Para quebrar um pouco do hábito desta casa, este texto será
mais curto, sem as consuetas cinco ou seis laudas. Isso não significa que não
terá suas historinhas, já que contexto é tudo na vida de quem argumenta. Vamos
lá?
Domingo passado pela manhã, fui dar asas mais uma vez à
minha verve automobilística. Como já discorri recentemente, neste
texto, desde bem jovem peguei o gosto pela coisa, e a ausência de um piloto
brasileiro não me incomoda em nada. Afinal, não ligo a TV propriamente para
torcer por alguém específico, mas para apreciar a sutil beleza do esporte. E esta
última corrida, o GP da Áustria de Fórmula 1, foi um evento de gala, daqueles de
presenciar de fraque e cartola. Uma atuação soberba do jovem piloto Max Verstappen,
arrojado ao extremo, que, a bordo de sua improvável Red Bull, veio galgando
posições e engolindo seus melhores munidos adversários, até chegar a uma
apoteótica ultrapassagem sobre o novel Charles Leclerc, com direito a toque de
rodas e saídas de pista. Uma saga de tirar o fôlego.
Literalmente. Sabe quando você tem a aplicação prática de
uma expressão idiomática qualquer? No final da aventura, quando voltei a tomar
consciência de mim mesmo, dei-me conta do pulso acelerado. Certa feita, fiz uma
experiência pretensamente científica. No final do campeonato paulista de 2018,
tivemos um Corinthians X Palmeiras decidido nos pênaltis (estou com uma camisa
do Corinthians neste momento, coincidentemente aquele modelo Senna). O que a patroa
fez? Meteu um esfigmomanômetro de pulso que tenho em casa e foi medindo minha
pressão a cada par cobrado. O pico das medidas chegou a 20 por 12!!! Isso
explica a frase “não é jogo para cardíaco”, tão em voga nas bocas de locutores
e afins. É claro que não era o caso do último fim de semana... ou era, sei lá.
Mas sabe aqueles dias em que você está fazendo com a patroa
aquilo que você mais gosta de fazer com a patroa, e o cachorro entra álacre e
saltitante em sua alcova? Pois é. Surge na telinha o nauseabundo termo em
inglês incident involving cars 16 and 33 under investigation, coisa assim.
O resultado estava sub judice, e os comissários avaliariam se houve algum tipo
de excesso do voluntarioso Max sobre o macambúzio Charles, e a decisão saiu
somente três horas depois, quando eu já estava refestelado em decúbito dorsal
sobre o sofá da sala, tentando digerir o baião-de-dois do almoço. É o broxante
VAR aplicado às quatro rodas. Menos mal que a épica vitória foi confirmada.
Lá pelo fim da tarde, sem muita coisa para fazer na espera
pela segunda-feira, que já se aproximava ameaçadoramente, fui “participar” das
resenhas deste nosso mundão virtual (domingo sem futebol é uma merda), e
percebi algo que realmente me chamou a atenção. Muita gente opinava que seria correto
aplicar a punição pretendida, e que não o fazer seria um duplo prejuízo à
equipe Ferrari, a squadra do ultrapassado monegasco.
Explico. Há duas corridas atrás, no GP do Canadá, tivemos
uma disputa acirrada entre Sebastian Vettel, da equipe italiana, e o líder do
campeonato, Lewis Hamilton. Bem perto do final da prova, Vettel escapou da pista
em uma chicane, conseguindo retornar ainda na liderança. Abriu-se uma
investigação igual à que citei, porque se achou que o alemão espremeu Hamilton
contra o muro em seu retorno à pista, já que o pentacampeão aproveitou a brecha
para emparelhar seu carro, e teve que recuar, ante a iminência do choque. Os
homens de preto julgaram que a manobra foi imprudente, e acrescentaram cinco
segundos ao tempo do nosso casmurro tedesco, que ficou puto da vida com o fato
de ter ganhado, mas não levado: cruzou a linha em primeiro, mas o tempo
adicionado o fez terminar a prova em segundo, fazendo com que Hamilton
garantisse a mais sem graça de suas inúmeras vitórias.
Aqui cabe a discussão. É justo corrigir um erro com outro?
Há uma tentação em se dizer que sim, mas é uma tendência falaz. No caso, humildemente
eu penso que a punição a Vettel foi injusta, e a não-punição a Verstappen foi
correta. Basta que se observe a dinâmica da ambos os incidentes. Vettel escapou
para a grama, e precisava decidir em um átimo o que fazer. Corrigiu como pode o
traçado de seu carro, e isso incluiu uma fechada de porta em Hamilton. No
entanto, parece-me claro que não houve uma intenção em impedir a ultrapassagem
com meios antidesportivos. Era o que havia a fazer, e nada mais. Há risco
inerente na prática deste esporte, assim como em tantos outros. Esperar que o
alemão se mantivesse aguardando o inglês sumir de sua lateral vai contra o que
se espera de uma disputa por posições. Por estes mesmos motivos, achei adequada
a homologação do resultado da corrida na Áustria, sem tirar nem por. Pelo curso
natural da curva, Verstappen espalharia um pouco sua trajetória. Não se percebe
uma intenção em jogar Leclerc para fora da pista. Se há algum tipo de forçação
de barra, é deste último, que tentou enfiar o carro onde não cabia. Portanto,
temos um erro no primeiro painel e um acerto no segundo.
O ponto em que poderíamos concordar com a indignação dos tifosi
é a questão do critério. Seria desejável que ele sempre fosse o mesmo, que os
regulamentos fossem absolutamente claros para não gerar ambiguidades, como, de
resto, deveria ser tudo na vida, especialmente na construção das leis. Mas,
malícia dos legisladores à parte, é muito difícil de se prever toda e qualquer
nuance que o curso dos acontecimentos venha a desenhar à nossa frente. Entendo
que houve erro dos comissários no primeiro caso, o que não implica na necessidade
de erro no segundo. A montanha de tempo que se levou para decidir a querela só
prova que a questão foi colocada à baila, de modo que poderia ter contaminado a
decisão.
E o principal: não se conserta um erro com outro. Um erro é
um erro, e pronto. Não se torna acerto, por “consertar” outro. Geralmente, uma
situação destas provoca cadeias longas de erros sucessivos, ao invés de se pôr
um ponto final na questão. Lembro de uma vez, quando eu passava pelos perrengues
de manter as barrigas das crianças minimamente preenchidas (e matriculados em
uma escola que ficasse na linha mais próxima do limite da dignidade – isso era
um ponto de honra para mim), que um problema permanente na minha casa ganhou
contornos aflitivos. Eram as goteiras resultantes de uma laje mal enchida, que
já estavam fazendo o reboco da cozinha ficar “barrigudo”. Por vezes, tentei
corrigir o problema do modo que era possível. Passei piche, apliquei manta líquida,
cimento bem aquoso, malha com vedapren, tudo em vão. Antes de ver as placas de massa
cair na cabeça de alguém, juntei os mais mirrados cobres e peguei férias: iria
eu mesmo fazer um telhado, com a ajuda do bem-disposto e sempre disponível
sogrão. Telhas compradas, madeiramento todo medido, vamos começar la faena.
Pensava em terminar, no máximo, em uma semana. Acabou com as férias inteiras,
mais dois finais de semana. Uma trabalheira dos infernos... Mede, corta, fura, prega,
apoia, nivela, faz, refaz, quebra, xinga... Para dois amadores, a coisa ficou
até aceitável, mas havia o problema da caixa d’água a resolver. Desgraçadamente,
eu havia optado por uma das redondas, e não dava para fazer o encaixe das
telhas de maneira decente. Achei que arrematar com plástico resolveria a
parada. A primeira chuva mais parruda provou que não. Fui remendar com cacos de
telha; não funcionou. Tentei aplicar uma grossa camada de massa na região logo
abaixo da laje; também não resolveu. Recobri de manta esse mesmo monturo – não.
Tentei fazer uma “saia” com rufos ao redor da caixa, para fazer a água escorrer
para as telhas. Só consegui uma longa cadeia de cortes nos braços, alguns deles
merecedores de pontos (resolvi na base da atadura mesmo). Parti para a
ignorância e entrei por baixo do telhado em um dia de chuva, para ver por onde
diabos a água entrava. Não adiantava, escorria por todo o perímetro da caixa d’água.
Eu tentava desesperadamente corrigir um erro com outro, e nada resolvia. Um torto
para corrigir um curvado. O certo era fazer o que o pedreiro pago com sangue e
lágrimas fez: suspender a caixa d’água com duas patéticas muretas, e fazer o
telhado sob ela como manda o figurino. Pronto, sanado.
Dois erros não fazem um acerto. Dizer o contrário disso é uma
falácia. Quando alguém aprova uma ação errônea, por exemplo, para “corrigir”
outra, não está fazendo uso da lógica, mas de seu sentimento de vingança. Não
dá para aplicar o raciocínio matemático de que menos vezes menos dá mais. Se
não for razoável a questão do critério, então nada mais temos do que uma
perpetuação da conduta que arrasta o erro pelo infinito. Vejam como a
humanidade busca se afastar da premissa do “olho por olho, dente por dente”,
ainda que por muitas vezes tenhamos vontade de torcer o pescoço de quem nos molesta.
Não é um bom modo de se conviver no meio social. Nem de resolver resultados de
corridas. Bons ventos a todos.
Recomendação de site:
O pessoal do Projeto Motor já foi recomendado neste espaço,
mas apenas seu canal no YouTube. Quem gosta da área de automobilismo não deve
se limitar aos seus vídeos e às suas lives. Há excelente material no
site também, contendo artigos sobre história e análise de F1, com material
adicional sendo disponibilizado por quantia módica. Estão de parabéns os jovens
jornalistas Lucas Santochi e Bruno Ferreira, bem como seus convidados, por
mostrar sangue novo e boas ideias neste ramo que, infelizmente, tende ao
encolhimento nestes tempos de ausência de ídolos em terras tupiniquins.
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