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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Navegações de cabotagem – O Parque Barigui de Curitiba e os reflexos das mudanças de pensamento

(Qual o sentido do Natal para um descrente?)

Olá!

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No fim do ano passado, logo após retornar de uns volteios pelo Sul de Minas, fui novamente para o Sul, só que dessa vez do país, mais uma vez em Curitiba, onde mora o menino mais velho. Não é primeira, e nem será a última vez que me remeterei à terra dos Pinhais, porque o moleque mora lá e tem muito lugar para ir, o que dá farto material para enriquecer esta série. Desta vez, fui conhecer o parque Barigui, que tem esse nome por conta do rio que por lá tem sua bacia.


O parque é essencialmente uma grande esplanada e, por ser menos acidentado que outros, como o Tanguá ou o Bosque Alemão, é mais apropriado para corridas e bicicletas, lembrando o que representa o Ibirapuera para os apressados paulistanos.


A semelhança não se restringe ao relevo, mas também à quantidade de equipamentos que estão espalhados por sua grande área. São pavilhões e centros de eventos que se prestam às mais diversas utilidades, inclusive com a presença de órgãos públicos.

Como estávamos no fim do ano, o maior parque de Curitiba, que passa pela área de quatro bairros da cidade, estava todo enfeitado para esperar a festa do Natal.


Havia desde presépios em tamanho natural…


... até o trono do Papai Noel.

Passando por outras referências religiosas, como o anjo da anunciação...

... e árvores de natal estilizadas.

Enfim, é por aqui principalmente que acorrem os curitibanos quando querem aproveitar um pouco de sol, e é natural que acompanhe o decorrer do ano em suas principais datas.

Há um bom tempo atrás, ainda nos primórdios deste blog, redigi um texto rápido (como ainda era costume de fazer) em que eu reportava algumas polêmicas pessoais que eu tinha com relação ao Natal. Reli ele esses dias e fui povoado de recordações. Nesses onze anos, é possível perceber bem o quanto nossa cabeça muda, e o quanto permanece igual.

Houve vários acontecimentos na minha vida nesse intervalo, como acontece como todo mundo. Há, entretanto, fenômenos que nos atingem fisicamente ou financeiramente, mas que não movem um centímetro de nossos pensamentos, enquanto pequenas bobagens podem dar um giro de 180 graus no modo como encaramos o mundo. Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno, o fato mais notável, nesse meio tempo, foi a mudança de meus conceitos religiosos, como esmiucei em detalhes neste texto, que seria importante de ser lido antes de se prosseguir. Eu vivia um tempo em que o Natal me era intenso dentro da igreja, primeiro por conta dos preparos para a Missa do Galo, depois pela montagem de presépios vivos e, por último, por desenvolvimento de autos de Natal completos, incluindo todo o ciclo de profecia, anúncio e nascimento do vindouro messias. Dava um trabalho imenso, inclusive para costurar a cadeia de acontecimentos que é descrita sem uniformidade pelos quatro evangelhos, mas, com alguma criatividade, sempre é possível dar coesão para as pontas soltas. Depois, era ensaiar com a molecada, preparar roupas e acessórios, convencer a assembleia de que não era necessário sermos tão conservadores e colocar tudo em prática, para ao fim, já exaurido, respirar fundo e já começar a pensar no Natal do ano subsequente. Com a minha "conversão", tudo isso perdeu sentido, e se transformou em uma história bonita, nada mais do que isso.

Quem realmente vive o ciclo litúrgico dos católicos compreende que nenhuma das celebrações é privada de sentido, ou seja, ser feita só por fazer. Isso inclui as datas mais conhecidas, como o Natal e a Páscoa, outras que outrora estavam mais no dia-a-dia das pessoas, como o Pentecostes e o Corpus Christi, e ainda há aquelas que somente quem vive e convive com os ritos se mantém antenado, casos de Exaltação da Santa Cruz e Batismo do Senhor, para ficar em poucos exemplos. A discussão aqui, entretanto, não é sobre a lógica que permeia essas celebrações e festas, nem como elas estão encadeadas entre si e com as disposições bíblicas e magistrais, mas no que se tornam quando o seu cerne rui. Surge certamente a pergunta: o que muda no Natal para alguém que perdeu a fé?

Relendo o texto que citei, e falando especificamente do Natal, noto que muito pouco. E os motivos já estão expostos lá. Algumas das celebrações, aquelas mais centrais, deixaram de ter um significado meramente religioso, passando até mesmo a ser completamente ressignificados. Os feriados religiosos que não foram capturados pelo capitalismo tendem a sumir, enquanto os outros ganham um sentido novo e se desvinculam do sentido original. Se a máquina do capital conseguisse transformar a festa da Cátedra de São Pedro no dia mundial de comprar cadeiras, ela certamente não seria tão circunscrita aos círculos dos fiéis mais arraigados.

Esse fenômeno não é isolado, nem inédito. O próprio Natal ocupou outra celebração, desta vez pagã, e lhe modificou o sentido original. A novidade é que a troca de guarda agora está motivada por motivos financeiros, a não ser que consideremos também o capitalismo uma religião. Nem é tão difícil fazê-lo.

Vejamos. Reza a tradição que o Natal é uma festa para reunir a família, especialmente porque o nascimento do pequeno Jesus reúne a mais importante de todas para os cristãos, a Sagrada Família. A primeira discrepância já vem aí. Reunidos em uma manjedoura, não é de se esperar que houvesse um lauto banquete na chegada do menino, e as festas de Natal são regabofes nível hard, daqueles de quebrar o orçamento. A outra é constituída pela entrega de presentes dos reis magos, que é, desprezando seu aspecto evidentemente lendário, revestida de pura carga simbólica. Até poderíamos encontrar algum propósito para presentear com ouro, mas com incenso e mirra? O que poderia ser feito com esses presentes? No plano do símbolo, entretanto, dizem os teólogos que há todo sentido do mundo: o ouro é a representação da realeza, o incenso do sacerdócio e a mirra da profecia - rei, sacerdote e profeta, aquilo que se esperava de um messias, aquele que viria libertar os hebreus do jugo romano. Só que daí se esvazia o simbolismo da troca de presentes, o centro da celebração secularizada. O próprio sentido do ouro não é ser caro, mas ser precioso.

Entretanto, se o sentido de cunho místico da entrega dos presentes deixa de ser um motivador para ser apenas uma origem da tradição, novos sentidos podem ser explorados sem o mesmo vínculo. Dar um presente tem um significado belo, que extrapola a ideia capitalista: a de ter com as pessoas com quem convivo algo que as faça recordar de mim, e me garantir que algo material me representará na lembrança deles. Não se trata mais de transferência de riquezas (embora não seja barata a lista de presentes), mas da expansão da memória, uma maneira de estar mais presente (né?) e de tornar mais duradouras e independentes do espaço as relações. Isso não está relacionado à religião, e é praticável por qualquer pessoa. Além disso, vamos combinar que eu gosto de ganhar um brindezinho de vez em quando também. 

Com relação ao símbolo comercial mais relevante do Natal, o Papai Noel, absolutamente nada mudou. É, sim, um personagem de origem religiosa, mas já foi tão cooptado pelo espírito de compras que essa ligação com São Nicolau de Mira virou uma mera tangência. Eu já não costumava levar em conta seriamente essa figura, e, como expliquei no texto mencionado, nunca entendi muito bem a sanha que os pais têm de difundir essa história complicada para os filhos, a mentira que permanecerá no subconsciente, a permissão para a falta de confiança. Mas, aí é o famoso versinho: ema, ema, ema, cada um com seus "pobrema".

Então temos o que segue: o Natal tem um aspecto festivo que não se resume às suas origens míticas e litúrgicas, mas a um conjunto de “espíritos” que as extravasam. É um momento em que as pessoas se sentem imbuídas de um geist caritativo, onde ao menos por um momento olha-se ao redor e se veem pessoas com necessidades. Tanto isso é real que os donativos disparam, as refeições para os necessitados se tornam mais dignas e há, nos albergues e instituições de caridade, um mínimo a mais que nos demais tempos do ano. Há uma boa dose de hipocrisia nisso tudo, bem sabemos, porque é uma caridade feita como um desagravo por tudo que não se fez no restante do ano, mas o fato é que o mesmo fenômeno se repete sempre.

É também, como eu disse antes, um momento familiar, que pode se estender a um conceito mais amplo, que inclui as amizades próximas e as vizinhanças. É um momento razoável para introduzir novas pessoas no meio, como eu fiz com minha então namorada e hoje patroa, apresentada para a intrépida trupe no Natal de 1986. São dias (ou eram) em que alguns parentes mais distantes geograficamente resolviam dar um abraço nos velhos mais velhos, e enchiam a casa de comida e de suas presenças.

Além disso, o Natal tem todo um aspecto estético. Há quem o considere monocórdio, há quem o ache um tanto brega, e não faz mal que o seja de fato. Um festival para os sentidos não precisa ter uma variedade inesgotável de elementos, até mesmo porque cores e luzes fazem sinonímia com as representações natalinas. Eu lembro de uma árvore de Natal que minha avó tinha. Era linda de verdade, com ramagem prata e bolas azuis, mas dizia-se que era um elemento natalino pela sua forma, e não pelas suas cores. Então o pessoal tinha uma certa implicância com a tal árvore, pelo simples fato de não seguir a coloração padrão, semelhante à camisa da Portuguesa. É um ditame? É, mas melhor seria que regras fossem assim.

A estética não se limita a cores e papais noéis, contudo. A própria mesa vai buscar intensidade de sabores. As saladinhas, quando existem, são mais pela teimosia das tias que acham que não pode faltar uma quebra ao maremoto de gordura das carnes e às avalanches de açúcar. Tudo tem sabor marcante, temperos de nomes italianizados e aroma que se sente a quilômetros de distância. Tudo é muito, um exagero que exige dois ou mais enterros de ossos, o que é sempre uma boa desculpa para se reunir tudo novamente. De repente, gasta-se mais na culinária do que nos presentes. Ao menos ajuda muito na devastação do abono.

Tudo isso emerge na festividade e submerge a religiosidade, e nada disso é infactível para um descrente, que, ao fim e ao cabo, só não participará da Missa do Galo. Ele pode até mesmo apreciar o presépio, admirar-se com a história que se conta e sentir-se tocado com os sinos que batem à meia-noite, e até mesmo, vejam vocês, dar um respiro no caos que se movimenta todo ano por esta mesma época, posso garantir a vocês. E isso pode acontecer num parque, um belo parque, amplo e aconchegante. Bons ventos a todos!

Recomendação de visita:

Parque Municipal Barigui

Avenida Cândido Hartmann, s/nº

Bigorrilho

Curitiba/PR

A aproximadamente 410 Km do centro de São Paulo

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