(Não é só na Filosofia que somos impactados por raciocínios esquisitos, mas tem alguns deles que realmente nos colocam na encruzilhada)
“A pior forma de desigualdade é tentar igualar coisas desiguais”
Aristóteles
Olá!
Neste ano, faz vinte anos que eu comecei a estudar Filosofia
formalmente. Eu vinha me digladiando com a contradição gosto vs. utilidade por
muito tempo, mais precisamente desde que cheguei àquele famoso dilema
da juventude em que tentamos optar por uma carreira. É um momento em que
somos colocados diante do futuro com uma seriedade muito pesada, e é fácil à
beça de se enganar. Por um lado, é momento de ser idealista, para que não nos
tornemos autômatos pragmáticos, que não usarão seus conhecimentos para melhorar
o patrimônio cultural da humanidade, mas só para fazer dinheiro. Por outro, é
preciso mentalizar que há um mundo prático com poucas perspectivas de mudanças
nas nossas próprias gerações, e, com isso, é preciso ter consciência da
realidade. Filosofia fica num canto bem guardado no porão nesse quesito, já que
quase ninguém ganha a vida com ela, a não ser como professor, o que não empolga
no Brasil de hoje. Para chegar a ser um conferencista, como os famosos, há que
se ralar muito antes. Falo de filósofos e mestres de verdade.
Quando fui à faculdade de Filosofia, já estava com a vida
resolvida dentro do possível, então não tinha essa encruzilhada diante de mim,
retirando completamente o componente angústia. Queria essencialmente melhorar
meu desempenho como professor e, óbvio, aprender mais sobre a área, uma de
minhas predileções. E lá fui eu para ser vovô da sala.
Quem acha que fazer Filosofia passa por vestir uma túnica
grega e consumir algumas ervas apropriadas para abrir a mente está redondamente
enganado. São quilos e mais quilos de teoria muito coligada à própria história
da humanidade, passando de maneira muito próxima às transformações de usos e
costumes, muitas vezes acompanhando o pensamento geral da galera, algumas o
influenciando. Na esteira disso, vamos assistindo sistematizações cada vez mais
intrincadas, até chegar à conclusão que não basta revisitar fatos e pensamentos,
mas procurar regras que procurem delimitar a maneira com a qual a cabeça opera,
além de produzir padronizações que permitam um mínimo de intersecções entre os
diferentes modos de raciocínio. Viram como a barra é bem mais pesada?
A questão, então, recairá para o ramo da Lógica,
inevitavelmente. Não deveria me causar susto, vez que sou oriundo
academicamente da área de Informática, e é comum destrincharmos alguns
quilômetros de tabelas-verdade, tudo isso explorando um sem-fim de articulações
entre operadores lógicos. Quem sabe, sabe; são aquelas frases do tipo “isso E
aquilo”, “isso OU aquilo”, “NÃO isso, NÃO aquilo” e assim por diante, com cada
uma dessas proposições ganhando um valor de verdade – verdadeiro ou falso.
Entretanto, quando estudamos lógica no âmbito da Informática,
as coisas são muito mais objetivas. Ninguém está preocupado porque a resolução
de uma proposição é verdadeira ou falsa, mas simplesmente com a resposta final,
o que não é nem cogitado pela Filosofia. Ali, cada passinho tem que ser
decifrado como o enigma da esfinge, e isso faz com que desçamos às leis mais
fundamentais do pensamento, o que nem sempre é intuitivo ou palatável à
primeira vista.
A mais remota tentativa de sistematização do conhecimento
através da Lógica vem de Aristóteles, com seus famosos princípios racionais. E
o primeiro dos seus axiomas é desafiador. Em uma das aulas, logo no começo,
estava lá no quadro negro a expressão, traçada pelas linhas ameaçadoras do
mestre da disciplina:
A=A
Quando você afirma para um estudante que esse é um dos fundamentos mais básicos de toda a lógica, infunde nele a impressão de que entrou numa roubada. A coisa parece tão óbvia que dá a entender que há algo por trás, como uma pegadinha, ou um mistério, que nunca chegaremos a compreender, e é quase isso mesmo. Se nos deixarmos levar para aparência óbvia, acharemos essa premissa fundamental uma sonora bobagem, o que ela não é.
A identidade, portanto, não é só um documento ao qual damos
o nome genérico de RG. Como estamos no universo dos humanos, existe toda uma
série de simbolismos que representam as coisas e que as carregam de
significados. A menina do exemplo tem um nome, que, isoladamente, não significa
nada, mas, uma vez atribuído a ela, passa a representá-la como se fosse ela
própria. Ela não está fisicamente na sua certidão de nascimento, mas
simbolicamente, seja no plano da linguagem – ao lhe atribuir um substantivo
próprio que tem alguma etimologia, seja no plano de representação. Quando o
cartorário baixou seu assento no livro de registros, ela passou a contar para
as estatísticas governamentais, para o direito constituído, para a sociedade.
Como é impossível que ela esteja presente concretamente a cada vez que um censo
for contar a população do país, seu nome passa a representar ela mesma, a fazer
parte da sua identidade.
O mesmo acontece quando queremos descrever os objetos e
trazer características que lhe são próprias. Vamos deixar a moçoila sossegada e
analisar seu cão. Além do nome, ele tem atributos que, somados, o tornam único.
Ele tem uma raça específica, o que já ajuda, mas ainda é muito genérico. Ele
tem um tipo de pelo, tem um peso, tem uma altura, talvez tenha alguma
doencinha, tem preferências de ração, bebe uma quantidade X de água, passeia
porque curte ou porque precisa fazer necessidades. Tem um nome também e, quem
sabe, um RGA, e tem uma cuidadora, que também ela tem em série de atributos
semelhantes. A soma de todas essas características vai tornando sua descrição
mais e mais específica, individualizante, identificante.
Ainda assim, estamos nos atendo a aspectos que são objetivos
e concretos, mas o ser humano tem seu grande diferenciador entre as demais
espécies por operar no plano simbólico, e isso eleva a questão da identidade ao
infinito. A rua por onde a cena transcorre tem um nome e suas características,
mas pode levar consigo uma pilha de significados que fogem ao concreto. A rua
pode se aquela em que o avô tomou um tombo, a rua em que começamos a namorar, a
rua em que eu nasci, a rua em que a menina leva o cachorro para passear. Em
todos esses casos, a rua muda de seu sentido estrito, de ser uma passagem entre
as casas, e vai ganhando um elemento de exclusividade para cada um que nela
trafega. Assim, os próprios afetos dão sentido e significado para a rua, e lá
nos recônditos de nossas mentes e intimidades sua identidade fica diferente,
porém ainda voltada para aquele mesmíssimo cenário: a rua A. Se A=A, então...
A=Rua Amparo
A=rua do CEP 03151-060
A=rua que liga a Anhaia Melo à Tomaz Izzo
A=rua em que o vovô caiu um tombo
A=rua onde a menina leva o cachorro para passear
A=rua da minha infância
A=rua que me traz lembranças boas.
Da mais específica à mais pessoal, todas as descrições dizem
respeito à rua A, à concreção em existência da essência de uma rua.
Há ainda mais um aspecto a ser elaborado. O fundamento mais
primitivo do princípio da identidade é dado por Parmênides, de quem já falei em
vários pontos deste espaço, mas especialmente aqui.
Ele traz, em sua fórmula metafísica, uma redução igualmente confusa para um
olhar desapercebido: tudo o que é, é, e não pode ser que não seja; tudo o que
não é, não é, e não pode ser que seja. Embora seja possível enxergar aqui
também a fórmula da identidade, essa mera frase nos carrega mais informações
sobre a realidade própria. Ainda que possamos discorrer sobre totalidades
semelhantes à que nos ensinaram Anaximandro, Espinoza e outros filósofos, o
fato é que o universo se apresenta a nós por uma dialética de presença e
ausência. Em um sentido bastante estrito, tudo aquilo que não sou eu, é não-eu.
Tudo aquilo que não é ser, é não-ser. Isso parece se reproduzir até mesmo no
plano atômico, onde aquilo que não é matéria, é vácuo, é nada.
Notam como o A=A ganhou muito mais significado? Não à toa,
esse princípio foi pegando mais e mais sofisticação à medida que o tempo
passou. Leibniz, filósofo alemão do século XVII, é um dos grandes
pioneiros da ideia de trazer as regras do pensamento a formulações lógico-matemáticas.
Como se sabe, a Matemática procura reduzir a realidade a fórmulas, e isso é
muito útil em inúmeras aplicações científicas. Entretanto, é preciso ter
um contexto exato sobre a aplicabilidade que se quer atingir. Em um exemplo bem
simples, ao término de uma corrida de Fórmula 1, diz-se que o vencedor fez uma
média de 200 km/h. Isso não significa que ele tenha desempenhado essa
velocidade de forma constante, mas que, em termos práticos, sua média foi
menor do que a de seus competidores, e isso o tornou vencedor. Não é preciso
medir a velocidade metro a metro para se chegar à conclusão de que ele foi mais
rápido que os demais.
Leibniz criou dois corolários para o princípio da identidade
que são chamados de princípio da indiscernibilidade dos idênticos e identidade
dos indiscerníveis, mais conhecidos como Lei de Leibniz, que são
praticamente iguais, mas que podem contar alguma contestação em sua segunda
declaração por conta da mecânica quântica, mas não vamos descer a esse ponto,
tratando-os como sinônimos. Em resumo, estes princípios declaram que, se dois
objetos possuem exatamente as mesmas propriedades, então eles são o mesmo
objeto. Ou seja, não existe na natureza nenhum objeto que não possua alguma
distinção do outro, por menor que seja. Assim, se batem todas as suas
características, ele não é outro objeto; ele é exatamente ele mesmo.
Novamente aqui, o horizonte do óbvio parece tornar o
princípio uma coisa inútil ou mistagógica, mas ele é simples de explicar,
quando se tem em mente o princípio da identidade. Como sabemos, Leibniz foi,
além de filósofo, um matemático de renome até mesmo superior. Ele foi um mestre
do cálculo, e as suas aplicações em derivadas são utilizadas até hoje. Não
precisamos entrar nos detalhes de seu funcionamento, mas o cálculo usa
profusamente as substituições para possibilitar que se saia lá na frente. Esse
princípio permite que atribuamos um valor mais simples em uma expressão mais
complexa. O exemplo vem da sexta série e da fórmula de Baskhara, utilizada para
resolver equações do segundo grau. Puxem pela memória e lembrem que essa
fórmula é a seguinte:
x = -b ± √(b² – 4ac)/ 2a
Esses parênteses, como manda a boa técnica matemática, devem
ser calculados antes dos demais termos. Na escola, costumamos chamar essa
sequência de delta, a letra grega em forma de triângulo, e a equação
fica assim:
O termo delta e a expressão b² – 4ac são idênticas. Compartilham de todas as propriedades e, portanto, são indiscerníveis, tanto fazendo calculá-la à parte ou em uma expressão completa. Não há nenhuma diferença, a não ser que a segunda forma traz maior clareza no cálculo, identificando o discriminante da equação, ou seja, se a equação tem raízes reais e quantas elas são.
Mas como com qualquer lei, é possível praticar a
contravenção, e ela vem na forma de falácia. Ela ocorre quando fazemos a
substituição de objetos que tentamos fazer ser idênticos, mas não são.
A Lei de Leibniz fala que os objetos são indiscerníveis
quando eles compartilham exatamente as mesmas propriedades. Se um pelinho for
diferente, então a lei não se aplica. Somente quando estamos na situação
indiscernível que uma substituição faz pleno sentido.
Ocorre que podemos fazer essa substituição com ares de
legítima sem que ela seja de fato. O exemplo mais canônico vem do paradoxo
do homem mascarado, que consiste mais ou menos no seguinte interrogatório:
– Você conhece seu pai?
– Sim.
– Você conhece o homem mascarado?
– Não.
– O seu pai é o homem mascarado. Portanto, você não conhece
seu pai.
Percebam, meus amigos, que aqui o pai é substituído pelo
homem mascarado, o que é um fato e parece ser adequado que os tratemos como
sinônimos. A situação aqui é que a substituição é indevida, porque o
conhecimento que se tem sobre as duas afirmações é diferente, ou seja, não se
tem consciência de que o pai e o homem mascarado são a mesma pessoa. O fato de
que haja uma identidade não torna lícita sua substituição em qualquer contexto,
porque temos a situação de que se determina a identidade entre um objeto de
fato (o pai) com o conhecimento efetivo que se tem ou não dele (o homem
mascarado). Dessa maneira, o paradoxo é um exemplo da falácia formal conhecida,
por esse seu exemplo mais famoso, como falácia do homem mascarado, ou, em
termos mais técnico, na substituição ilícita de idênticos.
Então temos dois pontos. O primeiro é que o susto que temos
quando somos apresentados a um conhecimento é só inicial, e as coisas pegam
sentido na medida em que andamos. E o segundo é que mesmo o conhecimento pode
nos enganar, e é bom desconfiamos de nossos limites. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
O livro é curtinho e relativamente fácil de ler, embora
exija algum conhecimento prévio em epistemologia, mas não chega a ser um
monstro.
LEIBNIZ, Gottfried. Discurso de metafísica. São
Paulo: Ícone, 2007.
*Sempre lembrando que também o óbvio deve ser dito. É
costume entre os especificadores de requisitos descrever coisas como “a data da
nascimento deve ser anterior ou, no mínimo, igual à data de falecimento”,
porque um sistema computacional faz aquilo que é mandado ele fazer. Se isso não
está especificado, o desenvolvedor pode simplesmente esquecer de construir uma
validação para esses fenômenos que parecem óbvios. Quando um simples erro de
digitação acontece, lá vai o sistema travar e sua operadora de cartão ficar
fora do ar, inviabilizando sua comprinha num market place da vida.
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