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segunda-feira, 29 de março de 2021

O pensamento por oposição e o Pequeno guia das grandes falácias – 58º tomo: o argumentum ad temperantiam (falácia do meio-termo)

Olá!

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Nós vivemos tempos difíceis, não só por conta do interminável coronavírus, mas também pela profunda divisão que encontramos em nossa sociedade. Aqui, não cabe pensar apenas nas famosas classes em luta de Karl Marx, nem nas divisões causadas pela horrorosa distribuição de renda, mas no plano do debate político mesmo. Nos últimos tempos, exacerbados pelas recentes decisões do STF, a coisa começou a se figurar como guerra aberta para a eleição do ano que vem.

Ao lado disso tudo, temos uma confusão dos diabos na condução da pandemia, e também aqui as coisas ficam na base do Fla vs Flu. Pouca gente pondera de verdade na questão. De um lado, defende-se o SUS porque os manda-chuvas o elogiam. De outro, ora, porque os manda-chuvas o depreciam. Do meu lado, procuro entender o que ele é e como funciona, e percebo que há muito mais coisas favoráveis do que contrárias, sem que me gritem o porquê. Então eu deveria simplesmente acionar a verve armênia e deixar que os cães ladrem, à direita e à esquerda. Só que quando se faz campanha contra a vacinação, não é atingida somente ela em si, mas toda uma cadeia complexa e exemplar do sistema de saúde do Brasil, e que somente não decolou de vez até hoje por conta da falta de dinheiro.

Só que eu não ando com saco para comentar política, e chamei o assunto apenas para dar base ao tema que quero abordar. As polarizações políticas são tão comuns porque isso é uma predisposição de nossas dicotômicas mentes.

O ser humano pensa por oposições, já dizia a filósofa argelina Hélène Cixous, da escola pós-estruturalista francesa. Para que consigamos estabelecer o que é bom, logo pensamos em algo que é mau; no que é lento, pensamos naquilo que imaginamos ser rápido; no que é antigo, tentamos estabelecer mentalmente o que é recente, e assim sucessivamente. Ou seja, para que consigamos raciocinar, procuramos sempre um referencial, e a maneira mais simples que nosso cérebro encontra é a guinada de 180 graus, olhar lá para o outro lado e estabelecer quão distante está uma posição da outra. O binarismo destes princípios mentais vai desembocar diretamente na linguagem, o que gera nela uma espécie de hierarquia, onde um dos termos sempre vai encontrar prevalência sobre o outro.

Talvez seja muito difícil lutar contra essa espécie de predisposição à estrutura binária do pensamento, e o grande problema não está em se reconhecer os extremos, mas se fixar muito próximos a eles gera um desequilíbrio que mexe na forma como valorizamos tudo aquilo que está na outra ponta. Tudo tende a se aglomerar em torno dos polos, como se houvesse uma força de atração nesses extremos, uma espécie de imantação cognitiva. E isso vai fazer com que julguemos o lado de lá como estranho à relação, como se fossem desviante, como se estivesse não só do lado oposto, mas do lado de fora. E isso não é verdade.

Peguemos como exemplo algo que me é caro: futebol, claro... Corinthians e Flamengo costumam condividir as mesmas atribuições, cada um em sua terra. Time do povo, torcida apaixonada, que lotam estádios por onde passam. Estão em um polo bem específico no espectro da popularidade, que não guarda relação apenas com atributos de volume, mas de oposição à elite. Por isso, são também times de molambos, de desdentados, de analfabetos. São times de massa, e o povo é relacionado, por oposição à camada mais rica, à pobreza, à falta de cultura, às doenças da miséria. Tudo errado. Nem o povo é inculto, nem é interdito a ricos e intelectuais de gostarem destas equipes.

Cixous aprofunda esse debate no sentido do gênero. Ela percebe que, além da desproporção do pensamento binário, há uma tendência em se atribuir características femininas ao polo inferior na relação linguística. Os pares dicotômicos guardam uma posição hierárquica entre si, e aqueles atribuídos ao gênero feminino sempre estão na parte baixa. Forte e frágil, claro e enigmática, ativo e passiva e, especialmente, racional e emocional são as formas em que não há trânsito, apenas saltos. Ser emotivo não é particularmente um problema, mas está hierarquicamente inferior ao racional, que é designativo da espécie. O homem emocional é mariquinhas, é um defeito, percebem?

Só que não há diferença entre a forma de pensar entre homens e mulheres.  O riso da Medusa é exatamente o reconhecer que a petrificação é só um efeito de um pensamento embotado, e a górgona não é monstruosa, mas linda e sorridente. Estas são tão capazes quanto aqueles de realizar coisas emocionais e racionais, fortes e frágeis, ativas e passivas.

A busca racional, neste caso, não está em considerar tudo o que é emocional como bom e migrar automaticamente para o outro polo, o mesmo valendo com relação à racionalidade. Elas são boas e preciosas em seus momentos específicos, e não é possível nem necessário que se abra mão delas. É preciso alguma solução, e ela vem de muito tempo atrás, mais especificamente do velho Aristóteles. O estagirita tinha uma concepção de homem como animal político que o fazia julgar impossível a existência de humanidade fora das relações sociais (para saber  mais, leia este texto). Isso fazia com que se acreditasse  que o melhor homem é aquele virtuoso, que soubesse o que era melhor para si e para a polis: a eudaimonia, no jargão  filosófico. No vernáculo,  nada mais é do que a felicidade,  a teleologia do ser humano e de suas construções,  a saber, as cidades. Não só  os homens  têm como propósito serem felizes, mas, a priori, a polis também  tinha esse objetivo.

Entretanto, temos aqui um paradoxo. É muito comum que as decisões  coletivas adotadas em uma comunidade não agradem a todos, e de uma cidade feliz extrairemos cidadãos infelizes. Ações extremadas de indivíduos tendem a ser egoístas,  e isso é um grande problema na vida em comum. Como isso pode ser solucionado?

Aristóteles nos fala sobre o meio-termo como virtude. Em uma relação onde podemos nos situar em extremos, qualquer aproximação radical a eles recebe o nome de vício, que é exatamente oposto à virtude almejada. Por exemplo: amar demais a nação é ufanismo; amar de menos é desapreço. Ambos são defeitos, porque o patriota excessivo deixa de enxergar as limitações de seu país, e o antipatriota maximiza o que há de ruim e não se dispõe a se dedicar a ela. Ambas as atitudes não trazem coisas boas. Outro: como um governante deve agir diante de um crime? Deve ser punitivo ou liberalizante? No primeiro caso, estará propenso a cometer excessos em nome de uma política do exemplo, enquanto no segundo poderá tornar a administração do convívio caótica. O que esperamos então? A virtude que vai pelo meio desses dois extremos, a justiça. Ser justo, no caso, é aplicar uma dosimetria ideal para a correção do erro, sem que haja desproporcionalidade, nem que se cultive a impunidade.

É no caminho do meio (conceito explorado concomitantemente pelo Budismo) que se encontram as qualidades essenciais do bom homem e do bom cidadão, na medida em que este vive da melhor maneira possível para si mesmo e para a pólis. Ou seja, a mediania é o caminho para a eudaimonia.

Acontece  que mesmo o ponderadíssimo meio-termo tem problemas,  e ele vem em forma de falácia. Nem sempre encontrar o caminho do meio literal é a melhor solução  para um problema.

É que o pessoal faz uma confusão que se aproxima da comparação entre meio-termo e média aritmética. Basta somar os dois valores extremos e dividi-los por dois para se obter o meio-termo. Não é isso, é óbvio. Mesmo uma das mais elegantes demonstrações da matemática, o número de ouro, mostra que nem sempre a metade geométrica corresponde a um ponto ideal. Vejam sua aplicação na divisão em média e extrema razão, conhecida também pelo charmoso nome de divisão áurea:

Quando os segmentos de reta são cortados no ponto certo, teremos entre a reta total e os dois segmentos uma progressão geométrica, em uma razão correspondente ao número irracional 1,618... O número de ouro é uma constante matemática que aparece em inúmeras ocorrências na natureza, e por esse motivo é considerado uma dádiva divina. Para obter a constante, é possível fazer um exercício. Divida-se na vertical um retângulo que tenha como proporção entre altura e largura o número áureo. Uma dica para facilitar é usar altura 10 e largura 16,18 meio na vertical; em seguida, pegue-se a seção menor  e divida-se ela na proporção áurea, desta vez na horizontal. Ao se repetir o processo, é possível perceber que a linha de tendência imaginária descreverá uma espiral, e o número que dá a razão para o seu estreitamento é exatamente o número de ouro, ou proporção áurea. Se constituísse uma média perfeita, teríamos círculos concêntricos, e não a espiral que é traduzida como perfeição desde a arquitetura clássica grega, e que também pode ser achada com frequência na natureza.

Disponível em https://www.researchgate.net/figure/Golden-rectangle-and-golden-spiral_fig1_333224083

Sendo assim, a simples afirmação de que a média entre dois opostos é um meio-termo, faz com que tenhamos uma falácia, a falácia do meio-termo, ou argumentum ad temperantiam. Esse nome vem da qualidade de ser comedido, de ser moderado, de dosar adequadamente uma coisa qualquer, o que pode parecer muito justo, mas nem sempre é. É a história que vivemos atualmente: se temos dez milhões de doses disponíveis, então poderemos imunizar cinco milhões de pessoas. Não adianta usar de temperança para chegar a um meio-termo. Se eu der uma dose só para dez milhões de pessoas, será a mesma coisa que não ter vacinado ninguém. Se a prescrição são duas doses, são duas doses e pronto. É melhor ter cinco milhões de efetivos imunes do que dez milhões de imunes de mentira. Aqui, o meio-termo não cabe, e é falacioso.

É mais que óbvio que há momentos em que o meio-termo é uma divisão simples por dois, e nesse caso não há falácia. Se eu tenho um console para duas crianças, é uma hora para cada um e acabou, sem dores na consciência nem desproporção.

Também é mais do que óbvio que moderação não é um mal em si mesmo, muito pelo contrário. Sempre que eu falo em temperança, é inevitável de pesar na gula. Ontem mesmo eu fiz uma petiscaria com a galera aqui em casa, e sempre parece que cabe algum petisco a mais. Já está todo mundo de barriga cheia, mas a mesa ainda oferece os exageros preparados a mais, e entre o papo e a cerveja vai indo tudo goela abaixo. A noite vai cobrar o preço e a gente sabe disso, mas o comedimento não chega.

E esse é o pulo do gato dessa falácia. O meio-termo sempre parece mais ponderado, mais justo e infalível. Diga a alguém que há uma dose certa para fazer exercícios e você estará correto: exercício demais é perigoso, e de menos é inócuo. Ou seja, o meio-termo é o ponto que fica entre o escasso e o excessivo, sem, no entanto, que se prenda uma definição fixa entre dois pontos. Esse é o erro.

É isso. Bons ventos a todos!

Recomendações de leitura:

Hélène Cixous ainda vive, e é uma das mais importantes vozes do feminismo de nosso tempo, mas, infelizmente, é muito pouco divulgada no Brasil. Segue uma indicação em espanhol.

CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa. Ensayos sobre la escritura. Barcelona: Anthropos, 1995.

O livro de Aristóteles escrito a Eudemo é muito menos famoso que aquele escrito a Nicômaco, seu filho, inclusive tendo muitas partes repetidas entre ambos. Mas é no material próprio desse livro que ele fala com mais propriedade com relação à mediania.

Aristóteles. Ética a Eudemo. São Paulo: Edipro, 2015.

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