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segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

A vontade de verdade e séries biográficas que não contam tudo

(Fui cumprir a promessa, e não gostei do que vi. Mas dá para assistir)

 

O homem inventou o ideal para negar o real”

Nietzsche

Olá!

Eu tinha certeza de que me arrependeria. Sabe quando você tem tanta convicção de um negócio que parece impossível que ele não aconteça, pelo simples fato de que você ainda tem alguma espécie de fé na humanidade? Pois é, aconteceu… e eu estou aqui porque gosto de cumprir minhas promessas.

O fato é que, ainda recentemente, sugeri uma série que nem estava lançada, mas que, mesmo aqueles que não são ligados nelas já sabiam de sua premente liberação, dizendo que a analisaria tão logo estivesse disponível. É a já famosa série Senna, lançada na Netflix. Como usei minha relação com a memória do piloto para basear um post sobre falácias, achei justo assisti-la e fazer alguma apreciação crítica, se possível com alguma injunção filosófica.

O arrependimento é por causa da exatidão do meu diagnóstico anterior ao filme. Não que eu seja um vate consagrado, ou um renomado haríolo, mas é que todo o conjunto de circunstâncias era favorável à maneira com a qual a obra foi desenrolada. Eu tinha a torcida para que tivéssemos alguma novidade desconhecida, ou que, mesmo sabendo se tratar de ficção baseada na realidade, houvesse um perfil mais humano de alguém que, ao fim e ao cabo, era justamente isso: humano.

O resultado foi uma série mais parecida com um documentário chapa-branca, chancelado pela família e pela empresa derivada post mortem. Com o clima de heroísmo implantado pela memória de 30 anos de sua morte, a história romanceada dá a impressão nítida de que é a história real e oficial, indo ao encontro de tudo o que os fãs gostariam que fosse real, em um processo de wishful thinking (vide). Provavelmente eu pararia no segundo episódio, mas quis honrar minha palavra, e aqui estou. 

Em primeiro lugar e sendo justo: há virtudes e não há dificuldades em assistir a série em seu âmbito técnico e até mesmo artístico. As cenas de pista são muito boas, começando pela reprodução histórica, com os patrocínios corretos, os equipamentos, automóveis e vestuários muito fiéis ao que existiram de fato. As passagens de corrida são de tirar o fôlego, e nisso estamos no ponto alto. As interpretações são ok como um todo, e é fácil notar o esforço dos atores em se aproximar de falas e trejeitos dos personagens que representam.  Algum desavisado poderá achar que o ator Gabriel Leone, intérprete de Senna, é um canastrão que transmite pouca emoção. É um erro pensar assim. Senna se expressava exatamente daquele jeito, linear, sem grandes espasmos ou esgares, e nisso ele esteve brilhante. Outros personagens reais estão bem construídos e os fictícios também não estão mal. As coisas não pegam nesse ponto, definitivamente. E esta é a parte que permite assistir a série sem sobressaltos.

O que ocorre é que temos a sensação de estar diante da mesma mecânica de uma teoria da conspiração: um processo de cherry picking que junta fatos (muitos fictícios) por cima de um pano de fundo inautêntico, feito para passar a sensação de perfeição. Em uma rememoração dos 30 anos de um ídolo, quando todos os espíritos estão em estado de catarse pela tragédia ocorrida, há um reforço completo para a constituição do ídolo no seu sentido nietzscheano, ou seja, em uma transformação do real em ideal.

A série peca especialmente no aspecto “o mundo contra Ayrton Senna”. De acordo com o que vimos, ele foi prejudicado no Mundial de kart, na Fórmula 3, pelo companheiro de equipe, pelos dirigentes da federação, por deus e pelo diabo (por deus não, ele era cristão). Isso foi repetido à exaustão no mundo real, elevado com vitaminas e ferro para a série, como se fosse necessário barrar a qualquer custo a ascensão do brasileiro. 

A questão é que uma série baseada em uma vida real, mas povoada de eventos fictícios (legitimamente) apresenta-se como se fosse toda verdadeira, sem nenhum esforço de se explicar que não se trata de uma biografia. E as pessoas sentem a necessidade de receber essa história contada com contornos de tragédia grega, porque ela parece trazer mesmo algum tipo de justificativa para suas próprias vidas.

Parece que temos a necessidade platônica de ter uma reserva de perfeição a perseguir. De tanto correr atrás de vontade de atingir a verdade, parece que nos encontramos na disponibilidade de sermos enganados. A vontade de verdade é uma vontade de engano, uma vontade de sermos saciados por uma completude que não existe, mas que entendemos intimamente ser possível, e uma predisposição em acreditar em algo que substitua a perfeição, como se perfeito fosse.

Nietzsche dizia que a verdade é incompatível com a linguagem. Isso acontece porque a função desta última, a comunicação, precisa lançar mão de generalizações para construir uma lógica. Em miúdos, podemos dizer que a verdade seria uma correspondência entre realidade e discurso, do contrário teríamos falsidade ou mentira. Acontece que, para tentar fazer isso, é preciso que se fale sobre mais de uma pessoa, ou de um fato, ou de um fenômeno ao mesmo tempo, o que não dá para fazer. Assim, se eu quero dizer que a humanidade é racional, eu deixo de considerar cada um dos seres humanos como eles são para trazer uma informação que eles têm em comum. Mas isso não é verdade. Há gente irracional e, mesmo aos que damos o nome de racional, há lapsos em que sua irracionalidade impera, às vezes em maior quantidade do que ocorre o oposto. Basta que você se veja dentro de um estádio e lembre quantas vezes chamou o técnico de burro, o árbitro de ladrão, o goleiro de frangueiro e o centroavante de caneludo. Nestes momentos, não é o pretenso analista de desempenho que fala, mas o torcedor enfurecido, que esquece de quantas vezes técnico, árbitro, goleiro e centroavante fizeram seu ofício como deviam. Tudo isso para concluir que a linguagem é generalizante, enquanto o mundo é composto por indivíduos. Individualidade, segundo os melhores dicionários, são as características que tornam o indivíduo único dentre os demais. Dessa forma, se tentamos atribuir via linguagem uma verdade absoluta, aplicável a qualquer circunstância, fracassamos miseravelmente.

Mas e a ideia como conceito? Não estaria aí a correta acepção da verdade? É aí que nasce a vontade de verdade. É preciso que exista algo fora, que não corresponde à realidade, para traduzir algo que seria pretensamente a verdade. E aí deixamos de olhar para as coisas mesmas para decifrar o que elas são, e passamos a dirigir para elas um modelo de perfeição. Percebem como isso se encaixa perfeitamente não somente à filosofia platônica de mundo das ideias, mas também ao princípio metafísico de coisas como vida eterna, céu, paraíso, morada dos deuses? Por essa razão, o ser humano tem vontade de verdade - onde ele falha como indivíduo, conforta-se com uma esperança. Mas o que ele tem para si é a si mesmo.

O conceito de vontade de verdade é de Nietzsche, mas ele teve desenvolvimento extra com Foucault. Ele parte da premissa de que, se há uma vontade de verdade que busca preencher claros no entendimento, há condições para manipular como esses claros serão preenchidos. Isso é feito instituindo uma verdade oficial, que coloca à margem todos aqueles que discordam dela. Dessa forma, é removida a particularidade de cada um de nós, seu próprio campo visual, e se busca forçar um consenso sobre qualquer assunto que se possa divergir.

A questão é de não existir uma verdade absoluta, algo que vai contra preconizações dogmáticas, em especial ao discurso com modelo religioso. Se não houvesse uma vontade de verdade inerente ao ser humano, ela não poderia ser manipulada, e construções como a da série que ora analiso não teriam o mesmo poder de convencimento que tem.

Atenção: vontade de verdade não é sinônimo de verdade. A verdade continua existindo, seja ela o que for - um conceito abstrato ou um reflexo da realidade. A vontade de verdade é uma tendência em atribuir valores a tudo, especialmente nos quesitos morais. Existe uma concepção de certo e errado que pode ser atribuída como um decreto a qualquer atitude que se tome, e normalmente quem legisla sobre esses valores são divindades, que, ao fim e ao cabo, são a condensação de princípios de uma determinada sociedade. Foucault se apega à questão sexual, mas qualquer pauta moral pode ser regida por esse mesmo princípio, mesmo sobre pontos onde não há questões morais legítimas, como pode ser exemplificado na falácia naturalista (vide).

Dito tudo isso, quando vemos os quesitos biográficos desenvolvidos na série, vemos que eles não são elaborados de modo a trazer o Senna humano, mas o Senna heroico. Não faz problema algum de se contar a história de maneira fictícia, mas, nesse caso, atribuí-la a um personagem real se torna uma falsificação. O exemplo mais gritante é a quase ausência de uma personagem Adriane Galisteu. Sabemos que Senna não era o garanhão retratado na série, mas ele teve seus romances e esse foi o último, ponto final. Se ela o utilizou como escada na carreira ou não, não importa. Isso é irrelevante. Relevante é a existência dela, e isso não foi dado a ser contado, supostamente por uma birra que não arrefeceu em trinta anos. 

Mas há outros aspectos esquisitos. É estranho que eles explorem malandragem mecânicas que seriam muito mais críveis nas mãos do Nelson Piquet do que em verdadeiras virtudes de pilotagem como as aceleradas consecutivas nas curvas para manter a rotação sempre alta. Os seus familiares eram raros em autódromos, e pouquíssima gente penetrava madrugada adentro para acompanhar suas corridas como se fossem uma final de Copa do Mundo. Isso eu posso afirmar porque acompanhei não somente todos os seus títulos no Japão, como suas derrotas também. Fazia isso por conta do meu interesse pelo esporte, como continuo fazendo, com um pouco menos de frequência, até hoje. Não havia rojões, nem gritos, nem festas nas ruas.

A vida de Senna poderia ser mais bem explorada, trazendo aspectos complexos que foram omitidos. Não se fala em aspectos como o conflito com a McLaren, equipe que lhe consagrou e que foi quase largada para trás quando já não era o melhor carro do grid. Não explorou detalhes das controvérsias que teve com o ídolo brasileiro em ocaso, Nelson Piquet, o que poderia dar um capítulo interessante. Falou pouquíssimo da exuberante temporada de 1993, talvez pelo fato de que foi justamente o período Galisteu e do chororô pelo carro do “outro planeta”.

Mas a série fez e continua fazendo sucesso de público. Neste momento histórico do Brasil, temos algo semelhante ao que ocorreu em 1994: carência de pessoas que nos façam sentir enaltecidos como povo, e a série cai como uma luva em dois sentidos. O primeiro, para o pessoal da minha média de idade, que lembra com saudade das proezas do ídolo; o segundo, para as gerações seguintes, que não conseguiram ter para si algo parecido. São os mesmos vinte e quatro anos sem copa do mundo, mesma política polarizada (até pior), mesma indefinição sobre o país como noção. Além disso, o automobilismo veio como um lenitivo esportivo porque durante 19 anos o Brasil viu seus pilotos ganharem oito títulos mundiais. Se levarmos em conta os anos em que houve brasileiros na disputa do título (contando os vice-campeonatos), o número sobe para 12. Ou seja, o brasileiro se acostumou a ver protagonismo em uma das poucas áreas possíveis, o que é uma sonora bobagem. O automobilismo premia quem tem recursos, e não um talento natural inerente à nacionalidade. Fittipaldi, Piquet e Senna chegaram lá porque tiveram, de uma forma ou de outra, suporte para tanto. Então é um patriotismo falso, porque não tem nada a ver com a pátria.

Mas ainda assim as coisas poderiam ter sido diferentes. A vontade de verdade que pulula em nosso espírito seria receptiva com uma biografia mais próxima do piloto extraordinário e do ser humano factível e falível, com os mesmos defeitos que temos e que, por isso mesmo, dono de feitos ainda mais impressionantes. Ariano Suassuna já dizia que Jesus, sendo Deus, era capaz de suportar dores, e, por isso mesmo, a devoção com Nossa Senhora ganhava muito valor, sendo ela humana como todo o povo. A mesma coisa poderia acontecer aqui. Achei uma oportunidade perdida.

Missão dada, missão cumprida, mesmo que tenha sido por mim mesmo. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura: 

Já havia recomendado o livro Além do Bem e do Mal no texto deste link, então vou recomendar a base teórica de Foucault, para complementar o que escrevi no presente post.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996

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