Psicologia, e isso me leva a alguns jargões específicos. Sendo assim, algumas outras sugestões me são dadas, quase sem nenhum vínculo à real intenção. A mais recente diz respeito a arquétipos, que é um dos termos mais importantes da psicanálise junguiana, e que já tive a oportunidade de tratar, mas há uma autêntica torrente de blogueiros e blogueiras falando sobre um tal de arquétipo de Cleópatra, arquétipo disso, daquilo e do outro, com uma significação completamente errônea. Seria algo como assumir pontos de uma personalidade que, em tese, já estaria gravada em nossa mente, sendo necessário uma ativação para que essas características passassem a fazer parte de nossa própria personalidade. Essa ativação seria feita através da observação de imagens, da recitação de palavras e coisas semelhantes. Uma incorporação, enfim. Como muitos dos propagadores anunciam objetivos financeiros, não diria que estão meramente enganados, mas sendo enganosos. É meu dever letivo tentar trazer o trem de volta para os trilhos, embora seja risível minha tentativa.

Vamos lá, vou tentar ser o mais didático possível. A ideia de que nossa mente não é completamente controlável pela consciência não é nada nova, mas começou a tomar corpo filosófico a partir de Arthur Schopenhauer, que, na contramão dos racionalistas, pensava que a razão estava muito aquém do que se imaginava em termos de condução dos pensamentos. Para ele, o verdadeiro motor estava na vontade; não aquela vontadinha que temos de tomar uma cerveja gelada em um dia saarauí, mas em um sentimento inesgotável e indominável absolutamente inespecífico, que é preenchido sucessivamente por algum objeto. Isso pode ter a conotação que se quiser: sexo, posse, poder, e até mesmo a tal cervejinha. O ser humano não tem nenhum controle sobre isso - tão logo um desejo seja satisfeito, outro ocupa seu lugar, do nascimento até a morte. Em resumo, desejamos sempre, mesmo que não queiramos, mesmo que isso seja uma autêntica perturbação, mesmo que tenhamos meios materiais suficientes para obter qualquer coisa.

Na esteira desse pensamento, vem Nietzsche, que se alinha com o desejo infinito, mas por um viés mais positivo (do seu jeito peculiar). Para ele, de fato a vontade estava no comando, mas na forma de vontade de potência, um conceito nietzscheano que se refere a uma força motriz existente em todo o universo. A vontade de potência consiste na energia residente em todo ser, e que deveria, ao menos em tese, fazer com que se desejasse não apenas sobreviver, mas viver bem, viver como em uma explosão de energia, repletos de experiências intensas. Nietzsche, ao contrário de Schopenhauer, não vê o desejo incessante como uma corrente a ser arrastada, mas como parte do pacote que a vida traz, e realizar seu objetivo seria justamente largar-se ao seu fluxo. Ficou claro que ambos concordam que é a vontade que impulsiona o mundo, ainda que um ache isso o pior fardo da humanidade, enquanto o outra pense ser exatamente o melhor que o universo nos dá? É por isso que são chamados de filósofos voluntaristas.

Freud surge sustentado por esse mesmo pilar, procurando levar para a ciência o substrato que estava no âmbito da filosofia. Ele desenvolve uma teoria de funcionamento psíquico que se fundamenta na mesma ideia de que parte do desempenho da mente não está subordinado ao controle do indivíduo. Ele compreende que o psiquismo se move por uma porção consciente, a quem ele chama de ego, e duas inconscientes, denominadas id e superego. O ego corresponde ao pensamento claro que temos em todo nosso momento de vigília, como nossas decisões, nossos cálculos e demais coisas. Já o id é o nosso elemento derivado do fato de sermos animais, puramente instintivo e manifesto na forma de impulso. É nele que reside o desejo, sendo a libido seu principal motor, na concepção de Freud. Por outro lado, o superego representa a porção mental que absorve o ambiente em que se vive, e, com isso, internaliza os seus conteúdos morais e culturais, que são externos ao indivíduo, mas que, de uma forma ou de outra, pautam a sua conduta. Um exemplinho porco: quando você é criança, seu id te impulsiona a enfiar o dedo em qualquer buraquinho de tomada, e seus atentos pais procuram impedi-lo. Dependendo da urgência ou da agressividade deles, essa experiência pode ser um tanto traumática, e o limitante superego pode receber reforços dolorosos, fazendo que seu inconsciente exerça o papel de seus pais daí por diante. Assim, o ego está constantemente em situação de pressão. Ele recebe o impulso do id e busca materializá-lo, mas ao fazer isso dá de frente com os freios do superego, que lhe determina o comportamento oposto. A mente humana funciona assim e está bem que assim seja, porque um id sem amarras torna o comportamento ilimitado, e um superego exacerbado preenche um ser humano de culpas e medos e o imobiliza. Quando há desequilíbrio nesse jogo, vem as crises psíquicas, como as neuroses.

Jung foi aluno e discípulo de Freud. Concordou com as bases gerais da psicanálise, mas teve vários pontos dissonantes e complementares em relação ao ideário do mestre. No ponto que nos interessa, Jung entendia que havia mais tarefas a serem segregadas no inconsciente. Ele entendia que Freud, ao dividir a psique em ego, id e superego, estava levando em consideração unicamente o plano individual, sendo que faltava algo que se referisse à espécie humana expressa coletivamente.

A mente humana evoluiu como todo e qualquer órgão do corpo humano. É evidente que nossos mais remotos ancestrais eram bem diferentes do que somos hoje, e isso porque o ambiente foi selecionando aquelas melhores características. Uma mão é como é hoje porque polegares opositores se mostraram mais eficientes para tarefas às quais nossa espécie precisava se dedicar. A posição ereta se mostrou mais adequada para a vigilância necessária às nossas vulnerabilidades e os olhos frontais para uma melhor visão do horizonte, e estas são características de toda a espécie. As exceções, quando ocorrem, demonstram claro prejuízo para a sobrevivência. No campo da mente, entende-se que ocorreu o mesmo, com funções mentais comuns e conformações de pensamento que são distribuídas por toda a humanidade. Vejam como nossas vidas guardam um pacote considerável de semelhanças: nascemos da mesma forma, atingimos a puberdade em um tempo semelhante, com alterações corporais igualmente semelhantes; recebemos, neste meio tempo, instruções de pessoas mais velhas, que vivem em grupos mais ou menos maiores e assim por diante. Tudo isso é acompanhado por uma mente que busca se adaptar a todos esses pacotes de mudanças ocorridos na vida e, estando o melhor adaptados possível, tanto melhores são suas chances de sobreviver. Se existe uma estrutura que me leva a reconhecer um perigo, por exemplo, melhores minhas chances de sobreviver. Portanto, mentalmente somos levados por uma evolução parecida com a corporal. Não pensamos em absoluto como essa mente se amolda ao cérebro, apenas vamos vivendo, assim no Brasil como na Austrália, na China, na Namíbia, na Finlândia. Isso é inconsciente, da mesma forma que ocorre com nosso impulso em pegar um doce e o refreamento de não o fazer para engordar. Só nos colocamos em raciocínio quando tudo isso já aconteceu. Como toda a humanidade costura a linha da sua vida de maneira similar, esses aspectos funcionais se amoldam e se transmitem por herança de geração a geração. Só que como não temos uma maneira de enxergar a psique, como enxergamos um coração ou um baço, não é tão simples de se compreender como se dá essa estruturação. Jung desenvolveu uma hipótese que explicaria como o inconsciente coletivo é formado a partir de compartimentos pré-formatados denominados arquétipos

A palavra arquétipo vem do grego e é a junção das palavras arché, que significa origem ou princípio, e typos, que significa marca, impressão. Dessa forma, o arquétipo é uma estrutura mental que já está "pré-gravada” na mente humana, dada pela herança coletiva que é transmitida para cada um dos indivíduos. Essas estruturas não são prontas, mas estão preparadas para receber imagens vindas do mundo exterior, que se articulam e preenchem o arquétipo. Ele é um “espaço vazio”, pronto para ser preenchido por dados do mundo exterior, de modo que a mente reconhece inconscientemente um conjunto de circunstâncias que se encaixam naquele arquétipo e lançam mão dele. Ativar um arquétipo, portanto, representa preencher uma forma vazia (o arquétipo) com um conteúdo (o fato ocorrido na vida).

Jung classificou alguns dos arquétipos, e aqui poderemos verificar como eles não têm nada a ver com o conceito recente de blogueiros e vendedores de amenidades místicas.

O arquétipo do self é o mais importante deles. Como eu já falei, na psicologia junguiana, o ego é a porção consciente do equipamento psíquico, e é preciso que ele se relacione com toda a parte inconsciente para que a personalidade seja constituída completamente. Afinal de contas, as divisões entre as instâncias psíquicas não são estanques e nem isoladas, e precisam “conversar” entre si. O self é o centro dessa personalidade integrada, da soma entre o consciente e o inconsciente, e, quando está funcionando adequadamente, produz um indivíduo equilibrado e sem neuroses. Do contrário, as instâncias não se relacionam harmonicamente entre si e temos as pessoas que possuem algum tipo de mal psicológico, especialmente naquele campo da preponderância da instintividade ou da passividade. O self é esse paradigma que modela onde está cada uma das partes da mente, para ser reducionista ao extremo.

Outro arquétipo muito importante é o da persona. Ele corresponde à nossa necessidade de nos diferenciar entre uma imagem pública e outra privada. Como bem sabemos, não vivemos eremiticamente, mas em sociedade, o que nos leva à necessidade de equilibrar entre aquilo que queremos como indivíduos e o que o meio social nos disponibiliza, o que gera, invariavelmente, um desalinhamento. Para conseguirmos viver nesse meio, é preciso que haja um meio termo entre o que somos entre quatro paredes e o que apresentamos em nossa rua, nossa família, enfim, em nossos grupos de convívio.

Há o arquétipo oposto ao anterior, a sombra. Representa tudo aquilo que não aceitamos em nós mesmos e que queremos ocultar de nossos meios de convívio, por entendermos se tratar de características ruins, vexatórias, impudicas, negativas. A tendência do ego é manter essas qualidades ocultas no inconsciente, e, desta forma, não as incluir na persona, a parte pública da personalidade.

Outros arquétipos são a dupla anima/animus. Eles são, respectivamente, a porção psíquica feminina que um homem possui e a masculina de uma mulher. Estes arquétipos estariam coligados à repressão de certas características em cada um dos sexos, sendo que no homem estaria reprimida a sensibilidade e, na mulher, a racionalidade. Estas conformações não seriam uma predisposição natural destes arquétipos, mas o que o processo evolutivo fez deles. Tanto isso é verdade que ambos se interpenetram: uma psique equilibrada depende de que a porção feminina de um homem interaja com o restante da personalidade, o mesmo se aplicando para o sexo oposto.

Embora haja outros arquétipos que apontam mais para papéis sociais, como é o caso do herói, do sábio e dos pais, não é possível notar como eles não tem nada a ver com essa nova ideia que está se propagando como um rastilho de pólvora? Os arquétipos não se direcionam para pessoas, como uma Cleópatra, e não são objetos místicos que podem ser utilizados como quando se diz abracadabra. Aliás, o próprio conceito junguiano de arquétipo é discutível, como toda a psicologia analítica, mas disso nós trataremos em breve. Se meu conselho serve, não caiam nesse tipo de embuste, simplesmente isso. E se informem.

Uma chemex muda o uso original tanto do filtro, quanto da garrafa, mas não o desvirtua. É exatamente o oposto que ocorre neste caso. Falar bobagem é uma das funções da linguagem, já vender mentiras é uma das doenças do capitalismo. É bom ser cuidadoso. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Neste caso, é uma repetição, coisa que não costumo fazer. Mas o ideal é buscar as fontes primárias.

JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2000.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 69º tomo: a falsa proclamação de vitória (complexo do pombo enxadrista)

(Falácias não se fazem somente com palavras)

Olá!

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Eu juro para vocês que não tive estômago para acompanhar de perto as últimas eleições. Havia uma combinação de descrédito com a classe política, de cansaço com o turbilhão social dos últimos quatro anos e com a séria ameaça de que tudo iria se repetir. Sendo assim, fixei meus candidatos e desliguei o botãozinho, o que significa nem sonhar em acompanhar a propaganda eleitoral e desprezar de pleno efeito os debates televisivos, a grande vedete de todo o processo. Só não tive como evitar a apuração, tensa ao cubo, principalmente no segundo turno. O prédio em que habito normalmente é de calma redobrada nos domingos à noite, mas o desassossego estava vibrando em cada um dos velhos tijolos, para um lado ou para o outro.

Os debates que citei mudaram muito nos últimos tempos. Por conta dos quebra-paus das décadas de 80/90, foram estabelecidas tantas regras que dificilmente não se resulta em um negócio insosso, só marcado pela inverossimilhança das propostas (quando existem). Caras como Maluf, Brizola e Quércia podiam não ser melhores como portadores da verdade, mas ao menos garantiam a noite no quesito diversão. São bastantes os acontecimentos desses tempos que viraram memes até os dias de hoje. Só que no fundo, o resultado é o mesmo: todos eles, indefectivelmente, saíam dos debates com a cara amassada de quem vai ao corner do ringue, mas cantando vitória como se fossem galos de briga. Fiquei velho e cansei desse tipo de coisa.

Como bem sabemos, o intuito sempre é um só: sair vencedor de um debate. Esse conceito, entretanto, é muito maleável. O que é a vitória em si? É um compilado de argumentos devidamente sequenciados e com itens objetivos avaliados? Ou é aquilo que faz a audiência gritar mais? Ao menos para o voto, parece claro ser a segunda. E para muitos dos debates de YouTube também.

É dessa forma que agem aqueles que compreenderam que a guerra de argumentos também se vence sem eles. É fato que nem sempre e nem todos têm a correta compreensão do que se discute, então busca-se por certos sinais de que alguém está em posição favorável ou não. Se alguém gagueja, por exemplo, pode estar se demonstrando inseguro, e se isso acontece temos uma amostra de se estar acuado. Por isso a fala firme e as demonstrações de se estar por cima da carne seca enganam muito. Não importa o que se diz, mas a sensação de superioridade que se passa. E isso passa mais pela agudeza do emocional do que pela correção da lógica aplicada.

Quando falamos em falácias, normalmente estamos nos dirigindo a construções lógicas (ou nem tanto) que desvirtuam o objetivo de um argumento. São inúmeras as formas de fazer isso, como temos visto neste pequeno guia. Há os apelos, que buscam enfatizar o aspecto emocional em detrimento da lógica, há os erros categoriais, para misturar as bolas sobre o que estamos falando, os erros formais, que torcem a propositura dos silogismos e muitos outros. Mas não é só daquilo que está manifesto na linguagem que vivem as falhas argumentativas. Elas também residem em atitudes e gestuais, que tentam causar a mesma dispersão produzida pelas palavras. É nisso que consiste a falácia da falsa proclamação de vitória, um tanto semelhante ao argumentum ad lapidem, porque procura dar uma terminação ao debate, mas, ao invés de utilizar da peremptoriedade verbal, vai na mão da persuasão pela forma, e não pelo conteúdo.

Uma forma de se entender a falsa proclamação de vitória são as chamadas mitadas, termo do qual peguei um ranço desmedido, por motivos óbvios. Uma mitada (ou uma lacração, se vindo da esquerda) é uma frase de efeito que, supostamente, humilha um adversário e define o debate. Geralmente são frases feitas, algumas vezes desencaixadas do conceito que se discute, mas, exatamente por se apresentarem prontas, são de fácil absorção pela patuleia, que já concorda de pronto com aquela “verdade”. Não preciso trazer exemplos, eles existem aos borbotões.

Assim como acontece com outras falácias, a falsa proclamação de vitória também tem um apelido, e eu vou contar sua história. Tudo começa na enjoativa disputa entre evolucionistas e criacionistas (vide aqui). Como bem sabemos, a evolução é uma teoria científica, embora seu nome mais correto seria modificação da descendência por seleção natural, muito longo para aplicação comum. Sendo uma teoria, ela mesma, assim como os fenômenos que descreve, evolui. Isso é próprio e típico das ciências, que, lembremos, não pretendem SER a verdade, mas APROXIMAR-SE da verdade. O mesmo não se pode dizer do criacionismo, que é estanque. Afinal de contas, como se baseia nos livros sagrados, não pode flutuar ao sabor de novas descobertas. Fragmentos de pergaminhos que são localizados em sítios arqueológicos causam alvoroço nos meios históricos positivamente, justamente o contrário do que ocorre nos meios religiosos, que colocam uma pilha de parênteses em descobertas contraditórias com suas crenças*. Com isso, todo o seu fundamento é imutável. No que isso resulta? Eternas respostas iguais, sempre iguais. A constante evolução da Evolução vem sempre trazendo respostas cada vez melhores e mais fortemente embasadas, enquanto o ponto de vista criacionista se baseia em releituras de mais do mesmo. É a velha confusão que ocorre quando se acha que a teoria vem na frente da prática. Não, não é nada disso. A teoria nada mais é do que a prática observada, das leis e repetições que são possíveis de extrair através da atividade empírica (leia com mais detalhes aqui). Quando isso acontece, o que temos é uma realidade dada, e não uma teoria, e isso acontece com as religiões, não com a ciência. É o que acontece com o criacionismo, e não com o evolucionismo. Portanto, quando confrontado com uma realidade incômoda, tudo o que resta é se recolher ao próprio nicho e, eventualmente, cantar vitória.

É no contexto dessa eterna briga que a falácia da falsa proclamação de vitória virou o complexo do pombo enxadrista. Isso brota através de um comentário ao livro Evolution vs Creacionism: an Introduction, de Eugenie C. Scott, no site de compras Amazon, que, acreditem, está lá disponível até hoje (vejam este link).


Eugenie é uma antropóloga estadunidense que trabalhou intensamente durante a controversa ideia de se ensinar criacionismo em aulas de ciências. Para trazer uma espécie de manual sobre o confronto e tornar mais claros certos pontos que traziam confusão no debate, resolveu escrever o livro acima. O comentador em questão, S. D. Weitzenhoffer, ao resenhar sobre a obra, diz o seguinte, em uma tradução livre:

"Discutir com criacionistas sobre evolução é como tentar jogar xadrez com um pombo. Ele derruba as peças, caga no tabuleiro e voa de volta aos outros pombos para cantar vitória".

A alegoria é simples de entender. O jogo de xadrez é bastante complexo, começando pelo fato de ser uma encenação de combate. Lá, um rei deve ser protegido pelo seu séquito, que, cada um tendo funções específicas, tem movimentos diferentes. Os peões são a linha de frente, de pouco poderio, mas em grande quantidade. Formam uma barreira e são os primeiros a dar proteção e a morrer. Na linha atrás, o rei é protegido pelos flancos pelas torres, bispos e cavalos, além da peça mais poderosa de todas, a rainha. Ao contrário de um jogo de damas, que acaba quando um dos oponentes "come" todas as peças do adversário, no xadrez basta que se capture o rei, e pode até terminar em empate. O jogo é, portanto, uma pequena reprodução de um painel político. Como se trata de uma disputa entre reinos, podemos antever sua antiguidade, que remonta tempos imemoriais. É um jogo de tabuleiro que envolve tática e estratégia, tornando-se verdadeiras tempestades mentais que podem durar dias. Os torneios internacionais consagraram enxadristas famosos, como Bob Fischer, Anatoly Karpov e Garry Kasparov, além dos brasileiros Jaime Sunye e Mequinho. Um dos maiores desafios do mundo da inteligência artificial era conseguir com que um computador conseguisse vencer um desses grandes mestres internacionais, o que somente foi acontecer em 1997, quando o computador Deep Blue venceu Kasparov, inaugurando a era em que a superação da mente humana pela inteligência artificial começou a se tornar palpável.

Nada disso tem significado algum para um pombo, nem a alegoria da guerra, nem o desenho tático, nem o aspecto histórico, nem a origem do jogo, nem a conquista da inteligência artificial, nada. Para ele, é um amontoado de peças em um tabuleiro que não compreende. A única coisa que ele depreende é que o conjunto não lhe serve para nada. Defecar em cima do tabuleiro é-lhe um ato natural, como faz sobre nossas cabeças quando encostamos inadvertidamente em um ponto de ônibus, sem perceber sua presença no fio elétrico correndo sobre nós. Não servindo de alimento ou pouso, afasta-se com estrépito para ir ao encontro de seus semelhantes, o que é, para ele, mais seguro e reconfortante do que ficar diante daquilo que não entende.

Esse formato de jogada para a torcida parece tola, mas é de uma eficiência surpreendente. Mas um pouco de raciocínio permite entender o porquê disso acontecer. Embora nós, seres humanos, sejamos muitos em aspectos e formações, o fato é que somos pouco originais. Seja pelo conforto de pegar coisas prontas, seja pela característica gregária da espécie, temos uma predisposição a nos acomodar a posições preexistentes e a ter conformidade com um grupo que nos identifiquemos (tratei do tema aqui). Essa identificação é multifatorial, geralmente associada ao ambiente onde se vive, e influencia diretamente nosso modo de pensar. Quando somos confrontados com uma posição antagônica, é tendência que procuremos a posição geral do grupo, e quanto mais forte for a sua reação, maior será a maneira com a qual nós mesmos reagiremos ao fenômeno. São raros os momentos em que prevalecerá uma posição pessoal. Se alguém o grupo está em discussão, é como se todo o grupo lhe passasse uma procuração para falar em seu nome, e a atitude desse representante é um sinalizador de bom sucesso, o que faz com que todo o grupo se impulsione em seu favor, independentemente da validade de seus argumentos.

Isso quer dizer que de nada vale o debate? Quase isso. Mas as palavras são sementes no vento. Metaforicamente, quando eu era pequeno, minha mãe insistia em me dar remédio quando eu tinha ânsia de vômito. "Eu vou botar prá fora, não adianta tomar isso", falava eu, já em desespero. "Um pouquinho sempre fica", dizia a genitora, na esperança de que as poucas gotas restantes fossem suficientes para dar uma amainada nos engulhos. A coisa é mais ou menos assim. Pode ser que, a custo, algum dos bons argumentos chegue a ouvidos um pouco menos moucos, e se instale em sua memória, de modo a fazer, em algum momento, brotar a linda flor da dúvida, a grande geratriz do questionamento. Ele nunca é ruim, porque qualquer argumento pode ser confirmado e sair mais forte do que era, por isso não há motivos para medos. Haverá pessoas que passarão a vida inteira atoladas em uma mesma dimensão da realidade, mas também haverá aquelas que estão somente esperando essa sementinha racional, uma proposição que lhe dê respostas melhores das que já tem, e é assim que funciona a transformação das cabeças.

Por fim, existe falsa proclamação de vitória não falaciosa? Bem, se é falsa, é falaciosa. Mas se o argumento bem defendido é acompanhado por boa concatenação lógica, as manifestações de agrado da camarilha não tornam o argumento falso. Só deixam o debate pobre e afastam quem gosta mais da lógica do que do espetáculo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É uma recomendação para ser seguida com cuidado. Com a proliferação dos debates de internet, surgiram alguns manuais que pretensamente ensinam a vencê-los, ainda que de modo pouco honesto, mais apelando a truques do que a técnicas reais de construção de argumentos. Nada melhor, neste caso, do que ter um nome consagrado para dar base a algumas barbaridades. Portanto, indico esta obra menor e inacabada de Schopenhauer mais como curiosidade, que hoje em dia é citada por um monte de gente como se fosse uma bíblia das discussões.

SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Ter Razão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

* É óbvio que existem teólogos sérios, que possuem um espírito de autêntico estudioso, e que ficam felizes quando surgem descobertas dessa natureza.