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segunda-feira, 26 de junho de 2023

O café filosófico do quotidiano – existe uma pseudofilosofia?

(Não é tão fácil de demonstrar como a pseudociência, mas... é fácil, sim)

Olá!

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Venho conversando com vocês com base em minhas matinas cafeeiras já há algum tempinho. Para fazer um breve recuerdo, costumo levantar, todos os dias, e já preparar um cafezinho, para cumprir o rito e dar uma acordada melhor. É uma tarefa prosaica? Sim, mas que ganha detalhe e relevância na medida em que você concede importância a ela. Quem pede um café no boteco quer mais é tomar um susto para acordar, mas em casa o processo pode ser bem mais lento e cuidadoso. Por isso, aqueles que tem o café como objeto de pesquisa, costuma testar alternativas para obter o melhor de cada grão.

Parece papo de entendido, mas não é. É um hobby, coisa de quem gosta de alguma coisa e quer saber mais sobre ela. E isso pode te trazer surpresas. Uma vez, um fornecedor que me abastece com frequência me presenteou com um brinde: um filtro metálico. 

Embora fosse uma gentileza bacana, achei que deveria estar vinculada a um excesso de estoque ou a uma baixa qualidade. Mas ele é interessante, porque dispensa filtros de papel, o que, logo de cara, representa economia e ecologia. Confesso, contudo, que me despertou suspeitas - deve passar um trambolhão de pó. Não.

Só pareceu, mas não foi. Na verdade, o filtro metálico, feito de aço inoxidável (promete o fabricante) possui uma microfuração que é a pedra de toque do método. Com a água sendo despejada com parcimônia, a retenção de pó é bastante satisfatória, gerando borra aceitável no fundo nos copos. Mesmo assim, a uma primeira vista, parece se tratar de um método secundário, menos eficaz.


Parece, mas não é. O filtro metálico pode parecer menos eficiente, mas o fato é que ele permite algo que os filtros de pano e de papel não deixam acontecer. Como ambos são mais rigorosos, retém uma porção muito maior dos óleos existentes no café, e, por este motivo, o processo no filtro metálico permite um café bem mais encorpado, sem a quantidade de resíduos obtida em uma prensa francesa. Não é o melhor dos mundos para quem gosta de líquido límpido, mas é plenamente válido e funciona bem com certos grãos e moagens.


Nome do utensílio: Filtro metálico

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um filtro de aço inox, sem necessidade de qualquer outro elemento filtrante, é inserido no bocal de um decanter de boca larga. A água deve ser despejada lentamente, sempre em cima do pó, para não fazer by-pass indesejado pela área não coberta

Resíduos: quantidade razoável

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio/baixo

Parece, mas não é (alguém lembra do shampoo Denorex?). É exatamente sobre isso que eu falei nos meus dois últimos textos: um misticismo que quer parecer ciência, mas não é, e uma filosofia que luta para ser ciência, mas é difícil de provar meramente no discurso. A grande característica da pseudociência é querer parecer ciência, porque esta última goza, apesar dos ataques, de grande prestígio e consideração. Por isso, o distintivo colado no peito é uma credencial para que as pessoas as olhem com bons olhos, mesmo nestes tempos de pós-verdade em que tentam a relativizar.

O mesmo acontece com a filosofia acadêmica. Também é do mundo das universidades que vem a pesquisa séria, a revisão dos pares, a palavra com maior credibilidade. E também ela sofre as mesmas intempéries. Por isso, eu pergunto: com a Filosofia acontece a mesma coisa que com a Ciência? Existe uma pseudofilosofia como existe a pseudociência?

Ô. E como existe. Poder-se-ia dizer que a filosofia prescinde da prova, o que validaria qualquer forma de pensamento, mas isso seria uma falácia, porque filosofia é o pensamento rigoroso, bem encadeado, lógico e especulativo, mesmo que esteja voltado para a mais inexistente de todas as imaginações. Também pode-se dizer que o filosofar é tangível por todas as pessoas, que não existe um filósofo, mas uma atitude filosófica, o que torna a filosofia um campo muito mais aberto do que a ciência. Só que, embora haja uma carga de verdade nessas afirmações, normalmente são utilizadas para fins de desmerecimento ou de equiparação, justamente para obter a mesma confiabilidade, e, com isso, há frequente autointitulação de filosofia para áreas que não são filosóficas. Mas para identificar alguns dos maiores exemplos, primeiro precisamos fazer uma rápida distinção entre o vulgo e o fato.

Muitas pessoas afirmam possuir filosofias de vida. Este é um termo perfeitamente aceitável quando estamos no colóquio nosso do quotidiano, mas que, no fundo, nada tem a ver com filosofia de fato. Certo: já falei mais de uma vez neste espaço que é possível filosofar sobre qualquer coisa, mas isso não significa que qualquer coisa é filosofia. Quando falamos em “filosofia de vida”, na verdade estamos pensando na visão que formamos do mundo e na maneira como nos conduzimos dentro desse universo. A maneira com a qual nos relacionamos com a nossa realidade, como ela mexe com nossos anseios e o que esperamos dar e receber dela é influenciada por nossa sociedade e nossa cultura, e isso não é filosofia. Visão de mundo não é filosofia.

Até aqui, nada de falso, apenas um certo desvirtuamento aceitável da palavra. Mas isso serve para demonstrar como é maleável o mundo linguístico, a ponto de tornar difíceis as distinções objetivas do que se quer dizer. E isso concede uma certa licença no uso de termos que fazem torcer as tripas daqueles que professam uma fé. No meu caso, chamar certas coisas de filosofia me dá uma cãibra no cérebro.

Um dos casos eu já tratei há muito tempo atrás. Rememorando, não é incomum encontrar nas prateleiras das livrarias um compartilhamento de espaço entre livros de filosofia e de autoajuda. Isso está errado, muito errado. Filosofia, para receber o F maiúsculo, precisa encarar seu objeto de estudo da maneira mais desapaixonada possível, como se fosse uma Ciência. Embora os filósofos da práxis tenham a tendência a produzir efeitos práticos naquilo que preconizam, o fato é que, mesmo dentre eles, a prática já é uma conclusão filosófica, feita com idêntica neutralidade possível. Esse espírito é incompatível com a autoajuda, que, mesmo nas mais isentas das análises, não colocaria o pacote completo na frente de seu consulente, pelo simples motivo de que não vai ajudá-lo em nada.

Os autores da autoajuda, sem colocar o mérito de serem sérios ou não, faliriam seus negócios em cinco minutos se se munissem de geist filosófico autêntico. Ninguém espera comprar um livro de autoajuda para ler que a tendência do homem é retornar ao seu estado animal, como diria Hobbes, ou que o caminho para a felicidade é desprezar a cultura e as posses, como quereria Diógenes. Esses pensadores chegaram a essas conclusões sem se importar com a palatabilidade de seus escritos, o que é incompatível com quem quer fazer com que as pessoas olhem para dentro de si mesmas e extraiam coisas boas. A autoajuda não pode se dissociar de um otimismo que não é encontrável em qualquer filosofia. Aliás, em quase nenhuma.

É certo que há alguns sustentáculos que a autoajuda lança mão desde sempre. O “conhece-te a ti mesmo” socrático é usado à exaustão em obras como essa, mas com pouco conhecimento do seu significado real. Para começo, é de fato uma atribuição frequente feita de Platão para Sócrates, mas que vem da sabedoria antiga da mitologia grega, mais especificamente da entrada do templo de Delphos, onde os sacerdotes e sacerdotisas praticavam vaticínios, como era costume na época. Foi lá que Querefonte, um dos amigos mais achegados de Sócrates, perguntou à pitonisa de plantão quem era o homem mais sábio de toda a Grécia, obtendo o nome de seu amigo como resposta. Isso levou o patrono a imergir em intensas elucubrações, questionando-se como era possível tal atribuição. Afinal de contas, o filho da parteira não se achava mais sábio que um juiz ou poeta, e foi a partir dessa constatação que ele começou a sua investigação. O que ele encontrou o surpreendeu: os doutos, embora de fato fossem mestres em suas artes, eram absolutos ignorantes fora de seus ofícios, com o agravante de se acharem entendedores de todo e qualquer tema, como conseguiu comprovar seu parto de ideias, a maiêutica. Diante disso, Sócrates conclui que sua maior força está naquilo que ele pensava ser a pior fraqueza - tudo o que sei é que nada sei. Ao se confessar ignorante, Sócrates reconhece seu lugar no mundo e sua real dimensão - o verdadeiro sábio é aquele que reconhece sua necessidade de buscar eternamente o conhecimento.

O autoconhecimento de Sócrates é uma declaração de ignorância. Conhecer-se a si mesmo representa a assunção de que não se conhece nada. Isso lhes parece aderente à autoajuda? O fato é que esse tipo de livro, em geral, tem o mesmo efeito afetivo de um chá de camomila. Uma espécie de placebo mental, e, nesse sentido, pode fazer alguém se sentir melhor e viver melhor, principalmente quando derrubar algum tipo de bloqueio psíquico ou coisa parecida. Mas chamem pão de pão e pedra de pedra… Autoajuda não é filosofia.

As coisas podem ir além e ser piores, ao menos na minha visão. Existem pessoas que querem dar conformidade terapêutica à filosofia, e isso é temerário. Falo especialmente da assim chamada filosofia clínica.

Desde os tempos da faculdade minha cabeça dá nó quando eu tento fazer um casamento entre filosofia e clínica. Já se falava muito nessa pretensa aplicação, mais até do que hoje em dia, e eu pensava no que a filosofia clínica poderia ser diferente da psicologia. A resposta é fácil - preparação inespecífica. E estamos falando da área da saúde.

O que propõe a filosofia clínica? Grosso modo, que se utilize a base do conhecimento filosófico existente para resolver problemas de indivíduos, mormente aqueles de natureza psíquica. Caso alguém se apresente diante do terapeuta com questionamentos sobre o sentido da vida, serão coligidos conhecimentos de filósofos existenciais; se versarem sobre o caminho para a felicidade, talvez se recorram aos helenistas. Não há muitas regras nesse exercício.

Dizem que o principal diferencial da filosofia clínica é o foco no indivíduo, no sujeito que comparece à frente do terapeuta, que não se guia por manuais. Que cada história contada gera um atendimento personalizado, adequado para suas circunstâncias e especificidades. Isso para um psicólogo é uma ofensa, porque reduz sua atividade a um roteiro predeterminado, como se bastasse verificar qual melhor encaixe a uma prescrição e pronto, passar bem. A psicologia, meus amigos, quando o profissional é sério e seja qual for sua corrente, escuta seus pacientes e verifica qual o melhor procedimento a ser adotado, especificamente para uma pessoa que lhe procura, igualzinho promete a filosofia clínica, sem, no entanto, querer apresentar carta de exclusividade. 

Os assim autodenominados filósofos clínicos dizem que um dos seus grandes diferenciais é a não existência de pacientes, mas de partilhantes, aqueles que compartilham experiências e problemáticas com o terapeuta. Isso me lembra a virada administrativa do milênio, quando os funcionários de qualquer empresa passaram a ser chamados de colaboradores. Pessoas, em ambos os casos temos uma mera questão linguística. Tanto o colaborador quanto o funcionário trabalham em troca de um salário, podendo ser demitidos a critério de quem o denomina de um jeito ou de outro. Idem com a dicotomia paciente-partilhante. Se quem te procura quer ajuda, pode-se chamar de paciente, partilhante, consulente, confidente ou seja lá o que for, é apenas e tão somente uma palavra que designa exatamente a mesma coisa, talvez com o efeito placebo mental novamente funcionando, pelo fato de que a pessoa não se apresenta como um doente. Aliás, é uma técnica que veio da própria psicologia, já que os psicólogos humanistas já usavam o foco fora do acometimento.

Por essas e por outras, estou aqui a espera de que me demovam da minha posição, mas, para mim, filosofia clínica é mais uma empulhação, no naipe da radiestesia, aromaterapia, ozonioterapia e outros menos votados. Tem cheiro, cor, aspecto, formato e jeitão de pseudociência, seja por um caminho popperiano, seja pela moderna extensão de Hansson. A filosofia nunca teve propósito terapêutico, porque ela é uma análise sobre a realidade em si mesma, sem se importar em produzir curas. A filosofia NÃO PODE fazer isso. A filosofia de verdade está preocupada em demonstrar a coisa como ela é, independentemente de causar alegria ou depressão em quem a ouvir. Platão fala da morte de Sócrates, Heidegger fala do ser como ser-para-a-morte, Levinas fala da morte do outro como ferramenta de observação para a própria morte… a filosofia não tem esse conforto que uma terapia espera. A filosofia nunca foi terapêutica. Filosofia clínica não é filosofia.

Além disso, saúde mental é saúde como a corporal, e brincar com essas coisas costuma degringolar em catástrofes. A falta de método é flagrante e fico curioso em observar como um filósofo clínico trataria de casos urgentes, como uma séria ameaça de violência ou um pretenso suicida. Se a conduta nesses casos é indicar outro profissional, de que vale a filosofia clínica? Analisar comportamentos de um indivíduo e localizar suas causas e aplicar ajustes é psicologia, não filosofia. Neste caso, por que não consultar um psicólogo, que estudou quatro anos específicos de clínica? Por que vou perguntar a um literato sobre funilaria?

Este texto nasceu na esteira das discussões que quis levantar nos últimos dois posts desta série. Pseudofilosofia existe da mesma forma que pseudociência, e seu escopo mais aberto torna mais difícil sua detecção, mas há coisas tão flagrantes que permitem a nós aprender a tomar cuidado com coisas que parecem, mas não são. Bons ventos a todos!!!

Recomendação de canal:

Eu ia recomendar alguma literatura a respeito de autoajuda e filosofia clínica, mas perdi totalmente a vontade. Dessa forma, achei melhor recomendar o canal do professor Filício Mulinari, que é bem bom e aborda esses temas com boas opiniões.

https://www.youtube.com/@AFilosofiaExplica

segunda-feira, 12 de junho de 2023

O café filosófico do quotidiano – psicanálise e cientificidade

(A psicanálise é uma pseudociência? Não sei bem, mas como filosofia, é ótima) 

Olá!

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Para dar continuidade nas ideias, é preciso dar continuidade na vida, não é mesmo? E na minha pequena esfera, ela sempre passa pelo cafezinho da manhã, aquele que te sintoniza com essa outra esfera, maior pouquinha coisa, a que chamamos de universo. E, como o texto que deu origem a este falava sobre um método saído dos laboratórios químicos, começo minhas reflexões por outro semelhante, conhecido pela sua marca, o Kalita.

Existem vários modelos desta fabricante japonesa, sendo o mais clássico um que se assemelha a uma xícara, feito de metal. O que eu tenho é um pouco mais metido a besta sofisticado, feito de vidro. O conjunto todo é composto por um decanter bem parecido com uma Chemex, o porta-filtro, o seu suporte e o filtro wave.

Este filtro é bastante semelhante a uma forminha de cupcake, e o objetivo é manter espaço para aeração entre a superfície lisa do porta-filtros e as ranhuras do filtro.

A base do porta-filtros contém o pulo do gato do método. Sendo uma base chata, em tese a água percolada faria um acúmulo que favoreceria a superextração, o que significa amargor. Para que a vazão seja adequadamente regulada, a Kalita possui um furo tríplice, permitindo que a velocidade do fluxo fique mais em função da moagem do que da retenção gerada.

Como há pouco contato entre a parede de vidro e o filtro wave, a intensa aeração permite um blooming muito bonito, não escondendo a idade do café que estamos utilizando. Para quem não sabe, uma boa pré-infusão faz liberar o carbono presente no café, e quanto maior o borbulhar, mais nova é a torra do grão, e mais aromas são desprendidos.

O resultado final é um método elegante e funcional, embora haja necessidade de cuidados pelo fato de estarmos lidando com materiais frágeis.

Nome do utensílio: Kalita wave (porta-filtro de vidro)

Tipo de técnica: percolação em filtro de fundo plano

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Médio

Dinâmica: um filtro de papel ondulado e de base chata é inserido no suporte metálico que se encaixa ao decanter. Após escaldamento, o pó é despejado no fundo do filtro e a água é despejada aos poucos, de forma a formar uma cama de borra o mais homogênea possível.

Resíduos: Mínimos.

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

O proverbiozinho de boteco com que abri este texto tem motivo. Se vocês, diligentes e episódicos leitores, atentarem à sequência que estabeleci neste humílimo espaço, verão que, por vezes, restam esclarecimentos que são maiores do que a questão que lhes deu origem. Juntando utilidades e agradabilidades, vou admitir que eu estava me segurando para abordar o tema de agora, mas não posso mais deixar passar. No último texto que redigi, falei sobre a questão dos arquétipos, e fiz uma observação maliciosa: a de que se nem a própria psicanálise dá completo fundamento à questão, que fará blogueiros que estão ou preocupados em vender seus produtos, ou em ganhar ibope. Isso porque a própria psicanálise, como disciplina científica, é discutível. Chegou o momento de enfrentar esse assunto.

“Enfrentar” é um termo apropriado, porque eu gosto de psicologia como um todo, e da psicanálise em especial, porque, se não se apresentasse como ciência, seria filosofia de altíssima monta. É por isso que eu nutro grande simpatia pela psicanálise. Se Freud não se proclamasse cientista, mas filósofo, estaria entre os maiores, porque suas especulações e de seus seguidores são fantásticas do ponto de vista da concatenação lógica e da especulação por caminhos sedutores para resolver os mistérios da mente.

Mas dizer se psicanálise é ou não pseudociência implica em entender o que caracteriza uma ciência. Não foram poucas vezes em que abordei o tema aqui, mas preciso dar uma pincelada nem tão pequena para balizar este texto e não os obrigar, meus quase extintos leitores, a ficar lendo e mais lendo. Já considero animador se este aqui já servir para marcar meu ponto.

Em primeiro lugar, o que diferencia a ciência da filosofia? É simples. Ambas são acionadas quando temos um problema que precisamos resolver, só que isso o senso comum também faz. Mas é que ambas são frutos de concatenações lógicas, que são desnecessárias para esse pensamento mais intuitivo e desregrado do acriticismo. Só que a lógica é suficiente para a filosofia. Se os encadeamentos fizerem sentido, ok*.

Isso não basta para a ciência. Para discernir sobre esta última, é indispensável pensar no conceito de método. Todos eles possuem premissas básicas, que servem exatamente para balizar sua proposta: dar um caminho e um conjunto de regras para a execução de procedimentos. Vamos fazer um comparativo profano, para ficar fácil de entender: uma metodologia para lavar louça. Primeiro, vou esvaziar o escorredor de qualquer remanescente da lavagem anterior, vou verificar sua limpeza e remover eventuais resíduos. Depois, organizo as peças sujas de acordo com o critério de ordenação. Começo lavando as peças miúdas, como talheres. Depois, parto para os copos e xícaras, colocando-os emborcados para que escorram sem retenções, e sigo com pires e pratos, que são colocados na vertical. Encerro com potes e panelas, colocados sobre todos os demais elementos. Após escorrer por X tempo, seco todas as peças com um pano limpo, na ordem inversa da colocação. Esse é o método, que tem, por trás de si, uma premissa: higiene é item primordial para manter uma boa saúde. Idem com o método científico - a premissa geral é proporcionar repetibilidade, que torna possível a grande pedra de toque da ciência, a verificabilidade. Todo o caminho para lavar a louça científica**, ou seja, as descrições e os protocolos na realização de pesquisas e experimentos, representam um caminho para obter essa premissa. Ou seja, a ciência não exige somente uma chave para solucionar um problema; exige ainda que se diga como fazer suas verificações.

Eu já falei muito sobre a falseabilidade neste meu blog, e pode passar a impressão de que ela é o grande critério científico. Só que ela está em função da verificabilidade, e não o contrário. É para dar robustez ao aspecto verificável da ciência que a falseabilidade existe, porque, se você pensar bem, é a inversão da abordagem da verificação: não vou verificar o que corrobora a tese, mas o que a invalida. De toda forma, é verificação. Ciência é verificação.

Sendo este o critério zero, é preciso verificar se os princípios gerais da psicanálise são, ora, verificáveis. Como sói acontecer com as ciências humanas em geral, é compreensível que o critério seja mais difícil de se aplicar. Afinal de contas, ciências como a sociologia ou a antropologia transitam entre objetos muito mais amplos do que as ciências hardcore, como já especulei neste texto. Quando você fala em grandes contingentes populacionais, que abrangem idiossincrasias e percepções próprias, haverá desvios muito mais significativos do que nas medidas objetivas da física e da química. Isso é óbvio: não temos como colocar pessoas em tubos de ensaios (e ainda que o fizéssemos, tirar um contribuinte de seu meio natural desvirtua o seu estudo). 

Mas isso não é desculpa para que a psicanálise desenvolva métodos que não sigam aquela mesma premissa fundamental que eu falava há parágrafos atrás - uma ciência inclui verificações. É possível que se faça isso?

A mim, por todos os debates que vi por aí, percebo duas grandes dificuldades. A primeira é uma espécie de apelo à autoridade freudiana, de modo a haver um eterno regresso à base direta dos seus pensamentos. Vamos discorrer sobre isso.

Quando pensamos nos fundamentos da filosofia, vamos observar que, uma vez estabelecidos Platão e Aristóteles, toda a história subsequente derivou do pensamento de ambos. Isso não é um defeito, mas a percepção de que eles foram complementares em sua oposição, o que deu um alcance enorme para o pensamento ocidental. Aristóteles foi mais do que um discípulo de Platão; foi-lhe também um contestador. Ao fazer isso, Aristóteles não só criou outro caminho, mas o enriqueceu. Onde Platão tratava do céu, Aristóteles tratava da terra; onde um falava dos modelos, outro aplicava as categorias; onde um olhava para o ideal, outro via a realidade. Daí, veio a base toda (ou quase toda) da filosofia. Aos adeptos da psicanálise, entretanto, não restou uma oposição enriquecedora. Jung discordava da sexualização freudiana, Lacan da linearidade das sessões de terapia, e assim sucessivamente. Há vários complementares, mas poucos realmente divergiam nos fundamentos mais profundos e dessem caminhos opcionais. Isso foi acontecer somente fora da psicanálise, na forma de behaviorismo ou cognitivismo, e.g. O que isso originou? Uma espécie de dogmatismo na palavra de Freud. A ciência não é e não pode ser dogmática. Ela é cética, na melhor concepção da palavra, a de duvidar sempre, inclusive e principalmente de si mesma. A psicanálise deveria, e muito, duvidar de si mesma.

A segunda é uma grande dificuldade em se estabelecer pontos de falseabilidade verdadeiramente efetivos, o que significa ter-se dificuldades em verificar. Vamos começar fazendo a comparação polêmica. Religiosos dizem que é preciso orar para obter benesses divinas, notadamente os evangélicos de orientação neopentecostal, mas cristãos em geral tem esse mesmo pensamento. Dizem que é preciso pedir para obter, conforme disposição bíblica. O fato, incontestável, é que as orações falham. Se a todo mundo que se dirigisse uma oração fosse garantida uma cura, ninguém morreria, não é mesmo? Mas as pessoas morrem, por mais religiosas que sejam e por mais orações que façam. Daí, temos justificativas: Deus sabe o que é melhor para nós, não sabemos o que pedimos ou, pior ainda, faltou-nos fé. Essa última é especialmente perniciosa porque desloca a culpa no não atendimento do apelo para quem o faz, que carrega agora não só o peso de sua desgraça particular, mas da culpa de não ter fé suficiente. Desta forma, o atendimento de orações nunca dá errado. Se é atendida, é por piedade divina; se não é, é por falta de méritos do demandante. Pensando em uma doença, ou a cura vem, ou quem suplica não o fez corretamente. Mas não se diz que Deus não gosta de amputados? Não é preciso ir tão longe. Ore por aquela cárie que tem no seu dente do fundo, com a maior fé do mundo, a sua e a dos outros, incluindo a do pastor. Mas aí temos a livre vontade divina, e Deus não pode ser desafiado, conforme outra disposição bíblica. Pois é… percebem como algo se torna infalseável?

Pois com a psicanálise acontece a mesma coisa. O próprio pai da falseabilidade, Karl Popper, coloca a psicanálise no âmbito das pseudociências, não pela insistência em argumentos já refutados (ele coloca o marxismo nesse campo), mas como articulação de proposições de forma a não terem como ser refutadas, como falamos no exemplo da cárie. Um exemplo está nas pulsões. Uma pulsão é uma forma de energia, uma energia psíquica, que, ao contrário das energias potenciais, cinéticas, elásticas, térmicas e congêneres, não pode ser medida em joules, quilocalorias, watts ou BTUs. Se não há uma medida padronizada, não há como ser mensurável, e, por conseguinte, ser comparável.

Ainda que se alegue que o princípio da falseabilidade venha ganhando concorrência pesada, ou que está ficando obsoleto, ainda assim aquele velho fundamento da ciência continua o mesmo, impávido e colosso. Ciências precisam ser verificáveis, e ponto. Qual é o problema da psicanálise? É a extrema dificuldade que ela tem em estabelecer para si mesma critérios de base. É preciso que se delineie suas causas, seus efeitos e verificar se eles formam uma previsão.

Como oposição ao princípio da falseabilidade, podemos mencionar um epistemólogo sueco ainda vivo, Sven Ove Hansson. Ele coloca o ideário de Popper como efetivo enquanto se postular princípios para a ciência mais matematizada, mas um tanto problemático quando aplicado para humanidades. Ele lança mão de um conceito de delimitadores estendidos para as ciências, basicamente pelo atendimento de critérios de confiabilidade. O demarcador para a ciência está embasado, segundo este pensador, na capacidade de se praticar afirmações mais confiáveis sobre um determinado objeto, seja lá qual ele for. Da mesma forma que pratica ciência quem fala sobre estrelas e átomos, também o faz quem fala sobre pessoas e suas mentes.

Só que onde teremos a pseudociência, aquele discurso que se apresenta como científico sem o ser de fato? Hansson estabelece uma lista de critérios para que se detecte uma delas. Segundo nosso caro nórdico, oito são os indicativos de que uma determinada doutrina é, na verdade, uma pseudociência:

1.       Crença na autoridade

2.       Experiências não repetíveis

3.       Exemplos selecionados

4.       Resistência ao teste

5.       Desdém com oposições

6.       Base em subterfúgios

7.       Abandono de explicações sem substituições

8.       Obscurantismo

Não vou aqui ficar me alongando sobre onde a psicanálise poderia se encaixar no conceito de demarcação de Hansson, mas é fácil de perceber que, ao menos os itens 1, 2 e 4 são muito evidentes, porque Freud é ainda abordado como se fosse um autor imutável, com estudos fortemente baseados em casos e que desmentem a validade dos experimentos realizados que se lhe oponham. Há estudiosos que, inclusive, enquadram-na em todos os critérios, o que é um componente de difícil contestação.

Mas é preciso olhar para o lado de lá. Embora várias das teses da psicanálise representem evidentes furos n'água, há reais avanços que foram feitos quando vista como uma filosofia da mente. Parece incontestável que o inconsciente ocupe uma porção muito mais importante da psiquê humana do que se podia fazer parecer até o começo do século XX. Ainda que seja difícil de mensurar, parece se assemelhar ao caso das ciências humanas, das quais, inclusive, a psicologia faz parte, em que o método científico precisa ser adaptado de maneira a reconhecer que lá existe um conhecimento, mas que não pode ser medido pelas réguas fixas das ciências naturais.

Mas o grande problema é que a psicanálise não quer. Aparentemente, há uma relutância grande em até mesmo se aplicar os métodos das ciências humanas, que não se ocupa apenas de estudos qualitativos, mas quantitativos também. Casos de sucesso da terapia pela escuta nada mais são do que isso: casos. Se eles não estão sistematizados de maneira metódica, nada mais são do que uma longa coleção de evidências anedóticas, por maior que seja sua quantidade. Isso porque são precisos parâmetros, toda pesquisa nasce de um escopo que precisa ser seguido para fornecer respostas. É isso que tem faltado historicamente à psicanálise, mesmo levando em conta as especificidades das ciências humanas.

Eu vou aqui, para a decepção de poucos (porque são poucos leitores mesmo), informar que vou aplicar ao caso a famosa tucanada. Primeiro, porque não tenho aporte cultural suficiente para fechar uma posição como manda o figurino, e não como a galera da treta gosta. Depois, porque, ainda que milite na filosofia, não se consegue ter uma posição acabada. Eu até fecho questão com um dos mais renomados neurocientistas da atualidade, Michael Gazzaniga, que crava ser questão de tempo para não só a psicanálise, mas toda a psicologia cair na pseudocientificidade, não no aspecto intencional, mas na obsolescência das propostas. A leitura e interpretação dos processos neurológicos tendem a ficar tão precisas que a tangência metafísica que mesmo a mais experimental das psicologias possui vai cair na vala filosófica da especulação. Dessa forma, hormônios tomarão o lugar de recalques, pulsos elétricos o de pulsões e interações sinápticas o de repressões.

Mas também é preciso pensar no que faremos até chegar neste ponto. Não adianta ficar esperando o dia em que teremos a perfeita composição físico-química que me levará a explicar a paura que sinto na véspera da final de um campeonato. É possível e é preciso entender os fenômenos mentais antes de ter respostas definitivas sobre eles, e isso a psicologia e, sim, a psicanálise tentam fazer. Por isso, parece a mim ser a psicanálise uma protociência que reluta em sair do lugar, especialmente porque parece uma resposta muito boa para que possa ser provada falsa na canetada. É exatamente isso o que ela deveria fazer, encerrando o debate. Na pior das hipóteses, poderia migrar da ciência para a filosofia, onde ela se encaixa perfeitamente. Imagine que compêndio sobre filosofia da mente não se referiria a Freud e seus Blue Caps como alguns dos maiores?

Tudo isso ao aroma intenso de um bom café coado em um dos melhores métodos que possuo em casa. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É em inglês, mas não é longo, nem tão complexo de se ler.

HANSSON, Sven Ove. Defining Pseudoscience and Science. In: PIGLIUCCI, Massimo & BOUDRY, Maarten. Philosophy of Pseudoscience: Reconsidering the Demarcation Problem. Chicago: The University of Chicago Press, 2013.

*A simplificação extrema é meramente didática, perfeito?

** Existem protocolos e metodologias para higienizar a vidraria de laboratórios, viu? Vide este link: https://www.ufpe.br/documents/951030/981240/2012-05-r1.pdf/1b91fdbc-f69d-4e32-aee4-2388526ab470