(Confiar em relatos sempre é um problema. Que fará quando ele é base para o estudo científico)
Olá!
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Quando vamos a um destino turístico, nossa intenção sempre é
de encontrar alguma marca que distinga aquele local de todos os outros. É
verdade que há muitas coisas em comum, pontos geográficos, espaços históricos,
eventos culturais, construções religiosas e assim por diante. Mas é sempre
interessante quando há algo que faça com que aquela localidade seja única, e de
onde eu falarei agora, temos o curioso epíteto de Capital do Polvilho. Vou
falar de Conceição dos Ouros, a quem visitei no prosseguimento desta viagem.
A prática da fabricação do polvilho veio da disponibilidade
de mandioca, abundante na região. Todas as fábricas ficam na beira da estrada,
e trazem um aroma ácido peculiar, proveniente da fermentação do amido. Consegui
visitar uma das maiores, a Ourense, de propriedade do seo Romeu, que
estava andando pela parte baixa da fazenda quando cheguei e me indicou o
escritório para conhecer melhor a história do lugar.
A base para a fabricação do polvilho é a mandioca, raiz comum
no Brasil que contém alta quantidade de amido em sua composição. Ela chega
nessa fábrica em caminhões que são literalmente tombados para que o produto
caia de suas caçambas.
A mandioca é lavada e descascada, para então ser levada a um
processo de moagem, que é feito com um contínuo processo de hidratação.
Segue-se um processo de separação do amido e da massa de
mandioca. O amido vai com a água para os tanques de decantação, enquanto a
massa vai para a secagem, para virar ração para o gado.
Como disse antes, todo o processo consome boa quantidade de
água, e a separação dela do amido é feita por decantação. Essa água, rica em
ácido cianídrico, é conhecida como manipueira e precisa receber tratamento para
não chegar in natura nos rios, porque vai fatalmente contaminá-los.
O que diferencia o polvilho doce do azedo é que esse último
entra em um processo de fermentação, onde ficará por umas duas semanas. Depois
disso começará um insólito procedimento de secagem, feito em tabuleiros ao ar
livre, em um delicado equilíbrio com as intempéries da natureza.
Os meninos que nos atenderam nos contaram um fato único: a
necessidade de sair correndo para recolher as esteiras de secagem todas as
vezes em que o tempo ameaça mudar, mesmo que seja uma ventania. Isso porque,
evidentemente, todo o trabalho fica perdido quando há espasmos violentos no
clima.
Perguntei qual seria uma alternativa viável. Explicaram a
mim que é possível fazer uma secagem artificial, que desnatura o produto, ou
colocar o composto em estufas, mas imagine o tamanho da construção que seria
necessária.
O resultado são produtos os mais variados: polvilho doce e
azedo, tapioca, preparo para bolo, para biscoito e para pão de queijo.
Mas não fui lá somente para comprar polvilho. Passando para
a parte mais administrativa da coisa, Conceição dos Ouros tem esse nome por uma
conjunção de fatores. O nome inicial é por dedicação à padroeira do município,
Nossa Senhora da Conceição, cuja imagem orna a pracinha central.
Já a segunda parte diz respeito ao Ribeirão dos Ouros, que
tem esse nome porque, no passado, foi encontrada certa quantidade de ouro de
aluvião por essa redondeza, o que levou à povoação mais intensa do local. O rio
forma uma série de saltos e prainhas para a diversão da galera.
A fundação desta cidade foi responsabilidade do Major Félix
da Motta Paes, que doou parte do terreno que hoje compõe a área urbana.
Esse território englobava, principalmente, a redondeza da
confluência do Ribeirão dos Ouros com o Rio Sapucaí-Mirim, que incluía a antiga
capela de Nossa Senhora da Conceição e seu adro, que hoje é a praça que guarda
sua homenagem.
A matriz que leva seu nome hoje é uma igreja grande, e é
logo lindeira à praça.
Hoje Conceição dos Ouros tem uma cara um pouco diferente do
habitual nas cidades do interior, e, apesar do relevo típico da região, possui
avenidas largas e ruas retas, com pouco acompanhamento aos contornos naturais.
Como eu disse, não fui a Conceição dos Ouros só para ver
polvilho. A cidade tem no meio natural algumas atrações, e eu achei por bem ir
atrás de uma trilha. Nesses tempos modernos, peguei a localização no Google, que,
sendo Google, me mandou para o meio do nada. Lá estando, perguntei para um morador
que passava sobre a tal trilha, e este me mandou para outro canto. Depois, uma
criança me diz que eu estava indo para o lado oposto. Novo fracasso, nova
pergunta e, de novo, cara de estranhamento e recomendação de outra trilha, até
que desisti e fui admirar uma prainha.
Ninguém aqui quis mentir para ninguém. Nem os habitantes,
que não entenderam alguém que vem de outro estado e pergunta por nomes
oficiais, nem o Google, que simplesmente reproduz uma informação que foi
imputada em seus bancos de dados. A questão toda está na fragilidade das
informações não metódicas, que são assim mesmo: apontam para norte ou para sul
ao sabor de quem as profere.
Isso é um tremendo problema naquela divisa entre as ciências
exatas e as ciências humanas que tratei neste
texto, ainda naquele espírito de esclarecer como as Ciências funcionam. Se
queremos precisão nos dados, é justamente de um relato que não vamos obtê-la.
Mas há momentos em que não temos outro caminho.
Pense, por exemplo, nas histórias familiares. Meus filhos
conheceram extremamente pouco os bisavós. Da minha parte para com os avós da
minha patroa, a relação era meio conturbada, porque eu era um largado, de tênis
sujo e calça rasgada, que estava preocupado em correr para lá e para cá com uma
banda cheia de maconheiros, e com o pouco confiável emprego de arquivista em
uma grande rede de varejo para não garantir o futuro e blá-blá-blá, tudo isso
no dizer deles. Nada mais natural que eu fosse muito pouco em suas casas,
principalmente para evitar brigas. Quando tenho algo a contar sobre eles para
meus filhos, é sob esse prisma que o faço. Já a consorte trata deles com muito
mais carinho, dizendo que a avó dançava, o avô fazia paçoca e essas coisas que
os avós fazem. Ela corria para lá quando sua mãe queria pegá-la com fio de
ferro ou quando brigava na escola. Tinha colo e doce, e eu também adoraria um
lugar assim. De um lado ou do outro, a verdade não vem, porque uma versão é
rançosa e a outra é afetiva.
As Humanas sofrem com isso. Por isso, precisa lançar mão de
recursos em substituição à precisão das observações das Exatas. Meu exemplinho
bretão: no clássico da rua de cima contra a rua de baixo, todas as medidas
matemáticas e físicas são pouco passíveis de dúvida – a medida do campinho é
mensurável por trenas, a acidez do terreno por PHmetros, a inclinação por
hipsômetros, o peso da bola por balanças, a espessura das linhas por réguas, a
iluminação por luxímetros, a resistência das redes por dinamômetros e por aí
afora. Já a qualidade do jogo, o talento dos atletas, a retidão do árbitro, a
competência dos técnicos e a importância das torcidas não têm aparelhos para
medir. Tudo depende de uma apreciação subjetiva, que só pode trazer resultados
na base do consenso, o que não é fácil de se obter. O torcedor da vitoriosa rua
de cima dirá que o jogo foi ótimo, enquanto o infeliz da rua de baixo clamará
contra os céus e o goleiro peruzeiro, o gramado ruim, o centroavante caneludo,
o juiz caseiro, o técnico burro e até contra os sapos enterrados no pé de suas
traves. Partindo da premissa caeiriana de que o rio da minha aldeia é mais belo
do que o Tejo por ser o rio da MINHA aldeia, é possível pensar que mesmo a mais
isenta das opiniões é eivada de alguma parcialidade, pelos mais diversos motivos.
Cada um terá um relato próprio, e é desse minestrone que um sociólogo ou
antropólogo precisará tirar suas conclusões.
O exemplo banal do jogo de futebol hipotético podemos
espalhar, grosso modo, para qualquer aspecto sociocultural que dependa
de depoimentos para ser trazido a claro. E aqui já temos que nos defrontar com
a questão axiológica das Ciências: uma área do conhecimento não pode e nem deve
possuir valores, mas eles são praticados por pessoas, que inevitavelmente têm
os tais. Conciliar essas duas características é um sufoco daqueles. Percebam
que um fato é um fato, independentemente do juízo que façamos sobre ele, e
ponto. Mas a própria visão que temos sobre o fato depende de muito do que
tenhamos já interiorizado em nós.
As Ciências Humanas têm, então, que contornar o problema do
relato. Ele é substancial quando tudo o que temos são depoimentos. Vejam que
não são somente as Humanas que sofrem com isso: sintomas de indivíduos
participando de um experimento com remédios carregam desse mesmo desafio. Uma
dor de cabeça após a ingestão de certa pílula nem sempre é causada pelo tal
medicamento, que pode ser motivada pela sugestionabilidade do participante. Por
isso existem os grupos de controle (leia mais aqui),
e também por isso pesquisas quantitativas precisam ser razoavelmente grandes.
Um exemplo maravilhoso está acontecendo agora no Brasil (com atraso): o censo
do IBGE, aquela pesquisa que acontece a cada dez anos e na qual os
recenseadores vêm bater à nossa porta com formulários imensos, e que vale não
somente para direcionar políticas públicas, mas que é canônico para qualquer
cientista social obter informações. Para uma melhor aferição e direcionamento
dos recursos públicos, é preciso que o entrevistado forneça dados os mais
precisos possíveis. Tudo vai bem enquanto as perguntas versam sobre quantidades
de moradores, parentesco, estado civil, religião. Já entorta um pouco em
definições menos objetivas, como raça/cor, e para questões consideradas
constrangedoras, como a definição da escolaridade. E, em um país violento, com
tanta notícia de vazamento de dados pessoais, a informação sobre renda é, sem
dúvida, a menos confiável de todas. Quem se sente confortável em dizer para um
estranho o quanto ganha? Se é pouco, é vergonhoso; se é muito, é arriscado. É
certo que outras fontes podem fornecer dados sobre o mesmo tema, mas aqui nós
podemos perceber como o relato, mesmo em pesquisas quantitativas, pode
distorcer a realidade. Fôssemos obrigados a apresentar um holerite, o problema
estaria diminuído, porque haveria o confronto com um dado real e objetivo, sem
passar pelo filtro das idiossincrasias, mas tornando ainda mais lenta a coleta
do survey (para saber mais sobre metodologia de pesquisa social, leia este
texto).
Mas para Sociologia,
Antropologia,
Psicologia,
História,
Economia
e outros, às vezes não há números, somente histórias contadas. Quando a
pesquisa depende mais exclusivamente do relato, a dificuldade aumenta muito. Há
um fenômeno psicológico que leva um indivíduo a moldar diferentes versões de
suas narrativas dependendo do público que vai recebê-lo. Infelizmente não
consigo lembrar onde eu ouvi, mas tenho perfeitas lembranças (com toda chance
de armadilha
da memória assumida) de um caso muito interessante. Um grupo de crianças
foi entrevistado por uma equipe de pesquisadores sobre diversos elementos da
vida social da escola em que estudavam. Uma das abordagens foi sobre a
imputação de apelidos entre os colegas e o nível de desconforto que isso
ocasiona, especialmente quando tangenciada a questão racial. Nas reuniões em
que o grupo fazia todo junto, o resultado era bem complacente: não havia
problemas nos apelidos, que, no final das contas, melhorava a comunicação e
personificava as pessoas. Entretanto, estando em entrevistas individualizadas e
com sigilo assegurado, outra realidade se descortinava, com a demonstração de
grande desconforto nesses apelidos, e sua tolerância se dava pela aceitação dos
membros pelo grupo, e não uma verdadeira aceitação própria. É triste, e precisa
ser considerado nas conclusões da pesquisa, mas demonstra a dificuldade
encontrada – nem sempre conseguimos ter essas sacadas que esclarecem as coisas.
Temos uma verdade pública e outra privada, temos perspectivas diferentes
dependendo do ângulo que enxergamos um fenômeno, temos posições ativas e
passivas em situações que
fazem mudar nossa opinião, temos versões que são influenciadas pela carga
cultural e pela história de vida que cada um de nós leva consigo, discriminamos
as coisas de acordo com a capacidade e conteúdo cognitivo pessoal. Por isso, o
relato é um problema tão grande na pesquisa.
Uma pesquisa científica procura uma generalização, e isso é
obtido a partir de eventos singulares, que são coligidos até se obter uma linha
de tendência, de modo a se obter uma relação causal que resulte em estabilidade
e sequência. Desse conjunto, há uma explicação para os fenômenos. Quando o
assunto em pauta tem caráter social ou antropológico, é preciso que o
pesquisador tenha meios de qualificar o dado que recebe. Um único relato nunca
é suficiente isoladamente. O Google, sozinho, manda-me para um morro perdido. O
rapaz que por lá passava me mandou para um outro lado, e assim por diante. Se
na minha pesquisa eu perguntasse a umas trinta pessoas, certamente haveria uma
tendência para procurar em um local mais certo: se umas vinte dessas pessoas
falassem para eu cruzar tal pontezinha e virar à esquerda, seria mais provável
seu acerto do que o da menininha que me dissesse para voltar para trás e entrar
no carreador depois do abacateiro.
E finalmente: perguntar porque a tal menininha me mandou
para o outro lado do morro levanta tantas questões quanto a própria busca pela
trilha que eu procurava, e daí a quantidade não faz diferença nenhuma, mas sim
a sua vida e experiência pessoal, tão singular quanto a correria do pessoal da
fábrica de polvilho a cada vez que uma nuvem marota prenuncia a mudança do
tempo no fundo do horizonte. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Livro da velha guarda, mas que tem as premissas fundamentais
da pesquisa.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em Ciências Humanas e
Sociais. São Paulo: Cortez, 2000.
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