(O que explica uma reverência que cresce mesmo quando se distancia?)
“Eu não tenho ídolos. Tenho admiração por trabalho, dedicação e competência.”
Ayrton Senna
Olá!
Começo a escrever este texto no dia 01 de maio, feriado do
dia do trabalho, e vou prosseguindo sem pressa. Bem nesse dia, estranhamente,
digito nos intervalos do serviço da casa, que precisa de um tapa, em petição de
miséria que se encontra. A patroa vai flanando com o aspirador,
impossibilitando música e podcasts, então vou pelos cômodos com a minha cabeça
e meu pano de chão mesmo. Isso é um rastilho de pólvora para meus pensamentos,
e o que me vem à mente são as notícias dos esportes que vi enquanto preparava o
santo cafezinho diário: neste dia, faz 31 anos da morte de Ayrton Senna. Não é
uma data redonda, e vai cada vez mais longe, mas continua a se repetir o fenômeno
da rememoração, muitas vezes assoberbada. Quem comenta as notícias são pessoas
que não viram o piloto correr, mas o estatuto de herói nacional se mantém e
retroalimenta. Eu já falei três vezes neste espaço sobre o Senna (uma,
duas,
três),
todas as três impopulares, mas ainda preciso fazer uma análise mais definitiva,
não sobre minhas opiniões desta vez, mas de uma análise do fenômeno. E depois
chega*.
A questão da idolatria está diretamente ligada ao
imaginário. Ela é abominada pelas religiões abraâmicas porque estabelece uma
concorrência com suas respectivas divindades e, segundo seus livros sagrados,
deve ser condenada pesadamente, algumas vezes com a morte. Apesar disso, o
impulso é humano e ela acaba sendo dirigida a outros objetos que não tenham
necessariamente valor de substituição em relação a um deus, mas que tragam
reserva sacralizada na mente das pessoas.
Precisamos de ídolos? Como espécie, não. A questão é que não
somos seres somente naturais. O sistema de símbolos dos humanos é tão complexo
que não há como isolar o que é da natureza do que é da cultura, de forma a
fazer parte de nossa cadeia evolutiva. É da nossa natureza sermos culturais. E
isso inclui todo um conjunto de significações que são extremamente intrincadas.
Uma dessas é a solidão. Não faz muito sentido que um ser
humano viva sozinho. Fomos feitos como se fôssemos aquelas pinguelas que passam
sobre os riachos. Cada tábua, vista sozinha, não faz o serviço. Mas colocadas
lado a lado, com um elemento que as agregue (a corda), suportam um peso
impensável para cada uma. Só que não somos feitos no mesmo molde, e é da
natureza que sejamos diferentes entre si. Uma tábua é mais curta, outra mais
larga, umas mais claras, outras mais escuras, mais espessas, mais leves. Quando
vistos em grupo, sempre é possível ver uma dimensão coletiva e outra
individual, com aquela velha observação de que o todo não é igual à soma das
partes. Sendo assim, embora o todo possa parecer orgânico, ele tem aspectos que
dependem das partes. Há os mais fortes, os mais espertos, os mais inteligentes;
em suma, há os que se destacam em necessidades chaves. E esses acabam por se
tornar guias que resolvem problemas não só de si, mas da comunidade como um
todo. Catalisam propósitos e expectativas, ajudando a criar a liga que mantém
uma sociedade unida.
Não é de se estranhar que, dados os papeis de liderança que
ocorrem nas sociedades, esses destacados acabem por se tornar mais do que
efetivamente são. A inteligência é a sua força, a esperteza é a sua
inteligência, a força é a sua esperteza, tudo se misturando e uma coisa
alimentando a outra, até o ponto em que se tornam únicos. Às virtudes que já
tem, passam a ser juntadas outras que não lhe compõem, mas, dada sua posição já
especial, a eles é agregado ainda mais. Projetam-se-lhes qualidades inerentes
ao grupo, de modo a criar um símbolo ainda mais enriquecido.
Acontece que, mesmo revestidos de uma aura de
invencibilidade, também eles se vão, mas deixam como seu legado um escudo
virtual ao qual as pessoas ainda recorrem, como se pudessem se proteger das
mazelas para quem eram dadas soluções. Qualquer objeto que simbolize esses
eleitos ganha um lugar sagrado, como se fossem eles mesmos. São sacralizados e
passam a significar o mesmo que o próprio eleito. São os ídolos.
Mas os ídolos não se aplicam unicamente a divindades? Não
são objetos que são tratados como se eles mesmos fossem deuses? Essa seria sua
origem, mas não seu uso estendido. Não é difícil de você ter um quadro na
parede com o escrete do último título do seu time, ou uma foto de corpo inteiro
do seu cultuado teen. Eles não são o time, nem o cantor, mas você os trata com
a mesmíssima reverência. Experimente rasgar a bandeira de uma equipe no meio de
sua torcida. Tente queimar o poster do rapazola bonitão que canta à beça após o
autotune.
E onde tudo isso se processa? Óbvio, nas nossas mentes. Por
isso, não é preciso nem mesmo que o ídolo-objeto esteja presente, bastando que
esteja na lembrança. Sendo esta uma coisa sorrateira, seletiva, essa imagem
mental pode e costuma ser muito diferente do que o original realmente é. Isso
acontece porque precisamos desesperadamente de algo que nos proteja e alguém em
que devemos nos espelhar, o que não são coisas distintas. Ter como paradigma a
personificação da perfeição humana faz com que tenhamos uma espécie de escudo
que nos protege não somente de pedras, mas da mediocridade. Que coisa péssima
essa, ser medíocre, igual aos outros. Ter ídolos não deixa de falar sobre nós
mesmos. Inclusive como povo.
É razoável supor que esse fenômeno se repita pelo mundo, já
que o acontecimento comunitário é semelhante nos quatro cantos, mesmo que
alguns povos sejam mais individualistas que os outros. Ocorre que no terceiro
mundo temos um leque bem mais fechado de opções para escolhermos nossos ídolos,
pelo óbvio motivo de estarmos na condição de povos dominados por séculos.
Enquanto Descartes
e Bacon
disputavam a primazia do eixo epistemológico, os índios das Américas tentavam
dar um jeito de sobreviver ao invasor europeu, com pouca chance de sucesso, e
desde então a história se repete, algumas vezes de maneira mais incruenta, mas
ainda assim em uma linha vertical de subordinação. Com isso, é raro obter
glórias no campo da filosofia, da ciência, da tecnologia. Restam poucas opções,
mais abstratas, que podem ter um valor simbólico maior que o concreto, como a
arte e o esporte, mas a primeira ainda tem um viés de exotismo. Pensem, por
exemplo, na filarmônica de Berlim executando um samba. É impossível de
acontecer? Não, mas não deixará de ser uma incursão pelos campos do
extravagante. A música clássica por excelência não é essa, porque quem diz o
que é clássico não somos nós, dos pobres trópicos.
Com o esporte, é diferente. Quando entramos em campo, o jogo
é disputado em uma regra única, seja na mais culta Paris, na mais rica Nova
Iorque, na mais antiga Roma, no mais miserável morro do Rio de Janeiro. Ali,
sob igualdade de condições**, o melhor (ao menos no imaginário) não tem nação;
é bom quem é bom.
Claramente pensamos em futebol quando falamos de esporte em
Ilha de Vera Cruz, o nosso preferido e mais repleto de glórias. Mas houve um
tempo em que gostávamos de outras coisas, como automobilismo.
Mas como, se é um esporte tão inacessível? Há alguns
elementos para desconfiar. O primeiro é que carro, no Brasil, é sinônimo de
status. Alguns fatos demonstram isso. Aqueles cara da sua rua que gasta um
Iguaçu de água lavando seu possante não consegue nem secar o banheiro depois do
banho. E fica horas com sabão para isso, espuma para aquilo, cera para o outro,
faltando só o Cepacol para enxaguar os cantinhos. Vai dizer que você nunca viu
isso?
Algumas colocações simplistas fazem deduzir que há quem
gaste mais com o carro do que com a casa. Óbvio, moradia no Brasil é caríssima,
apesar da imensidão de terras. Então a cidadela fica erguida na possibilidade:
a Goleta quadrada com o som ocupando todo o porta-malas. Brasileiro gosta de
carro porque é nele que dá para se sentir representado e ganhar algum status.
Cada vez menos, mas ainda dá.
Mas, para além disso, o Brasil produziu pilotos talentosos
de fato, com o “agravante” de que claramente aqui nós entramos em um campo que
não é nosso. A tal Goleta não faz frente ao mais popular dos carros japoneses,
ou à mais humilde jabiraca ianque, então sentamos nos bancos externos e
provamos que nisso não há melhores do que nós, os bravos tupiniquins.
E aqui vamos chegar em Senna. Houve grandes pilotos
brasileiros antes e depois. Evidentemente, Fittipaldi e Piquet representam
cinco títulos mundiais, o que pavimentou o asfalto onde Senna se construiu no
imaginário popular. Mas o primeiro tentou arregimentar um time nacional que não
atingiu os maiores objetivos, e o segundo não se dava com a bajulação da
imprensa, a ponte existente com o grande público. E também os “fracassos”
pósteros ajudaram a catalisar a imagem de ser único. Coloco a palavra entre aspas
porque é muito difícil delimitar o que é um fracasso, quando o simples fato de
se chegar à Fórmula 1 já é um distintivo raríssimo, uma prova de capacidade
absolutamente diferenciada. Mas, sejamos concretos, não há como retirar o
motivador objetivo de que o último título conquistado por um piloto do país
veio pelas mãos do ora analisado piloto.
Já ouvi muita gente falar que toda a reverência em torno do
seu nome tem como motor a ausência de outros ídolos no momento de sua atuação.
A má fase do futebol, a decadência do basquete e a ainda vindoura glorificação
do vôlei teriam moldado o único eleito possível em uma fase histórica de muita
incerteza política: a frustração com a redemocratização, o fracasso dos planos
econômicos, o presidente eleito impedido, a inflação difícil de controlar***, o
começo da desindustrialização, e até incertezas globais com a queda do muro de
Berlim traziam uma completa ausência de perspectiva que, no plano prático, eram
favoráveis ao desvio no olhar para alguém que era sinônimo de sucesso. Isso
explica o impacto do instante, mas a permanência da idolatria precisa ser explicada
de outra forma.
A mídia ajuda. Não há nenhuma transmissão do automobilismo
na TV aberta em que não haja ao menos uma citação ao nome do piloto. Em datas
como o primeiro de maio, ou nos GP’s de Mônaco e Japão, a quantidade se
multiplica, e há séries, livros, reportagens especiais, e isso ajuda a
retroalimentar o fenômeno. Como a maioria são panegíricos que miram exatamente
o mito, e não o piloto, extraordinário, porém humano, o efeito é o de dar
permanência na narrativa sem o salutar benefício do afastamento histórico.
A melhor explicação não deixa de ser óbvia a quem tem um
mínimo de conhecimento histórico. A história real, somada às hipérboles das
narrativas pessoais, constituem o melhor desenho da tragédia grega. Isso não é
uma mero papo de filósofo que quer resgatar a qualidade Apolo-Dioniso decantada
por Nietzsche, mas uma constatação advinda do substrato da cultura ocidental. O
herói trágico grego é aquele que está lá no fundo da consciência coletiva do
nosso modelo de vida, onde a dor depura e justifica a existência de toda uma
comunidade. O sofrimento do ídolo é o sofrimento de todos, ele carrega as dores
de todos. Não preciso falar do paradigma sempre pronto das novelas da noite,
mas é possível ver como a mesma estrutura está presente em todas as narrativas
fundantes da nossa história e cultura, com poucas exceções. O próprio
Cristianismo ganhou muita força por conta da dimensão trágica de seu maior
personagem, que enfrenta o sistema político e religioso com uma proposta
pacifista incomum****, e que recebe um fim trágico, uma entrega impossível para
seres humanos que não estão no panteão divinizado dos ídolos, que traz um
sentimento maior do que as glórias de uma vitória, uma comoção comum que coloca
todos em pé de igualdade no enfrentamento não de um inimigo, mas da própria
morte. Isso está na base da civilização ocidental.
Por isso que a morte de Senna tem tanto de mítico, de
legendário e de catártico. Sua morte é quase sacrificial: o herói do terceiro
mundo que enfrenta a tudo e a todos, mas que vence pela mobilização que traz e
pela memória que perpetua. E nisso vem aquilo que ele não entregou, mas que
potencializa o roteiro ao ponto de se chegar ao limite catártico. Vamos fazer
uma mesclagem do que é a história real e indubitável com o que é ao menos
controverso.
Um dos melhores pilotos de todos os tempos morre após sofrer
um acidente grave em um circuito italiano. O regulamento foi modificado com
relação ao ano anterior para conter a alta taxa de automatização dos bólidos, e especialmente para impedir que esse piloto tivesse
absoluto domínio do campeonato, uma vez que se somariam o melhor piloto com o
melhor carro, tornando a direção muito perigosa. Conhecido por inúmeras perseguições em sua carreira,
Senna foi provavelmente vítima de uma barra de direção displicentemente soldada que perfurou sua viseira
e penetrou em sua cabeça, além da quebra da base do crânio ocasionada pela
súbita desaceleração e pelo choque. Embora seja provável que sua morte tenha
ocorrido ainda no autódromo, o socorro prestado após
incontáveis minutos não tinha o que
fazer, dada a dinâmica dos eventos. Apesar da tragédia, a corrida continuou até
seu final porque os promotores locais resolveram
desrespeitar a lei italiana que estabelece que a ocorrência de morte deveria
interromper imediatamente a corrida, mesmo sendo impossível detectar
a morte in loco, pela falta de equipamentos de verificação da atividade
cerebral. Sua carreira sempre foi marcada por muita competitividade e títulos
seguidos, embora haja inúmeros prejuízos por conta
de articulações políticas, dado seu impulso em lutar contra tudo e contra
todos, o que explica a conspiração que foi levantada contra seu domínio,
o que o torna admirado por todos os apreciadores do esporte.
Todas as informações coloridas estão fora do âmbito
comprobatório, podendo ser meras suspeitas ou enganos deslavados, mas são muito
mais aderentes ao imaginário e transmitidas através de recursos visuais, de
registros inspirados nas histórias e, especialmente, pelas narrativas
apaixonadas daqueles que não aceitavam que o automobilismo é um esporte
perigoso, no qual o fator morte está mais intimamente inserido do que na
prática de um jogo de bilhar, provavelmente. Um esporte perigoso para todos,
inclusive para os melhores. E isso traz até mesmo mais elementos para elevar a
veneração.
O roteiro, como pode se ver na mescla anterior, é composto
por todos os elementos que estão na tragédia grega: a exacerbação dos
sentimentos, a desmesura na missão do herói, o confronto com a ordem
preestabelecida, o acontecimento imprevisível, a conclusão dramática, a
injustiça do desfecho, a impossibilidade de controle dos eventos, a maldade
inerente ao homem, a piedade dos circunstantes, o ato de coragem, o confronto
com a realidade, a existência dos elevados e sua condição de ser humano
trazendo o balanço entre a divindade e humanidade. Nossa cultura e tradições
são baseadas nesse script, repito, e, por isso mesmo, o destino (ou seja lá o
que) traçou uma história perfeita para a permanência da memória. Mas só o que
não está colorido é conjunto fático, e talvez perca força como símbolo. Por
isso a difícil aceitação de que sua morte foi mais comum do que gostaríamos,
mais provável, mais próxima a nós. E é isso que baseia a MINHA admiração por
ele. É um homem como eu, como você e nossos circunstantes, mas que era melhor
que nós em um determinado aspecto. É nesse aspecto que eu o tenho em alta
conta, e tudo o mais é só estória.
Por fim, o incômodo que isso me causa é constatar como essas
histórias são tão cegantes quanto os faróis altos que cruzamos nas estradinhas
vicinais. As pessoas não desconfiam de feitos extraordinários e isso comprova a
falta de uso de seu espírito crítico, e isso vai desembocar em outros aspectos
de suas vidas pessoais, que acabam por influenciar em nossa vida social. Sem
querer fazer uma bola
de neve, é dessa mesma falta de criticidade que surgem fenômenos antivax,
criacionismos, terras planas, e aí o caldo entorna, porque esbarram na vida
coletiva.
Eu não quero definitivamente ser incluído nas fileiras de
“haters do Senna”, porque eu não sou. Comprei um livro que é um calhamaço sobre
sua vida porque tenho admiração pelo piloto, que é efetivamente um dos melhores
de todos os tempos. É chato e repetitivo falar isso todas as vezes que abordo o
assunto, e é a mesma coisa com qualquer um que o faça, porque Senna é um
símbolo nacional mais respeitado do que a própria bandeira. Bons ventos a
todos!
Recomendação de leitura:
Flávio Gomes é um dos maiores críticos à visão sobre-humana
que se atribui a Ayrton Senna. É uma autoridade no assunto, testemunha ocular
daqueles tempos e daquele fato, e pode nos dar um pouco de terra nesses tempos
de cabeças avoadas. Leiam seus relatos, especialmente os que abordam o
piloto.
GOMES, Flávio. Ímola, 1994: a Trajetória de um Repórter
até o Acidente que Chocou o Mundo. São Paulo: Gulliver, 2021.
* Acho.
** Claro que as condições materiais influenciam inclusive a
preparação de atletas, mas é um fato que o futebol iguala níveis
sociais.
*** O plano real é de 01 de julho de 1994, dois meses após a
morte de Senna.
**** Há controvérsias? Há, mas é inegável que o que Jesus
dizia divergia muito da visão messiânica que se tinha à época, de partir para o
pau contra o inimigo romano.
PS: Tenho colocado algumas imagens geradas por IA, mas não tô curtindo muito, não. Há um descompasso bem grande entre o que eu imagino e o que é gerado. Mas vamos tentando.