(O que vem depois que a chave da religião no Brasil virar?)
"Pregam a doutrina humana os que dizem que assim que a moeda tilintar na caixa, a alma voará para fora do purgatório" - Lutero
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Quando estávamos saindo da pequena Tocos do Moji, observamos uma coisa estranha nos morros. Uma série de cabaninhas semicirculares ocupavam grandes extensões da parte rural, o que notoriamente constituíam estufas. Mas o que seria tão delicado e estaria sendo cultivado sob elas? A resposta veio rápido, na forma de pórtico de entrada da cidade de Bom Repouso.
É que Bom Repouso é a principal produtora de morangos do estado de Minas Gerais. É tipo assim: Bom Repouso está para Minas como Atibaia
está para São Paulo.
O resultado é uma curiosa cobertura de estufas pela região
rural, em um sistema que promete proteger as delicadas frutas das intempéries e
dos gulosos pássaros.
Como você está na "boca da botija", pode escolher
frutas de acordo com seu gosto, incluindo chulapas deste tamanho.
Os preços são bem baixos, algo como um quarto do que você paga na feira, com o frescor de quem acabou de colher a fruta. Eu aproveitei algumas caixinhas para fazer um jantarzinho com a patroa, juntando com queijo e a indefectível cerveja.
A cidade meio que vive em função do morango, com vários armazéns dedicados à sua venda ao longo da estrada. Além disso, há o aspecto religioso, e bastante marcante é a matriz, dedicada aos santos Sebastião e Roque.
Da mesma praça dessa igreja, vê-se a grande (grande mesmo)
atração turística da cidade: o santuário de Nossa Senhora das Graças, com sua
enorme estátua.
Trata-se da imagem mais alta da América Latina dedicada à santa, tendo mais de vinte metros de altura.
O simbolismo contido nesta imagem vem da comparação de Maria com a nova Eva, que veste um manto da cor do céu e pisoteia a cobra que representa o mal.
O tamanho da imagem impressiona, especialmente quando comparada à pequena igreja que lhe ladeia, pouco maior que uma capela.
Não menos impressionante é o quanto a subida do morro é íngreme. Como eu entrei com pouco embalo, achei em determinado momento que precisaria completar a subida a pé.
Vencida a pirambeira, entretanto, tem-se uma vista panorâmica muito bonita da cidade, tanto da área urbana…
… quanto das plantações de morango que já ficam bastante próximas.
Isso reflete que a fé dos católicos ainda é muito presente nas cidades menores do interior, e o quanto seus habitantes ainda são tocados pelas antigas tradições do Brasil colonial. Mas há mudanças em ritmo acelerado que ainda chegarão por aqui, e não tarda muito.
Uma das possibilidades da diminuição das paisagens compostas
por signos de matriz católica seria uma aplicação mais rigorosa dos conceitos
de laicidade do Estado, tema que abordei neste
texto link da série "o
que ele é e o que ele não é". Em tese, a partir da promulgação da
Constituição, não deveríamos ter dinheiro público aplicado em prol de uma
religião, mesmo que ela seja majoritária. É claro que essa regra não deve ser
absoluta, nem universal. Há muito patrimônio histórico que está coligado à
questão religiosa, e, neste caso, a manutenção é da história, e não da
religião. Dessa forma, faz sentido que se aplique verbas públicas em entidades
religiosas. Outra discussão diz respeito ao turismo. Embora nesse caso eu não
tenha tanta convicção da natureza dos gastos, é fato que cidades como
Aparecida, Trindade e Nova Trento vivem em função da religião, e investimentos
públicos podem se justificar pelo retorno financeiro à cidade. Fora dessas
circunstâncias, a regra do Estado laico deveria se aplicar com mais critério.
Mas a ameaça ao primado católico está muito longe da laicidade. É muito mais
provável que a questão se agrave com o crescimento exponencial do
Protestantismo no país, especialmente na forma do neopentecostalismo.
Embora a miríade de denominações tenda ao infinito, há
algumas características comuns nelas que confrontam diretamente o Catolicismo
de forma mais ou menos comum, o que pode ser um problema e tanto dentro de
poucos anos. Vamos entender um pouco melhor.
O Protestantismo possui um fato histórico inicial bastante
bem marcado, que constitui as 95 Teses sobre as Indulgências de Martinho
Lutero. Ele foi um monge agostiniano que viveu entre os séculos XV e XVI, ou
seja, em plena Idade Média. Como estava em desacordo com a doutrina das
indulgências da Igreja Católica, resolveu expor seus ideais publicamente na
porta do castelo de Wittenberg. As indulgências ou endoenças constituíam a
remissão total ou parcial dos pecados cometidos por uma pessoa arrependida. O
sacramento da confissão era suficiente para que um fiel se visse livre da pena
espiritual pelos seus pecados. Entretanto, na doutrina católica, era preciso
pagar pelo dano material causado pelo pecado, e acreditava-se que havia a pena
temporal a ser remida, o que deveria ser cumprido no purgatório, uma espécie de
mistura entre colônia penal e escola, onde as almas já desencarnadas sofreriam
"correções físicas" com o objetivo de remover os males causados a
outrem. As indulgências serviriam para que o tempo de permanência da alma no
purgatório fosse diminuído ou mesmo extinto. O grande problema que Lutero via
nas indulgências era menos de natureza teológica (embora também existisse) do
que pela prática de simonia, a venda de objetos sagrados e sacramentais. Essa
era uma prática corriqueira da Igreja Católica na época em que Lutero expôs seu
ideário, e justificava-se pela necessidade de dar manutenção à grande estrutura
de templos católicos.
Fundamentalmente, as teses diziam que os certificados de
indulgência esvaziavam o arrependimento do fiel, pelo fato de que se desfazia a
necessidade da busca pela contrição sincera e de se evitar o pecado, bem como
colocava em segundo plano outras possibilidades de remissão, como as obras de
caridade e os atos de misericórdia, que possuíam um efeito prático muito mais
visível que a aquisição de indulgências.
A princípio, Lutero tomou um certo cuidado em não se colocar
em confronto direto com o papado, mas, uma vez recusando-se à retratação, foi
considerado herege e se colocou a desenvolver sua nova igreja. Embora o Luteranismo
tenha mantido mais pontos de contato com a prática católica do que parece
qualquer culto evangélico de hoje em dia, de lá já brotaram algumas das
principais diferenças que foram adotadas pelas mesmas e se mantém até os dias
de hoje.
Basilarmente, as diferenças fundamentais entre católicos e
protestantes são as seguintes:
Primado da Bíblia: é indiscutível que a Bíblia seja o
primado doutrinário e teológico tanto para católicos quanto para protestantes.
Entretanto, os protestantes reputam unicamente a Bíblia como fonte válida de
textos para serem interpretados com relação a sua fé, em uma doutrina conhecida
como sola scriptura. Entendo que há algo de contraditório nessa maneira
de pensar a Bíblia. Basta se pensar que qualquer interpretação sobre a Bíblia
está fora da Bíblia, e caímos desta forma em um daqueles paradoxos
circulares. Já o Catolicismo entende como fontes doutrinárias válidas a
tradição e o magistério da igreja. A primeira diz respeito aos costumes
adotados pelos primeiros cristãos que vieram preencher certos vazios teológicos
que a leitura direta da Bíblia, especialmente dos Evangelhos, produziu na
formação dos rudimentos do Cristianismo. Já a segunda é referente a autoridade
que a igreja tem para se autoorganizar e fornecer respostas e formação de
dogmas que escapam a leitura direta da Bíblia. Também possui suas contradições,
uma vez que as diferentes decisões são tomadas ao longo de tempos distintos que
envolvem realidades muito divergentes, seja de caráter geográfico, seja de
caráter histórico.
Papado e sacerdócio: a Igreja Católica possui uma
estrutura hierárquica bastante rígida, e que é traduzida por uma escalada na
carreira de acordo com a evolução do sacerdote. Acredita que o legado da igreja
foi deixado diretamente de Jesus para São Pedro, e que esse episódio estabeleceu
aquilo que ficou conhecido por papado. Como São Pedro foi martirizado na cidade
de Roma enquanto exercia seu sacerdócio, ficou estabelecido que era essa a
cidade em que ele exercia seu episcopado, e desde então o bispo da cidade de
Roma é considerado o Papa, líder da Igreja Católica em todo o mundo. A partir
deste ponto mais alto da pirâmide sacerdotal, a carreira eclesiástica se divide
entre os bispos (incluindo aqueles com funções especiais, como os monsenhores,
os cônegos e os cardeais) os presbíteros (que comumente chamamos de padres) e
os diáconos, que possuem a função de serem ministros da palavra. Antes disso,
há funções pré-eclesiásticas, como o acolitato e o leitorado, traduzindo um
longo tempo de preparo para o exercício das funções sacerdotais. Os
protestantes não reconhecem a transmissão direta da autoridade de Jesus a Pedro
e menos ainda o valor do papado. Sua estrutura é muito mais maleável (com a
notável exceção do Anglicanismo, onde o rei da Inglaterra é considerado o líder
máximo), possuindo estruturas muito mais locais e pulverizadas. A formação de
um pastor é extraordinariamente mais rápida que a de um padre, o que, se por um
lado prenuncia um preparo menor, por outro desfavorece a existência de uma
casta sacerdotal.
Sacramentos: são rituais que expressam sinais divinos
da presença do deus cristão. No Catolicismo, eles são sete e percorrem toda a
vida do fiel: batismo (introdução da criança na igreja), eucaristia (renovação
do ato sacrifical de Jesus), crisma (confirmação pública da fé adotada no
batismo), matrimônio (opção pela vida conjunta para a formação familiar),
ordenação (opção pela vida sacerdotal), confissão (para absolvição dos pecados)
e unção dos enfermos (para preparação dos moribundos à morte). Nas igrejas
evangélicas, esses sacramentos, via de regra, são apenas dois: batismo e
eucaristia, com diferenças significativas. O batismo de crianças não é
admitido, porque somente a partir da idade da razão uma pessoa pode tomar uma
decisão de fé consciente, e a eucaristia, apesar do caráter sacramental, é
antes um memorial da última ceia do que propriamente uma transubstanciação do
pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo, como creem os católicos. Os
protestantes, especialmente os mais recentes, possuem ritos bastante semelhantes
aos católicos, como os "óleos ungidos" (sic), e os matrimônios,
embora existentes, não têm caráter sacramental, sendo considerados mais uma
apresentação do compromisso dos noivos à comunidade.
Celibato: embora não seja uma condição histórica, a
igreja católica adotou o celibato para uma entrega total do sacerdote à sua
comunidade e, subsidiariamente, para não existirem transtornos no sustento de
famílias pela igreja. Já os pastores, em sua maioria, não abrem mão de sua vida
fora da igreja, o que significa que podem manter suas atividades financeiras e
sua vida social, incluindo aí o casamento. São, inclusive, fortemente
estimulados a isso.
Veneração dos santos: para os católicos, os santos
são pessoas que se destacaram das demais por sua vida cristã vívida e modelar.
Por esta razão, seriam dignos de ser elevados aos altares, mas na condição de
veneráveis, já que a adoração seria reservada somente a Deus. Os protestantes
entendem que essa interpretação é um macete para a idolatria, condenada
veementemente pelo Velho Testamento. As igrejas mais tradicionais, inclusive,
se negam mesmo a utilizar imagens impessoais, como é o exemplo da cruz.
É aqui que a porca torce o rabo, especialmente pela
predileção dos católicos à figura de Nossa Senhora. Realmente a coisa é
polêmica, se observada a olho vivo e faro fino. Se é aceitável a alegação da
força modelar dos santos, é bem verdade que é evidente que a veneração extra
concedida a Santa Maria transcende em muito ao que pode ser depreendido dos
Evangelhos. Com exceção de São Lucas, as referências a ela são esparsas e a
colocam mais como uma via útil e fornecedora de aspecto humano à divindade
neonata. Toda a reverência adicional, como a virgindade perpétua, a assunção
aos céus, a concepção sem pecado original e outros dogmas são oriundos da
tradição e do magistério, justamente as fontes que os protestantes não aceitam.
Por esse motivo, a estátua daquele tamanho deve arder nos olhos evangélicos
como se tivessem levado um borrifo de fumaça na cara.
Hoje ainda não temos grandes ocorrências, até porque os
católicos ainda são muitos e os alvos das santas metralhadoras ainda são
religiões de influência africana, com toda dose
de racismo contida no ato, mas as estatísticas demonstram que o arco está
se movendo, com um agravante: as novas denominações pentecostais aproximam-se
mais e mais do poder. A nova bancada evangélica chega a 20% dos deputados, o
que representa a maior bancada temática do Congresso. Como a população evangélica
se aproxima hoje de 30% do total, é provável que essa representação continue
aumentando. Chegará um momento em que poderão ser invocados princípios do
Estado laico (vejam vocês) para que não se permitam mais a construção de
imagens públicas, principalmente dessa magnitude. Já pararam para pensar nisso?
Eu, na minha posição atual, tenho pouco a lamentar. Mas, com
um pedido de perdão a quem pensa diferente, entendo que a troca de guarda tem
um aspecto triste. É que a liturgia católica é belíssima, indo além do seu
significado para os fiéis para uma dimensão cultural muito profunda. Ela tem
uma complexidade que se estende por todos os seus tempos, com estrutura
específica para cada um deles, sendo que vários dos seus elementos se repetem,
enquanto vários ganham novos sentidos no decorrer do ano. Não é simples
de se acompanhar a liturgia católica. Trabalhei anos a fio nos meus tempos de
fé e era preciso, para seguir com critério, uma boa antecedência para preparar
tudo. O encaixe das músicas que se adequem à liturgia da celebração é bastante
exigente para o músico. Nada em uma celebração é vazio de significado, e isso
traz uma carga cultural enorme, talvez maior do que a igreja se digne a
esclarecer aos seus fiéis, e isso é um enorme problema: quando você não compreende
o que está fazendo, tende a se enfastiar. Enquanto isso, nos protestantes mais
modernos, a cerimônia é extremamente simples, com o molde
leitura-pregação-louvor se repetindo quase sempre. Dessa simplicidade, brota
uma compreensão fácil, mais próxima das pessoas.
Mesmo estando fora da religião, entendo que há um valor
intrinsecamente cultural e artístico que se perde na substituição de um modelo
por outro. Mas aí é uma mera opinião. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
As teses de Lutero são muito fáceis de achar na internet. Segue um endereço que
as contém:
LUTERO, Martinho. 95 teses sobre as indulgências. Disponível em https://www.luteranos.com.br/lutero/95_teses.html. Acesso em 31.12.2022.
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