(O que é a saudade senão a presentificação eterna do passado. Isso é um problema?)
Que é, pois, o tempo? Quem poderia explicá-lo de maneira breve e fácil? Quem pode concebê-lo, mesmo no pensamento, com bastante clareza para exprimir a ideia com palavras? E, no entanto, haverá noção mais familiar e mais conhecida usada em nossas conversações? Quando falamos dele, certamente compreendemos o que dizemos; o mesmo acontece quando ouvimos alguém falar do tempo. Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei.
Santo Agostinho
Olá!
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Quando estive no Circuito das Águas pela primeira vez, eu vi que existia um trem maria-fumaça que cortava um trechinho, já não mais comercialmente, é óbvio, mas como atração turística. Ele saía de São Lourenço, mas, como precisava comprar a passagem antecipadamente, fiquei a ver navios… ops, trens. O passeio chegava até Soledade de Minas, mas não cheguei a ir até lá. Chegou a hora.
Soledade de Minas é daquelas cidades bem pequenininhas, cujo estereótipo diz ser daquelas que pararam no tempo. Ser o ponto final do passeio do Trem das Águas se explica pela sua velha estação de trem, ainda bem preservada, com as peculiaridades de época que a tornam interessante.
Nos dias em que há viagens, que traz para cá pelo menos umas 100 pessoas por vez, há uma grande quantidade de boxes onde são vendidos artesanatos vários. Nos outros dias, tudo fica fechado, à espera do tempo passar.
Ao lado da estação, há uma cascata artificial que promete refrescar os dias mais quentes, e que se tornou uma espécie de ponto de encontro da cidade. Neste lugar, funcionava a caixa d’água da estação ferroviária, que foi deslocada para seu local original.
O afluxo de turistas para cá se justifica pelo material
ferroviário cá existente, que explica uma boa parte de como funcionavam os
transportes anteriores à segunda metade do século XX, como o ladeamento do
leito dos rios…
… e os equipamentos predominantemente fabricados em madeira,
ao contrário do que acontece com os aços e plásticos usados hoje em dia. Nos
dias de movimentação, ainda há um museu ferroviário que contém peças e artigos
ligados à atividade.
Quem é insistente ainda consegue vaguear pela cidade e
encontrar as casas dos artesãos, onde se pode aprender alguma coisa sobre as
técnicas e criatividade na confecção das peças.
O pessoal te trata como gente da família, convidando para um
café e uma cachacinha, tão típicas desta região.
Este lugarejo tinha um nome curioso, que derivava daquela propensão natural que tínhamos para nomear os locais por onde passamos com narrativas de suas histórias: Ponte dos Teixeiras. Isso aconteceu porque foram dois irmãos com esse sobrenome que se dispuseram a construir uma ponte sobre o Rio Verde, para ligar as duas vertentes do vale, e o povoado que se aglomerou ao redor acabou ganhando esse topônimo até que viesse a transformação em distrito.
O nome definitivo é derivado da Fazenda Soledade, que
abarcava a maior parte de seu território, e cujo dono mandou erigir uma capela
em homenagem à santa que dava o nome à propriedade, Nossa Senhora da Soledade.
A capela cresceu e virou a igreja que podemos ver logo abaixo. Como vocês bem
sabem, eu costumo visitar e fotografar todas essas igrejas do interior, porque
é muito frequente que registrem boa parte da história de suas localidades, mas,
no caso, o portão fechado impediu até mesmo uma foto melhor.
Aqui encontro uma confluência de intuições. Do nome da
cidade, extraio a representação da mistura de saudades com a solidão. Segundo
os católicos, a morte de Jesus traz esses sentimentos confusos que uma mãe
sente ao ver seu filho na morte, sozinha e imediatamente saudosa. Por outro
lado, a temática da linha de ferro e da locomotiva a vapor traz as reminiscências
dos mais antigos e a curiosidade dos mais jovens. De uma cidade que tem a
saudade até no nome, vem a mim a seguinte reflexão: o que é essa tal de
saudade? Por que temos apego ao passado?
A coisa inicial a se pensar é que a saudade é indissociável
do tempo, porque não há saudade sem distância temporal, como é óbvio. Então nós
vamos mais uma vez tentar compreender a concepção de tempo de Santo Agostinho
para fazer o nosso exercício. Já falei dela mais de uma vez, mas é tão genial
que não posso deixar de mencioná-la a algum novo leitor que vier passear por
este espaço.
Agostinho de Hipona, filósofo norte-africano que viveu nos
primórdios da sistematização do cristianismo, imaginava o tempo não como uma
mera sucessão de momentos, como um longo rosário em que futuro se torna
presente e que se esvai em passado, tipo uma linha de produção, mas como uma
grande folha elástica, onde todo o tempo está presente de uma só vez. Isso
significa que passado, presente e futuro não são meros sucedâneos, mas que estão
todos juntos na grande camada dos acontecimentos chamada tempo, e o que temos
de verdade são três presentes: o passado é presente através da memória e o
futuro é presente pela via da expectativa. Como funciona isso?
Aprendemos que existem três tempos: o passado, para as
coisas que já aconteceram; o presente, para retratar o momento atual, e o
futuro, o universo das coisas que ainda virão. Quando pensamos objetivamente,
percebemos que apenas um desses tempos de fato existe: o presente, aquele
minúsculo momento em que a realidade se desdobra. Passado e futuro não possuem
materialidade, não é possível exercer sobre eles nenhuma ação, porque não estão
disponíveis para nossa intervenção.
Ou seja, o passado não existe mais, e o futuro não existe
ainda. O tempo no mundo fora de nós é o primado do instante. Mas nós podemos
pensar no passado e no futuro, e eles existem em nossa mente. E é nesse campo
psicológico que Santo Agostinho distingue um local onde passado e futuro
convivem com o presente: o tempo do mundo não é o mesmo que o tempo da
alma.
Efetivamente, o tempo passa para nós e passa para a pedra,
mas a pedra não tem essa percepção, mesmo que os ventos ou o rolar pelo morro a
desmanche. Para nós, o passado existe pelas lembranças que temos, de bons e
maus momentos, de aprendizados que obtivemos, da nostalgia e das
reminiscências. O passado existe pela memória. Já o futuro existe pelos nossos
planos, pela nossa consciência de dever fazer, pela espera de bons ou maus
acontecimentos. O futuro existe pela expectativa.
Mas, segundo Agostinho, passado e futuro só existem quando
são presentificados. E como isso acontece? A cada vez que temos uma recordação,
a nossa consciência busca um fato já existente no tempo, que está na memória e
o resgata para o momento atual, ou seja, o presente. Idem com a expectativa
futura: vislumbramos uma possibilidade ou um plano qualquer é trazemos ele à
nossa consciência, tornando-o presente. No plano da alma (aka psique),
está tudo posto e presente.
Mas se tudo é presente, por que temos a sensação de que o
tempo flui? Como podemos explicar a sensação de que as coisas perduram, mas que
não são eternas? O tempo não pode ser confundido com a eternidade. A questão de
termos todo o tempo posto não significa que ele aconteça simultaneamente, do
contrário seria eternidade, que, na perspectiva agostiniana, é o exato oposto
do tempo. O presente é quase um não-ser de Heráclito,
já que está em uma constante transformação e, além disso, pode ser reduzido a
uma porção infinitesimal. O tempo pode ser dividido entre passado, futuro e
presente justamente pela ação da extensão da consciência, que busca coisas no
passado e no futuro. É com esse trânsito entre os presentes da alma que o tempo
dura.
É aqui que vamos fazer a confluência com a saudade. A
saudade sempre se calca em uma presentificação de um fato passado específico,
que resulta da extensão da consciência ao passado que é trazida ao presente, e
que um dia teve uma representação que proporcionou algum tipo de prazer. A
saudade não é mera lembrança - é lembrança boa, senão não seria saudade.
Ter saudade tem um fundo de tristeza, porque ela sempre
representa ausência e perda. Ocorre que por vezes ela se torna
insuportavelmente grande quando uma pessoa passa a substituir expectativas por
memórias, o que costuma se agravar com o transcorrer da idade. Isso é evidente
em si mesmo: por mais que sejamos otimistas e vejamos o mundo pelo prisma da
satisfação com a obra concluída, o fato é que a vida está no fim, e o passado
grita, enquanto o futuro silencia. O problema é quando as saudades viram apego
pelo passado. Tudo o que a pessoa faz acaba apontando para trás, como se nada
do presente valesse a pena, e nada do futuro trouxesse esperança. Dá para
explicar? Freud explica.
Nós tendemos a ter uma memória distorcida de nossos fatos passados,
especialmente quando somos crianças. Isso se aplica a tudo - fatos, fenômenos,
pessoas, objetos. Vamos de exemplo. Quando eu era pequeno, volta e meia ia a Poá,
pequena cidade da metrópole que, àquela época, era famosa pela sua água mineral
e suas chácaras. Eu tinha parentes lá, daqueles que a gente visita só de vez em
quando - tio Manuel, primo Adriano, prima Leonice e assim vai. O caminho para
lá era ladeando a ferrovia, que pegávamos a partir da Penha de França. Em uma
dessas vezes, a mais antiga que eu me lembro, havia uma sinaleira da via férrea
que me impressionou. Era idêntica a um semáforo de cruzamento, só que imenso.
Era facilmente explicável, já que o maquinista precisava enxergar a sinalização
a uma distância considerável. Isso me levou a representar os desenhos livres da
escola com ferrovias de semáforos imensos, uma coisa até recorrente, prova de
que fiquei impressionado. Já da última vez que vi a tal sinaleira, dei-me conta
de que, se de fato era maior que uma convencional, não fazia tanta impressão
assim, a ponto de se tornar um motivador de criatividade. Confesso que fiquei
um pouco decepcionado, mas isso demonstra que nossa memória infantil distorce
para maior as coisas.
Freud não deixou passar batido esse tipo de sentimento. Ele
disse que era bastante comum acharmos nossos pais mais perfeitos do que eram de
fato. O pai parecia mais forte; a mãe, mais bela. Essa sensação se constrói em
cima do que ele chamava de princípio do prazer. Isso funciona sob a
égide da necessidade que o equipamento psíquico de uma pessoa tem em procurar a
maior quantidade de prazer possível, ainda que isso represente distorções da
realidade.
Pensem bem em quantas vezes filtramos o passado, de modo a
fazê-lo parecer muito melhor do que efetivamente foi. Temos a tendência a
esquecer eventos negativos (desde que não sejam traumáticos) e a sobrevalorizar
eventos positivos justamente porque nosso cérebro se acomoda melhor a uma
memória forjada do que a uma realidade mais dolorosa, desinteressante ou
vergonhosa.
Isso acontece porque o princípio do prazer tende a se opor
ao princípio da realidade. O primeiro é composto pelas pulsões
instintivas, que buscam satisfazer necessidades individuais, aquela coisa do
“eu quero, e quero mais”. A principal expressão dessas necessidades instintivas
está justamente no prazer, que é uma satisfação turbinada: além de ser
necessário, é bom. É um extravasamento de energias internas que, no entender de
Freud, são mais bem sintetizadas na sexualidade, embora outros defensores da
psicanálise não o entendam limitado a isso. O princípio do prazer é isso - a
irrefreável e imediata necessidade de satisfação.
Só que há limites impostos pela realidade externa. Esses
podem ser físicos e morais, dependendo de quem impõe o limite, a natureza ou a
sociedade. Há um princípio limitante dentro do próprio inconsciente, que é o
instinto de sobrevivência. Se ele não existisse, é provável que a humanidade
não sobrevivesse, porque iria arriscar tudo para se ver propiciada mais e mais
prazer. Também não existiriam comunidades, dado o extremo egoísmo do princípio
do prazer, que impediria relacionamentos solidários. Dessa forma, é o confronto
entre os princípios do prazer e da realidade que permite a vida existir. Mas
ele existe, e provoca pressão. Evidentemente, existe um certo desconforto nesse
confronto, mas há parâmetros onde ele é considerado normal e saudável. mas há
momentos em que há problemas.
O princípio do prazer faz remissões excessivas ao passado
quando o indivíduo tem dificuldades em abandonar momentos que são considerados
mais prazerosos do que os atuais. É como se o passado elástico de Santo
Agostinho fosse presentificado a todo momento, em uma sequência interminável de
reiterações da memória, substituindo a vivência do presente e as expectativas
do futuro, e as saudades se tornam mais importantes e significativas do que as
novas experiências, como se fosse impossível o presente e o futuro trazerem
prazer a este contribuinte. O grande problema é que, aqui também, o princípio
da realidade age, o que causa grande angústia para quem vive essa situação.
A guerra entre id e superego (vide)
sempre coloca o ego em xeque, de modo a fazer nossa parte consciente não
compreender, muitas vezes, porque sofre. Há dois problemas essenciais: o
passado sobrevalorizado não permite que o indivíduo se conforte no presente, e,
confrontado com a realidade, ele perde. Quando vamos a um restaurante que há
tempos gostávamos, ficamos decepcionados, e achamos que sua qualidade caiu. Nem
sempre isso é verdade. Pode-se simplesmente ter-se mantido o mesmíssimo padrão
de qualidade, mas minha memória desenhava experiências muito mais prazenteiras
do que são de fato. O objeto perdido não é mais o mesmo, mas ele é desejado, e
isso coloca-nos na posição de quem se prende excessivamente às próprias
saudades.
Soledade de Minas é isso e não é isso. É possível que o dono
original da fazenda que lhe deu gênese quisesse se referir unicamente à santa,
mas também poderia estar pleno de apego ao passado, ou apenas gostasse muito de
sua terra há algum tempo, e a quisesse homenagear por isso. Nada mais. Bons
ventos a todos!
Recomendações de leitura:
Já havia recomendado o capolavoro de Santo Agostinho neste
post, e o farei novamente. Só que eu achei uma edição online, o que pode
facilitar a vida de todo mundo. Segue a citação.
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Disponível em
< https://img.cancaonova.com/noticias/pdf/277537_SantoAgostinho-Confissoes.pdf>.
Acesso em 16.12.2023.
Com relação ao princípio do prazer freudiano, uma boa
referência é o livro abaixo:
FREUD, Sigmund. Romances familiares. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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