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quarta-feira, 28 de maio de 2025

Sobre ídolos cunhados pela história e pelas estórias (ou: a tragédia grega está na base do nosso pensamento até hoje)

(O que explica uma reverência que cresce mesmo quando se distancia?)

Eu não tenho ídolos. Tenho admiração por trabalho, dedicação e competência.

Ayrton Senna

Olá!

Começo a escrever este texto no dia 01 de maio, feriado do dia do trabalho, e vou prosseguindo sem pressa. Bem nesse dia, estranhamente, digito nos intervalos do serviço da casa, que precisa de um tapa, em petição de miséria que se encontra. A patroa vai flanando com o aspirador, impossibilitando música e podcasts, então vou pelos cômodos com a minha cabeça e meu pano de chão mesmo. Isso é um rastilho de pólvora para meus pensamentos, e o que me vem à mente são as notícias dos esportes que vi enquanto preparava o santo cafezinho diário: neste dia, faz 31 anos da morte de Ayrton Senna. Não é uma data redonda, e vai cada vez mais longe, mas continua a se repetir o fenômeno da rememoração, muitas vezes assoberbada. Quem comenta as notícias são pessoas que não viram o piloto correr, mas o estatuto de herói nacional se mantém e retroalimenta. Eu já falei três vezes neste espaço sobre o Senna (uma, duas, três), todas as três impopulares, mas ainda preciso fazer uma análise mais definitiva, não sobre minhas opiniões desta vez, mas de uma análise do fenômeno. E depois chega*.

A questão da idolatria está diretamente ligada ao imaginário. Ela é abominada pelas religiões abraâmicas porque estabelece uma concorrência com suas respectivas divindades e, segundo seus livros sagrados, deve ser condenada pesadamente, algumas vezes com a morte. Apesar disso, o impulso é humano e ela acaba sendo dirigida a outros objetos que não tenham necessariamente valor de substituição em relação a um deus, mas que tragam reserva sacralizada na mente das pessoas.

Precisamos de ídolos? Como espécie, não. A questão é que não somos seres somente naturais. O sistema de símbolos dos humanos é tão complexo que não há como isolar o que é da natureza do que é da cultura, de forma a fazer parte de nossa cadeia evolutiva. É da nossa natureza sermos culturais. E isso inclui todo um conjunto de significações que são extremamente intrincadas.

Uma dessas é a solidão. Não faz muito sentido que um ser humano viva sozinho. Fomos feitos como se fôssemos aquelas pinguelas que passam sobre os riachos. Cada tábua, vista sozinha, não faz o serviço. Mas colocadas lado a lado, com um elemento que as agregue (a corda), suportam um peso impensável para cada uma. Só que não somos feitos no mesmo molde, e é da natureza que sejamos diferentes entre si. Uma tábua é mais curta, outra mais larga, umas mais claras, outras mais escuras, mais espessas, mais leves. Quando vistos em grupo, sempre é possível ver uma dimensão coletiva e outra individual, com aquela velha observação de que o todo não é igual à soma das partes. Sendo assim, embora o todo possa parecer orgânico, ele tem aspectos que dependem das partes. Há os mais fortes, os mais espertos, os mais inteligentes; em suma, há os que se destacam em necessidades chaves. E esses acabam por se tornar guias que resolvem problemas não só de si, mas da comunidade como um todo. Catalisam propósitos e expectativas, ajudando a criar a liga que mantém uma sociedade unida.

Não é de se estranhar que, dados os papeis de liderança que ocorrem nas sociedades, esses destacados acabem por se tornar mais do que efetivamente são. A inteligência é a sua força, a esperteza é a sua inteligência, a força é a sua esperteza, tudo se misturando e uma coisa alimentando a outra, até o ponto em que se tornam únicos. Às virtudes que já tem, passam a ser juntadas outras que não lhe compõem, mas, dada sua posição já especial, a eles é agregado ainda mais. Projetam-se-lhes qualidades inerentes ao grupo, de modo a criar um símbolo ainda mais enriquecido.

Acontece que, mesmo revestidos de uma aura de invencibilidade, também eles se vão, mas deixam como seu legado um escudo virtual ao qual as pessoas ainda recorrem, como se pudessem se proteger das mazelas para quem eram dadas soluções. Qualquer objeto que simbolize esses eleitos ganha um lugar sagrado, como se fossem eles mesmos. São sacralizados e passam a significar o mesmo que o próprio eleito. São os ídolos.

Mas os ídolos não se aplicam unicamente a divindades? Não são objetos que são tratados como se eles mesmos fossem deuses? Essa seria sua origem, mas não seu uso estendido. Não é difícil de você ter um quadro na parede com o escrete do último título do seu time, ou uma foto de corpo inteiro do seu cultuado teen. Eles não são o time, nem o cantor, mas você os trata com a mesmíssima reverência. Experimente rasgar a bandeira de uma equipe no meio de sua torcida. Tente queimar o poster do rapazola bonitão que canta à beça após o autotune.

E onde tudo isso se processa? Óbvio, nas nossas mentes. Por isso, não é preciso nem mesmo que o ídolo-objeto esteja presente, bastando que esteja na lembrança. Sendo esta uma coisa sorrateira, seletiva, essa imagem mental pode e costuma ser muito diferente do que o original realmente é. Isso acontece porque precisamos desesperadamente de algo que nos proteja e alguém em que devemos nos espelhar, o que não são coisas distintas. Ter como paradigma a personificação da perfeição humana faz com que tenhamos uma espécie de escudo que nos protege não somente de pedras, mas da mediocridade. Que coisa péssima essa, ser medíocre, igual aos outros. Ter ídolos não deixa de falar sobre nós mesmos. Inclusive como povo.

É razoável supor que esse fenômeno se repita pelo mundo, já que o acontecimento comunitário é semelhante nos quatro cantos, mesmo que alguns povos sejam mais individualistas que os outros. Ocorre que no terceiro mundo temos um leque bem mais fechado de opções para escolhermos nossos ídolos, pelo óbvio motivo de estarmos na condição de povos dominados por séculos. Enquanto Descartes e Bacon disputavam a primazia do eixo epistemológico, os índios das Américas tentavam dar um jeito de sobreviver ao invasor europeu, com pouca chance de sucesso, e desde então a história se repete, algumas vezes de maneira mais incruenta, mas ainda assim em uma linha vertical de subordinação. Com isso, é raro obter glórias no campo da filosofia, da ciência, da tecnologia. Restam poucas opções, mais abstratas, que podem ter um valor simbólico maior que o concreto, como a arte e o esporte, mas a primeira ainda tem um viés de exotismo. Pensem, por exemplo, na filarmônica de Berlim executando um samba. É impossível de acontecer? Não, mas não deixará de ser uma incursão pelos campos do extravagante. A música clássica por excelência não é essa, porque quem diz o que é clássico não somos nós, dos pobres trópicos.

Com o esporte, é diferente. Quando entramos em campo, o jogo é disputado em uma regra única, seja na mais culta Paris, na mais rica Nova Iorque, na mais antiga Roma, no mais miserável morro do Rio de Janeiro. Ali, sob igualdade de condições**, o melhor (ao menos no imaginário) não tem nação; é bom quem é bom.

Claramente pensamos em futebol quando falamos de esporte em Ilha de Vera Cruz, o nosso preferido e mais repleto de glórias. Mas houve um tempo em que gostávamos de outras coisas, como automobilismo. 

Mas como, se é um esporte tão inacessível? Há alguns elementos para desconfiar. O primeiro é que carro, no Brasil, é sinônimo de status. Alguns fatos demonstram isso. Aqueles cara da sua rua que gasta um Iguaçu de água lavando seu possante não consegue nem secar o banheiro depois do banho. E fica horas com sabão para isso, espuma para aquilo, cera para o outro, faltando só o Cepacol para enxaguar os cantinhos. Vai dizer que você nunca viu isso?

Algumas colocações simplistas fazem deduzir que há quem gaste mais com o carro do que com a casa. Óbvio, moradia no Brasil é caríssima, apesar da imensidão de terras. Então a cidadela fica erguida na possibilidade: a Goleta quadrada com o som ocupando todo o porta-malas. Brasileiro gosta de carro porque é nele que dá para se sentir representado e ganhar algum status. Cada vez menos, mas ainda dá.

Mas, para além disso, o Brasil produziu pilotos talentosos de fato, com o “agravante” de que claramente aqui nós entramos em um campo que não é nosso. A tal Goleta não faz frente ao mais popular dos carros japoneses, ou à mais humilde jabiraca ianque, então sentamos nos bancos externos e provamos que nisso não há melhores do que nós, os bravos tupiniquins.

E aqui vamos chegar em Senna. Houve grandes pilotos brasileiros antes e depois. Evidentemente, Fittipaldi e Piquet representam cinco títulos mundiais, o que pavimentou o asfalto onde Senna se construiu no imaginário popular. Mas o primeiro tentou arregimentar um time nacional que não atingiu os maiores objetivos, e o segundo não se dava com a bajulação da imprensa, a ponte existente com o grande público. E também os “fracassos” pósteros ajudaram a catalisar a imagem de ser único. Coloco a palavra entre aspas porque é muito difícil delimitar o que é um fracasso, quando o simples fato de se chegar à Fórmula 1 já é um distintivo raríssimo, uma prova de capacidade absolutamente diferenciada. Mas, sejamos concretos, não há como retirar o motivador objetivo de que o último título conquistado por um piloto do país veio pelas mãos do ora analisado piloto.

Já ouvi muita gente falar que toda a reverência em torno do seu nome tem como motor a ausência de outros ídolos no momento de sua atuação. A má fase do futebol, a decadência do basquete e a ainda vindoura glorificação do vôlei teriam moldado o único eleito possível em uma fase histórica de muita incerteza política: a frustração com a redemocratização, o fracasso dos planos econômicos, o presidente eleito impedido, a inflação difícil de controlar***, o começo da desindustrialização, e até incertezas globais com a queda do muro de Berlim traziam uma completa ausência de perspectiva que, no plano prático, eram favoráveis ao desvio no olhar para alguém que era sinônimo de sucesso. Isso explica o impacto do instante, mas a permanência da idolatria precisa ser explicada de outra forma.

A mídia ajuda. Não há nenhuma transmissão do automobilismo na TV aberta em que não haja ao menos uma citação ao nome do piloto. Em datas como o primeiro de maio, ou nos GP’s de Mônaco e Japão, a quantidade se multiplica, e há séries, livros, reportagens especiais, e isso ajuda a retroalimentar o fenômeno. Como a maioria são panegíricos que miram exatamente o mito, e não o piloto, extraordinário, porém humano, o efeito é o de dar permanência na narrativa sem o salutar benefício do afastamento histórico. 

A melhor explicação não deixa de ser óbvia a quem tem um mínimo de conhecimento histórico. A história real, somada às hipérboles das narrativas pessoais, constituem o melhor desenho da tragédia grega. Isso não é uma mero papo de filósofo que quer resgatar a qualidade Apolo-Dioniso decantada por Nietzsche, mas uma constatação advinda do substrato da cultura ocidental. O herói trágico grego é aquele que está lá no fundo da consciência coletiva do nosso modelo de vida, onde a dor depura e justifica a existência de toda uma comunidade. O sofrimento do ídolo é o sofrimento de todos, ele carrega as dores de todos. Não preciso falar do paradigma sempre pronto das novelas da noite, mas é possível ver como a mesma estrutura está presente em todas as narrativas fundantes da nossa história e cultura, com poucas exceções. O próprio Cristianismo ganhou muita força por conta da dimensão trágica de seu maior personagem, que enfrenta o sistema político e religioso com uma proposta pacifista incomum****, e que recebe um fim trágico, uma entrega impossível para seres humanos que não estão no panteão divinizado dos ídolos, que traz um sentimento maior do que as glórias de uma vitória, uma comoção comum que coloca todos em pé de igualdade no enfrentamento não de um inimigo, mas da própria morte. Isso está na base da civilização ocidental.

Por isso que a morte de Senna tem tanto de mítico, de legendário e de catártico. Sua morte é quase sacrificial: o herói do terceiro mundo que enfrenta a tudo e a todos, mas que vence pela mobilização que traz e pela memória que perpetua. E nisso vem aquilo que ele não entregou, mas que potencializa o roteiro ao ponto de se chegar ao limite catártico. Vamos fazer uma mesclagem do que é a história real e indubitável com o que é ao menos controverso.

Um dos melhores pilotos de todos os tempos morre após sofrer um acidente grave em um circuito italiano. O regulamento foi modificado com relação ao ano anterior para conter a alta taxa de automatização dos bólidos, e especialmente para impedir que esse piloto tivesse absoluto domínio do campeonato, uma vez que se somariam o melhor piloto com o melhor carro, tornando a direção muito perigosa. Conhecido por inúmeras perseguições em sua carreira, Senna foi provavelmente vítima de uma barra de direção displicentemente soldada que perfurou sua viseira e penetrou em sua cabeça, além da quebra da base do crânio ocasionada pela súbita desaceleração e pelo choque. Embora seja provável que sua morte tenha ocorrido ainda no autódromo, o socorro prestado após incontáveis minutos não tinha o que fazer, dada a dinâmica dos eventos. Apesar da tragédia, a corrida continuou até seu final porque os promotores locais resolveram desrespeitar a lei italiana que estabelece que a ocorrência de morte deveria interromper imediatamente a corrida, mesmo sendo impossível detectar a morte in loco, pela falta de equipamentos de verificação da atividade cerebral. Sua carreira sempre foi marcada por muita competitividade e títulos seguidos, embora haja inúmeros prejuízos por conta de articulações políticas, dado seu impulso em lutar contra tudo e contra todos, o que explica a conspiração que foi levantada contra seu domínio, o que o torna admirado por todos os apreciadores do esporte.

Todas as informações coloridas estão fora do âmbito comprobatório, podendo ser meras suspeitas ou enganos deslavados, mas são muito mais aderentes ao imaginário e transmitidas através de recursos visuais, de registros inspirados nas histórias e, especialmente, pelas narrativas apaixonadas daqueles que não aceitavam que o automobilismo é um esporte perigoso, no qual o fator morte está mais intimamente inserido do que na prática de um jogo de bilhar, provavelmente. Um esporte perigoso para todos, inclusive para os melhores. E isso traz até mesmo mais elementos para elevar a veneração.

O roteiro, como pode se ver na mescla anterior, é composto por todos os elementos que estão na tragédia grega: a exacerbação dos sentimentos, a desmesura na missão do herói, o confronto com a ordem preestabelecida, o acontecimento imprevisível, a conclusão dramática, a injustiça do desfecho, a impossibilidade de controle dos eventos, a maldade inerente ao homem, a piedade dos circunstantes, o ato de coragem, o confronto com a realidade, a existência dos elevados e sua condição de ser humano trazendo o balanço entre a divindade e humanidade. Nossa cultura e tradições são baseadas nesse script, repito, e, por isso mesmo, o destino (ou seja lá o que) traçou uma história perfeita para a permanência da memória. Mas só o que não está colorido é conjunto fático, e talvez perca força como símbolo. Por isso a difícil aceitação de que sua morte foi mais comum do que gostaríamos, mais provável, mais próxima a nós. E é isso que baseia a MINHA admiração por ele. É um homem como eu, como você e nossos circunstantes, mas que era melhor que nós em um determinado aspecto. É nesse aspecto que eu o tenho em alta conta, e tudo o mais é só estória.

Por fim, o incômodo que isso me causa é constatar como essas histórias são tão cegantes quanto os faróis altos que cruzamos nas estradinhas vicinais. As pessoas não desconfiam de feitos extraordinários e isso comprova a falta de uso de seu espírito crítico, e isso vai desembocar em outros aspectos de suas vidas pessoais, que acabam por influenciar em nossa vida social. Sem querer fazer uma bola de neve, é dessa mesma falta de criticidade que surgem fenômenos antivax, criacionismos, terras planas, e aí o caldo entorna, porque esbarram na vida coletiva.

Eu não quero definitivamente ser incluído nas fileiras de “haters do Senna”, porque eu não sou. Comprei um livro que é um calhamaço sobre sua vida porque tenho admiração pelo piloto, que é efetivamente um dos melhores de todos os tempos. É chato e repetitivo falar isso todas as vezes que abordo o assunto, e é a mesma coisa com qualquer um que o faça, porque Senna é um símbolo nacional mais respeitado do que a própria bandeira. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Flávio Gomes é um dos maiores críticos à visão sobre-humana que se atribui a Ayrton Senna. É uma autoridade no assunto, testemunha ocular daqueles tempos e daquele fato, e pode nos dar um pouco de terra nesses tempos de cabeças avoadas. Leiam seus relatos, especialmente os que abordam o piloto. 

GOMES, Flávio. Ímola, 1994: a Trajetória de um Repórter até o Acidente que Chocou o Mundo. São Paulo: Gulliver, 2021.


* Acho.

** Claro que as condições materiais influenciam inclusive a preparação de atletas, mas é um fato que o futebol iguala níveis sociais.  

*** O plano real é de 01 de julho de 1994, dois meses após a morte de Senna.

**** Há controvérsias? Há, mas é inegável que o que Jesus dizia divergia muito da visão messiânica que se tinha à época, de partir para o pau contra o inimigo romano.


PS: Tenho colocado algumas imagens geradas por IA, mas não tô curtindo muito, não. Há um descompasso bem grande entre o que eu imagino e o que é gerado. Mas vamos tentando.

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Sem sustos com o princípio da identidade, ou Pequeno guia das grandes falácias – 75º tomo: o homem mascarado (substituição ilícita de idênticos)

(Não é só na Filosofia que somos impactados por raciocínios esquisitos, mas tem alguns deles que realmente nos colocam na encruzilhada)

“A pior forma de desigualdade é tentar igualar coisas desiguais”

Aristóteles

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Neste ano, faz vinte anos que eu comecei a estudar Filosofia formalmente. Eu vinha me digladiando com a contradição gosto vs. utilidade por muito tempo, mais precisamente desde que cheguei àquele famoso dilema da juventude em que tentamos optar por uma carreira. É um momento em que somos colocados diante do futuro com uma seriedade muito pesada, e é fácil à beça de se enganar. Por um lado, é momento de ser idealista, para que não nos tornemos autômatos pragmáticos, que não usarão seus conhecimentos para melhorar o patrimônio cultural da humanidade, mas só para fazer dinheiro. Por outro, é preciso mentalizar que há um mundo prático com poucas perspectivas de mudanças nas nossas próprias gerações, e, com isso, é preciso ter consciência da realidade. Filosofia fica num canto bem guardado no porão nesse quesito, já que quase ninguém ganha a vida com ela, a não ser como professor, o que não empolga no Brasil de hoje. Para chegar a ser um conferencista, como os famosos, há que se ralar muito antes. Falo de filósofos e mestres de verdade.

Quando fui à faculdade de Filosofia, já estava com a vida resolvida dentro do possível, então não tinha essa encruzilhada diante de mim, retirando completamente o componente angústia. Queria essencialmente melhorar meu desempenho como professor e, óbvio, aprender mais sobre a área, uma de minhas predileções. E lá fui eu para ser vovô da sala.

Quem acha que fazer Filosofia passa por vestir uma túnica grega e consumir algumas ervas apropriadas para abrir a mente está redondamente enganado. São quilos e mais quilos de teoria muito coligada à própria história da humanidade, passando de maneira muito próxima às transformações de usos e costumes, muitas vezes acompanhando o pensamento geral da galera, algumas o influenciando. Na esteira disso, vamos assistindo sistematizações cada vez mais intrincadas, até chegar à conclusão que não basta revisitar fatos e pensamentos, mas procurar regras que procurem delimitar a maneira com a qual a cabeça opera, além de produzir padronizações que permitam um mínimo de intersecções entre os diferentes modos de raciocínio. Viram como a barra é bem mais pesada?

A questão, então, recairá para o ramo da Lógica, inevitavelmente. Não deveria me causar susto, vez que sou oriundo academicamente da área de Informática, e é comum destrincharmos alguns quilômetros de tabelas-verdade, tudo isso explorando um sem-fim de articulações entre operadores lógicos. Quem sabe, sabe; são aquelas frases do tipo “isso E aquilo”, “isso OU aquilo”, “NÃO isso, NÃO aquilo” e assim por diante, com cada uma dessas proposições ganhando um valor de verdade – verdadeiro ou falso.

Entretanto, quando estudamos lógica no âmbito da Informática, as coisas são muito mais objetivas. Ninguém está preocupado porque a resolução de uma proposição é verdadeira ou falsa, mas simplesmente com a resposta final, o que não é nem cogitado pela Filosofia. Ali, cada passinho tem que ser decifrado como o enigma da esfinge, e isso faz com que desçamos às leis mais fundamentais do pensamento, o que nem sempre é intuitivo ou palatável à primeira vista. 

A mais remota tentativa de sistematização do conhecimento através da Lógica vem de Aristóteles, com seus famosos princípios racionais. E o primeiro dos seus axiomas é desafiador. Em uma das aulas, logo no começo, estava lá no quadro negro a expressão, traçada pelas linhas ameaçadoras do mestre da disciplina:

A=A

Quando você afirma para um estudante que esse é um dos fundamentos mais básicos de toda a lógica, infunde nele a impressão de que entrou numa roubada. A coisa parece tão óbvia que dá a entender que há algo por trás, como uma pegadinha, ou um mistério, que nunca chegaremos a compreender, e é quase isso mesmo. Se nos deixarmos levar para aparência óbvia, acharemos essa premissa fundamental uma sonora bobagem, o que ela não é.


O princípio em si é muito simples: qualquer objeto é igual a si mesmo. Para que isso faça algum sentido para além do óbvio*, é preciso saber que a identidade é a garantia de que esse objeto é único dentre tantos outros. “Identidade”, aliás, tem a origem etimológica exatamente nessa característica, já que o latim identitas significa a qualidade de ser o mesmo, como usamos no termo “idem”. Tem um pouco a ver com a eterna luta entre essência e existência, porque, enquanto a essência diz respeito a tudo o que há de comum entre os objetos de uma mesma espécie, e os faz ser o que são, a existência individualiza e concretiza uma determinada essência. Imagine, por exemplo, que eu olhe da sacada uma menina na rua andando com seu cachorro. Pelo fato de eu simplesmente dizer esse retrato, já é possível que você, persistente leitor, desenhe um quadro semelhante em sua mente, por ter conhecimento do que é essencial dos componentes que mencionei. Mas, se eu não der detalhes muito profundos, ou não apresentar uma fotografia da situação, você vai criar mentalmente uma imagem daquilo que você tem como experiência, e não da cena que eu citei com exatidão. Você pensará em uma menina, um cachorro, uma rua e, talvez, um ponto de visada vindo do alto, mas não A menina, O cachorro e A rua que eu vi. Eles são únicos, possuem características únicas e formam um quadro único. Se são assim, é porque são únicos e possuidores de uma identidade, que os diferencia de todos os demais que estão em suas respectivas categorias.

A identidade, portanto, não é só um documento ao qual damos o nome genérico de RG. Como estamos no universo dos humanos, existe toda uma série de simbolismos que representam as coisas e que as carregam de significados. A menina do exemplo tem um nome, que, isoladamente, não significa nada, mas, uma vez atribuído a ela, passa a representá-la como se fosse ela própria. Ela não está fisicamente na sua certidão de nascimento, mas simbolicamente, seja no plano da linguagem – ao lhe atribuir um substantivo próprio que tem alguma etimologia, seja no plano de representação. Quando o cartorário baixou seu assento no livro de registros, ela passou a contar para as estatísticas governamentais, para o direito constituído, para a sociedade. Como é impossível que ela esteja presente concretamente a cada vez que um censo for contar a população do país, seu nome passa a representar ela mesma, a fazer parte da sua identidade.

O mesmo acontece quando queremos descrever os objetos e trazer características que lhe são próprias. Vamos deixar a moçoila sossegada e analisar seu cão. Além do nome, ele tem atributos que, somados, o tornam único. Ele tem uma raça específica, o que já ajuda, mas ainda é muito genérico. Ele tem um tipo de pelo, tem um peso, tem uma altura, talvez tenha alguma doencinha, tem preferências de ração, bebe uma quantidade X de água, passeia porque curte ou porque precisa fazer necessidades. Tem um nome também e, quem sabe, um RGA, e tem uma cuidadora, que também ela tem em série de atributos semelhantes. A soma de todas essas características vai tornando sua descrição mais e mais específica, individualizante, identificante.

Ainda assim, estamos nos atendo a aspectos que são objetivos e concretos, mas o ser humano tem seu grande diferenciador entre as demais espécies por operar no plano simbólico, e isso eleva a questão da identidade ao infinito. A rua por onde a cena transcorre tem um nome e suas características, mas pode levar consigo uma pilha de significados que fogem ao concreto. A rua pode se aquela em que o avô tomou um tombo, a rua em que começamos a namorar, a rua em que eu nasci, a rua em que a menina leva o cachorro para passear. Em todos esses casos, a rua muda de seu sentido estrito, de ser uma passagem entre as casas, e vai ganhando um elemento de exclusividade para cada um que nela trafega. Assim, os próprios afetos dão sentido e significado para a rua, e lá nos recônditos de nossas mentes e intimidades sua identidade fica diferente, porém ainda voltada para aquele mesmíssimo cenário: a rua A. Se A=A, então...

A=Rua Amparo

A=rua do CEP 03151-060

A=rua que liga a Anhaia Melo à Tomaz Izzo

A=rua em que o vovô caiu um tombo

A=rua onde a menina leva o cachorro para passear

A=rua da minha infância

A=rua que me traz lembranças boas.

Da mais específica à mais pessoal, todas as descrições dizem respeito à rua A, à concreção em existência da essência de uma rua. 

Há ainda mais um aspecto a ser elaborado. O fundamento mais primitivo do princípio da identidade é dado por Parmênides, de quem já falei em vários pontos deste espaço, mas especialmente aqui. Ele traz, em sua fórmula metafísica, uma redução igualmente confusa para um olhar desapercebido: tudo o que é, é, e não pode ser que não seja; tudo o que não é, não é, e não pode ser que seja. Embora seja possível enxergar aqui também a fórmula da identidade, essa mera frase nos carrega mais informações sobre a realidade própria. Ainda que possamos discorrer sobre totalidades semelhantes à que nos ensinaram Anaximandro, Espinoza e outros filósofos, o fato é que o universo se apresenta a nós por uma dialética de presença e ausência. Em um sentido bastante estrito, tudo aquilo que não sou eu, é não-eu. Tudo aquilo que não é ser, é não-ser. Isso parece se reproduzir até mesmo no plano atômico, onde aquilo que não é matéria, é vácuo,  é nada.

Notam como o A=A ganhou muito mais significado? Não à toa, esse princípio foi pegando mais e mais sofisticação à medida que o tempo passou. Leibniz, filósofo alemão do século XVII, é um dos grandes pioneiros da ideia de trazer as regras do pensamento a formulações lógico-matemáticas. Como se sabe, a Matemática procura reduzir a realidade a fórmulas, e isso é muito útil em inúmeras aplicações científicas.  Entretanto, é preciso ter um contexto exato sobre a aplicabilidade que se quer atingir. Em um exemplo bem simples, ao término de uma corrida de Fórmula 1, diz-se que o vencedor fez uma média de 200 km/h. Isso não significa que ele tenha desempenhado essa velocidade de forma constante, mas que, em termos práticos, sua média foi menor do que a de seus competidores, e isso o tornou vencedor. Não é preciso medir a velocidade metro a metro para se chegar à conclusão de que ele foi mais rápido que os demais. 

Leibniz criou dois corolários para o princípio da identidade que são chamados de princípio da indiscernibilidade dos idênticos e identidade dos indiscerníveis, mais conhecidos como Lei de Leibniz, que são praticamente iguais, mas que podem contar alguma contestação em sua segunda declaração por conta da mecânica quântica, mas não vamos descer a esse ponto, tratando-os como sinônimos. Em resumo, estes princípios declaram que, se dois objetos possuem exatamente as mesmas propriedades, então eles são o mesmo objeto. Ou seja, não existe na natureza nenhum objeto que não possua alguma distinção do outro, por menor que seja. Assim, se batem todas as suas características, ele não é outro objeto; ele é exatamente ele mesmo.

Novamente aqui, o horizonte do óbvio parece tornar o princípio uma coisa inútil ou mistagógica, mas ele é simples de explicar, quando se tem em mente o princípio da identidade. Como sabemos, Leibniz foi, além de filósofo, um matemático de renome até mesmo superior. Ele foi um mestre do cálculo, e as suas aplicações em derivadas são utilizadas até hoje. Não precisamos entrar nos detalhes de seu funcionamento, mas o cálculo usa profusamente as substituições para possibilitar que se saia lá na frente. Esse princípio permite que atribuamos um valor mais simples em uma expressão mais complexa. O exemplo vem da sexta série e da fórmula de Baskhara, utilizada para resolver equações do segundo grau. Puxem pela memória e lembrem que essa fórmula é a seguinte:

x = -b ± √(b² – 4ac)/ 2a

Esses parênteses, como manda a boa técnica matemática, devem ser calculados antes dos demais termos. Na escola, costumamos chamar essa sequência de delta, a letra grega em forma de triângulo, e a equação fica assim:

O termo delta e a expressão b² – 4ac são idênticas. Compartilham de todas as propriedades e, portanto, são indiscerníveis, tanto fazendo calculá-la à parte ou em uma expressão completa. Não há nenhuma diferença, a não ser que a segunda forma traz maior clareza no cálculo, identificando o discriminante da equação, ou seja, se a equação tem raízes reais e quantas elas são.

Mas como com qualquer lei, é possível praticar a contravenção, e ela vem na forma de falácia. Ela ocorre quando fazemos a substituição de objetos que tentamos fazer ser idênticos, mas não são.

A Lei de Leibniz fala que os objetos são indiscerníveis quando eles compartilham exatamente as mesmas propriedades. Se um pelinho for diferente, então a lei não se aplica. Somente quando estamos na situação indiscernível que uma substituição faz pleno sentido.

Ocorre que podemos fazer essa substituição com ares de legítima sem que ela seja de fato. O exemplo mais canônico vem do paradoxo do homem mascarado, que consiste mais ou menos no seguinte interrogatório:

– Você conhece seu pai?

– Sim.

– Você conhece o homem mascarado?

– Não.

– O seu pai é o homem mascarado. Portanto, você não conhece seu pai.

Percebam, meus amigos, que aqui o pai é substituído pelo homem mascarado, o que é um fato e parece ser adequado que os tratemos como sinônimos. A situação aqui é que a substituição é indevida, porque o conhecimento que se tem sobre as duas afirmações é diferente, ou seja, não se tem consciência de que o pai e o homem mascarado são a mesma pessoa. O fato de que haja uma identidade não torna lícita sua substituição em qualquer contexto, porque temos a situação de que se determina a identidade entre um objeto de fato (o pai) com o conhecimento efetivo que se tem ou não dele (o homem mascarado). Dessa maneira, o paradoxo é um exemplo da falácia formal conhecida, por esse seu exemplo mais famoso, como falácia do homem mascarado, ou, em termos mais técnico, na substituição ilícita de idênticos.

Então temos dois pontos. O primeiro é que o susto que temos quando somos apresentados a um conhecimento é só inicial, e as coisas pegam sentido na medida em que andamos. E o segundo é que mesmo o conhecimento pode nos enganar, e é bom desconfiamos de nossos limites. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O livro é curtinho e relativamente fácil de ler, embora exija algum conhecimento prévio em epistemologia, mas não chega a ser um monstro.

LEIBNIZ, Gottfried. Discurso de metafísica. São Paulo: Ícone, 2007.

*Sempre lembrando que também o óbvio deve ser dito. É costume entre os especificadores de requisitos descrever coisas como “a data da nascimento deve ser anterior ou, no mínimo, igual à data de falecimento”, porque um sistema computacional faz aquilo que é mandado ele fazer. Se isso não está especificado, o desenvolvedor pode simplesmente esquecer de construir uma validação para esses fenômenos que parecem óbvios. Quando um simples erro de digitação acontece, lá vai o sistema travar e sua operadora de cartão ficar fora do ar, inviabilizando sua comprinha num market place da vida.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – tudo o que sabemos vem do universo ao nosso redor

(Como aprendemos o que sabemos? Nascemos com algo ou pegamos tudo do mundo?)

“Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento”

John Locke

Olá!

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Eu não posso dizer que sou dos mais renomados utilizadores das benesses digitais disponibilizadas contemporaneamente. Mesmo sendo um cara de TI, faz muito tempo que não desenvolvo, e trabalho mais com a parte de requisitos, como já andei falando por aqui. Ah, eu não trabalho mais com ensino? Não, eu preciso comer.

Voltando ao assunto, se comparado a qualquer pessoa de menos de 40 anos, meu celular fica muito mais quieto do que os da rapaziada. Eles fazem tudo pelo celular, e eu até hoje não confio de ter a conta do banco, que está em um outro aparelho, quietinho em casa, por pura obrigação. Mas não sou tão dinossauro assim, e uso algumas coisas que a pandemia me ensinou/obrigou. São os aplicativos de compras, aqueles mais clássicos, vocês sabem quais.

É preciso resiliência para não sucumbir às ofertas. O que tem de badulaques interessantes é uma grandeza. Pesquisei por pratos de bateria e parecia que eu estava em uma forjaria de bronze. E aí você compra uma coisa, lembra que precisa trocar os feltros, aparece umas baquetas black fiber, e mais outra, e mais outra… quando você vê acontecem dois fenômenos: você compra um gongo que vai usar em uma única pancada de uma única música, e seu cartão vai para a caixa-prego. São maldições do capitalismo, contra os quais precisamos levantar todos os nossos sortilégios.

Mas há quinquilharias que não comprometem de forma tão radical o nosso orçamento. São porcarias que a gente compra meio que na base do “serviu, serviu; não serviu, lixo”. E às vezes se revelam verdadeira e surpreendentemente úteis, mesmo que não cumpram o que prometem.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando eu estava pesquisando por métodos de café, na esperança de achar alguma oportunidade boa e barata. Entre inúmeros repetecos, vi um objeto que em nada lembrava uma cafeteira, parecendo mais um infusor de chá, com a promessa de ser prática e eficiente para extrair doses individuais de café. Olhei com o bico retorcido típico das minhas desconfianças, mas estava tão barato e com frete grátis que resolvi encarar. É essa peça aqui:

A pecinha, autodenominada prensa manual para café, se chama Mimo Style e vaticina combinar três mundos: a praticidade de um infusor pequeno, o aproveitamento maximizado de uma prensa e a suavidade de um coador. A combinação vem do fato de possuir uma mola que espreme o café quando pronto, para arrancar o máximo do pó.

O esquema consiste em colocar pó no pequeno recipiente composto de telas filtrantes e depositá-lo na água fervente. A quantidade de pó que cabe nele só é suficiente para uma xícara pequena.


No final das contas, realmente funciona, mas há um problema: para cafés coados, eu prefiro quantidades maiores. Pequeninos assim, só os espressi, mas aí o pequeno utensílio não chega. Muito melhor quando usado para infundir cáscara, o saboroso subproduto do processo de descascamento do café, com suave sabor de amendoim.


 

Nome do utensílio: Prensa manual

Tipo de técnica: Infusão 

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: É inserido pó na cápsula do recipiente filtrante, para ser fechado o sistema e inserido em uma xícara contendo água fervente. Mantém-se até que a extração esteja satisfatória, quando então o método é retirado e prensado com o êmbolo

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: baixo/médio

Bom… não havia outra opção possível para saber se a bugiganga poderia surpreender. Eu poderia pressupor, mas saber, de fato, só tendo uma a meu alcance. Como não vejo esse método em cafeterias, dei meu jeito, apelando para a modernidade. É experimentando que conhecemos.

Essa é uma frase que os antigos empiristas fariam coro, fácil. No final das contas, é a perfeita síntese do que eles pensavam. Mas o que são eles? Já falei muitas vezes sobre o embate racionalistas vs empiristas neste espaço, mas não custa relembrar rapidinho. Os empiristas são pensadores que se opunham à ideia de que o conhecimento já estava internalizado no ser humano, esperando a ocasião de ser despertado, como queriam os racionalistas. Por entender que o conhecimento era algo inerente ao ser humano, forçosamente as ideias teriam de ser inatas, ou seja, nascidas junto com cada indivíduo.

Os empiristas se opunham radicalmente ao conhecimento preexistente. No fundo, entendiam que o princípio geral do inatismo tinha uma base religiosa, onde o conhecimento era uma doação de uma via externa, como o hiperurânio platônico ou o mundo das ideias divinas agostiniano. Para eles, a única fonte do conhecimento era oriunda dos sentidos, que, uma vez colocados à disposição do cérebro, podiam ser por ele processados. Muito se disse antes sobre o universo como a fonte do conhecimento e dos sentidos como sua via de entrada, mas o debate aberto sobre sua fonte vem mais tarde, e é aqui que vamos falar sobre um dos mais célebres membros do movimento empirista, John Locke.

É quase indissociável seu pensamento dos demais contratualistas*, tanto que é plenamente possível fazer comparações diretas com Hobbes e Rousseau, como fiz aqui. Dentre estes, é o que tem ideias mais sólidas sobre o processo de conhecimento oriundo da experiência.

Antes de estabelecer como é sua tese sobre o conhecimento, Locke tece pesadas críticas sobre a base racionalista. Seu questionamento já vem de sua própria linha empirista: pensavam os racionalistas que havia uma espécie de acordo universal a quem toda a humanidade assentia, como se fosse uma base epistêmica comum a todos os homens, e como se estivessem para o conhecimento como os axiomas estão para a ciência. Entretanto, se o conhecimento é inato, por qual motivo este acordo universal não está aparente nas crianças, nem em pessoas com algum tipo de transtorno mental? Ideias genéricas, como fome e frio, não estão impressas na alma, porque elas só surgem enquanto sensação, ou seja, um impulso advindo de um fator vindo de fora: a falta de comida ou de agasalho. É um aprendizado que pode ter um início ainda muito remoto, mesmo no ventre, mas não que esteja gravado na alma. Em qualquer circunstância, o feto conhece através dos seus sentidos; ele recebe alguma forma de estímulo e registra essa sensação, agradável ou não. Em resumo, crianças e tolos possuem alma, e, por conseguinte, possuem mente**. Se as impressões preexistentes pensadas pelos racionalistas fossem reais, não faz sentido que não existam neles, segundo Locke.

Outra questão que leva Locke a desconfiar do inatismo é a diversidade de respostas que os diferentes povos dão a um mesmo problema. Peguemos o exemplo deus. Em todos os lugares do mundo, existe uma forma de religiosidade. Ponto para o inatismo. Só que, entretanto, cada um desses povos traz uma resposta diferente para a mesma colocação. Há povos que adoram muitos deuses, outros possuem uma hierarquia divina, onde um deus está no alto de um séquito também divinizado, mas subalternos ao deus maior. Outra maneira de ver a religião inclui um deus único, e há ainda aqueles que não centralizam a transcendência em uma divindade, embora exista algo de metafísico***. Se o conhecimento de deus viesse inatamente, não haveria motivo para tantas concepções diferentes. Basicamente, cada povo tem ao menos uma forma de ver a divindade, totalmente própria, e isso depõe contra as ideias inatas****.

Locke vai além, utilizando os próprios princípios inatos para fazer contraposições. Se as ideias estão já presentes na mente de um ser humano, é preciso que ela preexista de alguma forma, senão não haveria como plasmá-las nas demais mentes. Será que temos algum lugar platônico onde as ideias estão todas armazenadas? É preciso lembrar que essa noção platônica não fazia parte nem dos postulados racionalistas, mas parece incoerente que haja verdades gravadas na mente que não são percebidas imediatamente como tal.

Óbvio que os racionalistas rebatem as declarações de Locke, justificando que as ideias inatas não representam soluções unívocas, já que cada comunidade as adaptaria às suas necessidades em particular, ao que nosso intrépido inglês retruca dizendo não ser prova do inatismo, vez que as diferentes soluções dadas são somente as provas de que as necessidades existem e são resolvidas de formas diversas, principalmente porque cada comunidade tem justamente uma experiência distinta do problema enfrentado. Comprovação disso vem da variedade de princípios morais que são absolutamente distintos em diferentes partes do mundo. De fato, os sacrifícios são repelidos em lugares vizinhos de onde eles são de rigor. Se houvesse princípios inatos universais, não haveria motivo para tanto.

Locke concorda, entretanto, que há, sim, algo que é efetivamente inato: a capacidade de articular conteúdos em raciocínios. Essa característica é inerentemente humana, e nos constitui como tais. Mas essa capacidade de articulação não é, ela mesma, os conteúdos com os quais ela lida. Sem eles, o raciocínio não tem ingredientes para assar seu bolo.

Se não há nenhum conteúdo pré-impresso, então como se forma o conhecimento na mente humana? É aqui que Locke vai chegar à sua mais célebre doutrina: a tabula rasa. Sempre tratamos desse conceito quando falamos de empirismo, e ele se resume no seguinte: a mente é um papel em branco, que é preenchido pelas mãos dos sentidos através da observação do universo, como se burilasse uma placa de argila. Eles ficam lá, prontos para serem utilizados quando requeridos. Apesar disso, as fontes do conhecimento não se limitam aos sentidos, mas também às operações mentais. Isso é mais facilmente perceptível quando o processo abstrato se instaura. Vemos à nossa frente objetos que não tem existência real, mas que, na opinião dos empiristas, não tem como ser desenvolvido sem que haja uma sensação anterior. Isso acontece, para dar um exemplo, na ideia de aceleração. Não conseguiríamos abstrair uma fórmula que a descrevesse se não observarmos objetos em estado acelerado, porque nem mesmo formaríamos essa noção.

As primeiras coisas que são apreendidas são as ideias mais difusas, como as cores, as luminosidades, as dicotomias cheio-vazio, quente-frio, alto-baixo, que vão dar parâmetros básicos para a construção de ideias mais rebuscadas, mais sofisticadas. Afinal de contas, não há como dizer que fulano é mais alto que sicrano se não houver antes uma ideia mais fundamental do que seriam essas qualidades.

A complexidade das ideias aumenta, portanto, na medida em que ideias simples se conjugam de forma a darem novas funções a si mesmas. Ou seja, a ideia é como um átomo do pensamento. Os processos cognitivos se dão pela contemplação, que é quando o objeto está presente e há interação direta, ou pela memória, quando os conteúdos são resgatados do acervo mental. Esse trânsito de inúmeras sensações simples permite que ideias complexas se formem. Por exemplo, para se ter uma ideia de infinitude, é preciso primeiro passar por experiências de duração, que, por sua vez, são percebidas através das ideias mais simples de tempo, colhidas da experiência pela observação da velocidade das transformações.

O grande fundamento do empirismo como um todo, e de Locke em particular, está, portanto, no fato de que o conhecimento não é uma estrutura universal, aplicável igualmente a qualquer lugar e momento, mas dependente da percepção individual. Sendo assim, todas as vezes que observamos um objeto, extraímos dele informações que são parciais de sua essência. Essas são essências nominais, porque dizem respeito a ESSE cachorro, a ESSA planta, a ESSE texto, e não à universalidade desses mesmos objetos, embora contenham em si as características que sejam comuns a todos eles. A essência nominal é construída a partir das ideias formadas a partir das sensações que temos dos vários componentes do universo, enquanto a essência real seria a sua natureza intrínseca. Daí que, entre ambas, podem ser encontradas diferenças em função da experiência de quem os observa.

Desta forma, para universalizar os juízos, e reconhecendo que as essências reais das coisas não são perceptíveis ao intelecto, mas apenas as essências nominais extraídas de cada objeto individual, é necessário que haja o compartilhamento de ideias e conceitos, através da comunicação e da educação. O ser humano é caracterizado pelo compartilhamento de vários elementos, como os produtos do trabalho, dos espaços públicos, da terra, dentre outros. Deve compartilhar também os conhecimentos individuais para enriquecer o patrimônio intelectivo humano, porque é da depuração das experiências através dos pontos em comum que é possível obter algo que se aproxime o máximo possível do que seria essa tal de essência real. 

O que podemos concluir é que eu precisava de experiência individual para determinar se faz sentido usar este pequeno utensílio para extrair um café minimamente competente, bem mais do que se fiar unicamente na minha intuição. E, neste sentido, valeu a experiência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tenho como deixar de novamente indicar a obra em que Locke discorre sobre tudo o que foi discutido aqui.

LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

*São os filósofos modernos que exploraram o conceito de contrato social, ou seja, o acordo de convívio entre os seres humanos.

**Locke era cristão e, portanto, fazia identificação entre mente e alma.

***Budistas, de certa forma, são enquadrados nesta categoria. Vide este texto.

****Obviamente Locke não conhecia os ateus pirahãs, dado ao fato de ser um povo praticamente oculto até pouco tempo atrás. Para saber mais, leiam este post.

terça-feira, 6 de maio de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a histórica Portuguesa Santista e as exclusões que estão carimbadas em nossas cabeças

(É bom ter orgulho das origens, e não podemos ser culpados por causa disso)

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!”

Fernando Pessoa

Olá!

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No prédio que habito, há um senhor português. Fiquei sabendo disso quase que por acaso. No entra-e-sai constante e no trafegar dos corredores, já havia o visto, mas era aquela coisa do bom-dia, boa-tarde, boa-noite e pouco mais do que isso. Entretanto, ele me viu com uma determinada camisa no corredor de entrada e ficou quase emocionado, puxando bem meia hora de papo. Contou-me sobre a infância na comuna de Boticas, na região de Trás-os-Montes, ao norte, onde se fala com um certo puxadinho do espanhol. Falou de como seu pai fugiu da ditadura de Salazar e se estabeleceu na zona norte de São Paulo, abrindo um botequim próximo do Campo de Marte, onde os recrutas da aeronáutica iam gastar seus parcos soldos com linguiças e cachaças. Contou ainda como conheceu sua patroa, igualmente portuguesa, e vinda de Penafiel, igualmente no Norte, mas mais próxima do Porto. Contou dos filhos, dos gatos e dos peixes, e viramos amigos, um dos poucos que tenho no prédio. Já comi de sua realmente saborosa bacalhoada e lhe trouxe taiadas e licor de cambuci do Vale do Paraíba, e, com isso, vamos enfrentando o mau cheiro do centro de São Paulo.

Mas que misteriosa camisa foi essa, que despertou tantas lembranças doces e fez nascer uma amizade? É essa aí embaixo:

A Portuguesa Santista é mais uma das equipes fundadoras da Federação Paulista de Futebol, prima-irmã da sua homônima da capital, nascida da colônia portuguesa da cidade de Santos, ao verem que os espanhóis da cidade fundaram seu clube Hespanha, hoje Jabaquara, já discorridos por aqui.

Não tem sido bons os últimos tempos da Briosa. Ela foi rebaixada à terceira divisão do Campeonato Paulista e agora vai ter que penar para recomeçar sua missão de voltar aos melhores tempos. Estrutura ela tem, já que se trata de um belo clube, que, como tal, é até mais robusto que seu vizinho célebre, o Santos. Mas ela padece dos males de vários outros fundadores da Federação. Ela cumpre a dura missão de compartilhar a cidade com um dos grandalhões, que cresceu muito exatamente no momento em que as torcidas se amalgamavam, além de ser muito marcadamente próxima de uma colônia específica, que, mesmo numerosa, cada vez mais tem se mesclado com a população geral. Isso faz com que o clube caia na mesma roda de seu conterrâneo, o precitado Jabaquara. E o círculo vicioso é muito difícil de sair.

Isso tudo não tira as suas virtudes. Além da tradição, houve momentos em que a Santista esteve mais próxima dos seus rivais, e mesmo hoje ela tem na sua história um dos principais patrimônios. Como não é possível que um torneio termine empatado, mesmo onde há o maior equilíbrio possível, sempre há quem leve e quem apanhe, ou seja, há o primeiro e há o último. Como o Santos foi acumulando títulos e revelando jogadores meia-boca do tipo Pelé, Juary, Pita, Coutinho e Edu, a Briosa foi ficando para trás, até atingir o lugar onde está hoje: um ponto intermediário no futebol paulista.

Entretanto, a Briosa tem uma dor um pouco mais oculta, que incomoda mais. Não são poucos que a chamam de “burrinha”, em razão do estereótipo que se formou de que os portugueses são simplórios, faltos de inteligência, tardos de pensamento. É diferente do que acontece com o Taubaté, burrinho da Central, em que o animal representa os tropeiros que povoavam a região. Neste caso, o símbolo é exibido com orgulho, porque traz uma série de adjetivos positivos e tem conotação histórica. Diferentemente, a origem remota da atribuição aos portugueses diz respeito, provavelmente, à dificuldade de compreensão de certos termos utilizados pelo vulgo brasileiro. Como sabemos, na formação do povo do Brasil há muitos ingredientes que não estão presentes na cultura portuguesa, especialmente elementos africanos e indígenas. Isso tudo sem contar que a distância estabelece uma realidade muito distinta entre a antiga metrópole e colônias, com diferentes usos, costumes e necessidades. Desta forma, os portugueses interpretam termos forjados no Brasil com literalidade, enquanto o campo semântico coloquial se desloca para outro sentido. Inúmeras expressões que utilizamos corriqueiramente em nosso quotidiano são recebidas com estranheza pelo luso nativo, que pergunta, por exemplo, como é possível “matar tartarugas a beliscão”, quando queremos, de fato, dizer que temos poucos recursos para enfrentar dificuldades. Os coloniais aproveitam, e deitam e rolam, alimentados pelo ressentimento decorrente da situação de dominação. Vingam-se do grandalhão pisando em sua sombra. São os ingredientes para o caldo problemático.

A principal questão é entender por que a ofensa se mantém mesmo após perder seu sentido original, dada uma inversão nas relações. Hoje, os portugueses reclamam do abrasileiramento dos seus linguajares, o que é um distintivo da mudança de direção nas influências culturais. O diabo é que começamos a fazer as coisas sem nem perceber direito porque as fazemos. É aquela mesma coisa de tentar explicar a origem de um olho. Depois de tantas transformações, é óbvio que os elementos presentes atualmente não se explicam por si só, e parece que as coisas sempre foram do jeito que são agora. Mas o olho um dia foi um mero nervo sensível à luminosidade, para depois ganhar um abaulamento que lhe permitiu captar luz de partes distintas, e ganhar membranas, e contratilidade, e esfericidade, até se tornar irreconhecível para o que foi sua origem mais remota. Hoje em dia, não faz mais sentido pensar em uma relação de dominante e dominado. Não é mais justificável a vingança possível, porque os motivos palpáveis sumiram, mas o vestígio ficou, e a ridicularização que sobrou se dirige a quem não a merece.

Meu amigo português se melindra dessa mesma pecha que lhe é imposta no particular. Eu, contemporizador, digo-lhe para não ligar, para entender que a tendência diminui a cada dia e, politicamente incorreto, que as loiras têm dividido a inglória com eles. Mas ele ainda insiste que não há conforto em ser chamado de burro a vida inteira. Concordo.

A situação é de exclusão. Ser burro é coisa de quem está alijado da intelectualidade, e está ligado a uma pretensa incapacidade de até mesmo pensar por si só, quanto mais gerir coisas importantes. O subterfúgio de dizer que é só uma brincadeira não se sustenta quando você recebe a notícia de que o professor que te ensinará é um português e os ponteiros do seu desconfiômetro são acionados. Isso vale para qualquer forma de preconceito.

Ser excluído não é fácil, e eu, homem, branco, paulistano, classe média baixa, heterossexual e cisgênero, tenho dificuldades para me encaixar em situações de real exclusão para assumir o ponto de vista de quem sofre o preconceito. É bem verdade que minha posição não-religiosa é boa candidata, mas eu não milito nessas questões, e pouca gente sabe do meu ateísmo. Mas, de tanto raciocinar, achei um bom exemplinho caseiro, que vem da minha condição de diabético.

Se há algo que posso falar sobre minha parentagem é que as palavras planejamento e organização não fazem sentido para os seus membros. É extremamente comum que só decidamos coisas de Natal, Páscoa, Dia das Mães e outras festividades na véspera (ou até no próprio dia). Isso vai influenciar em tudo - se não sabemos nem onde vamos comer, obviamente não sabemos o que vamos comer. Só que a vida caótica pode até ser divertida, porque gera muitas histórias para contar, mas tem seu preço.

Eu sou diabético, já contei para vocês. Isso significa que é preciso um pouco mais de cuidado no preparo de minhas comidas, como é óbvio. No meio do pandemônio, é um pratinho minúsculo que precisa ser feito para atender minha necessidade, e que normalmente acaba ficando para o final, para quando a anarquia já houver ganho governo. Faz sentido até, porque fazer uma panela de doce rende para muita gente, basicamente todo mundo, fora eu. Mas quase todo ano acontece de não dar tempo de fazer a minha tacinha, o meu pratinho, a minha sobremesinha. Como normalmente o estado é de balbúrdia, falo para deixar para lá, pego uma fruta, como só um pedacinho, porque prefiro a paz possível ao doce impossível. Mas, ainda que eu procure não me importar, fato concreto é que eu sobro no dopopranzo. E não há como dizer que não fico na condição de excluído, que eu não sinta isso. Não que eu quisesse um doce a qualquer custo. O que eu queria mesmo é não ser diabético para não dar trabalho a ninguém e não me fazer passar vontades.

Essa condição é tão arraigada que eu acabo tendendo a achá-la natural. É básico em um pensamento utilitarista que o melhor benefício deve ser distribuído para o maior número de pessoas possível, então fazemos associações. O maior benefício possível certamente não vem de doces dietéticos, muito mais caros. Portanto, a maior distribuição possível está para os não diabéticos. 

O mercado precifica os produtos diet de acordo com a necessidade dos consumidores, porque o custo não é uma justificativa plena. Um bom exemplo é o das bananadas que tem ingredientes a menos nos artigos zero, e mesmo assim custam mais. Leia as composições e veja que nada há a mais no produto mais caro, mas a menos.

No final, é coisa assim: só dá para fazer um doce zero, então nem basta para todo mundo. Já do doce padrão pode ser feito dois ou três, atingindo todos, menos um. Eu entendo e me conformo, mas é óbvio que, se eu levar de cabo e a rabo, há uma lógica excludente aí.

Não dá para dizer que uma vida inteira levada na exclusão é fácil, é justa. Então sou obrigado a me alinhar com meu amigo português, e concordar que há tempos que começam e tempos que se encerram, como diz sabiamente o Eclesiastes, aquele livro completamente fora da curva na Bíblia. Idem com o time que tem uma mascote tão criativa e representativa, a Cachopinha, uma dançarina de bailarico com seus trajes típicos, cabelos morenos e cores do país e do time, um time cuja história ora é um fado, com sua poesia triste, e ora é um vira, celebrante da alegria, o que, no final das contas, é um espelho da vida de todos nós. Alguém tão igual a nós não pode ser considerada maior ou menor por conta de sua procedência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o livro do centenário da Portuguesa Santista, que relata suas aventuras e desventuras década a década.

SILVEIRA, Álvaro; ROGÉRIO, Paulo. 100 anos: Sou Mais Briosa. Santos: Realejo, 2017.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – a Ciência que procura a utilidade

(Procurar essências e realidades últimas é muito bom, mas é melhor ainda quando essa busca traz algo de prático para nós)

“Nós pensamos quando nos defrontamos com um problema”

John Dewey 

Olá!

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Mais de uma vez, eu assemelhei a extração de café a um rito religioso, com todas as suas passagens e cerimoniais. Também já a comparei às obras de arte, colocando o barista amador na condição de um pintor que trabalha carinhosamente com seus pinceis. E também já defrontei a atividade com os trabalhos dos laboratoristas, que usam suas vidrarias para o bem do ofício culinário. Já mostrei, inclusive, alguns casos onde a origem do método é realmente laboratorial, como a charmosa Chemex. Mas eu extrapolei dessa vez.

Como já contei para vocês em alguns textos, moro no centro de São Paulo, exatamente na rua onde está o mais amplo sortimento de casas de essências. Elas não se limitam a vender o produto, mas toda a parafernália necessária à produção de perfumes e derivados, incluindo, ora vejam, material de laboratório. A grande vantagem é que esses artigos estão ao alcance da minha mão, nem precisando recorrer às modernidades da internet para consegui-los, e a um preço MUITO mais em conta. Juntando isso à minha nova febre por produzir o cold brew (vide), resultou na montagem de uma station completa de extração. Olhem que belezinha:

A ideia geral é reproduzir uma cafeteira Yama, caríssima e elegantérrima, mas muito longe da minha inteligência orçamentária. O que importa é a lógica da coisa, e essa é a mesma: um depósito de água gelada libera o líquido aos poucos, que recai em um filtro contendo pó moído grosso, que desemboca em um recipiente.

O conjunto todo inclui uma ampola de decantação, onde eu coloco a água gelada ou o gelo e regulo seu escoamento para uma gota a cada dois segundos. O processo é lento mesmo.

A peça que vai ao centro é um funil de haste longa, onde eu coloco um filtro de papel para a saída e onde acomodo o pó. Também tenho recoberto o pó com mais um filtro, para evitar impurezas que por ventura estejam na água. Utilizo um dos filtros planos de Aeropress, que casam bem com o tamanho.

Para receber o líquido pronto, um recipiente do tipo Erlenmeyer graduado, onde a ponta do funil vai encaixada, evitando que a mistura se contamine, já que o processo demora um bocado de tempo.

Tudo isso vai encaixado em um suporte universal de laboratório, que me permite não somente regular as distâncias necessárias, como também utilizar outros materiais que eventualmente eu queira.

 

Nome do utensílio: Station de cold brew

Tipo de técnica: Percolação de liquído frio 

Dificuldade: Alta

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: É inserido gelo em uma ampola de decantação regulada para escoamento lento, que deve recair sobre um funil filtrado contendo pó de espessura grossa, para extração a frio em um recipiente Erlenmeyer na base

Resíduos: Dependendo do elemento filtrante utilizado

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: alto

Como eu disse, o produto final é um cold brew, o café gelado que tenho produzido cada vez mais, dada sua versatilidade. Este processo, apesar de lento, acaba sendo mais rápido do que as doze horas mínimas do método mizudashi, razão pela qual, vejam vocês, acaba por se constituir em uma extração rápida. Não é surpreendente?

Essa parafernália toda ocupa um bom lugar no meu armário, e somente a monto quando vou usar, o que nem é tão frequente. Mas é uma forma de colocar para fora meu espírito científico, de experimentação e de novas soluções. Talvez essa seja uma resposta bastante abrangente para os problemas da vida.

Isso também é um motivador para falar várias vezes sobre filosofia da ciência. É que causa incômodo quando a gente vai assistir um videozinho e vê afirmações sobre as maravilhas do óleo de ozônio, ou vai a um veterinário que jura loas aos florais de Bach. Eu não teria nada contra se não fossem promessas de solução para condições de saúde, mas são. Não há problemas em se acreditar nisso ou aquilo no âmbito religioso ou filosófico, mas na ciência é preciso exatidão. Então eu insisto.

Muitas discussões existiram sobre métodos que melhor poderiam garantir os acertos científicos, mas talvez poucos fossem os substratos dos impulsos para tanto. É óbvio que sempre poderemos pensar na curiosidade inerente à espécie humana, ou na possibilidade de ganhar dinheiro, mas em ambas temos alguns problemas. Na primeira, podemos colocar qualquer coisa no lugar apenas para termos uma explicação, enquanto na outra teríamos favorecimentos a poucos afortunados. Mas há um grande motivador que justifica toda a produção científica: a sua utilidade.

O nome da corrente é pragmatismo, e já falei sobre ela no âmbito filosófico (aqui) e científico (aqui), mas há pensadores que trataram do tema de maneira a descobrir com maior apuro como o processo científico se constrói a partir do dia-a-dia e segue para a solução desses problemas práticos. Vou falar sobre John Dewey.

Vamos começar pensando no seguinte. Grandes questões universais podem não ter nenhum sentido prático. Quando colocamos uma questão de ordem metafísica, por exemplo, podemos levar anos e anos para chegar a uma conclusão que, no final das contas, não nos diz nada. A discussão sobre o sexo dos anjos não foi só uma metáfora para ilustrar isso, mas um evento histórico que não mudou um único centavo no preço do dólar, ou, melhor dizendo, não se derramou uma única gota de sangue a mais ou a menos nas batalhas pela tomada de Constantinopla, enquanto os excelsos teólogos discutiam se os anjos tinham alguma forma de sexação.

Por mais sofisticada que possa ser uma discussão dessa natureza, o que ela nos traz de fato? Nada. Muito mais proveitoso é discutir se manga com leite faz mal, uma informação que pode ser relevante para quem tem esses dois ingredientes na geladeira. Enfim, ainda que você estude e especule se a realidade última da natureza provém de deus, ou de uma substância específica, abstrata como a pitagórica, concreta como a dos atomistas, ainda assim o que muda a sua vida é compreender se uma mera manga misturada a um prosaico leite pode te causar uma congestão.

Na visão do pragmatismo de Dewey, é do senso comum que vem o combustível do conhecimento. O senso comum, como bem sabemos, não significa conhecimento inválido, mas formas irrefletidas de encarar a realidade. A cada vez que refletimos sobre nosso próprio universo, retiramos um recorte acrítico e passamos a problematizá-lo, que é a mecânica que conduz o conhecimento e tudo o que deriva dele, como a educação e a ciência. A problematização induz a investigação, ou seja, as pesquisas que permitirão trazer uma resposta à questão levantada. Para seguir aos princípios pragmáticos, não faz sentido procurar respostas metafísicas a questões concretas. A especulação não é a matéria-prima dessa corrente, mas a investigação extraída da experimentação, da interação com o mundo existente. Percebam que os pragmáticos não negam instâncias transcendentais, apenas as isolam das soluções científicas. Mesmo quando pensam na filosofia, querem que ela se volte para a resolução de problemas práticos. O pensamento metafísico sempre desfalecerá em conclusões indefinidas. Portanto, o grande objetivo do pragmatismo em geral, e em Dewey em particular, não é descobrir o fim último da realidade, mas a trazer elementos que levem a atuar de maneira prática no mundo, a resolver problemas de fato, do quotidiano.

A base para essa direção está na característica natural do ser humano de interagir permanentemente com o ambiente onde vive. Como o mundo onde o ser humano habita é composto não somente pelos meios necessários à sobrevivência, mas também por outros humanos, tal interação não é somente natural, mas cultural também. Como viver significa resolver conflitos, é por esse caminho que o processo empírico funciona.

Dewey passa então do senso comum ao conhecimento científico ao pinçar uma situação que se torna um problema. Após a problematização, passa-se à investigação para se desembocar em uma conclusão. Como manda o bom espírito científico, essa conclusão não é definitiva, mas uma proposta de resposta ao problema baseado na observação dos processos que lhe dizem respeito. Vou dar um exemplo com um estudo de caso: minha sogra. Acompanhem.

A veneranda senhora vinha há tempos reclamando dos tratamentos que lhe eram recomendados no posto de saúde, que lhe traziam mais problemas que soluções, como veremos. Começou a reclamar de palpitações e piora na pressão, casos que costumam surgir quando há hipercolesterolemia, o famoso colesterol alto. A patroa, que nessas coisas de cardiologia é bastante preocupada, achou melhor levá-la a um médico pago, para obter um veredicto mais acurado, frente a insistência de sua mãe. Marcou a consulta e lá se foram as duas, expor as aflições ao especialista. A questão era uma pressão alta que demandava um cuidado com os índices de colesterol, cujos remédios vinham provocando os eufêmicos desconfortos. Explicado tudo o que foi receitado e relatados os efeitos, a pergunta do médico veio cortante: são os remédios que fizeram mal ou é a senhora que está comendo comida estragada?

Dito assim tão rude, alinhei-me inicialmente à indignação da patroa e de sua macrobia mãe, senhora minha sogra. Mas, abstraindo a moldura da cena, o que poderíamos extrair do retrato? O quanto, no final das contas, não assistia de razão ao réprobo médico? Vamos ver, e é na geladeira.

Creme de leite: vencido e aberto há mais de sete dias. Manteiga: mais de trinta dias aberta. Queijo fresco: já meio amarelado, denunciando o tempo de abertura. Leite: em um recipiente de plástico avulso, incerto e não sabido. Verduras: devidamente murchas. Em adição, a caixinha de remédios apresentava uma série deles já vencidos, inclusive colírios. Diante do quadro, parece que a razão faltou ao médico somente pela maneira de expressar sua opinião. Quanto ao resto, acertou na mosca, fácil, fácil.

Pois então temos que ocorreu diante de nós uma situação corriqueira transformada em problema, algo do quotidiano extraído de seu lugar comum e colocado perante um cérebro, capaz de transformar interações casuais em causais. A situação de senso comum vinha da barriga da sogrona - tomar remédio de colesterol dá caganeira. Por que essa é uma situação colhida do dia-a-dia? Primeiro porque causa sofrimento, segundo porque é uma condição surpreendente. Eu mesmo tomo remédios para colesterol todos os dias e nem quando eu comecei, tive algum revertério. Com isso, há uma situação mal resolvida que clama por ser ajustada: um problema. A problematização, palavra tão utilizada hoje em dia é isso: Colocar em evidência um fenômeno que precise ser resolvido.

O próximo passo deweyiano é a investigação, e, nesse exemplo, temos a realidade sendo observada: a geladeira e os alimentos nela conservados. A experiência de ver esse ambiente de todo impróprio é o grande material que permite verificar, experienciar, investigar aquilo que explica uma situação antes impensada.

Por fim, a conclusão. Ainda que a resposta abrigue outras possibilidades, um fato é inegável e, no mínimo, precisa ser tirado da frente: a inadvertida sogra, precisa, sim, melhorar as condições do cardápio. Por mais que vivam em condições de aposentados, o veterano casal tem algumas rendinhas extras e dá para comer alimentos frescos. A questão é mais da mania de estocar do que da sua necessidade, que pode ter sido real outrora, mas que, hodiernamente, não faz mais sentido.

Percebem como o pensamento racional fez com que investigássemos um problema e trouxéssemos uma resposta prática para ele? Dewey ensina que o problema colhido do senso comum retorna a ele na forma de resposta, ou seja, de conhecimento racional. Ele volta ao senso comum e às interações humanas internalizadas ou destes com o ambiente onde vivem, já agora desfazendo o problema inicial. Dessa forma, temos a característica mais desejável do conhecimento, que é ser útil.

O conhecimento desconexo com a realidade é um problema cognitivo. Basta que se recorde das nossas aulas de matemática. Eu até hoje, e sou sincero, não sei onde são aplicáveis os logaritmos e equações, embora tenha aprendido a desenvolvê-los. Isso traz a mim um conhecimento olvidável, incongruente, desvinculado da realidade de sua aplicação e, no limite, inútil. Eu precisaria observar onde esse conhecimento se conecta à realidade e, talvez aí, dominasse, lembrasse, aplicasse e (quiçá) gostasse dele. Tem cara de processo educativo? Tem, mas as ideias de Dewey para a educação precisam ser analisadas em um texto à parte, o que farei oportunamente.

Café mais fraco, mais encorpado, que intercambia melhor com marotas trançagens alcoólicas são alguns dos pequenos problemas que pedem por investigações mais detalhadas para o gáudio deste escriba, e deweyanamente agindo, vou tirando minhas conclusões e enriquecendo meu acervo gastronômico, enquanto aproveito para refletir sobre conhecimento e ciência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto abaixo é um artigo de Dewey onde ele fala mais especificamente sobre o roteiro que tracei acima.

DEWEY, John. Lógica: a Teoria da Inquirição. In: Experiência e Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Col. Os Pensadores.