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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Em demanda dos trilhos perdidos – 1ª estação: Maria da Fé e a presença do feminino em lugares improváveis

Olá!


Vou interromper momentaneamente minha tarefa de elucidação de áreas da Filosofia (vejam aqui os textos já publicados) por uma razão nobre: fui dar um daqueles meus habituais rolês a esmo, sem roteiro fechado e com os riscos inerentes à quem se atreve a mochilar, ainda que de carro. Poderia esperar o término do guia? Poderia, mas desse jeito junto duas vantagens – dou uma descansada na chateação da monotemática e anoto rapidamente minhas considerações, que povoam um cérebro já não tão retentivo. Como virou praga, todas as vezes que visito um local, fico fazendo minhas considerações filosóficas, para depois traduzi-las em postagens, como esta que agora inicio. Portanto, vamos lá.

Meu último destino tinha sido o Sul de Minas, na região das Terras Altas da Mantiqueira e no Circuito de Águas Mineiro (leiam aqui os relatos). Apesar de passar por muita parte, senti que algumas coisas ficaram para trás, dadas as dicas de lugares que o próprio pessoal desses roteiros passava para mim e para a patroa. Não resta muito a fazer, com a parca semana que me é reservada para descanso a cada temporada, a não ser regressar e palmilhar mais um pouco deste chão, o que fiz. Desta feita, baixei de meridiano e fiquei por uma região conhecida como Caminhos da Mantiqueira, apreciador de serra e mato que sou, em região bem fronteiriça com o estado de São Paulo. A travessia percorreu área outrora coberta por uma importante malha ferroviária, e me dediquei a caçar aqui e ali os indícios dessa presença. Alguns são óbvios e bem preservados; outros, ficaram apenas na memória dos velhos moradores, que gostam de bater papo e contar “causos” com nível de credibilidade variável. Por isso nominei esta série desse jeito. O começo de tudo se deu pela pequena cidade de Maria da Fé.


Este lugarejo, cujo nome homenageia uma pouco conhecida proprietária de terras naquelas sesmarias, fica no topo da serra do Capituba, um subconjunto da Mantiqueira, local muito alto, e que é frio à beça para os padrões mineiros. É toda cercada de vales e com horizonte farto de montes e colinas. Como se pode perceber, chovia e fazia muita nebulosidade, com névoa estacionária no topo dos morros, algo muito frequente em terras com tanta variação de altitude, e que prejudica muito a visibilidade nos mirantes.


A antiga estação de trem se encontra bem preservada, e abriga hoje um espaço cultural. No dia em que estive lá, estava cheia de meninada, por causa de um desencontro de informações. Programada a exibição de um filme, o pessoal lá chegou às 13:00 para o deleite cinematográfico. No entanto, o número 1 marcado no cartaz não era um número, mas um rabisco qualquer. A sessão era às três da tarde, e, sendo assim, a massa mirim ficou aguardando pelos arredores, em frenético alarido, como é típico na faixa etária.


Ao lado da estação, uma locomotiva a vapor faz as vezes de obra estatuária. Seria legal se estivesse em funcionamento, como em Passa Quatro ou São Lourenço (se possível com preços mais convidativos), mas compreendemos que essas coisas não são fáceis. Pensei que a sigla RMV fosse a marca do fabricante, burramente. Não é. Significa Rede Mineira de Viação, o que significa que esta máquina operou em algum momento entre 1931 e 1965, período em que o tráfego esteve ao encargo desta companhia.


A praça formada à frente da estação é uma graça. É toda florida e bem cuidada, ainda no espaço que, no passado, era reservado à linha férrea. A caixa d’água que abastecia a máquina ainda está lá, dando referência à passagem dos hoje inexistentes trilhos.


Nesta mesma praça, temos a presença insólita de oliveiras, cultura incomum no Brasil, mas que acabou pegando em Maria da Fé, dada sua altitude e clima ameno. Neste sentido, é prima-irmã de São Bento do Sapucaí, onde também é praticada a olivicultura.


A árvore virou uma espécie de símbolo da cidade. Destaca-se da paisagem em geral pelo verde meio opaco de sua folhagem, composta de elementos alongados, e sua floração se dá no nosso inverno, de onde se deduz que não pude ver nenhuma. É uma folha meio dura, cujo sabor não lembra em nada uma azeitona.


Maria da Fé é a sede da Fazenda Experimental de Olivicultura da Epamig – Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais, uma espécie de Embrapa mineira, que pesquisa e dá apoio aos produtores rurais da redondeza, especialmente no cultivo de oliveiras e produção de azeite.


A Epamig cultiva os campos ao seu redor não só com propósito comercial, mas principalmente para compreender quais espécies melhor se adaptam às nossas condições ambientais e dão melhor produtividade. Por enquanto, o caminho vai apontando para espécies arbequina, espanhola e de sabor frutado; grappolo, italiana levemente amarga e koroneiki, grega mais picante.


A tarefa da Epamig inclui a extração do azeite, não só das azeitonas produzidas na casa, mas também para produtores menores, que não tem condições de armar um lagar próprio.


Boa parte dos produtores é abastecida pelas mudas germinadas em seus viveiros e estufas, não só nesta cidade, mas em outras localidades que vêm tentando se introduzir neste mercado.


Como o Brasil não é um produtor clássico de azeite, a Epamig estende sua pesquisa a outras espécies e mesmo provocando hibridações, em busca de resultados ainda melhores. Para tanto, possui um banco vivo de espécies em um dos seus terrenos. Agradecemos todas essas informações à Carol, que gentilmente nos atendeu naquele dia.


O resultado é muito bom, um azeite saboroso que se vem transformando em marca registrada de Maria da Fé.


Nem só de azeitona Maria da Fé viverá, mas de todo café que vier de sua zona rural. Sendo bastante alto, seu território não sofre das intempéries que sacrificam a qualidade da rubiácea, gerando grãos maturados no tempo certo, que produzem uma bebida mais suave, que dispensa adoçamento, característica do café de boa qualidade.


Vamos agora para a inevitável igrejona, que será a causa do argumento filosófico deste texto. Fica defronte a uma praça com declive acentuado, algo frequente por estas plagas, e é dedicada a Nossa Senhora de Lourdes. Trata-se de uma das mais célebres representações de Maria, que se apresentou na gruta de Massabielle, na cidade francesa de Lourdes, à menina Bernadette Soubirous, como a Imaculada Conceição.


A estátua da mesma santa pontua em um dos níveis da praça, ao lado de um dos canteiros de lavanda.


Por fora, é uma igreja típica, bastante bela, mas sem ser espetacular. O mesmo não se pode dizer do lado de dentro, este sim magnífico. É todo composto por pinturas da década de 40, pelo que entendi, e presta uma reverência incomumente feminina, buscando as personagens inclusive no velho testamento. O passeio se inicia pela própria padroeira, na lateral do altar, retratada aqui na aparição já mencionada.


No lado oposto, temos uma imagem que representa a proclamação do dogma da Imaculada Conceição, que, na doutrina católica, diz que a mãe de Jesus foi concebida livre do pecado original, comum a todos os seres humanos, para que dela fosse gerado um ser absolutamente puro.


Nos fundos da nave, no acesso ao campanário, há outra pintura com centro temático feminino: as Três Marias, tão conhecidas pelo nome dado ao cinturão da constelação de Órion, as três alinhadas e equidistantes, em rara ocorrência cosmológica e ecumênica. Maria de Nazaré, Maria Madalena e Maria de Cléofas choram a morte de Jesus, que não é exatamente o foco da tensão da obra, mas a dor e a sensação de abandono que perspassa da expressão das três mulheres.


Nas laterais do teto, há três destaques circulares de cada lado, e em cada um deles uma imagem feminina: as rainhas Ester e Abigail, a juíza Débora, a viúva Judith, todas heroínas do antigo testamento, a mártir Santa Filomena e a já mencionada Santa Bernadette. Algumas delas eu nunca tinha visto representadas em uma igreja.


Há ainda mais algumas imagens femininas, como a Nossa Senhora das Dores da foto abaixo, além de uma Santa Cecília pintada logo abaixo do coro e algumas outras, cujas fotos foram vergonhosamente mal colhidas por mim, que sou inepto como artista e tremelicante como técnico.


Com relação à menina Bernadette, que se dedicou à vida monástica após sua visão, há um simulacro de seu corpo incorrupto, ou seja, que não se deteriorou depois da morte. Como obra de realismo, não é tão impressionante quanto a imagem de Nhá Chica na matriz de Baependi, mas é significativa para contar toda a história dos personagens que dão origem ao padroado da presente igreja.


É verdadeiramente incomum ver tanto destaque ao feminino em uma igreja católica. Geralmente, centraliza-se a devoção a uma santa específica e, em seguida, os congêneres acompanhantes são divididos por gênero. É inegável, por mais que se fale o contrário, que há uma certa preferência pelos homens na hierarquia, não só em espaços deste tipo, mas de muitas outras religiões. Não discutirei aqui se isso é certo ou errado, trata-se unicamente de uma constatação, qualquer que seja sua explicação. Mas é uma boa amostra de como as mulheres nem sempre têm facilidade para dividir o espaço público, o que não é circunscrito, como eu já disse, ao âmbito religioso. Basta que se comparem as edições de revistas ditas masculinas ou femininas. Nas primeiras, além dos habituais nus, há matérias falando de economia, de carros, de política e outros assuntos de cunho informativo; nas femininas, temos fofocas e itens de beleza, bem mais fúteis, e pouco mais do que isso. Por que há uma certeza absoluta de que a mulher não pode se interessar por assuntos mais profundos? Por que o conhecimento apresentado à mulher é feito com certo desdém, até os dias de hoje?

Imaginem a condição que se enfrentava no século XVIII. Mas essa foi a grande pergunta lançada pela inglesa Mary Wollstonecraft, considerada por muitos uma precursora do feminismo. Eu discordo. Entendo que o pensamento dela é, na verdade, o marco inaugural do movimento, muito embora ela tenha sido mais conhecida como mãe da escritora Mary Shelley, a criadora do Frankenstein, do que como filósofa. O eixo em que gira sua filosofia é o seguinte: homens ou mulheres, somos seres humanos, cuja principal característica é a racionalidade. O sistema social pensado por grandes intelectuais na época da Revolução Francesa tinha como pano de fundo a garantia de liberdade e igualdade dos cidadãos, baseado na sua capacidade de viver sem a tutela de um tirano. No entanto, o patriarcado combatido pelos liberais revolucionários era mantido no âmbito familiar: as mulheres eram consideradas incapazes de gerir suas próprias vidas, tendo a necessidade de se submeter a um pai ou a um marido que lhe provesse o sustento necessário. Se a Revolução realmente pretendia implantar uma justiça social, era imprescindível que não desperdiçasse metade de sua capacidade intelectual – justamente a das mulheres. Mas os projetos não indicavam neste sentido. A educação imaginada para as mulheres se baseava em dois pilares: mãe e esposa, e não protagonistas na vida política.

Wollstonecraft preconizava que as mulheres deveriam resistir a essa imposição injustificável. A maneira de se fazer isso era uma espécie de “masculinização”. Não no sentido sexual, mas no de realizar a assunção de tarefas tipicamente masculinas, como o trabalho no campo. Dizia-se que a lavoura era muito pesada para mulheres, mas as camadas pobres não abriam mão do trabalho feminino. Havia mulheres nas cocheiras, nas minas, na incipiente manufatura, e elas deveriam se provar autossuficientes, mas agora escalando para uma educação mais refinada, onde elas poderiam participar do poder decisório em todos os planos, desde a gestão da casa até a da cidade. Esse processo de masculinização incluiria a desmistificação da ideia de que haveria um recorte intelectual nos gêneros: enquanto aos homens caberia naturalmente a ponderação, a visão científica e a decisão sensata, às mulheres caberia a sensibilidade, a emotividade e a propensão para o afeto. Muito antes de Simone de Beauvoir, ela dizia que essa visão reduzia a mulher à sua condição de fêmea. Essa posição parece de grosseirões hoje em dia, mas era defendida por gente da bitola de Jean-Jacques Rousseau!!! Isso serve para provar como o preconceito é mais forte do que a própria pretensa racionalidade pode supor.

Para Mary, a tônica deste pensamento era tristemente perversa: manter sob o espírito do presídio toda uma classe, como ela mesma diz: a gaiola dourada só serve para adornar a prisão. Razão e emoção são complementares, e não excludentes; cabem em um mesmo ser. O grande problema é que, dada a condição de inferioridade intelectual das mulheres daquele tempo, nada restava a não ser aguardar que a atitude integradora partisse justamente dos homens, por isso ela guardava algum tanto de concessão à primazia masculina. Era ingenuidade demais achar que ela seria ouvida, ainda mais tendo levado uma vida fora dos padrões de moral da época, incluindo relações com homens casados e filhos ilegítimos. Demorou muito para que sua obra fosse dissociada de sua breve vida pessoal, e somente nos últimos tempos tivemos uma retomada de seus escritos com a reverência que lhe são devidos.

Então é esse o começo desta nova série. Estão todos convidados a viajar comigo pelo restante do caminho, onde continuarei procurando dar vazão à minha mania: a de encontrar Filosofia em todos os momentos que vivo e em todos os lugares por onde ando. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Felizmente, há uma edição mais ou menos recente de sua obra mais importante em português. Percebam a sua atualidade, ainda que a mesma tenha praticamente gritado no deserto em sua época.

WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos Direitos das Mulheres. São Paulo: Edipro, 2015.

sábado, 20 de outubro de 2018

Tá, só não saquei bem o que é essa tal de (23 - Teologia)

Olá!


O centro de São Paulo é coalhado de igrejas. Como eu já disse neste texto, são praticamente só elas que testemunham tempos de outrora nesta grandiloquente cidade, seja por causa da velosiana força da grana que ergue e destrói coisas belas, seja porque se tratem de distintivos fortes de uma instituição que não aprecia grandes mudanças, redundando em uma manutenção à História. De toda forma, elas estão lá e são dignas de serem visitadas, independentemente da religiosidade de quem o fizer, por um motivo muito simples: são belíssimas.

Têm para todos os gostos. A reprodução da igreja do Pátio do Colégio, em seu estilo maneirista, extremamente simples e sólido, dá mostras do tamanho da dedicação de seus artífices com recursos parcos. Para quem quiser ver uma igreja antiga original, a mais velha de todas as remanescentes, a recomendação é para a pequena capela de Santo Antônio, encaixotada no meio dos prédios da praça do Patriarca. Já para quem é chegado em igreja como obra de arte, há o barroco tardio e o rococó de igrejas como a São Francisco, o mosteiro da Luz e a Nossa Senhora do Carmo, todas muito ricas nos detalhes de seus altares e retábulos. A catedral da Sé é grandiosa e diferentona, com referências tupiniquins misturadas ao neogótico que predomina em sua arquitetura. Impressiona muito pelo seu tamanho e pela confusão que faz nos nossos sentidos, mas ainda não é o clímax da expressão artística sacra desta capital da garoa, na minha humílima. Este se dá no Mosteiro de São Bento, com seus impressionantes vitrais e mosaicos, na ambientação que fica no meio caminho entre o sóbrio e o soturno. Um templo não só para a religião, mas para a arte – é ali que se pode ouvir o melhor canto gregoriano da cidade. Não há um único centímetro quadrado onde não se possa apreciar detalhe a detalhe a mão humana a serviço de uma divindade.

Por outro lado, há uma proliferação muito intensa de igrejas evangélicas por toda parte. Talvez não tanto por estas bandas centrais, de muito prédio e pouca gente, mas há bairros onde a evidência de uma nova relação das pessoas com a religião é muito expressiva. Quando eu morava nas cercanias do Jardim Elba, por exemplo, existia uma rua que parecia um autêntico túnel pentecostal, com todas as denominações mais midiáticas e outras menores, algumas muito curiosas. Aqui, não temos grandes preocupações estéticas com o prédio utilizado, embora aquelas mais tradicionais guardem certa semelhança às igrejas católicas, como é o caso das magníficas igrejas presbiteriana da Nestor Pestana e metodista da Liberdade. Quando eu ainda era criança, era muito fácil identificar um “crente”: mulheres eternamente de coque, saia comprida e sapato fechado, seja qual fosse a idade; homens de paletó e bíblia sob o sovaco nos dias de culto. Dizia-se que era possível diferenciar uma dessas pelo cheiro. Se fosse de suor, era de um evangélico; se fosse de pó, era de um católico. De fato, ao cruzar a Sé, todo santo dia estão lá vários pastores, berrando insanos com uma bíblia à guisa de pandeiro, cercados de fieis com aleluias e mendigos meio alheios, mais curiosos do que tocados. Hoje em dia o estereótipo está um tanto queimado, mas ainda é gente que faz sua vida se pautar por aquilo que está descrito naquele livro que espancam ou embebem de transpiração. Se sua interpretação é correta, não vou julgar (acho impossível), mas o fato é que toda a sua conduta está condicionada aos ditames de uma suposta entidade que lhes guia, lhes protege, lhes abençoa, com muitos limites e restrições, mesmo que seja indetectável pelo mais fino dos instrumentos. São capazes, alguns deles, de sacrificar a vida em seu nome. O que representa um deus em um sistema religioso? Como e por que eles dão uma pauta moral e uma regra de conduta a seus seguidores? Como se pode interagir e definir seu nível de interferência na vida dos seres humanos? O que é, afinal, um deus? Esse é o objeto de estudo da Teologia.


A primeira coisa é delinear sua especificidade. É muito comum que as pessoas confundam Teologia com Filosofia da Religião, mas são coisas bem diferentes. Esta última se preocupa em definir o que é o fenômeno religioso, que pode se focar apenas nos aspectos psicológicos e antropológicos, por exemplo: por que o homem sente a necessidade de acreditar em uma transcendência? Por isso mesmo, a visão da Filosofia da Religião é mais estrutural e neutra, indiferente ao direcionamento a uma religião específica. Já a Teologia já traz em si a assunção de uma divindade, para só então estudá-la. Por esse motivo, é muito difícil estabelecer uma Teologia geral, sendo mais comum vinculá-la a uma das tantas religiões existentes: Teologia Cristã, Islâmica, Hindu e così via.

Theos, em grego, significa Deus, parece meio óbvio. A Teologia pretende estudar a divindade não como aquele alvo de fé tão comum a romeiros e peregrinos, mas a partir de uma visão crítica, partindo do âmbito racional. É sabido que os conceitos de deus não surgiram a partir de um olhar científico, mas da intuição que as pessoas tinham acerca dos fenômenos que não compreendiam a origem. Como a religião é uma prática antiquíssima, precede o registro escrito em milhares de anos, e os relatos que lhe dão guarida são orais e misturados entre si. Por isso, a tarefa do teólogo é verdadeiramente hercúlea, principalmente quando levamos em consideração que a seriedade de seu trabalho estará presa à sua capacidade de não se deixar levar por sua fé.

A Teologia é anterior ao fenômeno cristão, como já se sabe a partir de estudos de filósofos pré-socráticos, mas é com ele que o termo se consolida e ganha força, sendo o substrato da maior parte da Filosofia praticada a partir da Idade Média. Mas a coisa não aconteceu tão rapidamente quanto poderia se supor – entre Jesus e a implantação da Teologia cristã há um lapso de uns bons trezentos anos. Os grandes “patrões” do mundo na época do surgimento do Cristianismo eram os romanos, que possuíam o Paganismo como religião. Em um primeiro momento, poderíamos pensar que os princípios religiosos não eram tão presentes em sua sociedade, mas o fato é outro. O comportamento de divindades e humanos era muito similar, já que os deuses nada mais eram que homens com “superpoderes”. O deus cristão, ao contrário, se apartava de seus fiéis. Era uma espécie de pai, que, se por um lado oferecia proteção a todos, por outro exigia obediência cega e fidelidade. Viver a religião cristã, portanto, fazia com que seu deus estivesse acima de qualquer soberano. Além disso, sendo todos filhos de um mesmo pai, os cristãos imputavam em si um conceito de irmandade estranho aos romanos. Isso fazia com que a relação entre ambas as culturas tivesse pontos de tensão. Nesses primeiros trezentos anos de existência, o Cristianismo alternou momentos de tolerância com intensas perseguições, principalmente quando os altos governantes necessitavam de algum subterfúgio para atribuir desgraças ou desviar focos. Nesses tempos, o máximo que os cristãos faziam era dar manutenção à sua fé, em locais desprovidos de indicações e com uma certa codificação interna, que lhes permitia comunicar entre si e dando origem a muito da simbologia ainda hoje adotada nas igrejas.

Somente no começo do século IV, com a ascensão de Constantino Magno, os cristãos tiveram paz e respaldo oficial para sistematizar seus dogmas. Partindo da premissa de que sua divindade é o centro do universo, a Filosofia passa a se interessar cada vez mais pelo fenômeno Deus, e inicia-se sua fase teocêntrica, que perdura até o Renascimento, e a Teologia é um de seus braços mais significativos. Pensando especificamente na Teologia cristã, temos três correntes mais consagradas. Vamos dar uma olhadinha nelas.

A primeira é a Patrística, que tem esse nome porque seus pensadores foram os primeiros a dar formatação mais concisa à igreja florescente, sendo chamados, por isso, de “pais da igreja”. Seu principal nome é Santo Agostinho, que empresta todo o fundo platônico que o Cristianismo tem em seus primeiros tempos: uma Cidade de Deus plasmada pelas ideias divinas é o ápice de onde a decaída Cidade dos Homens, o lugar onde vivemos, deriva. A igreja é o caminho salvífico por onde o fiel transita de uma para outra, ou seja, do defeito para a perfeição. Também cuidaram muito do enfrentamento às heresias, que eram doutrinas dissonantes ao entendimento que os próprios pais da igreja vinham procurando.

Os dogmas patrísticos predominaram até o século IX, quando uma nova corrente começa a preponderar. Trata-se da Escolástica (aquela que é da escola, culta), cuja principal característica era menos instrumental e mais metafísica do que a Patrística. Neste momento, temos o corpo dogmático da Igreja Católica já consolidado, e a mesma é detentora de muito poder. A Escolástica busca conciliar fé e razão, tentando provar que ambas não são incompatíveis. Sua principal cabeça é São Tomás de Aquino, que acrescenta a dialética do aristotelismo ao discurso platônico dos patrísticos. Ele, por exemplo, busca provas da existência de Deus não em uma mera subordinação da razão à fé (“crer para compreender, compreender para crer”), mas nos próprios fundamentos da natureza, como as relações de causa e efeito ou de necessidade e contingência.

Passado muito tempo, já no século XX da nossa era, uma terceira corrente escapa da metafísica e dá uma guinada ética na Teologia, sendo muito mal recebida por setores conservadores da Santa Sé. É a Teologia da Libertação, nascida com o padre Gustavo Gutiérrez. Segundo essa corrente, Deus deve ser visto menos como objeto de adoração circunscrito às igrejas e mais como pai que distribui graças a todos os seus filhos, independentemente de origem ou classe social. Faz culto muito melhor aquele que, imitando Deus, cuida do seu irmão do que aquele que passa horas em oração e jejum. Para os teólogos da libertação, o mandato divino está muito mais presente nos miseráveis e necessitados do que no culto em si, em especial por conta da urgência de sua situação, afinal, se a prece alimenta a alma, o pão alimenta o corpo, e é esse o que morre. Como essa corrente não se baseia na análise direta de Deus, mas das pessoas que, em última instância, são seu reflexo, faz do estudo social seu fundamento mais sólido, o que lhe apontou para o marxismo, o que causa câimbras nas mentes mais tradicionalistas.

A premissa principal dos teólogos tem um aspecto epistemológico: é possível conhecer deus, seja ele qual for? Nas principais escolas, crê-se que sim, ao menos em parte. Religiões que somente se pautam na tradição oral não costumam queimar tanto a mufla com minudências normativas. Já nas religiões de livro, que são aquelas em que há um texto sagrado que é considerado divinamente inspirado (Bíblia, Corão e outros), este acaba se tornando a principal fonte de estudo do deus em epígrafe, ainda que certas vertentes admitam outras origens de fundamentação. Uma delas é o próprio Catolicismo, que entende existir um mandato que lhe foi legado e que seus dogmas possuem o mesmo valor das disposições bíblicas. Os protestantes discordam veementemente desta posição, adotando a doutrina da Sola Scriptura, que afirma ser a Bíblia a única fonte de conhecimento sobre o deus cristão. Uma crítica a cada um: o magistério católico permite idas e vindas dogmáticas que lhes tira solidez, atribuindo aos sabores e humores do seu episcopado as interpretações teológicas que dão guarida à sua doutrina; por outro lado, a sola scriptura é autofágica – qualquer interpretação da Bíblia está fora da Bíblia. Pode parecer que este argumento é falacioso, mas imagine duas interpretações postas lado a lado, ambas extraídas diretamente do texto bíblico. Qual é melhor? Se buscarmos elementos externos, como o contexto de época, escritores contemporâneos aos fatos, registros arqueológicos, estaremos fora da Bíblia, e isso nos deixa órfãos e circunscritos a um livro muitas e muitas vezes contraditório. Talvez por isso haja um número tão grande de denominações ditas protestantes.

Outras filiações religiosas não têm balizas tão claras e, por isso mesmo, a preocupação teológica com o conhecimento de deus não é tão intensa, recorrendo-se mais à intuição do que propriamente a uma construção filosófica complexa, o que não quer dizer, de modo algum, que sejam compostas por deuses e teologias simplistas. O precitado Paganismo possui livros que lhe abordam, mas a Teogonia, a Ilíada e a Odisséia são perspectivas artísticas, e não obras dogmáticas, a la manual de instruções, o que, aliás, não são garantias de conforto interpretativo, não. Querem um exemplo? Falarei da chamada cláusula Filioque.

A questão é a seguinte. Nos meios cristãos, Deus é uno e trino, ou seja, é um e três ao mesmo tempo. Essa confusa contradição lógica é colocada na conta dos mistérios, uma falha epistemológica que não nos permite conhecer certos aspectos mistagógicos. Afinal, se somos humanos, não temos capacidade para apreender tudo o que Deus é. Whatever... A Santíssima Trindade seria composta de Pai, Filho e Espírito Santo, e a grande discussão é se existe alguma ordem de precedência entre eles. Sendo o Pai a entidade criadora e o Espírito Santo o impulso executivo da ação do Uno, há que se concordar facilmente que o primeiro é anterior, e, portanto, que o Espírito Santo procede do Pai. A discussão é com relação ao Filho (o tal de Filioque): também ele procede do Pai, parece óbvio, mas e o Espírito Santo? Procede só do Pai ou de ambos? O Credo (conjunto de declarações que explicita a fé cristã) não deixava absolutamente clara a regra de precedência entre as pessoas da Trindade, por isso havia discrepância na cláusula Filioque, entre aqueles que diziam dever ou não constar como precedência.

Não parece que vá fazer chover, ou mudar a cotação do dólar, ou mesmo influenciar a zona de classificação da Libertadores, mas o fato é que a longa e contraproducente discussão sobre a cláusula Filioque foi uma das pimentas no caldo em ebulição que levou à separação entre as igrejas do ocidente e oriente, o primeiro grande cisma da cristandade, que perdura até hoje. Gerou heresias e morreu gente por causa disso. Quanto a esse problema, deixemos para outro momento, mas quis expor esta divergência apenas para demonstrar o quanto a discussão teológica pode ser exigente e detalhista. Em tempo: aqueles para quem o Espírito Santo procede apenas do Pai são chamados de monopatristas; aos que creem na procedência também do Filho, dá-se o nome de filioquistas.

É isso. Busquei só dar uma palhinha sobre a complexidade do tema, que é muito variado. Ateus e agnósticos colocam o debate teológico no mesmo âmbito do estudo da Mitologia, que será o próximo item desta série, mas o que importa aqui não é a fé ou a crença, mas o fato de que um deus, existindo ou não, é um objeto de pensamento racional, e, portanto, da Filosofia. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura e canal:

Já havia mencionado a Patrística e a Escolástica em outros textos deste blog, mas, com relação à Teologia da Libertação, é a primeira vez. Recomendação básica para quando algum tema é muito polêmico: vá à fonte primária e não deixe se levar unicamente pelos críticos. Saiba primeiro do que se está falando para se alinhar ou discordar depois. Por este motivo, recomendo o livro fundamental desta escola, que, como eu já disse, dá uma guinada radical no pensamento dos católicos a partir do concílio Vaticano II:

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da Libertação. Perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.

Gostaria também de recomendar um canal, que, de certa forma, pode parecer estranho que eu o faça. Trata-se do canal Dois Dedos de Teologia, do Yago Martins. Filosoficamente, eu não concordo com muita coisa do que está lá, mas o rapaz trata do assunto com os três pilares que eu considero essenciais para considerar uma fonte útil de informação: conhecimento de causa, inteligibilidade e RESPEITO. Segue lá: