(Confessar não é só um ato de fundo pessoal, mas parte de um método filosófico)
Olá!
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Desde já, preciso fazer uma confissão. Quando fui a Inconfidentes,
cidade que fica no circuito têxtil mineiro, para ver seus crochês, esqueci meu
celular no hotel. Por esse motivo, fiquei sem fotos. Fiquei em um dilema
existencial: faço meu texto sem fotos ou simplesmente deixo essa passagem de
lado e pulo para a próxima? Eu, filho de Dona Irene e neto de seo
Salvador, perfeccionistas modelares, tenho dificuldades em me conformar com
algumas coisas. Embora saiba que ficou longe da perfeição, resolvi o problema
passando novamente na cidade na volta de Bueno Brandão, o que ocorreu à noite.
Por esse motivo, peço desculpas aos meus leitores e à cidade de Inconfidentes
pela má qualidade fotográfica, mas o que importa mesmo é o teor filosófico do
texto, e é o que deu para fazer sem excluí-los da série, algo que ficaria me revirando
a consciência permanentemente, embora a única imagem decente é a que vai logo
abaixo. Acho que valeu a pena.
Inconfidentes é uma cidade típica do interior sul-mineiro. Cercada pelas montanhas da Serra da Mantiqueira, possui um centro urbano que concentra a maior parte de sua população e extensa área rural. A mancha urbana orbita em torno de sua matriz, a paróquia de são Geraldo Magela.
Diante de seu adro, fica o marco inicial do Caminho de
Graças e Prosas, que visa estabelecer vínculos entre as culturas locais e dar
guia aos peregrinos.
Para além da religiosidade, Inconfidentes é marcada pela educação universitária, porque lá está instalado um dos campi do Instituto Federal do Sul de Minas, entidade do governo federal especializada nas engenharias do campo, além de várias licenciaturas e algumas tecnologias.
A verdadeira especialidade da cidade está mesmo na área têxtil,
da mesma forma que suas vizinhas Jacutinga, Borda
da Mata e Monte
Sião. Há as mais variadas lojas espalhadas pela região.
Em boa parte, verifica-se a existência de lojas de malhas, com tudo o que lhe é comum, como camisetas e pijamas.
A cidade orgulha-se, no entanto, de sua produção de crochê,
o que a diferencia um pouco do tricô monte-sionense e da malha borda-matense.
Um dos distintivos são as árvores que são recobertas pelas
tramas de fios, como se fossem monumentos da arte de crochetar. Alguns são
tecidos com outras artimanhas da costura, como a combinação com fuxicos.
Outras demonstram a complexidade que se pode obter com a
habilidade nestas artes e ofícios, com desenhos que podem ser autênticas
tatuagens.
O nome da cidade seria, para um estrangeiro, um tanto
curioso. Traidores, como assim?! Mas para nós, brasileiros, tão versados em
nossa própria história, é fácil de saber que tudo tem a ver com o movimento que
ficou conhecido como Inconfidência Mineira, cuja principal figura histórica é
Tiradentes. Chega de ironia e vamos dar uma espanada nos alfarrábios.
A Inconfidência Mineira foi um movimento que nasceu da
reação às coletas de impostos pela coroa portuguesa, ainda no século XVIII. Foi
um movimento multiforme e heterogêneo, que englobou especialmente camadas de
elite da Província das Minas Gerais, mas que não se limitou a elas.
A questão toda gira em torno da tão conhecida sanha por
riquezas da relação colônia-metrópole entre Brasil e Portugal. Fazer as viagens
exploratórias na época das grandes navegações não era nada barato, e a melhor
maneira de custeá-las era obter recursos nas terras descobertas. Se pudesse ser
em ouro, melhor ainda.
Entradas e bandeiras foram criadas para buscar todo tipo de
produto que pudesse representar divisas para a metrópole. Nessas buscas,
encontraram minérios valiosos no território em que hoje se encontra Minas
Gerais, o que, inclusive, lhe batizou. O busílis está na relação entre abuso da
coroa e febre d’argent que povoa o imaginário desde sempre. O reino de
Portugal exigia que um quinto de todo ouro encontrado fosse encaminhado para lá.
Para tanto, todas as descobertas deveriam ser levadas às casas de fundição,
onde o minério bruto era transformado em lingotes com a marca real e a
arrecadação do quinto já era feita na fonte. Largar 20% de tudo o que você
coletou não era algo aceito confortavelmente por todas as pessoas, em especial
quando não é revertido em nada que lhe seja aproveitado. Por conta disso, muito
ouro era extraviado pelos caminhos adjacentes à via principal de circulação, a
Estrada Real (de quem já fiz um belíssimo texto, aqui).
Se a guarda capturasse essas cargas, babau. Se não, o contrabando se
concretizava e o danadinho se locupletava.
Mas a controvérsia nem era essa. O caldo entornava com a
derrama, uma coleta de impostos suplementar que a coroa portuguesa realizava
sempre que sua meta arrecadatória não era atingida. Para arrecadar os recursos
da derrama, pouco importava o que viria pela frente, desde que a quota fosse
complementada, incluindo o confisco de bens e objetos de ouro. Dizia-se que a
derrama não servia unicamente para fins arrecadatórios, mas também para punir
os desvios de metal, que continuavam a ocorrer, a despeito da instituição das
casas de fundição. A ausência de critério nessa coleta era objeto de imensa
revolta, e foi na iminência de uma delas que surgiu o movimento da
Inconfidência Mineira.
Esse movimento tinha seus objetivos pouco claros, porque
cada um queria uma coisa, mas, grosso modo, era uma conjuração
separatista, que pretendia inaugurar em Minas Gerais um novo Estado, e
aproveitariam o descontentamento popular com o decreto de uma nova derrama.
Entretanto, a alcaguetagem rolou solta e o movimento foi desfeito, cujo
principal evento histórico foi a execução de Tiradentes, uma espécie de bode
expiatório com a discutível cara de Jesus. A formação de um panteão heroico
para a república brasileira fez com que essa história, que havia ficado mais ou
menos engavetada, voltasse à tona, e, sendo um acontecimento mineiro, há muitas
e muitas referências espalhadas por todo o estado, incluindo o nome da cidade
em tela.
O nome dessa conjuração, do qual derivou a denominação de
Inconfidentes, tem o ponto de vista do reinado português. Afinal de contas,
inconfidente é aquele que é infiel, desleal, que não confessa seus próprios
propósitos. Portanto, quem deu o nome que ficou mais conhecido ao movimento foi
o ângulo de visão do lado de lá. Fosse o contrário, seria conjuração, aqueles
que juram causa juntos, e se fosse neutro, seria revolta ou coisa semelhante.
Seja como for, a palavra remete à confissão, à admissão de algo que não se dá
abertamente, e esse é o mote do presente texto. Evidentemente, do ponto de
vista filosófico.
Hajime Tanabe é o único filósofo japonês que eu conheço,
pelo menos até hoje. Nem é tanta vantagem assim, porque ele tem grandes influências
ocidentais no seu pensamento, mas, mesmo assim, é muito interessante de
conhecer, porque ele acaba fazendo uma transição entre o pensamento mais
material da Europa com uma certa espiritualização comum em terras orientais.
Ele dizia que toda a arte de filosofar parte de uma confissão. Mas o que é
confessado quando se filosofa? Essencialmente, a própria ignorância. É preciso
reconhecer que nada se sabe para buscar compreender o mundo.
Ora (direis), foi preciso esperar até o século XX para se
chegar a essa conclusão? O "só sei que nada sei" socrático era uma
mera ilusão de ótica? Não vamos ter uma versão nipônica da maiêutica dos
gregos? Não, meu rigoroso interlocutor. Eu também tive essa sensação nos
primeiros contatos que tive com o professor japonês, mas a questão fundamental
está no ângulo que se enxerga, o da Fenomenologia.
Tanabe esteve na Europa bem no momento em que Husserl
desenvolvia seu método de investigação filosófica. A Fenomenologia procura ter
a noção de que há sempre uma consciência que tem contato com os fenômenos (tudo
o que existe e acontece no universo), e que essa consciência nunca é pura, sempre
recoberta por várias camadas de cultura, o que faz com que qualquer coisa que
seja observada seja feita de maneira absolutamente particular. Se cada um de
nós vê o universo pelo prisma de sua própria consciência, então são mais de
oito bilhões de universos diferentes sendo vistos. Por isso, a Fenomenologia
preconiza que a primeira parte de qualquer análise deve considerar a remoção de
todos esses vernizes que recobrem nosso conhecimento.
Isso é feito, pela clássica imagem de Husserl, colocando o
conhecimento entre parênteses, ou seja, deixando tudo o que imaginamos conhecer
quietinho num canto enquanto vamos fazer o contato com o objeto de estudo
despidos de valores prévios ou de conceitos concebidos anteriormente. Quando
observamos qualquer coisa no mundo, existe uma atitude natural e intuitiva, que
é justamente colocar essa coisa dentro de um contexto conhecido por nós. Isso
nós fazemos sempre e não há nada de errado nisso, até por uma questão de
sobrevivência. Mas quando o assunto é reconhecer o que há de essencial nesse
fenômeno que observamos, é preciso deixar de lado o conhecimento prévio. Eu não
vou descartá-lo, mas vou suspendê-lo. Esse colocar o conhecimento entre
parênteses é o que ficou conhecido como epoché.
Eis aqui que Tanabe encontra a premissa socrática da
ignorância. Tudo o que eu sei sobre qualquer coisa está banhado da minha
própria consciência, e essa é moldada pelo modo como absorvi tudo o que eu
pretensamente conheço. Ou seja, ao aplicar a epoché fenomenológica, só me resta
reconhecer que nada conheço.
Mas não parece uma premissa radical demais? Se pensarmos em
nosso mundo acelerado, onde as informações precisam ser entregues como produtos
de consumo, veremos que aquilo que conhecemos como “verdade” ganhou um estatuto
novo, mais vinculado a uma criação mental de um desejo do que a uma
correspondência entre um fenômeno e o que se diz dele. Pensem no que se diz
sobre direita
e esquerda, sobre nazismos
e comunismos,
sobre Terra
plana e Terra
no centro do universo para se ter ideia da dificuldade de se alcançar uma
verdade indubitável. Isso é tão evidente que se cunhou o termo pós-verdade,
onde a posição de quem propaga a informação é mais importante do que os fatos
despidos da opinião de quem olha para eles. Uma abordagem fenomenológica
tornou-se imprescindível para quem quer manter um mínimo de coerência entre o
que se se vê e o que se relata, e o único meio de se obter isso é admitir que
seu conhecimento prévio é pobre e caduco.
Embora adira ao pensamento fenomenológico, Tanabe não deixa
de deitar as raízes do seu pensamento em um sabor oriental. Como diz o Budismo
e seus filósofos (vide este
texto), a busca pela iluminação passa essencialmente por um esvaziamento do
próprio eu. Esse esvaziamento, quando refletimos na assertiva fenomenológica da
consciência, é o próprio processo pessoal de retirada sucessiva de todos os
conhecimentos prévios que podemos ter sobre qualquer coisa. A vacuidade budista
tem, portanto, a mesma natureza da epoché husserliana. A busca do eu (a
consciência) é uma remoção sucessiva de tudo o que é não-eu. Só a consciência
despida tem a capacidade de atingir uma essência, e, nesse sentido, o primeiro
passo está no reconhecimento da ignorância: uma confissão feita para si mesmo.
Comecei este texto falando sobre a necessidade de fazer uma
confissão, e, no final das contas, acabo por mostrar como ela vai muito além de
um mero ato íntimo ou de uma obrigação religiosa, chegando até mesmo a ser uma
prescrição obrigatória na Filosofia. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
O português é pobre em material de Tanabe, restringindo-se a
uns poucos artigos. Recomendo essa obra em italiano para conhecê-lo melhor.
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