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terça-feira, 12 de julho de 2022

Sobre livros românticos sem romance

(O Romantismo é a tradução do amor para a literatura, certo? Se você respondeu que sim, melhor pegar os livros do ensino médio e relê-los)

... e nos olhos dela brilhava um clarão assassino quando alguém se atrevia a lhe resistir ou contradizer.

Olá!

No último texto que publiquei, fiz uma referência a um passado meio remoto, para levar um exemplo de como esperamos encontrar as coisas da mesma forma que deixamos, mesmo que seja após um tempo bastante longo. Não vem ao caso os motivos aqui, porque já destrinchei a coisa toda lá, então meu convite é para que o leiam, se o assunto lhes interessou. Entretanto, e por isso trago o tema novamente à baila, o resgate não se deu de forma automática, e eu fiquei algum tempo caçando qual teria sido um fato bem distante cuja impressão seja bastante distinta da que tenho hoje em dia.

Eu pensei em lugares, em comidas, em pessoas, em histórias e em músicas. Nesta última categoria, relembrei de um monte, mas havia o problema de que volta e meia eu retorno à audição daquelas que eu gosto. Com isso, a experiência fica invalidada. Mas eu consegui recordar de uma específica, que me incomodou muito na época. Trata-se de Wuthering Heights, da inglesa Kate Bush.

É uma música de andamento lento, muito triste, falando em tom choroso de uns tais de Cathy e Heathcliff, cantada com voz acutíssima pela mencionada cantora em seu trabalho de estreia, no longínquo ano de 1978, em um modelo de voz que viria posteriormente a ser consagrado no Brasil pela Tetê Espíndola. Não é de se admirar que um moleque de oito anos, viciado pelos primos mais velhos na energia do hard rock e na sofisticação do progressivo ouvisse uma música desse estilo como quem ouve os rangidos de um motor sem óleo, mas o grande problema estava na quantidade industrial de reproduções da precitada, que fez sucesso até dizer chega. Era só ouvir o arpejo daquele pianinho e o “aroluáili” inicial para os neurônios ativados por esse estímulo se retorcerem, gerando a má impressão persistente.

Quando realizei a experiência mental citada no começo, fui buscar a música em um spotifái da vida para medir minha reação. Eu imaginava que ia passar batido, de modo a não causar nenhum tipo de espécie, mas neurônios são como elefantes: nunca esquecem. Responderam como antigamente: não! de novo não! E cheguei à conclusão: é um belo contraexemplo, e não o modelo que eu queria me apegar. Por isso, fui correr atrás de outra coisa, chegando à cidade paranaense que vocês leram lá.

Tempos depois da explosão da canção (um bom tempo depois), fiquei sabendo que a mesma era baseada no único livro da escritora inglesa Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes, e que era, fundamentalmente, uma coleção de citações das falas da personagem Cathy, que clama fantasmagoricamente por Heathcliff, seu estranho amado. O livro fazia parte de uma coleção vendida em bancas de jornal que meu pai comprou para enfeitar a estante. Eu já era um leitor frequente e consumi praticamente todos, incluindo a obra em questão. Bem mais recentemente, a Folha lançou uma coleção chamada "Mulheres na Literatura", da qual o tomo é o de número 21. Já retomo minhas impressões sobre ele.

Eu fiz a leitura d’O Morro dos Ventos Uivantes há muito tempo já, conforme narrado acima, e, impulsionado pelo resgate da música, fui buscar umas resenhas para reavivar as memórias. Fiquei admirado com a quantidade de advertências que diziam não se tratar de um livro romântico, como se o movimento de mesmo nome significasse um período monotemático da literatura, dominado unicamente pelo amor. Não, meninos; não, meninas.

Primeiramente, é preciso confirmar que o livro em questão é, de fato, pertencente à escola literária conhecida como Romantismo, mais especificamente (embora haja inúmeras características que lhe sejam exclusivas) da corrente do Ultrarromantismo. E aqui, não temos como evitar dar uma escovada na História, para que possamos compreender bem a confusão que se faz, especialmente porque não só a literatura, mas a própria filosofia é banhada pelo contexto do momento em que ocorre.

O Romantismo é um fenômeno que se iniciou nos fins do século XVIII, que foi marcado como o pico do Iluminismo, representado pela Revolução Francesa. Seu principal motor era a ideia de que a racionalidade era o que de melhor existia nas relações humanas e que, a partir dela, haveria de se extinguir as tiranias e os grilhões repressivos. No entanto, a Revolução não resultou senão em novos despotismos, como foi seu subsequente período do Terror, e o resultado foi um clima de desilusão nos círculos intelectuais. Como consequência dialética, a ênfase no racional e sua capacidade de guiar os destinos caiu em descrédito, e uma nova tendência de pensamento surge, onde os sentimentos são colocados em evidência. A questão é que, uma vez retirada a razão de seu trono, demonstra-se que os sentimentos são ingovernáveis, como o antigo revolucionário que agora se torna tirano. A maneira como se apreende o mundo e como se dão as relações humanas são agora povoados pela ambivalência, porque há o confronto das subjetividades: quando eu coloco meus sentimentos em oposição ao de meu interlocutor, não há régua racional que possa balizá-los.

O movimento romântico, tanto na filosofia quanto na literatura, afastando-se da razão imperativa, vai se embeber da intuição. Como mais tarde sintetizaria Schopenhauer (que não pode ser enquadrado como romântico), o desejo se sobrepõe à razão de maneira permanente, e o principal desejo humano, movido até mesmo pelo instinto de preservação, é a infinitude. Entretanto, como se sabe, ela é inatingível, embora perpetuamente desejada, e o resultado é a igualmente perpétua angústia de se ver insatisfeito. Ainda assim, é possível ao ser humano fazer aproximações: a natureza é representação da vida que surge e ressurge, sendo uma das sínteses possíveis do infinito que o sentimento humano busca em seu íntimo. Nessa perspectiva, a morte deixa de ser o fim, mas a busca por mais e mais infinito, já desalojada das limitações do envoltório terreno. Assim, mesmo nas fases em que o movimento está mais aferrado ao valor dos sentimentos, a morte representa um valor que transcende sua finitude: a liberdade, outro dos maiores valores dos românticos. A grande questão é que a realidade existe, e o romântico percebe que, ao sair de seu transe psicológico, há um enorme descompasso entre o que sente e o que vê, de modo a buscar um modo de pensamento escapadiço, dando mais importância ao ideal do que ao real. Toda filosofia e literatura idealista do período se deve a isso - daí surge a nação idealizada, o povo originário e puro, os heróis virtuosos tão típicos de então.

O livro de Emily Brontë contém todas essas características? Sim e não. Ele está no contexto do Romantismo, mas já se encontra em um outro momento da corrente, em que a própria exacerbação dos sentimentos é exacerbada. O idealismo aproxima-se de seu esgotamento e tende cada vez mais para o pessimismo, que se reflete no derramamento cada vez maior dos personagens. A morte não é mais uma solução por sua aproximação com a eternidade, mas para se fugir ao sofrimento, e começa a ser vista como extinção. Eram os tempos do mal du siécle, uma tradução do espírito depressivo e desesperançado por uma realidade sem solução. Seu nome em inglês, spleen, tem a ver com o humor produzido pelo baço, que a medicina antiga acreditava ser a produtora dos estados de melancolia (leia mais aqui). O romântico, neste ponto da história, é essencialmente um triste, um inconformado que já se desesperançou. Desse predomínio, passa a vigorar um desejo pelo mórbido e pelo sobrenatural. Os personagens passam a se autodestruir e apresentarem-se cada vez mais doentios, tanto física quanto psicologicamente, a ponto de considerar o inferno como alternativa menos dolorosa do que a própria existência. As obras desta escola já beiram o gênero do horror, trazendo muitas influências dos romances góticos, abordando o medo, as distorções dos sentidos e a loucura. Ler um livro do Ultrarromantismo passa a afetar psicologicamente também quem lê.

Percebem o problema em afirmar que O Morro dos Ventos Uivantes não é um livro romântico? Isso acontece porque, na imensa maioria dos casos, o sentimento exacerbado no tema central das obras é o amor, mas aqui nesta obra ele está com seu sinal trocado, o ódio. De fato, quando falamos que um casalzinho é muito romântico, não pensamos em suas brigas e desavenças, ou do quanto um pode fazer de mal ao outro, mas na delicadeza do trato entre ambos, na necessidade da presença um do outro, na superação das barreiras sociais ou qualquer outra circunstância em que um sentimento mais forte vai servir de amálgama para sua factibilidade. Essa é a concepção que o senso comum faz do termo Romantismo.

Acontece que, como expliquei logo atrás, o romântico no uso comum é muito diferente do romântico literário. Sim, é verdade que o amor é um sentimento e um daqueles sentidos com mais intensidade, a ponto de reverter seu sinal e poder ser traduzido em dor e em ódio, mas ainda assim estamos falando em sentimentos. O Romantismo trata de qualquer sentimento exasperado, seja qual for. Toda saudade é imensa, toda ternura é indescritível, todo valor custa a própria vida, todo medo extrapola os limites do racional, e não só todo amor é como se fosse o último.

É aqui onde O Morro se enquadra, em um romantismo que não fala de amor. Mas se livro em tela não fala de amor, qual é o sentimento que o perpassa? Quem o lê, cravará de cara: vingança. Mas a vingança não é exatamente um sentimento, e sim a execução de uma reconvenção contra quem deu causa a uma dor. E mesmo que sejamos concessivos, a vingança é um sentimento derivado, cuja anterioridade e componente essencial é o ódio. O romance em questão é um longo desfiar de ódios acumulados, recebidos e devolvidos na mesma moeda, cujo motor é uma cadeia de desajustes de relacionamentos.

O Ultrarromantismo desemboca nos contos de terror, como já disse, mas aqui temos uma característica que torna esta obra única: o que há de mais aterrorizante é que não é ultrapassada a barreira do sobrenatural. As aparições são, antes de uma real fantasmagoria, uma condição psíquica autoimposta, como se o último objeto de vingança fosse o próprio protagonista.

Já se disse que ódio e amor são o mesmo sentimento, e, como em um espelho, um é reflexo do outro. É um pouco difícil de se comprovar essa afirmação, porque não dá para afirmar empiricamente que pessoas que odeiam amam com a mesma intensidade. O que é possível pensar é em que nível do amor o ódio pode se opor. E aquele apresentado pelos personagens do livro está muito próximo do embate físico, violento tanto no âmbito corpóreo (como de fato vemos em algumas cenas) quanto no psicológico, e principalmente nele. Há um ódio de contato, assim como há um amor que exige contato. Este é um motivo pelo qual podemos assinalar que é um livro banhado de erotismo. Naturalmente, não no aspecto sexualizado que o termo remete, mas àquele paradigma de amor corpóreo que mencionei neste texto, um ódio que exige presença, até mesmo no perturbar psicológico: não é só uma saudade que abate o ânimo, mas uma necessidade de causar sofrimento a si mesmo no plano das reações orgânicas, uma maneira de transformar um mal psicológico em mal físico, que vai comprovado no beijo na amada morta, ou nos caixões violados para se dê o contato entre os cadáveres. O ódio que deriva da inversão do amor vem de um sentimento cúpido, possessivo, doentio, e não daquele tipicamente romantizado amor límpido, purificado, desinteressado. Aliás, esse estudo da psique dos personagens aproxima O Morro dos Ventos Uivantes de seu movimento sucessório, o Realismo. Esse é um dos motivos pelos quais não há enquadramento confortável para tal obra. 

As impressões gerais que o livro me causa são paradoxais. Eu não sou dos maiores fãs do estilo romântico. Aliás, embora seja necessário reconhecer que o estilo tem grandes obras, no âmbito filosófico elas são muito menos relevantes que as de outras escolas, pelo simples fato de que seu idealismo magnificado não para em pé. A questão é que, embora prescinda de provas, a filosofia precisa de lógica, e o exagero dos românticos se afasta de qualquer observação minimamente calcada na realidade. E aí é sempre fácil de comparar: embora não se queira tirar o valor literário de nenhuma dessas peças, um filósofo, em linhas gerais, preferirá Germinal a Os Três Mosqueteiros; Em Busca do Tempo Perdido a O Conde de Monte Cristo; Memórias Póstumas de Brás Cubas a O Tronco do Ipê, dentre tantas outras. 

A história em si que é narrada tem muito pouco de original: um triângulo amoroso que, como eu disse, não tem bons princípios e nem final feliz. Mas ele simplesmente imanta que vai lê-lo. Sendo assim, precisamos olhar para o aspecto formal. Ele é absolutamente impecável, e mesmo em sua tradução é possível perceber a poética por trás da escrita. É um livro escrito para fazer mal, e consegue isso, principalmente porque não recorre a monstros para assustar. Isso é ruim? Essencialmente não, porque às vezes precisamos tomar chacoalhões, mas é preciso disposição para encarar um ensaio dos limites da maldade humana.

Há uma questão recorrente ao estilo, não obstante a originalidade específica que este livro carrega: como os sentimentos não são sentidos, mas derramados, há momentos em que ele fura a parede da suspensão da descrença. Embora não se peça de um romance que ele seja crível, há um ponto em que o desencaixe se torna tão grande que toda a lógica subjacente vai por água abaixo, o que dificulta um filosofar natural em cima da obra, e este é um defeito a ser considerado.

Para além disso, O Morro dos Ventos Uivantes tem momentos brilhantes, como nas aparições da coprotagonista na janela do quarto de leitura, onde a dúvida é posta de frente ao leitor: estamos diante da manifestação "real" de um espírito, temos a autossugestão causada pelo ambiente lúgubre ou trata-se do afloramento da loucura induzida a si mesmo? Não se trata de um falso dilema - a compreensão da obra se dá nessas pequenas decisões que o leitor precisa ter no seu transcurso. Ou seja, a autora não pega na mão de quem a lê. Outro ponto interessante é o completo desconhecimento das origens do personagem Heathcliff - não se sabe de onde ele vem, não se sabe de onde vem sua inaudita fortuna, e isso faz com que não carimbemos nele motivos para sua ira para além dele mesmo, o que nos permite colocar qualquer um em sua condição, embora a suspeita de ser ele de origem cigana busque mais colocá-lo fora do círculo da família do que atribuir características que seriam inerentes a uma etnia.

Enfim, é uma obra para reações dúbias, mais importante (para este escriba) pela maneira com a qual foi escrita do que pela sua temática em si, com suas virtudes e seus defeitos, que me trouxe um certo desagrado na primeira leitura, embora o simples fato de me ter levado a escrever sobre ela já me faça vê-la com outros olhos, muito mais simpáticos do que outrora. É assim que as coisas são. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Por óbvio, o livro que permeou este texto. Há inúmeras versões disponíveis no mercado e em sebos, havendo até mesmo para consumo via internet. Vou indicar a edição que tenho em minha casa.

BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2017. Col. Mulheres na Literatura. Vol. 21.

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