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quarta-feira, 26 de abril de 2023

Pequeno guia das grandes falácias – 68º tomo: o apelo à natureza (argumentum ad naturam)

(Será que o que é natural é melhor mesmo?)

"É uma erva natural, não pode te prejudicar"

Olá!

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Nada pode estar em polos mais opostos do que meus dois filhos. O moleque-mais-velho é adepto da elegância, da liberdade e do livre-mercado, enquanto a menina-mais-nova curte roupas despojadas, igualdade de oportunidades e pautas sociais. Um é noturno, outra é matutina. Ele gosta das modernidades tecnológicas, ela de ar campestre. E, especialmente, o menino aprecia o churrasco que a garota odeia, vegetariana que é.

É preciso pôr o pingo nos is, antes de vilanizar um ou outro. Meu filho come vegetais normalmente, como qualquer ser humano médio, e a menina não radicaliza sua dieta, tentando enfiá-la goela abaixo dos outros. Decidiu não comer mais carne aos doze anos, e eu achava que duraria somente até o próximo verão, mas ela persiste ainda hoje, quinze anos depois. O negócio dela é não matar os bichos, e ovos, leite e mel estão em seu regime, todos estes alimentos de origem animal que não implicam no sacrifício de quem os produz. Cria galinhas, inclusive. Os veganos, que não consomem absolutamente nada de origem animal, dizem ser eles os vegetarianos autênticos, já que ovos, leite e mel não brotam do chão. Mas isso não está em causa, pelo menos neste parágrafo.

Bom… há uma eterna discussão em casa a respeito de alimentação, menos agora em que cada um está em um canto, ele em Curitiba, ela em Taubaté. Um fala dos benefícios das proteínas, outra das maravilhas das fibras. Um reporta os inigualáveis sabores, outra das infinitas descobertas, e assim vai, numa movimentação dialética que traria orgulho a Hegel. Quando a coisa vai para a abordagem da saúde, aí penetramos em terreno pedregoso, principalmente porque nenhum dos dois tem razão. É gozado que ambos procuram justificar suas escolhas com fontes, o que é bom, mas naturalmente que essas são selecionadas de acordo com a conveniência de quem a usa como argumento, o que é ruim. "Nutrólogo Fulano defende que é possível extrair energia daqui e dali", diz um. "Mas fisiologista Sicrano estudou os reflexos maléficos a longo prazo", rebate outra. "Isso porque ele não observou os estudos do doutor Beltrano, que blá-blá-blá". A discussão segue ad infinitum, e costuma terminar com termos menos urbanos e respeitosos, geralmente quando a patroa ou eu colocamos uma pedra na animosa tertúlia, como se ainda fossem crianças. 

Eu tenho uma tendência em desaguar no aristotélico meio-termo, que é minha prática diária, na verdade. A base da minha alimentação é vegetal, até mesmo por questões monetárias, mas eu, sempre que posso, apelo para uma carne qualquer, que realmente agrada bem mais os sentidos. A questão é que, quase invariavelmente, um tema desses desemboca para a saúde: qual dieta é mais saudável. E aqui, novamente, a coisa deságua na vantagem da alimentação natural, que não é ruim, evidentemente, mas que cai na comuníssima falácia: se é natural, será melhor para sua saúde. Então… é um argumento tentador, e, por isso mesmo, usado à exaustão. Mas não, não é verdadeiro, lamento muito.

Os exemplos começam pela negação de que as coisas naturais são sempre boas. Há plantas venenosas, que são naturais e naturalmente matam. Há animais peçonhentos, que matam, mesmo sendo naturais. E mesmo certos alimentos que, na dose correta não causam mal algum, em excesso causam prejuízos enormes. Há certos vegetais, como a castanha de caju e mandioca brava que, in natura, são perigosos. E vejam só, uma vez manipulados deixam de sê-lo, ou seja, quando perdem sua natureza.

Depois, vamos para o polo oposto, o de que tudo o que é artificial faz mal. Há a fitoterapia, que é uma proposta séria e científica de tratamentos com fármacos baseados em plantas (ao contrário de outras ofertas mágicas, como as famosas homeopatia e ozonioterapia), mas percebam que muito do que temos na alopatia deriva de aperfeiçoamentos de princípios ativos que são originários dos fitoterápicos. Afinal de contas, os artigos artificiais não brotam das fábricas através de buracos negros que os teleportam de outras dimensões. No limite, produtos artificiais vem da natureza, da mesma forma que o delicioso molho de tomate que sua avó prepara no fim de semana.

Talvez este argumento tenha ganhado reforços nos últimos anos porque a evolução da engenharia de alimentos e da farmacêutica chegou a limites impensáveis, e, por derivação, assustadores. Quem vê um breakfast tipicamente ianque nota que nada ali deixa de passar por processamentos industriais, o que foge dos idealizados cafés da manhã de hotelaria, com muitas frutas, pão fresco e leite da fazenda. Ora, o primeiro ponto é que nosso dia-a-dia é bem diferente. A combinação canônica do brasileiro é a boa e barata pão-com-manteiga-café-com-leite, sendo os acréscimos coisas fora do trivial. Então uma alimentação mais frugal, mais próxima do que o homem "natural" consumiria, parece mais inofensiva aos nossos organismos. E é. Mas não se pode pura e simplesmente demonizar os alimentos processados por esse simples fato. Não é essa a questão que traz malefícios.

Eu primeiramente preciso me colocar na zona morta. Não sou adepto de altas industrializações e, sempre que posso, gasto reais a mais para comprar alimentos orgânicos, carnes inclusas. Por isso, entendo que não posso ser considerado defensor de nenhuma das posições inequivocamente, mas tendo à vertente dos naturalistas. Mas vamos continuar com calma. Note-se que a média de vida da população brasileira aumentou muito no último século*. Isso não se deve a melhorias da condição de vida por políticas públicas ou por crescimento de renda, mas ao acesso a uma série de itens que não são naturais: medicamentos modernos, vacinas (sim, vacinas), alimentos que, mesmo processados, não causam infecções porque estragaram, algo muito comum de se acontecer quando métodos não industriais são aplicados. É evidente que a busca por mais e mais sabor trouxe igualmente mais e mais aditivos. Estes, de fato, não trazem nenhum benefício nutricional. Portanto, só resta neles o que vem de ruim. Por isso, há sentido pleno em evitá-los. Nunca eu diria, por exemplo, que é possível comparar os níveis nutricionais daquele refrigerante famoso com um suco de laranjas frescas, recém-colhidas do pé.

Entretanto, cansamos de ver a publicidade apelar para a naturalidade dos produtos que anuncia. Termos como "sem adição de conservantes" são impressos em letras quase tão grandes quanto as da própria marca, porque são uma garantia de boa aceitação por parte do público. Captem que não são informações obrigatórias – a legislação que reza por aquilo que deve constar nas embalagens diz que é preciso dizer o que foi adicionado, e não o que não foi.

O que podemos concluir? Que é de bom tom que tudo pareça o mais natural possível. Isso não vai se limitar a alimentos, mas a shampoos, maquiagens, produtos de limpeza e assim por diante. Mais ainda se associados a uma roupagem verde, muitas vezes utilizada apenas para travestir uma aparência de preocupação com a natureza, uma prática conhecida como greenwashing, sobre o que já falei neste texto. Só que as coisas naturais não são, por si só, certificados de ausência de problemas. Os argumentos que defendem essa tese são falaciosos, e recebem o nome de argumentum ad naturam, ou, em bom português, apelo à natureza.

Um dos exemplos mais óbvios que eu posso dar é o do verso em epígrafe. É claro que precisamos considerar toda a liberdade poética e a mensagem que se quer transmitir, sem esquecer ainda que a arte usa de uma liberdade expressiva que a filosofia não tem, mas é inegável que a assertiva é uma demonstração de manual do apelo em questão. Mas antes, vou fazer algumas considerações contextuais.

O Planet Hemp é uma das grandes bandas brasileiras da década de 90, momento em que a explosão do rock dos 80 já estava arrefecida, e no qual uma transformação legal começava a tomar forma cá por estas terras. O momento histórico vem logo após a Constituição de 88, com toda sua legislação subsequente. A relação entre a lei e o consumidor de drogas ilícitas era, até então, correspondente ao do criminoso com o seu objeto, funcionando como se fosse um receptador de produtos de roubo, e fazendo parte dele. A partir da Lei 11.303/2006, o consumidor deixa de ser considerado mais um dos criminosos da cadeia e passa a ser considerado uma vítima de todo o ciclo, e o simples porte já não era um ilícito.

Ocorre que os fatos sociais não funcionam na base da chavinha, que é só girar para modificar o sentido do giro da roda. O usuário não deixa de se relacionar com o crime para obter seu produto, em mais um daqueles contrassensos legais de Terra Brasilis, e o consumo continua marginalizado. É nesse meio tempo que surge o Planet Hemp e seu principal interlocutor, Marcelo D2, que pugnam não só pela descriminalização do consumo, mas pela legalização de toda a cadeia que envolve a cannabis sativa, mais conhecida por maconha.

É o tipo da causa que divide radicalmente opiniões. Muita gente simpatiza com a causa, enquanto a maioria das pessoas vê esse tipo de proposta como fumaça nos olhos. A apreensão direta é fácil: a criminalidade tem no tráfico de drogas seu maior combustível, já que se movem muitos roubos e assassinatos por conta do mecanismo que há por trás dos produtos ilícitos. Por isso, todo mundo que tem um celular roubado sabe que, indiretamente, é por conta do narcotráfico que se deu a ocorrência. E isso faz com que qualquer proposta de liberação seja vista com maus olhos. Tem muito de confusão aí no meio, mas nem vou pôr em causa agora, para não fugir muito da minha proposta inicial (já tenho feito textos longos demais). A questão é que, sendo daqueles que estão a favor da legalização, o pessoal do Planet Hemp procura gritar alto e chamar a atenção para a causa.

É como uma espécie de vale-tudo, inclusive no campo das falácias. “Legalize Já” é a canção que traz o verso da epígrafe, carregando uma espécie de desagravo com relação às drogas sintéticas que tanta dor de cabeça levam para pais e sociedade como um todo. A lógica é a do apelo à natureza, mas a mensagem é a de que há preocupação excessiva no ponto onde o problema é menor, ao menos na posição defendida por eles.

Hoje poderia soar anacrônico, mas não soa. Ainda se discute interminável e contraproducentemente a questão da drogadição no Brasil, e o que irrita é a indefinição dos rumos, que não vão para cá, nem para lá, como tantas outras coisas que tornam esse país cada vez mais difícil de viver.

Mas vamos dar a rápida pincelada técnica. Como qualquer outro apelo, o argumentum ad naturam é uma falácia de dispersão, porque desvia o foco racional ao escapar por um caminho lateral, e é também uma falácia de relevância porque introduz elementos irrelevantes em um argumento. No exemplo, ao dizer que uma erva natural não causa prejuízos, desvia-se do aspecto de saúde pública e insere-se a natureza como um justificador de uso, como se isso, de per si, fosse verdadeiro.

Outro ponto muito importante é que essa falácia pode ser facilmente confundida com a falácia naturalista, que foi objeto de meu último texto. Se há algum toque entre elas, é bem superficial, porque há a assunção de que valores éticos são intrínsecos aos objetos, e que é natural que seja possível valorar algo como bom ou ruim. Neste caso, ser natural é algo bom, e isso concede qualidades extraordinárias ao que é extraído da natureza o mais incolumemente possível. De resto, são duas coisas distintas cujo principal ponto de contato é o nome, e pouco mais do que isso.

De resto, a menina mais nova se casa no sábado que vem, e vai dar uma pequena festinha em um café. Não me admirarei se ela e o moleque mais velho saírem discutindo se o salame do lanche ajuda ou atrapalha no valor alimentício da melhor sanduba do lugar. Bons ventos a todos!

Recomendação de audição:

Álbum duro, seco e pesado. Uma sonoridade que mistura a declamação do rap com a energia do rock, não deixa ninguém impassível. Para ouvir bem alto.

PLANET HEMP. Usuário. Rio de Janeiro: Sony, 1995. CD. 54 min.

*https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/ibge-esperanca-de-vida-do-brasileiro-aumentou-311-anos-desde-1940

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