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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Navegações de cabotagem – O Parque Barigui de Curitiba e os reflexos das mudanças de pensamento

(Qual o sentido do Natal para um descrente?)

Olá!

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No fim do ano passado, logo após retornar de uns volteios pelo Sul de Minas, fui novamente para o Sul, só que dessa vez do país, mais uma vez em Curitiba, onde mora o menino mais velho. Não é primeira, e nem será a última vez que me remeterei à terra dos Pinhais, porque o moleque mora lá e tem muito lugar para ir, o que dá farto material para enriquecer esta série. Desta vez, fui conhecer o parque Barigui, que tem esse nome por conta do rio que por lá tem sua bacia.


O parque é essencialmente uma grande esplanada e, por ser menos acidentado que outros, como o Tanguá ou o Bosque Alemão, é mais apropriado para corridas e bicicletas, lembrando o que representa o Ibirapuera para os apressados paulistanos.


A semelhança não se restringe ao relevo, mas também à quantidade de equipamentos que estão espalhados por sua grande área. São pavilhões e centros de eventos que se prestam às mais diversas utilidades, inclusive com a presença de órgãos públicos.

Como estávamos no fim do ano, o maior parque de Curitiba, que passa pela área de quatro bairros da cidade, estava todo enfeitado para esperar a festa do Natal.


Havia desde presépios em tamanho natural…


... até o trono do Papai Noel.

Passando por outras referências religiosas, como o anjo da anunciação...

... e árvores de natal estilizadas.

Enfim, é por aqui principalmente que acorrem os curitibanos quando querem aproveitar um pouco de sol, e é natural que acompanhe o decorrer do ano em suas principais datas.

Há um bom tempo atrás, ainda nos primórdios deste blog, redigi um texto rápido (como ainda era costume de fazer) em que eu reportava algumas polêmicas pessoais que eu tinha com relação ao Natal. Reli ele esses dias e fui povoado de recordações. Nesses onze anos, é possível perceber bem o quanto nossa cabeça muda, e o quanto permanece igual.

Houve vários acontecimentos na minha vida nesse intervalo, como acontece como todo mundo. Há, entretanto, fenômenos que nos atingem fisicamente ou financeiramente, mas que não movem um centímetro de nossos pensamentos, enquanto pequenas bobagens podem dar um giro de 180 graus no modo como encaramos o mundo. Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno, o fato mais notável, nesse meio tempo, foi a mudança de meus conceitos religiosos, como esmiucei em detalhes neste texto, que seria importante de ser lido antes de se prosseguir. Eu vivia um tempo em que o Natal me era intenso dentro da igreja, primeiro por conta dos preparos para a Missa do Galo, depois pela montagem de presépios vivos e, por último, por desenvolvimento de autos de Natal completos, incluindo todo o ciclo de profecia, anúncio e nascimento do vindouro messias. Dava um trabalho imenso, inclusive para costurar a cadeia de acontecimentos que é descrita sem uniformidade pelos quatro evangelhos, mas, com alguma criatividade, sempre é possível dar coesão para as pontas soltas. Depois, era ensaiar com a molecada, preparar roupas e acessórios, convencer a assembleia de que não era necessário sermos tão conservadores e colocar tudo em prática, para ao fim, já exaurido, respirar fundo e já começar a pensar no Natal do ano subsequente. Com a minha "conversão", tudo isso perdeu sentido, e se transformou em uma história bonita, nada mais do que isso.

Quem realmente vive o ciclo litúrgico dos católicos compreende que nenhuma das celebrações é privada de sentido, ou seja, ser feita só por fazer. Isso inclui as datas mais conhecidas, como o Natal e a Páscoa, outras que outrora estavam mais no dia-a-dia das pessoas, como o Pentecostes e o Corpus Christi, e ainda há aquelas que somente quem vive e convive com os ritos se mantém antenado, casos de Exaltação da Santa Cruz e Batismo do Senhor, para ficar em poucos exemplos. A discussão aqui, entretanto, não é sobre a lógica que permeia essas celebrações e festas, nem como elas estão encadeadas entre si e com as disposições bíblicas e magistrais, mas no que se tornam quando o seu cerne rui. Surge certamente a pergunta: o que muda no Natal para alguém que perdeu a fé?

Relendo o texto que citei, e falando especificamente do Natal, noto que muito pouco. E os motivos já estão expostos lá. Algumas das celebrações, aquelas mais centrais, deixaram de ter um significado meramente religioso, passando até mesmo a ser completamente ressignificados. Os feriados religiosos que não foram capturados pelo capitalismo tendem a sumir, enquanto os outros ganham um sentido novo e se desvinculam do sentido original. Se a máquina do capital conseguisse transformar a festa da Cátedra de São Pedro no dia mundial de comprar cadeiras, ela certamente não seria tão circunscrita aos círculos dos fiéis mais arraigados.

Esse fenômeno não é isolado, nem inédito. O próprio Natal ocupou outra celebração, desta vez pagã, e lhe modificou o sentido original. A novidade é que a troca de guarda agora está motivada por motivos financeiros, a não ser que consideremos também o capitalismo uma religião. Nem é tão difícil fazê-lo.

Vejamos. Reza a tradição que o Natal é uma festa para reunir a família, especialmente porque o nascimento do pequeno Jesus reúne a mais importante de todas para os cristãos, a Sagrada Família. A primeira discrepância já vem aí. Reunidos em uma manjedoura, não é de se esperar que houvesse um lauto banquete na chegada do menino, e as festas de Natal são regabofes nível hard, daqueles de quebrar o orçamento. A outra é constituída pela entrega de presentes dos reis magos, que é, desprezando seu aspecto evidentemente lendário, revestida de pura carga simbólica. Até poderíamos encontrar algum propósito para presentear com ouro, mas com incenso e mirra? O que poderia ser feito com esses presentes? No plano do símbolo, entretanto, dizem os teólogos que há todo sentido do mundo: o ouro é a representação da realeza, o incenso do sacerdócio e a mirra da profecia - rei, sacerdote e profeta, aquilo que se esperava de um messias, aquele que viria libertar os hebreus do jugo romano. Só que daí se esvazia o simbolismo da troca de presentes, o centro da celebração secularizada. O próprio sentido do ouro não é ser caro, mas ser precioso.

Entretanto, se o sentido de cunho místico da entrega dos presentes deixa de ser um motivador para ser apenas uma origem da tradição, novos sentidos podem ser explorados sem o mesmo vínculo. Dar um presente tem um significado belo, que extrapola a ideia capitalista: a de ter com as pessoas com quem convivo algo que as faça recordar de mim, e me garantir que algo material me representará na lembrança deles. Não se trata mais de transferência de riquezas (embora não seja barata a lista de presentes), mas da expansão da memória, uma maneira de estar mais presente (né?) e de tornar mais duradouras e independentes do espaço as relações. Isso não está relacionado à religião, e é praticável por qualquer pessoa. Além disso, vamos combinar que eu gosto de ganhar um brindezinho de vez em quando também. 

Com relação ao símbolo comercial mais relevante do Natal, o Papai Noel, absolutamente nada mudou. É, sim, um personagem de origem religiosa, mas já foi tão cooptado pelo espírito de compras que essa ligação com São Nicolau de Mira virou uma mera tangência. Eu já não costumava levar em conta seriamente essa figura, e, como expliquei no texto mencionado, nunca entendi muito bem a sanha que os pais têm de difundir essa história complicada para os filhos, a mentira que permanecerá no subconsciente, a permissão para a falta de confiança. Mas, aí é o famoso versinho: ema, ema, ema, cada um com seus "pobrema".

Então temos o que segue: o Natal tem um aspecto festivo que não se resume às suas origens míticas e litúrgicas, mas a um conjunto de “espíritos” que as extravasam. É um momento em que as pessoas se sentem imbuídas de um geist caritativo, onde ao menos por um momento olha-se ao redor e se veem pessoas com necessidades. Tanto isso é real que os donativos disparam, as refeições para os necessitados se tornam mais dignas e há, nos albergues e instituições de caridade, um mínimo a mais que nos demais tempos do ano. Há uma boa dose de hipocrisia nisso tudo, bem sabemos, porque é uma caridade feita como um desagravo por tudo que não se fez no restante do ano, mas o fato é que o mesmo fenômeno se repete sempre.

É também, como eu disse antes, um momento familiar, que pode se estender a um conceito mais amplo, que inclui as amizades próximas e as vizinhanças. É um momento razoável para introduzir novas pessoas no meio, como eu fiz com minha então namorada e hoje patroa, apresentada para a intrépida trupe no Natal de 1986. São dias (ou eram) em que alguns parentes mais distantes geograficamente resolviam dar um abraço nos velhos mais velhos, e enchiam a casa de comida e de suas presenças.

Além disso, o Natal tem todo um aspecto estético. Há quem o considere monocórdio, há quem o ache um tanto brega, e não faz mal que o seja de fato. Um festival para os sentidos não precisa ter uma variedade inesgotável de elementos, até mesmo porque cores e luzes fazem sinonímia com as representações natalinas. Eu lembro de uma árvore de Natal que minha avó tinha. Era linda de verdade, com ramagem prata e bolas azuis, mas dizia-se que era um elemento natalino pela sua forma, e não pelas suas cores. Então o pessoal tinha uma certa implicância com a tal árvore, pelo simples fato de não seguir a coloração padrão, semelhante à camisa da Portuguesa. É um ditame? É, mas melhor seria que regras fossem assim.

A estética não se limita a cores e papais noéis, contudo. A própria mesa vai buscar intensidade de sabores. As saladinhas, quando existem, são mais pela teimosia das tias que acham que não pode faltar uma quebra ao maremoto de gordura das carnes e às avalanches de açúcar. Tudo tem sabor marcante, temperos de nomes italianizados e aroma que se sente a quilômetros de distância. Tudo é muito, um exagero que exige dois ou mais enterros de ossos, o que é sempre uma boa desculpa para se reunir tudo novamente. De repente, gasta-se mais na culinária do que nos presentes. Ao menos ajuda muito na devastação do abono.

Tudo isso emerge na festividade e submerge a religiosidade, e nada disso é infactível para um descrente, que, ao fim e ao cabo, só não participará da Missa do Galo. Ele pode até mesmo apreciar o presépio, admirar-se com a história que se conta e sentir-se tocado com os sinos que batem à meia-noite, e até mesmo, vejam vocês, dar um respiro no caos que se movimenta todo ano por esta mesma época, posso garantir a vocês. E isso pode acontecer num parque, um belo parque, amplo e aconchegante. Bons ventos a todos!

Recomendação de visita:

Parque Municipal Barigui

Avenida Cândido Hartmann, s/nº

Bigorrilho

Curitiba/PR

A aproximadamente 410 Km do centro de São Paulo

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 68º tomo: o apelo à natureza (argumentum ad naturam)

(Será que o que é natural é melhor mesmo?)

"É uma erva natural, não pode te prejudicar"

Olá!

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Nada pode estar em polos mais opostos do que meus dois filhos. O moleque-mais-velho é adepto da elegância, da liberdade e do livre-mercado, enquanto a menina-mais-nova curte roupas despojadas, igualdade de oportunidades e pautas sociais. Um é noturno, outra é matutina. Ele gosta das modernidades tecnológicas, ela de ar campestre. E, especialmente, o menino aprecia o churrasco que a garota odeia, vegetariana que é.

É preciso pôr o pingo nos is, antes de vilanizar um ou outro. Meu filho come vegetais normalmente, como qualquer ser humano médio, e a menina não radicaliza sua dieta, tentando enfiá-la goela abaixo dos outros. Decidiu não comer mais carne aos doze anos, e eu achava que duraria somente até o próximo verão, mas ela persiste ainda hoje, quinze anos depois. O negócio dela é não matar os bichos, e ovos, leite e mel estão em seu regime, todos estes alimentos de origem animal que não implicam no sacrifício de quem os produz. Cria galinhas, inclusive. Os veganos, que não consomem absolutamente nada de origem animal, dizem ser eles os vegetarianos autênticos, já que ovos, leite e mel não brotam do chão. Mas isso não está em causa, pelo menos neste parágrafo.

Bom… há uma eterna discussão em casa a respeito de alimentação, menos agora em que cada um está em um canto, ele em Curitiba, ela em Taubaté. Um fala dos benefícios das proteínas, outra das maravilhas das fibras. Um reporta os inigualáveis sabores, outra das infinitas descobertas, e assim vai, numa movimentação dialética que traria orgulho a Hegel. Quando a coisa vai para a abordagem da saúde, aí penetramos em terreno pedregoso, principalmente porque nenhum dos dois tem razão. É gozado que ambos procuram justificar suas escolhas com fontes, o que é bom, mas naturalmente que essas são selecionadas de acordo com a conveniência de quem a usa como argumento, o que é ruim. "Nutrólogo Fulano defende que é possível extrair energia daqui e dali", diz um. "Mas fisiologista Sicrano estudou os reflexos maléficos a longo prazo", rebate outra. "Isso porque ele não observou os estudos do doutor Beltrano, que blá-blá-blá". A discussão segue ad infinitum, e costuma terminar com termos menos urbanos e respeitosos, geralmente quando a patroa ou eu colocamos uma pedra na animosa tertúlia, como se ainda fossem crianças. 

Eu tenho uma tendência em desaguar no aristotélico meio-termo, que é minha prática diária, na verdade. A base da minha alimentação é vegetal, até mesmo por questões monetárias, mas eu, sempre que posso, apelo para uma carne qualquer, que realmente agrada bem mais os sentidos. A questão é que, quase invariavelmente, um tema desses desemboca para a saúde: qual dieta é mais saudável. E aqui, novamente, a coisa deságua na vantagem da alimentação natural, que não é ruim, evidentemente, mas que cai na comuníssima falácia: se é natural, será melhor para sua saúde. Então… é um argumento tentador, e, por isso mesmo, usado à exaustão. Mas não, não é verdadeiro, lamento muito.

Os exemplos começam pela negação de que as coisas naturais são sempre boas. Há plantas venenosas, que são naturais e naturalmente matam. Há animais peçonhentos, que matam, mesmo sendo naturais. E mesmo certos alimentos que, na dose correta não causam mal algum, em excesso causam prejuízos enormes. Há certos vegetais, como a castanha de caju e mandioca brava que, in natura, são perigosos. E vejam só, uma vez manipulados deixam de sê-lo, ou seja, quando perdem sua natureza.

Depois, vamos para o polo oposto, o de que tudo o que é artificial faz mal. Há a fitoterapia, que é uma proposta séria e científica de tratamentos com fármacos baseados em plantas (ao contrário de outras ofertas mágicas, como as famosas homeopatia e ozonioterapia), mas percebam que muito do que temos na alopatia deriva de aperfeiçoamentos de princípios ativos que são originários dos fitoterápicos. Afinal de contas, os artigos artificiais não brotam das fábricas através de buracos negros que os teleportam de outras dimensões. No limite, produtos artificiais vem da natureza, da mesma forma que o delicioso molho de tomate que sua avó prepara no fim de semana.

Talvez este argumento tenha ganhado reforços nos últimos anos porque a evolução da engenharia de alimentos e da farmacêutica chegou a limites impensáveis, e, por derivação, assustadores. Quem vê um breakfast tipicamente ianque nota que nada ali deixa de passar por processamentos industriais, o que foge dos idealizados cafés da manhã de hotelaria, com muitas frutas, pão fresco e leite da fazenda. Ora, o primeiro ponto é que nosso dia-a-dia é bem diferente. A combinação canônica do brasileiro é a boa e barata pão-com-manteiga-café-com-leite, sendo os acréscimos coisas fora do trivial. Então uma alimentação mais frugal, mais próxima do que o homem "natural" consumiria, parece mais inofensiva aos nossos organismos. E é. Mas não se pode pura e simplesmente demonizar os alimentos processados por esse simples fato. Não é essa a questão que traz malefícios.

Eu primeiramente preciso me colocar na zona morta. Não sou adepto de altas industrializações e, sempre que posso, gasto reais a mais para comprar alimentos orgânicos, carnes inclusas. Por isso, entendo que não posso ser considerado defensor de nenhuma das posições inequivocamente, mas tendo à vertente dos naturalistas. Mas vamos continuar com calma. Note-se que a média de vida da população brasileira aumentou muito no último século*. Isso não se deve a melhorias da condição de vida por políticas públicas ou por crescimento de renda, mas ao acesso a uma série de itens que não são naturais: medicamentos modernos, vacinas (sim, vacinas), alimentos que, mesmo processados, não causam infecções porque estragaram, algo muito comum de se acontecer quando métodos não industriais são aplicados. É evidente que a busca por mais e mais sabor trouxe igualmente mais e mais aditivos. Estes, de fato, não trazem nenhum benefício nutricional. Portanto, só resta neles o que vem de ruim. Por isso, há sentido pleno em evitá-los. Nunca eu diria, por exemplo, que é possível comparar os níveis nutricionais daquele refrigerante famoso com um suco de laranjas frescas, recém-colhidas do pé.

Entretanto, cansamos de ver a publicidade apelar para a naturalidade dos produtos que anuncia. Termos como "sem adição de conservantes" são impressos em letras quase tão grandes quanto as da própria marca, porque são uma garantia de boa aceitação por parte do público. Captem que não são informações obrigatórias – a legislação que reza por aquilo que deve constar nas embalagens diz que é preciso dizer o que foi adicionado, e não o que não foi.

O que podemos concluir? Que é de bom tom que tudo pareça o mais natural possível. Isso não vai se limitar a alimentos, mas a shampoos, maquiagens, produtos de limpeza e assim por diante. Mais ainda se associados a uma roupagem verde, muitas vezes utilizada apenas para travestir uma aparência de preocupação com a natureza, uma prática conhecida como greenwashing, sobre o que já falei neste texto. Só que as coisas naturais não são, por si só, certificados de ausência de problemas. Os argumentos que defendem essa tese são falaciosos, e recebem o nome de argumentum ad naturam, ou, em bom português, apelo à natureza.

Um dos exemplos mais óbvios que eu posso dar é o do verso em epígrafe. É claro que precisamos considerar toda a liberdade poética e a mensagem que se quer transmitir, sem esquecer ainda que a arte usa de uma liberdade expressiva que a filosofia não tem, mas é inegável que a assertiva é uma demonstração de manual do apelo em questão. Mas antes, vou fazer algumas considerações contextuais.

O Planet Hemp é uma das grandes bandas brasileiras da década de 90, momento em que a explosão do rock dos 80 já estava arrefecida, e no qual uma transformação legal começava a tomar forma cá por estas terras. O momento histórico vem logo após a Constituição de 88, com toda sua legislação subsequente. A relação entre a lei e o consumidor de drogas ilícitas era, até então, correspondente ao do criminoso com o seu objeto, funcionando como se fosse um receptador de produtos de roubo, e fazendo parte dele. A partir da Lei 11.303/2006, o consumidor deixa de ser considerado mais um dos criminosos da cadeia e passa a ser considerado uma vítima de todo o ciclo, e o simples porte já não era um ilícito.

Ocorre que os fatos sociais não funcionam na base da chavinha, que é só girar para modificar o sentido do giro da roda. O usuário não deixa de se relacionar com o crime para obter seu produto, em mais um daqueles contrassensos legais de Terra Brasilis, e o consumo continua marginalizado. É nesse meio tempo que surge o Planet Hemp e seu principal interlocutor, Marcelo D2, que pugnam não só pela descriminalização do consumo, mas pela legalização de toda a cadeia que envolve a cannabis sativa, mais conhecida por maconha.

É o tipo da causa que divide radicalmente opiniões. Muita gente simpatiza com a causa, enquanto a maioria das pessoas vê esse tipo de proposta como fumaça nos olhos. A apreensão direta é fácil: a criminalidade tem no tráfico de drogas seu maior combustível, já que se movem muitos roubos e assassinatos por conta do mecanismo que há por trás dos produtos ilícitos. Por isso, todo mundo que tem um celular roubado sabe que, indiretamente, é por conta do narcotráfico que se deu a ocorrência. E isso faz com que qualquer proposta de liberação seja vista com maus olhos. Tem muito de confusão aí no meio, mas nem vou pôr em causa agora, para não fugir muito da minha proposta inicial (já tenho feito textos longos demais). A questão é que, sendo daqueles que estão a favor da legalização, o pessoal do Planet Hemp procura gritar alto e chamar a atenção para a causa.

É como uma espécie de vale-tudo, inclusive no campo das falácias. “Legalize Já” é a canção que traz o verso da epígrafe, carregando uma espécie de desagravo com relação às drogas sintéticas que tanta dor de cabeça levam para pais e sociedade como um todo. A lógica é a do apelo à natureza, mas a mensagem é a de que há preocupação excessiva no ponto onde o problema é menor, ao menos na posição defendida por eles.

Hoje poderia soar anacrônico, mas não soa. Ainda se discute interminável e contraproducentemente a questão da drogadição no Brasil, e o que irrita é a indefinição dos rumos, que não vão para cá, nem para lá, como tantas outras coisas que tornam esse país cada vez mais difícil de viver.

Mas vamos dar a rápida pincelada técnica. Como qualquer outro apelo, o argumentum ad naturam é uma falácia de dispersão, porque desvia o foco racional ao escapar por um caminho lateral, e é também uma falácia de relevância porque introduz elementos irrelevantes em um argumento. No exemplo, ao dizer que uma erva natural não causa prejuízos, desvia-se do aspecto de saúde pública e insere-se a natureza como um justificador de uso, como se isso, de per si, fosse verdadeiro.

Outro ponto muito importante é que essa falácia pode ser facilmente confundida com a falácia naturalista, que foi objeto de meu último texto. Se há algum toque entre elas, é bem superficial, porque há a assunção de que valores éticos são intrínsecos aos objetos, e que é natural que seja possível valorar algo como bom ou ruim. Neste caso, ser natural é algo bom, e isso concede qualidades extraordinárias ao que é extraído da natureza o mais incolumemente possível. De resto, são duas coisas distintas cujo principal ponto de contato é o nome, e pouco mais do que isso.

De resto, a menina mais nova se casa no sábado que vem, e vai dar uma pequena festinha em um café. Não me admirarei se ela e o moleque mais velho saírem discutindo se o salame do lanche ajuda ou atrapalha no valor alimentício da melhor sanduba do lugar. Bons ventos a todos!

Recomendação de audição:

Álbum duro, seco e pesado. Uma sonoridade que mistura a declamação do rap com a energia do rock, não deixa ninguém impassível. Para ouvir bem alto.

PLANET HEMP. Usuário. Rio de Janeiro: Sony, 1995. CD. 54 min.

*https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/ibge-esperanca-de-vida-do-brasileiro-aumentou-311-anos-desde-1940

terça-feira, 18 de abril de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 67º tomo: a falácia naturalista

(Sermos quem somos nos dá atributos morais inevitáveis ou isso é uma falácia?)

Olá!

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Eu crio passarinhos desde que eu me conheço por gente. Não é exagero: fiz um mapeamento mnemônico e não consegui recordar qual foi o primeiro canário que um dos meus parentes me botou para cuidar. Aliás, nem lembro bem se foi um canário, mas creio que sim. Muitos dos meus tios tinham diversos, e é provável que eu tenha enchido o saco de um deles até que me dessem um. Também pode ser que a brincadeira tenha começado em casa mesmo, já que minha mãe costumava pegar aqueles que vinham parar no quintal. Isso se deu também com pássaros-pretos, o que seria uma boa encrenca hoje em dia com o Ibama. Mas, na época, nem se pensava nisso. Hoje em dia, só passarinhos legalizados.

Eu tenho essa atividade até hoje, mesmo morando em apartamento. A rotina é mais ou menos sempre a mesma: supervisionar a água, limpar os bebedouros, soprar o alpiste, trocar o papel, eventualmente dar alguma vitamina e manter o viveiro higienizado. Como recompensa, é ouvir o canto matinal como despertador, e "bater um papo" com os bichinhos enquanto eu preparo o café.

Já há algum tempo, contudo, eu estou deixando o costume de lado. Não os coloquei mais para cruzar, e isso, paulatinamente, fez com que sobrassem apenas dois no momento em que escrevo este texto. Já me livrei de alguns viveiros, inclusive, e não farei reposições. O principal deles, do quarto grande, já está vazio, pronto para ganhar nova destinação (inclusive descarte).

Quando ambos voarem em definitivo, vou rolar as portas e me aposentar da atividade. Isso tudo porque eu tenho ficado muito pouco em casa, e o que era um hobby virou uma preocupação a mais. Se eu ficar mais de quatro dias fora, já preciso arrumar alguma parafernália que permita manter água e comida. Isso não é bom, porque estes não devem ficar velhos, perdem qualidade – imagine que você vá beber uma água parada há uma semana. Eis que acho mais honesto com os penosos não os ter do que os ter inadequadamente.

Os passarinhos são uma marca quase registrada minha. Nesses tempos de home office, eles ficavam competindo com minha fala nas reuniões virtuais, o que faz os outros sempre perguntar por eles até hoje, especialmente quando eu estava trabalhando fora.

Mas sempre houve quem não gostasse. Passarinho na gaiola sempre plasmou um homem num presídio, um cerceamento da liberdade. Não exatamente um condenado por crime, mas aprisionado à própria vida. Além disso, os canários na gaiola são apreensões particulares de puro egoísmo, o encarceramento de uma vida para um gáudio privado. Tendo cada vez mais a concordar, embora seja possível fazer duas colocações: se o bicho aceita passivamente sua privação de liberdade, é porque instintivamente ele vê alguma vantagem na coisa. E há uma dose reforçada de cinismo em quem condena o engaiolamento de pássaros, mas tem cães em apartamentos minúsculos. Por trás disso tudo, há a afirmação da liberdade como boa em si mesma. E aí a coisa pega, ao menos para dois grandes filósofos: David Hume e George Edward Moore, mais conhecido como G. E. Moore.

A discussão aqui não será se a liberdade é ou não uma coisa boa, porque eu contei toda essa história apenas para constituir um exemplo. Substitua qualquer coisa que possa receber um juízo de valor como definitório e teremos o mesmíssimo efeito: bondade, amor, justiça. A questão aqui é tomar uma definição deontológica onde só cabem definições ontológicas. Confuso?

Vamos lá. Resumidamente, a Ontologia é a área da Filosofia que cuida do Ser em si mesmo: suas características e definições, que diferencia o que cada objeto no universo tem de essencial e o torna único (defino mais criteriosamente o tema neste texto). Já a Deontologia é uma espécie de estudo sobre deveres e obrigações, especialmente no seu sentido ético. Quando eu digo que uma coisa é pequena, eu estou fazendo uma afirmação ontológica, porque eu estou supondo métricas e observações que podem estabelecer comparações e grandezas. Já quando eu digo que essa mesma coisa é boa, já aí é preciso estabelecer juízos. Bom para quê? Bom para quem? Bom em que medida? Quando digo que algo é bom, subentendo um valor que vai além do aspecto de verdade, porque é difícil estabelecer o que é bom através de réguas.

David Hume é um filósofo escocês do século XVIII, cujo cerne filosófico está no ceticismo e no empirismo radical. Quando defrontado com questões como aquelas que mencionei acima, ele manifestaria o desconforto típico de quem enxerga uma assimetria entre aquilo que pode ser constatado pela experiência e o que deriva de normatizações que não podem ser inferidas inequivocamente.

Portanto, há, no entendimento de Hume, uma confusão entre os significados de SER e DEVER SER. Qual é o grande problema que ocorre neste caso? É que Hume, um dos mais eméritos empiristas que se tem notícia, a ponto de exercer um ceticismo quase absoluto, entende que há uma mudança significativa enquanto você estabelece uma definição para a coisa e para quando são descritas regras para a coisa. A deontologia não é descritiva, mas normativa, caindo-se, por conseguinte, no aforismo popular: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

O que Hume afirma, categoricamente, é que não se pode deduzir o que as coisas deveriam ser a partir do que elas são, porque isso fere a factualidade exigida pelo processo empírico. Por exemplo, quando eu afirmo que o Carnaval ocorre em função da festa de Páscoa*, eu estou fazendo uma afirmação definitória, que diz respeito à sua essência – ontológica, portanto. Já se eu afirmo que o Carnaval é licencioso, cabe aqui, subrepticiamente, uma afirmação de caráter moral, mais difícil de ser demonstrada empiricamente. Isso acontece porque entra aqui a questão dos valores. O que é licencioso, por exemplo? Vai depender do momento histórico e da cultura de quem faz a afirmação. Mulheres que usam calças, por exemplo, já foi um exemplo disso, tanto no tempo, quanto em lugares com determinadas culturas. Essa separação entre o que está no campo da definição e o que está na área do dever ficou conhecido como Guilhotina de Hume.

A verve crítica de Hume, embora muito respeitada, nunca foi suficiente para modificar a opinião de quem enxergava a existência de verdades morais objetivas. Embora não formassem uma massa uniforme, esses pensadores buscavam salvaguardar uma ética dada pronta, o que vai ao encontro das posições religiosas, em que uma divindade decreta normas racionais, o que constituía consequências obrigatórias de um determinado fato. Por conta disso, o filósofo ético inglês G. E. Moore repropôs a guilhotina de Hume, desta vez na forma de falácia.

Qual é a linha de pensamento de Moore? Certos pensadores éticos entendem que os valores morais são uma propriedade das coisas da mesma forma que ocorre com propriedades físicas. Uma coisa sempre será boa ou ruim, certa ou errada, justa ou injusta, independentemente do juízo que se fizer dela. Portanto, o valor moral é um dos itens da essência de um fato ou fenômeno qualquer, faz parte de sua natureza.

Para demonstrar a falaciosidade destas proposições, Moore apresenta o problema em termos lógicos e linguísticos. De fato, quando uma definição é ontológica, podemos observar que, mesmo revestida de sofisticação, o predicado resultante já está contigo no próprio sujeito. Um exemplo extremamente simples: um ser vivo é um não-morto. Simples, óbvio, irrefutável e sem acrescentar nada à definição que já está contida na próprio sujeito, cumpre com exatidão o atributo de definir o que um ser vivo é. Não serve para nada? Não serve, mas é uma questão fechada: não resta espaço para juízos.

Mas a coisa fica esquisita quando se tenta definir qualidades. Há uma confusão linguística gerada a partir do verbo de ligação “ser” onde o “é” acaba tendo seu uso confundido. Moore utilizou várias assertivas do filósofo ético Herbert Spencer para explicar seu ponto. Spencer, por exemplo, dizia que uma boa conduta é uma conduta mais evoluída. Podemos acrescentar qualquer outra definição: que é uma conduta determinada por deus, ou uma conduta que ocasione prazer, ou um menor prejuízo para o maior número de pessoas. Notem como aqui não temos como considerar essas assertivas, nenhuma delas, como uma questão fechada. Boa conduta não é sinônimo de nada disso, porque as definições de evolução, divindade, prazer e prejuízo não estão coligadas inequivocamente à de bem; não só porque são discutíveis esses conceitos, mas por uma questão linguística mesmo. Eis que a Guilhotina de Hume é retomada, a partir de Moore, na forma de argumento da questão em aberto.

Agora nós podemos falar do Pequeno Guia. Moore dá ao formato de argumento que entende que valores morais têm força ontológica o nome de falácia naturalista

Pratica-se uma falácia dessa categoria sempre que se considere “natural” que exista alguma definição ética ou moral em função de um objeto, seja coisa, fenômeno ou indivíduo qualquer, ser o que é. Definições escapam à normatização, que somente ocorrem por intermédio de uma cultura ou consciência. Uma bola permaneceria redonda (critério ontológico e mensurável) ainda que não houvesse um único ser vivo no universo. Ela somente seria divertida existindo os mesmos, num critério deontológico e aberto. Eu gosto de futebol, o dona Madalena do terceiro andar detesta.

Mas parece difícil encontrar uso corriqueiro da falácia naturalista, talvez você pense, meu bissexto leitor, minha ocasional leitora. Não é, não. Pense nas inúmeras vezes em que já se encaixa uma qualidade "definidora" que vá além da definição, e isso é uma daquelas velhas geratrizes de preconceitos. Muitos são os exemplos: homossexuais são aqueles que tendem a se relacionar com pessoas do mesmo sexo, e essa é uma definição fechada. Qualquer outra tentativa de se atribuir valores à definição terá um fundo moral, e isso escapa da essência, caindo em um dever ser que está em quem o profere, e não na definição em si. Um ateu é um descrente em deidades, e ponto. Não é alguém sem ética, nem que não está disposto a seguir regras, nem indiferente a sentimentos alheios. Um ateu PODE ser tudo isso, ou não, isso não muda sua definição. Um negro é alguém que tem maior pigmentação na pele. Um estrangeiro é alguém que veio de fora do país. Um idoso é alguém acima de certa idade. São todas simplificações, mas explicam bem o ponto. Qualquer julgamento moral que busque dar características intrínsecas a um indivíduo qualquer recai na falácia naturalista. E é isso.

Só um cuidado a ser tomado. Há outro tipo de falácia que pode ser confundida com essa, por conta do nome que leva. Mas vou tratar dela no próximo texto. Fiquem atentos e bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para o principal livro do filósofo que detestava seus nomes cristãos: George Edward:

MOORE, George E. Principia Ethica. São Paulo: Ícone, 1998.

*O Carnaval ocorre na semana em que se inicia a Quaresma, que, por sua vez, é calculada para ocorrer quarenta dias antes do início da Semana Santa, que, por sua vez, começa no domingo anterior à Pascoa, que, por sua vez e finalmente, é calculada para o primeiro domingo posterior à primeira lua cheia posterior ao equinócio de primavera no hemisfério norte. Ufa! 

segunda-feira, 3 de abril de 2023

O futebol e suas diferentes filosofias: uma introdução para explicar porque cheguei até aqui

(Um passeio e uma placa são suficientes para inaugurar uma nova série) 

Olá!

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Nós, humanos, guiamo-nos por metáforas e alegorias. O mito da caverna de Platão, o eterno retorno de Nietzsche e o tempo como música de Santo Agostinho são alguns dos exemplos de como uma linguagem figurativa consegue traduzir mais facilmente um fenômeno do que um tratado científico. Isso se explica facilmente. Mesmo que uma teoria explique a realidade como ela é, há momentos em que apenas os iniciados possuem informações suficientes para compreender todo o seu significado, especialmente quando envolve fórmulas, os fantasmas dos estudantes. Quando buscamos uma explicação mais compreensível por um maior número de pessoas, vamos procurar algum elemento que esteja mais próximo do conhecimento geral. Um exemplinho maroto é o bóson de Higgs, mais conhecido como “partícula de Deus”. A explicação é complicadíssima, e envolve um conhecimento mínimo da teoria atômica para ser compreendida. Usando a metáfora, é mais fácil de explicar que tem alguma coisa dentro do átomo que “cria” as subpartículas, assim como Deus estaria criando coisas pelo universo afora. É por este motivo que ocorre, muitas vezes, de que a figuração seja mais eficiente até mesmo que exemplos, as ferramentas didáticas por excelência.

Alguns elementos são bastante utilizados como componentes figurativos para construir as metáforas e alegorias que eu citei, e são, geralmente, extraídos do ambiente em que se vive. Acho que o exemplo mais clássico que podemos utilizar são as parábolas cristãs, retiradas diretamente do ambiente agrário da Palestina dos tempos da dominação romana. Daí, vamos ver a parábola do semeador, a alegoria dos lírios do campo, dos lobos disfarçados de ovelhas, da ovelha perdida, do joio e do trigo, do grão de mostarda, da figueira estéril, dos trabalhadores da vinha, do bom pastor e ainda outras. Percebam como todos eles são constituintes daquela realidade, fáceis de compreender por qualquer pessoa que conviva com a mesma estrutura social e princípios éticos. São ingredientes que permitem refletir outra realidade que não é tão próxima, nem tão palpável. Se eu falar a um hebreu do século I que o nascimento dos brotos de uma figueira indica que o verão está próximo, ele compreenderá mais facilmente o que significa os tais sinais dos fins dos tempos que Jesus trata em sua famosa premonição, não é verdade?

Percebam que também usei o próprio exemplo religioso como uma metáfora. Não é preciso ser cristão para conhecer a existência dos textos bíblicos, nem para compreender seus fundamentos, concorde-se com eles ou não. Mas é uma narrativa bem assentada em nossa cultura seus ensinamentos através das tais parábolas, e um ótimo exemplo de como funcionam as ferramentas do didatismo. E tem momentos que precisamos fazer isso, especialmente quando encaramos filósofos difíceis, como Hegel, Heidegger, Foucault.

Para isso, nós podemos utilizar coisas a que damos importância sem que tenham uma efetiva utilidade, para que se possa ter ao mesmo tempo um exemplo concreto e um necessário distanciamento. E um dos mais notáveis geradores de fenômenos está no esporte, evidentemente por seu caráter simulatório da vida real. Olhem só. Alguns esportes são muito próximos de combates efetivos, como o boxe e a esgrima, outros são simulacros de disputas individuais, como as corridas e a natação. Por outro lado, há os esportes que envolvem contingentes maiores, que se assemelham a exércitos, e esses são os esportes coletivos: vôlei, basquete, polo, e o que mais me fornece oportunidades filosóficas: o futebol.

É claro que eu guardo um certo parcialismo no caso. Isso é perceptível pela quantidade de textos em que eu faço pelo menos algum tipo de referência futebolística. Isso não é gratuito. A primeira parte diz respeito ao gosto e ao consequente conhecimento. Se você curte uma determinada novela, saberá mais sobre ela do que alguém que não acompanhou nenhum capítulo. Então toda comparação ou pontos de contato que eu fizer em algum texto contará com minha cátedra cinquentenária no assunto. Mas não é só. Eu gosto de automobilismo tanto quanto de futebol, e isso faz com que eu procure tantas informações quanto. Mas por que eu falo tão pouco de um e tantas vezes do outro? Simples. Automobilismo, Fórmula 1 à frente, está tão destacado da realidade geral que dificilmente constitui bons parâmetros para filosofar. É o créme de la créme da elite brincando de dar voltas com bólidos caríssimos. É uma usina alegórica para quando queremos demonstrar o funcionamento do capitalismo, mas não sai muito disso: as grandes que comem o bolo enquanto as pequenas morrem de inanição com as migalhas. De resto, as extrações que podemos fazer, como esta, ficam um pouco à margem do esporte em si. Gosto? Gosto, mas reconheço a distância que há entre mim e a realidade das pessoas que o praticam. Todas as vezes que fui a Interlagos, foi em eventos baratos, tipo Campeonato Paulista, e mesmo esses são muito caros para tocar. Veja que o automobilismo "de várzea" é o kart, que de barato não tem nada.

É com o futebol que temos uma, digamos, democracia esportiva. Aqui, tem lugar para baixos e altos, pobres e ricos, rápidos e lentos, e, vejam vocês, até gordinhos como os lendários Walter e Juca Baleia tem seu espaço. Até craques, como Paul Gascoigne e Neto, que não possuíam perfis exatamente esbeltos, conseguem se colocar nessa arena da vida como protagonistas, craques que eram. Das mais marmorizadas arenas arrancamos os maiores abismos sociais, dos mais esburacados campinhos extraímos conteúdo metafísico e até religioso. Tudo é possível tirar deste esporte que já nasceu nobre na Inglaterra, estético na China, guerreiro em Roma, e que hoje é retrabalhado em qualquer lugar onde faça sentido tocar algo semelhante a uma bola com os pés.

Isso acontece porque o futebol tem o encanto do inesperado. Um piloto não é campeão se não possuir um dos melhores carros, não há zebras no basquete ou no vôlei, o célebre time da Jamaica nas Olimpíadas de Inverno é mais uma ocorrência pitoresca do que um competidor real. Mas peguemos o ano de 2004 na história futebolística: Grécia campeã da Eurocopa, Santo André campeão da Copa do Brasil e Once Caldas campeão da Libertadores são fenômenos que dificilmente esta humanidade que ruma para a extinção verá novamente. Sendo assim, a elasticidade da parábola bretã alcança gregos e baianos com a mesma desenvoltura, como quereria Gilberto Gil.

Pois outro dia eu estava flanando pela Barra Funda e passei na frente da Federação Paulista de Futebol. Bem na entrada do prédio existe uma placa onde estão os escudos dos onze times fundadores:


Aqui tem de tudo: gente que morreu, que se foi e não voltou, há quem ficou rico, quem ficou célebre, quem ficou esquecido, quem é baluarte das modernas gestões e quem se mantém pelo simples gosto de ainda existir. Uma representação em onze escudos do que é o mundo e das voltas que ele dá. Neste painel estão representados o meu time do coração, o da patroa, o do bairro em que nasci, seus principais rivais e até o do salão de baile, todos, de uma forma ou de outra, que me fizeram entrar no mundo das coisas que adoro e de suas representações. Todos eles, de uma forma ou de outra, trazem lembranças da minha vida e, de certa forma, também inspirações filosóficas, especialmente por sua história e seu contexto social. De cada um destes distintivos brotou uma realidade, e somente lá, naquele painel corroído pela poluição, estão em pé de igualdade.

Essa variabilidade é inspiradora. Vejam só. Desde 2014, quando fiz uma viagem curta ao Vale Histórico, fui encontrando pequenos detalhes que ficavam cutucando a coruja de Minerva que está permanentemente no meu ombro. Isso está no próprio espírito de quem vê a vida por um viés filosófico, que não significa ser metido a besta. Isso nada mais é do que ser perguntador. Por que algo é assim, e não assado? Por que fulano disse isso? Por que a realidade parece diferente em momentos diferentes? De onde viemos, quem somos, para onde vamos (Gauguin mode on)? Isso não acontece somente quando estou sentado e pensando, mas quando tomo um café, quando comparo praças, quando vejo um painel com distintivos de times.

E por que eles estão todos aí juntos? Dizem que a união faz a força, e se juntar em uma federação traz várias vantagens que seriam penosas para cada um deles individualmente. Claro que a coisa é arbitrária: eu digo que a federação é a entidade que representa os clubes paulistas porque há consenso, e volta e meia ele é guerreado. Lá nos primórdios, chegou a existir dois campeonatos distintos, um da liga, outro da associação. Hoje a federação é rica, mesmo com o enfraquecimento dos campeonatos estaduais, porque o principal motivo de sua existência é reunir os interesses, especialmente dos grandes clubes. Mas essa trilha vai só até aí.

Vejam só como a vida é interessante. A federação nasce com um aspecto quase anarquista, de organizar o futebol paulista por si só, sem a interveniência de um governo desnecessário para ditar regras, e vai desembocar nos lobbys tão típicos dos regimes capitalistas mais encarniçados. Afinal de contas, a lógica meio que adaptativa que o capitalismo tem é plasmada aqui: quanto maior for a capacidade de penetração de um time e sua consequente capacidade de gerar lucro, tanto maior será sua influência nos destinos do todo. Os pequenos não detêm o mesmo poder, e que se virem com o que restar.

Os pequenos… Houve algum texto onde digo que nada seria do Real Madrid se não houvesse um Alavés para ser tripudiado (este). De fato, um campeonato que fosse uma eterna final entre os merengues e o Barcelona não se sustentaria. Mesmo os costumeiros clássicos entre a rua de cima e a rua de baixo tem um limite. Portanto, a coisa tem muito mais graça se outros times do bairro vierem fazer parte da festa. A importância do Alavés deveria ser a mesma do Real Madrid? Depende do ângulo que se tenha. O fato é que muito menos gente sentiria falta dele do que do gigante madridista, mas, de repente, há gente miúda, tão pequena quanto o clube, que conta histórias muitíssimo mais interessantes do que o insípido grandão tem, aquelas historinhas contadas de avô para neto, mais simples e próximas de todos nós, um lugar onde possamos puxar a grama e jogar para o alto para nos livrar dos sortilégios aplicados pelo adversário, algo impossível no mundo dessaborizado das arenas de sonho. As histórias são histórias, mesmo que contadas ao pé do ouvido, em uma roda de bar, em uma mesa de família, em uma saída de estádio.

Ora (direis), você não gosta de conforto? Não é o caso. Eu gosto do mundo, com suas idealizações e suas realidades. Eu curto um jogo tanto no Itaquerão (adoro essa mania brasileira de vincular os estádios aos logradouros), quanto na rua Javari, quanto em um campinho de várzea em Pedro de Toledo. Isso significa que a centralidade do jogo, para mim, está nas quatro linhas, e não da cadeira/monturo que me sento para assistir. O que não quer dizer que eu seja um bobo saudosista, mas que procure levar em consideração aqui o que ocorre nos rincões mais simples, e que o principal ocorre no campo, não fora dele.

Notaram quanta coisa temos em comum entre o futebol e a nossa miserável existência? Pode parecer que as comparações são simplistas, mas o fato é que o didatismo que conseguimos obter e a proximidade com nosso dia-a-dia é muito útil quando queremos fazer aquela aproximação que mencionei logo atrás.

Essa constatação me deu motivação para começar uma nova série de textos, inspirados na história e nas características de cada um desses clubes que constam deste painel, de modo a aproximar cada um deles de um tema filosófico, sociológico ou congênere. Isso servirá não só para satisfazer meu ego, mas para corroborar toda a tese que explanei aí atrás. Serão textos esparsos, escritos sem cronologia e nenhum rigor metodológico, na medida em que surgir a inspiração, que, confesso, já surgiu para quase todos os times. Relembro: filosofia é tema árido para a maioria das pessoas, e usar artefatos que a aproxime desses temas pode trazer um interesse que antes estava apenas latente. Essa é a minha busca, vamos ver se funciona. Bons ventos a todos!

Recomendação de visita:

No estádio do Pacaembu, há dois equipamentos muito interessantes para quem gosta de futebol. Um deles é o Museu do Futebol, que possui interatividade com os visitantes, exposições fixas e itinerantes, salas temáticas e biblioteca. O outro, bem menos conhecido, é o Centro de Referência do Futebol Brasileiro, uma entidade de pesquisa que disponibiliza farto material, promove palestras, seminários e faz convênios com outros órgãos para a divulgação e ampliação do conhecimento relativo ao esporte. Imperdíveis.

Museu do Futebol e Centro de Referência do Futebol Brasileiro

Praça Charles Muller, S/N - Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho

Pacaembu - São Paulo/SP