(Passar apertos faz com que cresçamos, é o que se diz por aí. E com a ciência, é a mesma coisa?)
Olá!
Os paulistanos já estão acostumados há tempos com as
novidades orientais. Primeiro, os pastéis, seguidos pelos sushis e depois por
toda sorte de quinquilharia, como aquelas em que encontramos em lojas como a
renomada Daiso. Não se trata de propaganda (até porque não ganho um centavo com
isso), mas do reconhecimento de um comércio que se tornou um sinônimo do que,
há poucos anos, chamávamos de 1,99. Como nem bala se compra mais a esse preço,
mudou o apelido. Mas há coisas realmente interessantes por lá, e vou incluir
dois métodos de extração que encontrei, um de cada vez. O de agora será o
Konos, que se parece muito com um porta-filtro
Melitta, mas que tem uma particularidade que lhe torna único.
O grande problema do porta-filtro trapezoidal é que ele tem
um fundo plano, o que faz com que parte da água tenda a se acumular em seus
cantos. Isso pode dificultar o percurso do líquido e realizar a tão temida
superextração pelos gostadores de café, resultado em um sabor menos agradável.
O Konos soluciona a questão de maneira simples: multiplicando o número de furos.
Quando se dá o despejo, a água e os solutos extraídos do pó
passam pelos difíceis meandros do meio sólido que será a futura borra, e isso
tem um tempo certo para acontecer, sob pena de não se conseguir o melhor sabor,
embora não haja o consenso estabelecido de que isso seja ruim (sempre haverá
quem prefira um café mais amargo). Para quem gosta de café sem açúcar, é
mandatório que não seja necessário nenhum aditivo além da própria água.
Nome do utensílio: porta-filtro trapezoidal Konos
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média
Dinâmica: introduz-se um filtro de papel de tamanho apropriado no porta-filtro, com dobra cruzada nas costuras, para depois realizar-se um escaldamento no mesmo. Deposita-se café moído em ponto médio no filtro. Despeja-se água suficiente apenas para umedecer todo o pó (blooming). Após cerca de trinta segundos, realizam-se ataques de modo a não ultrapassar o limite do filtro.
Resíduos: nenhum
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio/baixo
Isso mostra como nós, seres humanos, queremos ser gênios, e às vezes somos. Em momentos, com constructos complexos como foguetes ou computadores; em outros com a adição de alguns furos em um porta-filtros de café. Mas as coisas, por vezes, precisam passar espremidas pelos veios onde forem possíveis.
Isso me faz puxar pela memória uma história de juventude
inusitada. Eu estudava no Colégio Anchieta, que tinha um certo renome entre
aqueles da ZL paulistana, e o pessoal do Diretório Acadêmico promovia
anualmente um festival de música. Com minha banda no auge do período criativo,
inscrevi três canções próprias, e, chegado o dia, lá fomos atrás da logística
para conseguir fazer as coisas darem certo. Eu saí direto do meu emprego,
porque seria muito mais rápido de chegar, e levei meu baixo comigo,
chacoalhando no trem da Santos-Jundiaí. O guitarrista Moacir, que vinha de
longe, deu um pelé no trabalho, detentor de horas que era, enquanto o outro
guitarrista, o Maurão, foi de carro mesmo. O Edson, baterista, estava na
confortável posição de não precisar carregar seu instrumento, embora passasse
pela desconfortável missão de tocar em bateria alheia, mas, no quesito
transporte, a vida dele estava mais fácil. Era pegar o busão e desembarcar na
Vila Prudente, meia hora de viagem.
Eu achava que seria evento para poucos gatos pingados, com a
turma que iria tocar compondo a maior parte do público. Ao contrário, o pátio
da escola estava fervilhando de gente, com camisetas e faixas, parecendo uma
miniatura dos FICO’s da vida. No setlist, éramos a penúltima banda a tocar, o
que significava que tínhamos um bom tempo para repassar afinação, arrumar
cabelo (o que não fazíamos), essas coisas, e, naturalmente, passar angústia.
Isso permitia também dar umas voltas, tomar uma cerveja, levar a namorada no
ponto de ônibus. Foi exatamente isso o que nosso emérito batera resolveu fazer,
mas quase em cima da hora da nossa entrada, lá pelas dez.
Fomos chamados e cadê ele? Subimos enrolando, cumprimentando
o público, falando umas merdas políticas que eu nem lembro mais, já que as
eleições eram no fim de semana que se seguia, e já começávamos a nos preparar a
tocar assim mesmo quando o gajo aparece ao longe, como se tentasse atravessar o
metrô às seis, seja da tarde ou da manhã. Ele se esforçava vindo de trás, e
ninguém sabia que se tratava do baterista que deveria estar lá em cima do
palco, atrasando uma apresentação e dando princípios de enfarte nos seus três
companheiros.
Bom, ele chegou e ganhamos o festival, esse foi o final feliz
de filme da Sessão da Tarde. Modéstia à parte, a música vencedora era realmente
boa, um hardão clássico, pesado e envolvente, e estávamos em plena forma, e,
portanto, foi merecido. Mas o mote para este texto foi a aflição do baterista,
tentando passar pela apertada plateia que não o via, que não sabia porque
aquele maluco estava com tanta pressa e, assim, não lhe facilitava a vida, como
se fosse a água passando pelo filtro trapezoidal.
Da mesma forma que meu namorador e distraído amigo, a água
que escoa para o fundo de um porta-filtros pode passar com maior ou menor
dificuldade. Quando passa rápido demais, extrai pouco do pó, e o que temos é um
café chocho. Quando passa mui lentamente, ocorre o contrário, e temos chance de
ter um desagradável amargor. Os entraves no caminho rumo ao decanter
dizem muito do que o produto final será, e isso faz toda a diferença.
Se pararmos para pensar, tudo é assim na vida, não só no
prosaico cafezinho, mas até mesmo na mais intrincada das teorias científicas. É
preciso se desvencilhar das dificuldades que se apresentam no caminho, passar
pelos buracos espremidos, procurar pela passagem mais justa, que se justifique
mais, e desconfiar de que nem sempre se está certo.
Só que os apertos do caminho são simbolizados pelas nossas
discussões. Mesmo em uma mesa de bar, os assuntos rendem porque o consenso
nunca é fácil. A Ciência não está livre disso, e todas as vezes em que temos
discussões sobre seu real alcance, ou sobre o que é ou não científico, estamos
passando pelos meandros apertados da conformidade. E os primeiros ombros que
precisam ser vencidos na multidão são os próprios critérios da metodologia.
É óbvio que mesmo os métodos científicos devem passar por
evoluções, em uma espécie de metateoria. Temos bem consolidado hoje que a falseabilidade
de Karl Popper é o principal ponto metodológico para fazer a delimitação da
Ciência, mas isso não significa que o mesmo seja imune a críticas e, mais
ainda, que não deva sofrer correções. Houve contestadores, como Thomas
Kuhn e Paul Feyerabend, houve complementadores, como Imre
Lakatos, houve quem procurasse extensões do contexto científico, como Sven
Hansson e há quem busque um ciência mais pragmática, como é o caso de Larry
Laudan, a quem direcionaremos nosso foco hoje.
Antes, porém, é preciso dar uma passadinha rápida sobre o
conceito de pragmatismo. Esta é uma escola filosófica que surgiu nos fins do
século XIX, mas que se espraiou por toda a filosofia ianque subsequente, de
modo que quase a totalidade dos pensadores estadunidenses passam pelo seu
crivo: John Dewey, John
Rawls, Richard Rorty e tantos outros pelo menos tangenciaram com a escola,
e na Filosofia da Ciência não seria diferente. Seu princípio geral está ligado
à utilidade. Pouco importa para o pragmático o que está nas camadas mais
subjacentes da realidade se nada trará ao resultado palpável. Ou seja, o
pragmático não é muito dado a aspectos metafísicos, mas em como a realidade se
dá praticamente. É mais ou menos assim: pouco importam os processos químicos
que se dão para que a banana seja doce, mas sim o fato de ela ser doce,
entenderam? Nesse sentido, toda a metafísica é secundária para o pragmático,
valendo muito mais aquilo que se tem às mãos.
O melhor exemplo que ouvi perdeu sua autoria na minha
memória, mas vamos lá assim mesmo. Hoje é consenso que o diamante é uma das
mais duras de todas as substâncias. Digamos, no entanto, que se descubra que
ele só atinge esse grau de rigidez quando ele é tocado. Enquanto está lá,
inerte, é molinho como um travesseiro de plumas. Basta que se toque um dedo ou
um instrumento, o estranho efeito se dá e ele se torna referência dos graus de
dureza. Pode parecer um fenômeno tremendamente interessante para qualquer
pessoa, mas o pragmático raciocina da seguinte forma: se é impossível aferir
esta característica, ela simplesmente não importa. Nada vale, é inútil e eu não
me preocuparei com ela.
É com esse espírito que surge a Filosofia da Ciência de
Laudan. Enquanto outros pensadores estavam preocupados com um progresso da
ciência baseado em sua capacidade de se comparar entre si, ou seja, de produzir
mecanismos que se permitam fazer métricas, Laudan partia para a noção de que
uma teoria precisa, antes de qualquer coisa, solucionar problemas, e quanto
mais eles forem, melhor será. De acordo com esse modelo de pensamento, os
popperianos trabalham em um campo que beira o idealismo, porque, à semelhança
do exemplo do diamante, nunca atinge a verdade. Ainda que a ideia de
verossimilhança seja uma grande conquista para o progresso da ciência, é fato
de que, uma vez não existindo um efetivo critério para a verdade, é possível
que todas as teorias existentes sobre uma determinada matéria estejam erradas.
Essa é a indução pessimista, a conclusão de que, se todas as teorias consagradas
no passado foram provadas falsas, não há nenhum motivo para se crer que o
corpus atual de teorias seja verdadeiro.
A questão de Laudan é que as metodologias têm uma
preocupação muito grande com verdades aproximadas, enquanto a ênfase deveria
ser na resolução de problemas empíricos. Quer algo mais pragmático que isso? Se
você pensar nas teses de Popper, verá que cada ponto falseado de uma teoria é
uma anomalia, que, por fim, pode invalidá-la inteira. Laudan não gosta dessa
maneira de encarar o progresso científico, porque faz com que teorias muito
específicas invalidem grandes feixes de teorias mais gerais. Não é, portanto, uma
anomalia que fará com que se descarte toda uma tradição de pesquisas, porque
aquilo que está vacante em uma, poderá ser explicado em outra, e esse é o
principal ponto de dissonância com as ideias de Lakatos: embora os conceitos de
tradição de pesquisas laudanianos e de programas de pesquisas lakatosianos
sejam próximos, há uma diferença vital entre ambos: enquanto Lakatos foca na
predição, Laudan mira na explicação. Isso significa que Lakatos é mais rigoroso
com o aspecto formal, de se ter um caminho estabelecido a ser seguido passo a
passo, enquanto Laudan olha lá para o fim da estrada: as respostas que a teoria
traz.
A rigidez proposta como os paradigmas de Kuhn ou os
programas de pesquisa de Lakatos não permitem evoluções nas teorias
científicas, e esse é o principal ponto de Laudan. Os paradigmas kuhnianos
preveem uma inflexibilidade das teorias que não são de fato encontradas na
história da ciência. Como exemplo, ainda que não sendo a teoria principal
acerca da dinâmica celestial, já havia cientistas que propugnavam o sol no
centro de seu sistema muito antes de Copérnico
derrubar as ideias de Ptolomeu. Com relação a Lakatos, que tem bastante
semelhança com a questão das tradições laudanianas, a crítica se relaciona ao
fato de que o acúmulo de anomalias em um programa de pesquisas não deveria ser
o suficiente para torná-lo inválido.
Sendo assim, como poderemos estabelecer qual linha de
pesquisas deveríamos seguir? Qual critério utilizar para investir nossos
esforços? Laudan entende que, pragmaticamente, é aquele de se perseguir as que
trazem mais respostas sobre um determinado problema. Isso é dado não por
teorias únicas, mas por tradições de pesquisas que, ainda que com diversas
discrepâncias entre si, possuam pressupostos comuns que lhe são essenciais. Não
se tratam de pontos de tangência, mas do eixo em torno do qual gira uma teoria.
Citando alguns exemplos, as teorias evolutivas partem do princípio de que
existe uma ascendência comum entre as diferentes espécies. Isso pode passar
pelo distante persa Al Tusi, pela lei
do uso de Lamarck, pela seleção
natural darwiniana ou pela teoria
sintética da evolução. Se retirado o núcleo da descendência com
modificações, nenhuma dessas teorias subsiste. Isso é a substância que amarra
um feixe de tradições. E percebam: os mecanismos evolutivos propostos por
Darwin e Wallace tinham anomalias que somente foram resolvidas pela teoria
sintética, através da compreensão do funcionamento genético. Não se compreendia
como era transmitida entre as gerações os caracteres modificados, e somente os
genes, que foram conhecidos através de outra tradição de pesquisas, vieram
trazer clareza sobre o assunto. Isso demonstra porque anomalias não podem
invalidar teorias de plano. O próprio Laudan dá outro exemplo: a tradição da
teoria atômica sempre parte da premissa de que a matéria é descontínua. Desde
os velhos Leucipo
e Demócrito, passando pela partícula indivisível de Dalton, o pudim de
passas de Thomson, o modelo planetário de Rutherford e os saltos quânticos de
Bohr, todos dependem da ideia de composição entre partículas e vazios.
Retirando-se este eixo, todas essas teorias perdem seu sentido. Esse conceito
de tradição faz com que diversas teorias sejam enfeixadas em um mesmo grande
componente, de modo que elas se fortaleçam mutuamente, pelo motivo de que uma
tradição traz mais respostas em seu conjunto do que cada uma das teorias
específicas isoladas.
Agora vou trazer um exemplo mais concreto de como funciona a
hipótese das tradições de pesquisa em Laudan. É sabido que a psicanálise, pelo
ponto de vista da metodologia popperiana, tem sérios
problemas, especialmente no quesito falseabilidade. Isso faz com que seus
adeptos a tratem como uma espécie de ciência à parte, enquanto seus detratores
a tratam como uma pseudociência. Se levarmos em consideração as linhas de
raciocínio de Laudan, não teremos problemas de levar em consideração as teorias
da psicanálise, primeiro porque constituem uma tradição de pesquisa, depois
porque trazem muitas respostas.
Vejamos. Todo o corpus da psicanálise parte da premissa de
que a razão não é o todo da psiquê, e que boa parte das nossas ações são
inconscientes. Sendo assim, a teoria
psicanalítica de Freud, o inconsciente
coletivo e os arquétipos
de Jung, o inconsciente
social de Fromm, o complexo de inferioridade de Adler, o self
de Horney, a posição
depressiva de Melanie Klein e outras teorias correlatas formam toda uma
tradição de pesquisa que se complementam em torno da resposta ao questionamento
"como funciona a mente". E, independentemente de serem ou não refutáveis,
o fato é que são construídas para trazerem essas respostas. Nesse quesito,
fazem-no muito bem. Enquanto outras escolas da psicologia respondem apenas
parcialmente os fenômenos psíquicos, a psicanálise tem praticamente respostas
para tudo. Isso é correto? No parecer de Laudan, não há problemas. Segundo ele,
as anomalias das teorias não podem ser o fator único que vai invalidar toda uma
tradição. E aqui seus métodos casam perfeitamente com os programas de Lakatos -
haverá um ponto em que as conclusões de cada tradição trará mais perguntas do
que respostas, e é aí que ela deixará de ser levada em consideração. Mas
enquanto trouxer boas respostas, terá o motor que fará com que a ciência
evolua.
Percebem como os caminhos de uma hipótese trazem mais apertos
do que aqueles que meu amigo teve para chegar ao palco, ou como faz a água para
virar café? Ela precisa ser falseável para Popper, paradigma para Kuhn,
programa para Lakatos e tradição para Laudan, além de passar por alguns outros
obstáculos que não estão citados aqui. É por essas e por outras que o
conhecimento científico deve ser levado mais a sério - porque tem os músculos
de quem precisou pular barreiras. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
LAUDAN, Larry. O progresso e seus problemas. Rumo a uma teoria
do crescimento científico. São Paulo: Unesp, 2011.
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