(Um passeio e uma placa são suficientes para inaugurar uma nova série)
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Nós, humanos, guiamo-nos por metáforas e alegorias. O mito da caverna de Platão, o eterno retorno de Nietzsche e o tempo como música de Santo Agostinho são alguns dos exemplos de como uma linguagem figurativa consegue traduzir mais facilmente um fenômeno do que um tratado científico. Isso se explica facilmente. Mesmo que uma teoria explique a realidade como ela é, há momentos em que apenas os iniciados possuem informações suficientes para compreender todo o seu significado, especialmente quando envolve fórmulas, os fantasmas dos estudantes. Quando buscamos uma explicação mais compreensível por um maior número de pessoas, vamos procurar algum elemento que esteja mais próximo do conhecimento geral. Um exemplinho maroto é o bóson de Higgs, mais conhecido como “partícula de Deus”. A explicação é complicadíssima, e envolve um conhecimento mínimo da teoria atômica para ser compreendida. Usando a metáfora, é mais fácil de explicar que tem alguma coisa dentro do átomo que “cria” as subpartículas, assim como Deus estaria criando coisas pelo universo afora. É por este motivo que ocorre, muitas vezes, de que a figuração seja mais eficiente até mesmo que exemplos, as ferramentas didáticas por excelência.
Alguns elementos são bastante utilizados como componentes
figurativos para construir as metáforas e alegorias que eu citei, e são,
geralmente, extraídos do ambiente em que se vive. Acho que o exemplo mais
clássico que podemos utilizar são as parábolas cristãs, retiradas diretamente
do ambiente agrário da Palestina dos tempos da dominação romana. Daí, vamos ver
a parábola do semeador, a alegoria dos lírios do campo, dos lobos disfarçados
de ovelhas, da ovelha perdida, do joio e do trigo, do grão de mostarda, da
figueira estéril, dos trabalhadores da vinha, do bom pastor e ainda outras.
Percebam como todos eles são constituintes daquela realidade, fáceis de
compreender por qualquer pessoa que conviva com a mesma estrutura social e
princípios éticos. São ingredientes que permitem refletir outra realidade que não
é tão próxima, nem tão palpável. Se eu falar a um hebreu do século I que o
nascimento dos brotos de uma figueira indica que o verão está próximo, ele
compreenderá mais facilmente o que significa os tais sinais dos fins dos tempos
que Jesus trata em sua famosa premonição, não é verdade?
Percebam que também usei o próprio exemplo religioso como
uma metáfora. Não é preciso ser cristão para conhecer a existência dos textos
bíblicos, nem para compreender seus fundamentos, concorde-se com eles ou não.
Mas é uma narrativa bem assentada em nossa cultura seus ensinamentos através
das tais parábolas, e um ótimo exemplo de como funcionam as ferramentas do
didatismo. E tem momentos que precisamos fazer isso, especialmente quando
encaramos filósofos difíceis, como Hegel,
Heidegger,
Foucault.
Para isso, nós podemos utilizar coisas a que damos
importância sem que tenham uma efetiva utilidade, para que se possa ter ao
mesmo tempo um exemplo concreto e um necessário distanciamento. E um dos mais
notáveis geradores de fenômenos está no esporte, evidentemente por seu caráter
simulatório da vida real. Olhem só. Alguns esportes são muito próximos de
combates efetivos, como o boxe e a esgrima, outros são simulacros de disputas
individuais, como as corridas e a natação. Por outro lado, há os esportes que
envolvem contingentes maiores, que se assemelham a exércitos, e esses são os
esportes coletivos: vôlei, basquete, polo, e o que mais me fornece
oportunidades filosóficas: o futebol.
É claro que eu guardo um certo parcialismo no caso. Isso é
perceptível pela quantidade de textos em que eu faço pelo menos algum tipo de
referência futebolística. Isso não é gratuito. A primeira parte diz respeito ao
gosto e ao consequente conhecimento. Se você curte uma determinada novela,
saberá mais sobre ela do que alguém que não acompanhou nenhum capítulo. Então
toda comparação ou pontos de contato que eu fizer em algum texto contará com
minha cátedra cinquentenária no assunto. Mas não é só. Eu
gosto de automobilismo tanto quanto de futebol, e isso faz com que eu
procure tantas informações quanto. Mas por que eu falo tão pouco de um e tantas
vezes do outro? Simples. Automobilismo, Fórmula 1 à frente, está tão destacado
da realidade geral que dificilmente constitui bons parâmetros para filosofar. É
o créme de la créme da elite brincando de dar voltas com bólidos
caríssimos. É uma usina alegórica para quando queremos demonstrar o
funcionamento do capitalismo, mas não sai muito disso: as grandes que comem o
bolo enquanto as pequenas morrem de inanição com as migalhas. De resto, as
extrações que podemos fazer, como esta,
ficam um pouco à margem do esporte em si. Gosto? Gosto, mas reconheço a
distância que há entre mim e a realidade das pessoas que o praticam. Todas as
vezes que fui a Interlagos, foi em eventos baratos, tipo Campeonato Paulista, e
mesmo esses são muito caros para tocar. Veja que o automobilismo "de
várzea" é o kart, que de barato não tem nada.
É com o futebol que temos uma, digamos, democracia
esportiva. Aqui, tem lugar para baixos e altos, pobres e ricos, rápidos e
lentos, e, vejam vocês, até gordinhos como os lendários Walter e Juca Baleia
tem seu espaço. Até craques, como Paul Gascoigne e Neto, que não possuíam
perfis exatamente esbeltos, conseguem se colocar nessa arena da vida como
protagonistas, craques que eram. Das mais marmorizadas arenas arrancamos os
maiores abismos sociais, dos mais esburacados campinhos extraímos conteúdo
metafísico e até religioso. Tudo é possível tirar deste esporte que já nasceu
nobre na Inglaterra, estético na China, guerreiro em Roma, e que hoje é
retrabalhado em qualquer lugar onde faça sentido tocar algo semelhante a uma
bola com os pés.
Isso acontece porque o futebol tem o encanto do inesperado.
Um piloto não é campeão se não possuir um dos melhores carros, não há zebras no
basquete ou no vôlei, o célebre time da Jamaica nas Olimpíadas de Inverno é
mais uma ocorrência pitoresca do que um competidor real. Mas peguemos o ano de
2004 na história futebolística: Grécia campeã da Eurocopa, Santo André campeão
da Copa do Brasil e Once Caldas campeão da Libertadores são fenômenos que dificilmente
esta humanidade que ruma para a extinção verá novamente. Sendo assim, a
elasticidade da parábola bretã alcança gregos e baianos com a mesma
desenvoltura, como quereria Gilberto Gil.
Pois outro dia eu estava flanando pela Barra Funda e passei
na frente da Federação Paulista de Futebol. Bem na entrada do prédio existe uma
placa onde estão os escudos dos onze times fundadores:
Aqui tem de tudo: gente que morreu, que se foi e não voltou, há quem ficou rico, quem ficou célebre, quem ficou esquecido, quem é baluarte das modernas gestões e quem se mantém pelo simples gosto de ainda existir. Uma representação em onze escudos do que é o mundo e das voltas que ele dá. Neste painel estão representados o meu time do coração, o da patroa, o do bairro em que nasci, seus principais rivais e até o do salão de baile, todos, de uma forma ou de outra, que me fizeram entrar no mundo das coisas que adoro e de suas representações. Todos eles, de uma forma ou de outra, trazem lembranças da minha vida e, de certa forma, também inspirações filosóficas, especialmente por sua história e seu contexto social. De cada um destes distintivos brotou uma realidade, e somente lá, naquele painel corroído pela poluição, estão em pé de igualdade.
Essa variabilidade é inspiradora. Vejam só. Desde 2014,
quando fiz uma viagem curta ao Vale
Histórico, fui encontrando pequenos detalhes que ficavam cutucando a coruja
de Minerva que está permanentemente no meu ombro. Isso está no próprio espírito
de quem vê a vida por um viés filosófico, que não significa ser metido a besta.
Isso nada mais é do que ser perguntador. Por que algo é assim, e não assado?
Por que fulano disse isso? Por que a realidade parece diferente em momentos
diferentes? De onde viemos, quem somos, para onde vamos (Gauguin mode on)?
Isso não acontece somente quando estou sentado e pensando, mas quando tomo
um café, quando comparo praças, quando vejo um painel com distintivos de
times.
E por que eles estão todos aí juntos? Dizem que a união faz
a força, e se juntar em uma federação traz várias vantagens que seriam penosas
para cada um deles individualmente. Claro que a coisa é arbitrária: eu digo que
a federação é a entidade que representa os clubes paulistas porque há consenso,
e volta e meia ele é guerreado. Lá nos primórdios, chegou a existir dois
campeonatos distintos, um da liga, outro da associação. Hoje a federação é
rica, mesmo com o enfraquecimento dos campeonatos estaduais, porque o principal
motivo de sua existência é reunir os interesses, especialmente dos grandes
clubes. Mas essa trilha vai só até aí.
Vejam só como a vida é interessante. A federação nasce com
um aspecto quase anarquista, de organizar o futebol paulista por si só, sem a
interveniência de um governo desnecessário para ditar regras, e vai desembocar
nos lobbys tão típicos dos regimes capitalistas mais encarniçados. Afinal de
contas, a lógica meio que adaptativa que o capitalismo tem é plasmada aqui:
quanto maior for a capacidade de penetração de um time e sua consequente
capacidade de gerar lucro, tanto maior será sua influência nos destinos do
todo. Os pequenos não detêm o mesmo poder, e que se virem com o que restar.
Os pequenos… Houve algum texto onde digo que nada seria do
Real Madrid se não houvesse um Alavés para ser tripudiado (este).
De fato, um campeonato que fosse uma eterna final entre os merengues e o
Barcelona não se sustentaria. Mesmo os costumeiros clássicos entre a rua de
cima e a rua de baixo tem um limite. Portanto, a coisa tem muito mais graça se
outros times do bairro vierem fazer parte da festa. A importância do Alavés
deveria ser a mesma do Real Madrid? Depende do ângulo que se tenha. O fato é
que muito menos gente sentiria falta dele do que do gigante madridista, mas, de
repente, há gente miúda, tão pequena quanto o clube, que conta histórias
muitíssimo mais interessantes do que o insípido grandão tem, aquelas
historinhas contadas de avô para neto, mais simples e próximas de todos nós, um
lugar onde possamos puxar a grama e jogar para o alto para nos livrar dos
sortilégios aplicados pelo adversário, algo impossível no mundo dessaborizado
das arenas de sonho. As histórias são histórias, mesmo que contadas ao pé do
ouvido, em uma roda de bar, em uma mesa de família, em uma saída de estádio.
Ora (direis), você não gosta de conforto? Não é o caso. Eu
gosto do mundo, com suas idealizações e suas realidades. Eu curto um jogo tanto
no Itaquerão (adoro essa mania brasileira de vincular os estádios aos
logradouros), quanto na rua Javari, quanto em um campinho de várzea em Pedro
de Toledo. Isso significa que a centralidade do jogo, para mim, está nas
quatro linhas, e não da cadeira/monturo que me sento para assistir. O que não
quer dizer que eu seja um bobo saudosista, mas que procure levar em
consideração aqui o que ocorre nos rincões mais simples, e que o principal
ocorre no campo, não fora dele.
Notaram quanta coisa temos em comum entre o futebol e a
nossa miserável existência? Pode parecer que as comparações são simplistas, mas
o fato é que o didatismo que conseguimos obter e a proximidade com nosso
dia-a-dia é muito útil quando queremos fazer aquela aproximação que mencionei
logo atrás.
Essa constatação me deu motivação para começar uma nova
série de textos, inspirados na história e nas características de cada um desses
clubes que constam deste painel, de modo a aproximar cada um deles de um tema
filosófico, sociológico ou congênere. Isso servirá não só para satisfazer meu
ego, mas para corroborar toda a tese que explanei aí atrás. Serão textos
esparsos, escritos sem cronologia e nenhum rigor metodológico, na medida em que
surgir a inspiração, que, confesso, já surgiu para quase todos os times.
Relembro: filosofia é tema árido para a maioria das pessoas, e usar artefatos
que a aproxime desses temas pode trazer um interesse que antes estava apenas
latente. Essa é a minha busca, vamos ver se funciona. Bons ventos a todos!
Recomendação de visita:
No estádio do Pacaembu, há dois equipamentos muito
interessantes para quem gosta de futebol. Um deles é o Museu do Futebol, que
possui interatividade com os visitantes, exposições fixas e itinerantes, salas
temáticas e biblioteca. O outro, bem menos conhecido, é o Centro de Referência
do Futebol Brasileiro, uma entidade de pesquisa que disponibiliza farto
material, promove palestras, seminários e faz convênios com outros órgãos para
a divulgação e ampliação do conhecimento relativo ao esporte. Imperdíveis.
Museu do Futebol e Centro de Referência do Futebol
Brasileiro
Praça Charles Muller, S/N - Estádio Municipal Paulo Machado
de Carvalho
Pacaembu - São Paulo/SP
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