Olá!
Nós vivemos tempos difíceis, não só por conta do
interminável coronavírus, mas também pela profunda divisão que encontramos em
nossa sociedade. Aqui, não cabe pensar apenas nas famosas classes em luta de
Karl Marx, nem nas divisões causadas pela horrorosa distribuição de renda, mas
no plano do debate político mesmo. Nos últimos tempos, exacerbados pelas recentes
decisões do STF, a coisa começou a se figurar como guerra aberta para a eleição
do ano que vem.
Ao lado disso tudo, temos uma confusão dos diabos na
condução da pandemia, e também aqui as coisas ficam na base do Fla vs Flu.
Pouca gente pondera de verdade na questão. De um lado, defende-se o SUS porque
os manda-chuvas o elogiam. De outro, ora, porque os manda-chuvas o depreciam.
Do meu lado, procuro entender o que ele é e como funciona, e percebo que há
muito mais coisas favoráveis do que contrárias, sem que me gritem o porquê.
Então eu deveria simplesmente acionar a verve armênia e deixar que os cães
ladrem, à direita e à esquerda. Só que quando se faz campanha contra a
vacinação, não é atingida somente ela em si, mas toda uma cadeia complexa e
exemplar do sistema de saúde do Brasil, e que somente não decolou de vez até
hoje por conta da falta de dinheiro.
Só que eu não ando com saco para comentar política, e chamei
o assunto apenas para dar base ao tema que quero abordar. As polarizações
políticas são tão comuns porque isso é uma predisposição de nossas dicotômicas
mentes.
O ser humano pensa por oposições, já dizia a filósofa
argelina Hélène Cixous, da escola pós-estruturalista francesa. Para que
consigamos estabelecer o que é bom, logo pensamos em algo que é mau; no que é
lento, pensamos naquilo que imaginamos ser rápido; no que é antigo, tentamos
estabelecer mentalmente o que é recente, e assim sucessivamente. Ou seja, para
que consigamos raciocinar, procuramos sempre um referencial, e a maneira mais
simples que nosso cérebro encontra é a guinada de 180 graus, olhar lá para o
outro lado e estabelecer quão distante está uma posição da outra. O binarismo
destes princípios mentais vai desembocar diretamente na linguagem, o que gera
nela uma espécie de hierarquia, onde um dos termos sempre vai encontrar
prevalência sobre o outro.
Talvez seja muito difícil lutar contra essa espécie de predisposição
à estrutura binária do pensamento, e o grande problema não está em se
reconhecer os extremos, mas se fixar muito próximos a eles gera um
desequilíbrio que mexe na forma como valorizamos tudo aquilo que está na outra
ponta. Tudo tende a se aglomerar em torno dos polos, como se houvesse uma força
de atração nesses extremos, uma espécie de imantação cognitiva. E isso vai
fazer com que julguemos o lado de lá como estranho à relação, como se fossem
desviante, como se estivesse não só do lado oposto, mas do lado de fora. E isso
não é verdade.
Peguemos como exemplo algo que me é caro: futebol, claro...
Corinthians e Flamengo costumam condividir as mesmas atribuições, cada um em
sua terra. Time do povo, torcida apaixonada, que lotam estádios por onde passam.
Estão em um polo bem específico no espectro da popularidade, que não guarda
relação apenas com atributos de volume, mas de oposição à elite. Por isso, são
também times de molambos, de desdentados, de analfabetos. São times de massa, e
o povo é relacionado, por oposição à camada mais rica, à pobreza, à falta de
cultura, às doenças da miséria. Tudo errado. Nem o povo é inculto, nem é
interdito a ricos e intelectuais de gostarem destas equipes.
Cixous aprofunda esse debate no sentido do gênero. Ela percebe
que, além da desproporção do pensamento binário, há uma tendência em se
atribuir características femininas ao polo inferior na relação linguística. Os
pares dicotômicos guardam uma posição hierárquica entre si, e aqueles
atribuídos ao gênero feminino sempre estão na parte baixa. Forte e frágil,
claro e enigmática, ativo e passiva e, especialmente, racional e emocional são
as formas em que não há trânsito, apenas saltos. Ser emotivo não é particularmente um problema, mas está hierarquicamente inferior ao racional,
que é designativo da espécie. O homem emocional é mariquinhas, é um defeito,
percebem?
Só que não há diferença entre a forma de pensar entre homens
e mulheres. O riso da Medusa é exatamente o reconhecer que a petrificação
é só um efeito de um pensamento embotado, e a górgona não é monstruosa, mas
linda e sorridente. Estas são tão capazes quanto aqueles de realizar coisas
emocionais e racionais, fortes e frágeis, ativas e passivas.
A busca racional, neste caso, não está em considerar
tudo o que é emocional como bom e migrar automaticamente para o outro polo, o
mesmo valendo com relação à racionalidade. Elas são boas e preciosas em seus
momentos específicos, e não é possível nem necessário que se abra mão delas. É
preciso alguma solução, e ela vem de muito tempo atrás, mais especificamente do
velho Aristóteles. O estagirita tinha uma concepção de homem como animal
político que o fazia julgar impossível a existência de humanidade fora das
relações sociais (para saber mais, leia este texto).
Isso fazia com que se acreditasse que o melhor homem é aquele virtuoso,
que soubesse o que era melhor para si e para a polis: a eudaimonia, no
jargão filosófico. No vernáculo, nada mais é do que a
felicidade, a teleologia do ser humano e de suas construções, a
saber, as cidades. Não só os homens têm como propósito serem
felizes, mas, a priori, a polis também tinha esse objetivo.
Entretanto, temos aqui um paradoxo. É muito comum que as
decisões coletivas adotadas em uma comunidade não agradem a todos, e de
uma cidade feliz extrairemos cidadãos infelizes. Ações extremadas de indivíduos
tendem a ser egoístas,
e isso é um grande problema na vida em comum. Como isso pode ser solucionado?
Aristóteles nos fala sobre o meio-termo como virtude. Em uma
relação onde podemos nos situar em extremos, qualquer aproximação radical a
eles recebe o nome de vício, que é exatamente oposto à virtude almejada. Por
exemplo: amar demais a nação é ufanismo; amar de menos é desapreço. Ambos são
defeitos, porque o patriota excessivo deixa de enxergar as limitações de seu
país, e o antipatriota maximiza o que há de ruim e não se dispõe a se dedicar a
ela. Ambas as atitudes não trazem coisas boas. Outro: como um governante deve
agir diante de um crime? Deve ser punitivo ou liberalizante? No primeiro caso,
estará propenso a cometer excessos em nome de uma política do exemplo, enquanto
no segundo poderá tornar a administração do convívio caótica. O que esperamos
então? A virtude que vai pelo meio desses dois extremos, a justiça. Ser justo,
no caso, é aplicar uma dosimetria ideal para a correção do erro, sem que haja
desproporcionalidade, nem que se cultive a impunidade.
É no caminho do meio (conceito explorado concomitantemente
pelo Budismo)
que se encontram as qualidades essenciais do bom homem e do bom cidadão, na
medida em que este vive da melhor maneira possível para si mesmo e para a
pólis. Ou seja, a mediania é o caminho para a eudaimonia.
Acontece que mesmo o ponderadíssimo meio-termo tem
problemas, e ele vem em forma de falácia. Nem sempre encontrar o caminho
do meio literal é a melhor solução para um problema.
É que o pessoal faz uma confusão que se aproxima da
comparação entre meio-termo e média aritmética. Basta somar os dois valores
extremos e dividi-los por dois para se obter o meio-termo. Não é isso, é óbvio.
Mesmo uma das mais elegantes demonstrações da matemática, o número de ouro,
mostra que nem sempre a metade geométrica corresponde a um ponto ideal. Vejam
sua aplicação na divisão em média e extrema razão, conhecida também pelo
charmoso nome de divisão áurea:
Sendo assim, a simples afirmação de que a média entre dois
opostos é um meio-termo, faz com que tenhamos uma falácia, a falácia do
meio-termo, ou argumentum ad temperantiam.
Esse nome vem da qualidade de ser comedido, de ser moderado, de dosar
adequadamente uma coisa qualquer, o que pode parecer muito justo, mas nem
sempre é. É a história que vivemos atualmente: se temos dez milhões de doses
disponíveis, então poderemos imunizar cinco milhões de pessoas. Não adianta
usar de temperança para chegar a um meio-termo. Se eu der uma dose só para dez
milhões de pessoas, será a mesma coisa que não ter vacinado ninguém. Se a
prescrição são duas doses, são duas doses e pronto. É melhor ter cinco milhões
de efetivos imunes do que dez milhões de imunes de mentira. Aqui, o meio-termo
não cabe, e é falacioso.
É mais que óbvio que há momentos em que o meio-termo é uma
divisão simples por dois, e nesse caso não há falácia. Se eu tenho um console
para duas crianças, é uma hora para cada um e acabou, sem dores na consciência
nem desproporção.
Também é mais do que óbvio que moderação não é um mal em si
mesmo, muito pelo contrário. Sempre que eu falo em temperança, é inevitável de
pesar na gula. Ontem mesmo eu fiz uma petiscaria com a galera aqui em casa, e
sempre parece que cabe algum petisco a mais. Já está todo mundo de barriga
cheia, mas a mesa ainda oferece os exageros preparados a mais, e entre o papo e
a cerveja vai indo tudo goela abaixo. A noite vai cobrar o preço e a gente sabe
disso, mas o comedimento não chega.
E esse é o pulo do gato dessa falácia. O meio-termo sempre
parece mais ponderado, mais justo e infalível. Diga a alguém que há uma dose
certa para fazer exercícios e você estará correto: exercício demais é perigoso,
e de menos é inócuo. Ou seja, o meio-termo é o ponto que fica entre o escasso e
o excessivo, sem, no entanto, que se prenda uma definição fixa entre dois
pontos. Esse é o erro.
É isso. Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
Hélène Cixous ainda vive, e é uma das mais importantes vozes
do feminismo de nosso tempo, mas, infelizmente, é muito pouco divulgada no
Brasil. Segue uma indicação em espanhol.
CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa. Ensayos sobre la escritura. Barcelona:
Anthropos, 1995.
O livro de Aristóteles escrito a Eudemo é muito menos famoso
que aquele escrito a Nicômaco, seu filho, inclusive tendo muitas partes repetidas
entre ambos. Mas é no material próprio desse livro que ele fala com mais
propriedade com relação à mediania.
Aristóteles. Ética a
Eudemo. São Paulo: Edipro, 2015.
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