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segunda-feira, 26 de maio de 2025

Sem sustos com o princípio da identidade, ou Pequeno guia das grandes falácias – 75º tomo: o homem mascarado (substituição ilícita de idênticos)

(Não é só na Filosofia que somos impactados por raciocínios esquisitos, mas tem alguns deles que realmente nos colocam na encruzilhada)

“A pior forma de desigualdade é tentar igualar coisas desiguais”

Aristóteles

Olá!

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Neste ano, faz vinte anos que eu comecei a estudar Filosofia formalmente. Eu vinha me digladiando com a contradição gosto vs. utilidade por muito tempo, mais precisamente desde que cheguei àquele famoso dilema da juventude em que tentamos optar por uma carreira. É um momento em que somos colocados diante do futuro com uma seriedade muito pesada, e é fácil à beça de se enganar. Por um lado, é momento de ser idealista, para que não nos tornemos autômatos pragmáticos, que não usarão seus conhecimentos para melhorar o patrimônio cultural da humanidade, mas só para fazer dinheiro. Por outro, é preciso mentalizar que há um mundo prático com poucas perspectivas de mudanças nas nossas próprias gerações, e, com isso, é preciso ter consciência da realidade. Filosofia fica num canto bem guardado no porão nesse quesito, já que quase ninguém ganha a vida com ela, a não ser como professor, o que não empolga no Brasil de hoje. Para chegar a ser um conferencista, como os famosos, há que se ralar muito antes. Falo de filósofos e mestres de verdade.

Quando fui à faculdade de Filosofia, já estava com a vida resolvida dentro do possível, então não tinha essa encruzilhada diante de mim, retirando completamente o componente angústia. Queria essencialmente melhorar meu desempenho como professor e, óbvio, aprender mais sobre a área, uma de minhas predileções. E lá fui eu para ser vovô da sala.

Quem acha que fazer Filosofia passa por vestir uma túnica grega e consumir algumas ervas apropriadas para abrir a mente está redondamente enganado. São quilos e mais quilos de teoria muito coligada à própria história da humanidade, passando de maneira muito próxima às transformações de usos e costumes, muitas vezes acompanhando o pensamento geral da galera, algumas o influenciando. Na esteira disso, vamos assistindo sistematizações cada vez mais intrincadas, até chegar à conclusão que não basta revisitar fatos e pensamentos, mas procurar regras que procurem delimitar a maneira com a qual a cabeça opera, além de produzir padronizações que permitam um mínimo de intersecções entre os diferentes modos de raciocínio. Viram como a barra é bem mais pesada?

A questão, então, recairá para o ramo da Lógica, inevitavelmente. Não deveria me causar susto, vez que sou oriundo academicamente da área de Informática, e é comum destrincharmos alguns quilômetros de tabelas-verdade, tudo isso explorando um sem-fim de articulações entre operadores lógicos. Quem sabe, sabe; são aquelas frases do tipo “isso E aquilo”, “isso OU aquilo”, “NÃO isso, NÃO aquilo” e assim por diante, com cada uma dessas proposições ganhando um valor de verdade – verdadeiro ou falso.

Entretanto, quando estudamos lógica no âmbito da Informática, as coisas são muito mais objetivas. Ninguém está preocupado porque a resolução de uma proposição é verdadeira ou falsa, mas simplesmente com a resposta final, o que não é nem cogitado pela Filosofia. Ali, cada passinho tem que ser decifrado como o enigma da esfinge, e isso faz com que desçamos às leis mais fundamentais do pensamento, o que nem sempre é intuitivo ou palatável à primeira vista. 

A mais remota tentativa de sistematização do conhecimento através da Lógica vem de Aristóteles, com seus famosos princípios racionais. E o primeiro dos seus axiomas é desafiador. Em uma das aulas, logo no começo, estava lá no quadro negro a expressão, traçada pelas linhas ameaçadoras do mestre da disciplina:

A=A

Quando você afirma para um estudante que esse é um dos fundamentos mais básicos de toda a lógica, infunde nele a impressão de que entrou numa roubada. A coisa parece tão óbvia que dá a entender que há algo por trás, como uma pegadinha, ou um mistério, que nunca chegaremos a compreender, e é quase isso mesmo. Se nos deixarmos levar para aparência óbvia, acharemos essa premissa fundamental uma sonora bobagem, o que ela não é.


O princípio em si é muito simples: qualquer objeto é igual a si mesmo. Para que isso faça algum sentido para além do óbvio*, é preciso saber que a identidade é a garantia de que esse objeto é único dentre tantos outros. “Identidade”, aliás, tem a origem etimológica exatamente nessa característica, já que o latim identitas significa a qualidade de ser o mesmo, como usamos no termo “idem”. Tem um pouco a ver com a eterna luta entre essência e existência, porque, enquanto a essência diz respeito a tudo o que há de comum entre os objetos de uma mesma espécie, e os faz ser o que são, a existência individualiza e concretiza uma determinada essência. Imagine, por exemplo, que eu olhe da sacada uma menina na rua andando com seu cachorro. Pelo fato de eu simplesmente dizer esse retrato, já é possível que você, persistente leitor, desenhe um quadro semelhante em sua mente, por ter conhecimento do que é essencial dos componentes que mencionei. Mas, se eu não der detalhes muito profundos, ou não apresentar uma fotografia da situação, você vai criar mentalmente uma imagem daquilo que você tem como experiência, e não da cena que eu citei com exatidão. Você pensará em uma menina, um cachorro, uma rua e, talvez, um ponto de visada vindo do alto, mas não A menina, O cachorro e A rua que eu vi. Eles são únicos, possuem características únicas e formam um quadro único. Se são assim, é porque são únicos e possuidores de uma identidade, que os diferencia de todos os demais que estão em suas respectivas categorias.

A identidade, portanto, não é só um documento ao qual damos o nome genérico de RG. Como estamos no universo dos humanos, existe toda uma série de simbolismos que representam as coisas e que as carregam de significados. A menina do exemplo tem um nome, que, isoladamente, não significa nada, mas, uma vez atribuído a ela, passa a representá-la como se fosse ela própria. Ela não está fisicamente na sua certidão de nascimento, mas simbolicamente, seja no plano da linguagem – ao lhe atribuir um substantivo próprio que tem alguma etimologia, seja no plano de representação. Quando o cartorário baixou seu assento no livro de registros, ela passou a contar para as estatísticas governamentais, para o direito constituído, para a sociedade. Como é impossível que ela esteja presente concretamente a cada vez que um censo for contar a população do país, seu nome passa a representar ela mesma, a fazer parte da sua identidade.

O mesmo acontece quando queremos descrever os objetos e trazer características que lhe são próprias. Vamos deixar a moçoila sossegada e analisar seu cão. Além do nome, ele tem atributos que, somados, o tornam único. Ele tem uma raça específica, o que já ajuda, mas ainda é muito genérico. Ele tem um tipo de pelo, tem um peso, tem uma altura, talvez tenha alguma doencinha, tem preferências de ração, bebe uma quantidade X de água, passeia porque curte ou porque precisa fazer necessidades. Tem um nome também e, quem sabe, um RGA, e tem uma cuidadora, que também ela tem em série de atributos semelhantes. A soma de todas essas características vai tornando sua descrição mais e mais específica, individualizante, identificante.

Ainda assim, estamos nos atendo a aspectos que são objetivos e concretos, mas o ser humano tem seu grande diferenciador entre as demais espécies por operar no plano simbólico, e isso eleva a questão da identidade ao infinito. A rua por onde a cena transcorre tem um nome e suas características, mas pode levar consigo uma pilha de significados que fogem ao concreto. A rua pode se aquela em que o avô tomou um tombo, a rua em que começamos a namorar, a rua em que eu nasci, a rua em que a menina leva o cachorro para passear. Em todos esses casos, a rua muda de seu sentido estrito, de ser uma passagem entre as casas, e vai ganhando um elemento de exclusividade para cada um que nela trafega. Assim, os próprios afetos dão sentido e significado para a rua, e lá nos recônditos de nossas mentes e intimidades sua identidade fica diferente, porém ainda voltada para aquele mesmíssimo cenário: a rua A. Se A=A, então...

A=Rua Amparo

A=rua do CEP 03151-060

A=rua que liga a Anhaia Melo à Tomaz Izzo

A=rua em que o vovô caiu um tombo

A=rua onde a menina leva o cachorro para passear

A=rua da minha infância

A=rua que me traz lembranças boas.

Da mais específica à mais pessoal, todas as descrições dizem respeito à rua A, à concreção em existência da essência de uma rua. 

Há ainda mais um aspecto a ser elaborado. O fundamento mais primitivo do princípio da identidade é dado por Parmênides, de quem já falei em vários pontos deste espaço, mas especialmente aqui. Ele traz, em sua fórmula metafísica, uma redução igualmente confusa para um olhar desapercebido: tudo o que é, é, e não pode ser que não seja; tudo o que não é, não é, e não pode ser que seja. Embora seja possível enxergar aqui também a fórmula da identidade, essa mera frase nos carrega mais informações sobre a realidade própria. Ainda que possamos discorrer sobre totalidades semelhantes à que nos ensinaram Anaximandro, Espinoza e outros filósofos, o fato é que o universo se apresenta a nós por uma dialética de presença e ausência. Em um sentido bastante estrito, tudo aquilo que não sou eu, é não-eu. Tudo aquilo que não é ser, é não-ser. Isso parece se reproduzir até mesmo no plano atômico, onde aquilo que não é matéria, é vácuo,  é nada.

Notam como o A=A ganhou muito mais significado? Não à toa, esse princípio foi pegando mais e mais sofisticação à medida que o tempo passou. Leibniz, filósofo alemão do século XVII, é um dos grandes pioneiros da ideia de trazer as regras do pensamento a formulações lógico-matemáticas. Como se sabe, a Matemática procura reduzir a realidade a fórmulas, e isso é muito útil em inúmeras aplicações científicas.  Entretanto, é preciso ter um contexto exato sobre a aplicabilidade que se quer atingir. Em um exemplo bem simples, ao término de uma corrida de Fórmula 1, diz-se que o vencedor fez uma média de 200 km/h. Isso não significa que ele tenha desempenhado essa velocidade de forma constante, mas que, em termos práticos, sua média foi menor do que a de seus competidores, e isso o tornou vencedor. Não é preciso medir a velocidade metro a metro para se chegar à conclusão de que ele foi mais rápido que os demais. 

Leibniz criou dois corolários para o princípio da identidade que são chamados de princípio da indiscernibilidade dos idênticos e identidade dos indiscerníveis, mais conhecidos como Lei de Leibniz, que são praticamente iguais, mas que podem contar alguma contestação em sua segunda declaração por conta da mecânica quântica, mas não vamos descer a esse ponto, tratando-os como sinônimos. Em resumo, estes princípios declaram que, se dois objetos possuem exatamente as mesmas propriedades, então eles são o mesmo objeto. Ou seja, não existe na natureza nenhum objeto que não possua alguma distinção do outro, por menor que seja. Assim, se batem todas as suas características, ele não é outro objeto; ele é exatamente ele mesmo.

Novamente aqui, o horizonte do óbvio parece tornar o princípio uma coisa inútil ou mistagógica, mas ele é simples de explicar, quando se tem em mente o princípio da identidade. Como sabemos, Leibniz foi, além de filósofo, um matemático de renome até mesmo superior. Ele foi um mestre do cálculo, e as suas aplicações em derivadas são utilizadas até hoje. Não precisamos entrar nos detalhes de seu funcionamento, mas o cálculo usa profusamente as substituições para possibilitar que se saia lá na frente. Esse princípio permite que atribuamos um valor mais simples em uma expressão mais complexa. O exemplo vem da sexta série e da fórmula de Baskhara, utilizada para resolver equações do segundo grau. Puxem pela memória e lembrem que essa fórmula é a seguinte:

x = -b ± √(b² – 4ac)/ 2a

Esses parênteses, como manda a boa técnica matemática, devem ser calculados antes dos demais termos. Na escola, costumamos chamar essa sequência de delta, a letra grega em forma de triângulo, e a equação fica assim:

O termo delta e a expressão b² – 4ac são idênticas. Compartilham de todas as propriedades e, portanto, são indiscerníveis, tanto fazendo calculá-la à parte ou em uma expressão completa. Não há nenhuma diferença, a não ser que a segunda forma traz maior clareza no cálculo, identificando o discriminante da equação, ou seja, se a equação tem raízes reais e quantas elas são.

Mas como com qualquer lei, é possível praticar a contravenção, e ela vem na forma de falácia. Ela ocorre quando fazemos a substituição de objetos que tentamos fazer ser idênticos, mas não são.

A Lei de Leibniz fala que os objetos são indiscerníveis quando eles compartilham exatamente as mesmas propriedades. Se um pelinho for diferente, então a lei não se aplica. Somente quando estamos na situação indiscernível que uma substituição faz pleno sentido.

Ocorre que podemos fazer essa substituição com ares de legítima sem que ela seja de fato. O exemplo mais canônico vem do paradoxo do homem mascarado, que consiste mais ou menos no seguinte interrogatório:

– Você conhece seu pai?

– Sim.

– Você conhece o homem mascarado?

– Não.

– O seu pai é o homem mascarado. Portanto, você não conhece seu pai.

Percebam, meus amigos, que aqui o pai é substituído pelo homem mascarado, o que é um fato e parece ser adequado que os tratemos como sinônimos. A situação aqui é que a substituição é indevida, porque o conhecimento que se tem sobre as duas afirmações é diferente, ou seja, não se tem consciência de que o pai e o homem mascarado são a mesma pessoa. O fato de que haja uma identidade não torna lícita sua substituição em qualquer contexto, porque temos a situação de que se determina a identidade entre um objeto de fato (o pai) com o conhecimento efetivo que se tem ou não dele (o homem mascarado). Dessa maneira, o paradoxo é um exemplo da falácia formal conhecida, por esse seu exemplo mais famoso, como falácia do homem mascarado, ou, em termos mais técnico, na substituição ilícita de idênticos.

Então temos dois pontos. O primeiro é que o susto que temos quando somos apresentados a um conhecimento é só inicial, e as coisas pegam sentido na medida em que andamos. E o segundo é que mesmo o conhecimento pode nos enganar, e é bom desconfiamos de nossos limites. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O livro é curtinho e relativamente fácil de ler, embora exija algum conhecimento prévio em epistemologia, mas não chega a ser um monstro.

LEIBNIZ, Gottfried. Discurso de metafísica. São Paulo: Ícone, 2007.

*Sempre lembrando que também o óbvio deve ser dito. É costume entre os especificadores de requisitos descrever coisas como “a data da nascimento deve ser anterior ou, no mínimo, igual à data de falecimento”, porque um sistema computacional faz aquilo que é mandado ele fazer. Se isso não está especificado, o desenvolvedor pode simplesmente esquecer de construir uma validação para esses fenômenos que parecem óbvios. Quando um simples erro de digitação acontece, lá vai o sistema travar e sua operadora de cartão ficar fora do ar, inviabilizando sua comprinha num market place da vida.

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