(O Romantismo é a tradução do amor para a literatura, certo? Se você respondeu que sim, melhor pegar os livros do ensino médio e relê-los)
... e nos olhos dela brilhava um clarão assassino quando alguém se atrevia a lhe resistir ou contradizer.
Olá!
No
último texto que publiquei, fiz uma referência a um passado meio remoto, para
levar um exemplo de como esperamos encontrar as coisas da mesma forma que
deixamos, mesmo que seja após um tempo bastante longo. Não vem ao caso os
motivos aqui, porque já destrinchei a coisa toda lá, então meu convite é para que
o leiam,
se o assunto lhes interessou. Entretanto, e por isso trago o tema novamente à
baila, o resgate não se deu de forma automática, e eu fiquei algum tempo
caçando qual teria sido um fato bem distante cuja impressão seja bastante
distinta da que tenho hoje em dia.
Eu
pensei em lugares, em comidas, em pessoas, em histórias e em músicas. Nesta
última categoria, relembrei de um monte, mas havia o problema de que volta e
meia eu retorno à audição daquelas que eu gosto. Com isso, a experiência fica
invalidada. Mas eu consegui recordar de uma específica, que me incomodou muito
na época. Trata-se de Wuthering Heights,
da inglesa Kate Bush.
É
uma música de andamento lento, muito triste, falando em tom choroso de uns tais
de Cathy e Heathcliff, cantada com voz acutíssima pela mencionada cantora em
seu trabalho de estreia, no longínquo ano de 1978, em um modelo de voz que viria
posteriormente a ser consagrado no Brasil pela Tetê Espíndola. Não é de se
admirar que um moleque de oito anos, viciado pelos primos mais velhos na
energia do hard rock e na sofisticação do progressivo ouvisse
uma música desse estilo como quem ouve os rangidos de um motor sem óleo, mas o
grande problema estava na quantidade industrial de reproduções da precitada,
que fez sucesso até dizer chega. Era só ouvir o arpejo daquele pianinho e o
“aroluáili” inicial para os neurônios ativados por esse estímulo se retorcerem,
gerando a má impressão persistente.
Quando
realizei a experiência mental citada no começo, fui buscar a música em um spotifái da vida para medir minha
reação. Eu imaginava que ia passar batido, de modo a não causar nenhum tipo de
espécie, mas neurônios são como elefantes: nunca esquecem. Responderam como
antigamente: não! de novo não! E cheguei à conclusão: é um belo contraexemplo,
e não o modelo que eu queria me apegar. Por isso, fui correr atrás de outra
coisa, chegando à cidade paranaense que vocês leram lá.
Tempos
depois da explosão da canção (um bom tempo depois), fiquei sabendo que a mesma
era baseada no único livro da escritora inglesa Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes, e que era,
fundamentalmente, uma coleção de citações das falas da personagem Cathy, que
clama fantasmagoricamente por Heathcliff, seu estranho amado. O livro fazia
parte de uma coleção vendida em bancas de jornal que meu pai comprou para
enfeitar a estante. Eu já era um leitor frequente e consumi praticamente todos,
incluindo a obra em questão. Bem mais recentemente, a Folha lançou uma coleção
chamada "Mulheres na Literatura", da qual o tomo é o de número 21. Já
retomo minhas impressões sobre ele.
Eu
fiz a leitura d’O Morro dos Ventos Uivantes há muito tempo já, conforme narrado
acima, e, impulsionado pelo resgate da música, fui buscar umas resenhas para
reavivar as memórias. Fiquei admirado com a quantidade de advertências que
diziam não se tratar de um livro romântico, como se o movimento de mesmo nome
significasse um período monotemático da literatura, dominado unicamente pelo
amor. Não, meninos; não, meninas.
Primeiramente,
é preciso confirmar que o livro em questão é, de fato, pertencente à escola
literária conhecida como Romantismo, mais especificamente (embora haja inúmeras
características que lhe sejam exclusivas) da corrente do Ultrarromantismo. E
aqui, não temos como evitar dar uma escovada na História, para que possamos
compreender bem a confusão que se faz, especialmente porque não só a literatura,
mas a própria filosofia é banhada pelo contexto do momento em que ocorre.
O
Romantismo é um fenômeno que se iniciou nos fins do século XVIII, que foi
marcado como o pico do Iluminismo, representado pela Revolução Francesa. Seu
principal motor era a ideia de que a racionalidade era o que de melhor existia
nas relações humanas e que, a partir dela, haveria de se extinguir as tiranias
e os grilhões repressivos. No entanto, a Revolução não resultou senão em novos
despotismos, como foi seu subsequente período do Terror, e o resultado foi um
clima de desilusão nos círculos intelectuais. Como consequência dialética, a
ênfase no racional e sua capacidade de guiar os destinos caiu em descrédito, e
uma nova tendência de pensamento surge, onde os sentimentos são colocados em
evidência. A questão é que, uma vez retirada a razão de seu trono, demonstra-se
que os sentimentos são ingovernáveis, como o antigo revolucionário que agora se
torna tirano. A maneira como se apreende o mundo e como se dão as relações humanas
são agora povoados pela ambivalência, porque há o confronto das subjetividades:
quando eu coloco meus sentimentos em oposição ao de meu interlocutor, não há
régua racional que possa balizá-los.
O
movimento romântico, tanto na filosofia quanto na literatura, afastando-se da
razão imperativa, vai se embeber da intuição. Como mais tarde sintetizaria
Schopenhauer (que não pode ser enquadrado como romântico), o desejo se sobrepõe
à razão de maneira permanente, e o principal desejo humano, movido até mesmo
pelo instinto de preservação, é a infinitude. Entretanto, como se sabe, ela é
inatingível, embora perpetuamente desejada, e o resultado é a igualmente perpétua
angústia de se ver insatisfeito. Ainda assim, é possível ao ser humano
fazer aproximações: a natureza é representação da vida que surge e ressurge,
sendo uma das sínteses possíveis do infinito que o sentimento humano busca em
seu íntimo. Nessa perspectiva, a morte deixa de ser o fim, mas a busca por mais
e mais infinito, já desalojada das limitações do envoltório terreno. Assim,
mesmo nas fases em que o movimento está mais aferrado ao valor dos sentimentos,
a morte representa um valor que transcende sua finitude: a liberdade, outro dos
maiores valores dos românticos. A grande questão é que a realidade existe, e o
romântico percebe que, ao sair de seu transe psicológico, há um enorme
descompasso entre o que sente e o que vê, de modo a buscar um modo de
pensamento escapadiço, dando mais importância ao ideal do que ao real. Toda
filosofia e literatura idealista do período se deve a isso - daí surge a nação
idealizada, o povo originário e puro, os heróis virtuosos tão típicos de então.
O
livro de Emily Brontë contém todas essas características? Sim e não. Ele está
no contexto do Romantismo, mas já se encontra em um outro momento da corrente,
em que a própria exacerbação dos sentimentos é exacerbada. O idealismo
aproxima-se de seu esgotamento e tende cada vez mais para o pessimismo, que se
reflete no derramamento cada vez maior dos personagens. A morte não é mais uma
solução por sua aproximação com a eternidade, mas para se fugir ao sofrimento,
e começa a ser vista como extinção. Eram os tempos do mal du siécle, uma tradução do espírito depressivo e desesperançado
por uma realidade sem solução. Seu nome em inglês, spleen, tem a ver com o humor produzido pelo baço, que a medicina
antiga acreditava ser a produtora dos estados de melancolia (leia mais aqui). O
romântico, neste ponto da história, é essencialmente um triste, um inconformado
que já se desesperançou. Desse predomínio, passa a vigorar um desejo pelo
mórbido e pelo sobrenatural. Os personagens passam a se autodestruir e apresentarem-se
cada vez mais doentios, tanto física quanto psicologicamente, a ponto de
considerar o inferno como alternativa menos dolorosa do que a própria
existência. As obras desta escola já beiram o gênero do horror, trazendo muitas
influências dos romances góticos, abordando o medo, as distorções dos sentidos
e a loucura. Ler um livro do Ultrarromantismo passa a afetar psicologicamente
também quem lê.
Percebem
o problema em afirmar que O Morro dos Ventos Uivantes não é um livro romântico?
Isso acontece porque, na imensa maioria dos casos, o sentimento exacerbado no
tema central das obras é o amor, mas aqui nesta obra ele está com seu sinal
trocado, o ódio. De fato, quando falamos que um casalzinho é muito romântico,
não pensamos em suas brigas e desavenças, ou do quanto um pode fazer de mal ao
outro, mas na delicadeza do trato entre ambos, na necessidade da presença um do
outro, na superação das barreiras sociais ou qualquer outra circunstância em
que um sentimento mais forte vai servir de amálgama para sua factibilidade.
Essa é a concepção que o senso comum faz do termo Romantismo.
Acontece
que, como expliquei logo atrás, o romântico no uso comum é muito diferente do
romântico literário. Sim, é verdade que o amor é um sentimento e um daqueles
sentidos com mais intensidade, a ponto de reverter seu sinal e poder ser
traduzido em dor e em ódio, mas ainda assim estamos falando em sentimentos. O
Romantismo trata de qualquer sentimento exasperado, seja qual for. Toda saudade
é imensa, toda ternura é indescritível, todo valor custa a própria vida, todo
medo extrapola os limites do racional, e não só todo amor é como se fosse o
último.
É
aqui onde O Morro se enquadra, em um romantismo que não fala de amor. Mas se
livro em tela não fala de amor, qual é o sentimento que o perpassa? Quem o lê,
cravará de cara: vingança. Mas a vingança não é exatamente um sentimento, e sim
a execução de uma reconvenção contra quem deu causa a uma dor. E mesmo que
sejamos concessivos, a vingança é um sentimento derivado, cuja anterioridade e
componente essencial é o ódio. O romance em questão é um longo desfiar de ódios
acumulados, recebidos e devolvidos na mesma moeda, cujo motor é uma cadeia de
desajustes de relacionamentos.
O
Ultrarromantismo desemboca nos contos de terror, como já disse, mas aqui temos
uma característica que torna esta obra única: o que há de mais aterrorizante é
que não é ultrapassada a barreira do sobrenatural. As aparições são, antes de
uma real fantasmagoria, uma condição psíquica autoimposta, como se o último
objeto de vingança fosse o próprio protagonista.
Já
se disse que ódio e amor são o mesmo sentimento, e, como em um espelho, um é
reflexo do outro. É um pouco difícil de se comprovar essa afirmação, porque não
dá para afirmar empiricamente que pessoas que odeiam amam com a mesma
intensidade. O que é possível pensar é em que nível do amor o ódio pode se
opor. E aquele apresentado pelos personagens do livro está muito próximo do
embate físico, violento tanto no âmbito corpóreo (como de fato vemos em algumas
cenas) quanto no psicológico, e principalmente nele. Há um ódio de contato,
assim como há um amor que exige contato. Este é um motivo pelo qual podemos assinalar
que é um livro banhado de erotismo. Naturalmente, não no aspecto sexualizado
que o termo remete, mas àquele paradigma de amor corpóreo que mencionei neste texto, um ódio
que exige presença, até mesmo no perturbar psicológico: não é só uma saudade
que abate o ânimo, mas uma necessidade de causar sofrimento a si mesmo no plano
das reações orgânicas, uma maneira de transformar um mal psicológico em mal
físico, que vai comprovado no beijo na amada morta, ou nos caixões violados
para se dê o contato entre os cadáveres. O ódio que deriva da inversão do amor
vem de um sentimento cúpido, possessivo, doentio, e não daquele tipicamente
romantizado amor límpido, purificado, desinteressado. Aliás, esse estudo da
psique dos personagens aproxima O Morro dos Ventos Uivantes de seu movimento
sucessório, o Realismo. Esse é um dos motivos pelos quais não há enquadramento
confortável para tal obra.
As
impressões gerais que o livro me causa são paradoxais. Eu não sou dos maiores
fãs do estilo romântico. Aliás, embora seja necessário reconhecer que o estilo
tem grandes obras, no âmbito filosófico elas são muito menos relevantes que as
de outras escolas, pelo simples fato de que seu idealismo magnificado não para
em pé. A questão é que, embora prescinda de provas, a filosofia precisa de
lógica, e o exagero dos românticos se afasta de qualquer observação minimamente
calcada na realidade. E aí é sempre fácil de comparar: embora não se queira
tirar o valor literário de nenhuma dessas peças, um filósofo, em linhas gerais,
preferirá Germinal a Os Três Mosqueteiros; Em Busca do Tempo Perdido a O Conde
de Monte Cristo; Memórias Póstumas de Brás Cubas a O Tronco do Ipê, dentre
tantas outras.
A
história em si que é narrada tem muito pouco de original: um triângulo amoroso
que, como eu disse, não tem bons princípios e nem final feliz. Mas ele
simplesmente imanta que vai lê-lo. Sendo assim, precisamos olhar para o aspecto
formal. Ele é absolutamente impecável, e mesmo em sua tradução é possível
perceber a poética por trás da escrita. É um livro escrito para fazer mal, e
consegue isso, principalmente porque não recorre a monstros para assustar. Isso
é ruim? Essencialmente não, porque às vezes precisamos tomar chacoalhões, mas é
preciso disposição para encarar um ensaio dos limites da maldade humana.
Há
uma questão recorrente ao estilo, não obstante a originalidade específica que
este livro carrega: como os sentimentos não são sentidos, mas derramados, há
momentos em que ele fura a parede da suspensão
da descrença. Embora não se peça de um romance que ele seja crível, há um
ponto em que o desencaixe se torna tão grande que toda a lógica subjacente vai
por água abaixo, o que dificulta um filosofar natural em cima da obra, e este é
um defeito a ser considerado.
Para
além disso, O Morro dos Ventos Uivantes tem momentos brilhantes, como nas
aparições da coprotagonista na janela do quarto de leitura, onde a dúvida é
posta de frente ao leitor: estamos diante da manifestação "real" de
um espírito, temos a autossugestão causada pelo ambiente lúgubre ou trata-se do
afloramento da loucura induzida a si mesmo? Não se trata de um falso dilema - a
compreensão da obra se dá nessas pequenas decisões que o leitor precisa ter no
seu transcurso. Ou seja, a autora não pega na mão de quem a lê. Outro ponto
interessante é o completo desconhecimento das origens do personagem Heathcliff
- não se sabe de onde ele vem, não se sabe de onde vem sua inaudita fortuna, e
isso faz com que não carimbemos nele motivos para sua ira para além dele mesmo,
o que nos permite colocar qualquer um em sua condição, embora a suspeita de ser
ele de origem cigana busque mais colocá-lo fora do círculo da família do que
atribuir características que seriam inerentes a uma etnia.
Enfim,
é uma obra para reações dúbias, mais importante (para este escriba) pela
maneira com a qual foi escrita do que pela sua temática em si, com suas
virtudes e seus defeitos, que me trouxe um certo desagrado na primeira leitura,
embora o simples fato de me ter levado a escrever sobre ela já me faça vê-la com
outros olhos, muito mais simpáticos do que outrora. É assim que as coisas são.
Bons ventos a todos!
Recomendação
de leitura:
Por
óbvio, o livro que permeou este texto. Há inúmeras versões disponíveis no
mercado e em sebos, havendo até mesmo para consumo via internet. Vou indicar a
edição que tenho em minha casa.
BRONTË,
Emily. O Morro dos Ventos Uivantes.
São Paulo: Folha de S. Paulo, 2017. Col. Mulheres na Literatura. Vol. 21.
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