(A loucura não é mais o que pensávamos, mas ainda não é o que sabemos)
A indiferença é você ignorar o que se passa, é fingir que não vê
Daniela Arbex
Olá!
Clique aqui para ler mais textos sobre meus bate-e-voltaCertos “espíritos” que não existem mais na Capital da Garoa
ainda podem ser vistos nas cidades de interior, mesmo as maiorzinhas. É aquela
coisa de procissões que atravessam por bairros, defuntos velados em casa,
vendedores que batem de porta em porta, praças lotadas nos domingos e outras
coisas que ficaram esquecidas nas metrópoles. Taubaté está entre as tais
maiorzinhas, mas ainda conserva estas tradições, como já falei sobre a Casa
do Figureiro. Mas existe um evento dominical que é tão célebre na região do
Vale do Paraíba que chega a ser considerado uma atração turística da cidade.
Trata-se da Breganha.
Breganha? Que nome é esse? É uma corruptela da palavra
“barganha”, adaptada do linguajar popular para indicar trocas diretas feitas
entre donos de objetos, com aquelas famosas pechinchas tentando fazer um valor
mais camarada. É tradicionalíssima em Taubaté, porque existe, segundo algumas
fontes, desde o século XVII, mas, na redondeza do Mercado Municipal, está há
mais de um século.
Não era prática incomum no momento em que surgiu. Os
tropeiros que saíam do litoral paulista rumo aos campos de minérios na região
de Minas Gerais tinham pontos de parada em seus longos trajetos onde faziam
pequenas compras que iam além do comércio estritamente necessário ao seu labor,
e isso atraía à beira dos mercados pessoas que traziam miudezas.
A Breganha tem de tudo, novos e usados, secos e molhados,
desde manufaturas para produtos tipicamente locais…
… até produtos realmente usados, mas que são vendidos a um
preço tão baixo que ainda encontram compradores. Volto já, já a falar sobre
isso.
Há algumas velharias, entretanto, que são de fato
interessantes, com valor de coleção ou de reposição difícil. Vejam a quantidade
de câmeras fotográficas analógicas. Algumas são antigas até para um cara da
minha idade.
Por essa razão, a Breganha é insólita e tem valor turístico,
já que escavadores podem achar artigos que, de fato, possuem uso de relevo ou
raridade, a preços de fato pequenos, com a possibilidade de negociar trocas e
pechinchas, como se fazia nas feiras livres até não muito tempo atrás. Mas há
também toda sorte de velharia onde se tenta exercer a criatividade para
conseguir utilidade. Há artesãos que passam por aqui pelo simples fato de
encontrar algum objeto que os inspire, como um prego velho, uma lata enferrujada
e outras coisas que só encontram proveito no engenho mental humano...
... bem como há coisas belas, históricas e úteis por si só. Tem de tudo, em resumo.
Mas é muito discutível que os pedintes que rodeiam os
mercados e as feiras sejam chamados de loucos. Esta é uma designação genérica
para aqueles que não se integram ao meio social por ter algum tipo de
deficiência cognitiva. Mas vejam só como é o mundo. Enquanto a patroa negociava
uma sapateira de madeira, eu vi que tinha um moço na saída da Breganha que
estava sentado quieto, com um saco de tampinhas que ele parecia admirar, uma
por uma. Pegava uma do saco e ficava olhando e olhando, depois outra, e mais outra.
Ele ficou por lá até alguém berrar para ele, do outro lado da rua:
"Ô, doido! Sabe onde tem mais uma tampinha?" -
apontando para sua genitália, naquelas brincadeiras típicas de quinta-série, e
saiu dando risada sozinho. O doido meneou a cabeça e se limitou a dizer:
"eu que sou o doido…", e continuou na sua atividade de doido.
Aquilo me colocou a pensar e a lembrar de algumas histórias.
Não são somente contos inocentes que surgem através da cambaia definição que
damos aos transtornos mentais, mas desventuras que terminam mal. Vejam só.
O nome fictício era Silvio. Era um homem em uma faixa de
idade incerta, mas que flutuava entre os 30 e 40 anos. Um cidadão periférico
típico dos princípios da década de 80, com as mesmas características de
qualquer um. Ou quase. De externo, era portador de estrabismo divergente
discreto, o famoso zarolho. Isso já lhe rendia uma pequena dificuldade de
enxergar e uma grande dificuldade de se relacionar, já que ele encarou por toda
a sua vida aquela velha pecha de ter um olho em deus, outro no diabo. Mais que
isso, o problema de visão o afastava dos empregos mais decentes, e, em casa de
oito irmãos, isso era uma questão.
Esse ainda não era seu pior problema, entretanto. Sua
volumosa família, pai, mãe, irmãos, não era exatamente unida, e a lei da
evolução ganhava naquela apertada casa de três cômodos um microcosmo que seria
fascinante, se não tivesse seu aspecto desumano. Lá, Silvio (nome fictício) era
a personificação do mais fraco. Em qualquer disputa era o errado, o que tinha
que ceder, o que tinha que apanhar. Se havia alguém em posição de ser
descartado, era ele.
De resto, alguns poucos hábitos marcantes. A dificuldade
visual lhe fazia assistir a televisão muito de perto, e gostava de se enfiar em
seu quartinho nas tardes de domingo para assistir o Silvio Santos, seu fictício
xará, tomando uma garrafa de soda limonada, seu refrigerante preferido. Causava
incômodo por seus arroubos e lhe construíram um quartinho do lado de fora da
casa, para que por lá tivesse suas manias.
Diziam ser louco. De fato, foi parar uma vez no sanatório,
aviado pelo padre da paróquia em que militava. Excesso de nervosismo, o
diagnóstico, que lhe dava acessos de fúria. Mas, por tudo o que ouvi, nada mais
tinha do que um transtorno de humor, algo que qualquer Ritalina resolveria.
Alternava períodos de grande quietude com acessos de explosão verbal, no más.
Sem quebradeiras, sem violência física, mas com momentos de muita gritaria. E
este comportamento não era imotivado. Vinha do espírito belicoso da casa,
sempre cheia de brigas, de todos contra todos. Todos gritavam e se enervavam,
mas era nele que estava colado o rótulo: o Silvio, de nome fictício, tinha
doença na cabeça. Entre todos, é o que sofria as piores consequências, porque
tinha menos ligeireza de pensamento, talvez. Ou porque fosse menos desprovido
fisicamente, não sei dizer, só ouvi dizer.
Das irmãs, tinha a peia nas costas; dos irmãos, os punhos
mesmo. Do pai, a indiferença e da mãe o olhar complacente, embora não lhe
poupasse a censura. De todos: é o doido. Família de mineiros, viviam lhe
prometendo colocar no trem, mesmo que esse não existisse mais. Já falo mais
sobre ele.
Numa tarde de domingo, Silvio tomou um copo de soda. Não a
limonada de sua preferência, mas a cáustica. Estupidamente, deram-lhe leite
como socorro, inócuo diante da alcalinidade do preparado. Foi parar no hospital
e, estando com o trato digestivo todo calcinado, lá ficou por meses, em
permanente alimentação parenteral. Diziam que cometeu sua derradeira loucura
por um amor mal resolvido, mas que ninguém chegou a conhecer. Aliás, nunca se
soube de que naquele momento estivesse a namorar ou mesmo pretendendo. Só que a
narrativa ganhou unanimidade, pois trazia alívio a todos que pudessem sentir
alguma culpa. Morreu seco como a figueira bíblica, e no seu enterro havia muita
choradeira. Todos os irmãos bradavam por perdão. "Perdão, meu irmão, me
perdoe"... Mas por que pediam perdão, se a causadora da desgraça foi uma
paixão arrebatadora? Que culpa poderiam ter nisso para tantas escusas? De uma
das bocas, eu ouvi que não foi por loucura que ele tivesse, mas por loucura que
lhe impuseram. É a boca mais confiável de todas, e a única que eu acredito
nesse imbróglio.
O tema da loucura é tabu porque é embaraçoso e espinhoso. Já
se dizia que de poeta e louco todo mundo tem um pouco, e as abordagens atuais
sobre saúde mental parecem corroborar cada vez mais isso. É importante que seja
assim, para que se desmistifique cada vez mais os padrões de comportamento. Há
momentos em que eles, por si só, já são removidos da norma pelo simples fato de
causar estranheza, sem que qualquer prejuízo seja evidente, tanto à pessoa,
quanto a quem a cerca. Quem de nós não tem seus momentos de esquisitice?
Guimarães Rosa fala sobre isso em seu rápido conto "Sorôco, sua mãe, sua
filha" de maneira brilhante. Fala da história de um homem simples,
lavrador viúvo que leva sua mãe e sua filha até a estação do "trem de
doido", a composição que leva os acusados de loucura até o manicômio de
Barbacena, de onde nunca sairão, o mesmo trem que prometiam enfiar o pobre
Silvio (nome fictício). A única loucura aparente de sua filha é uma canção
suave, que ela canta de maneira meio alheada. olhando para o céu. Na hora de
embarcar no vagão, sua avó, mãe de Sorôco, começa a entoar o mesmo canto.
Depois que o trem parte, é a vez do próprio Sorôco retomar a melodia, o que
também é feito pouco a pouco por toda a gente que veio acompanhar a partida e
lhe dar solidariedade. A beleza subjacente ao conto está na repetição das
mesmas ações que levaram a menina a ser encaminhada ao sanatório por todos, um
fenômeno comum que é considerado loucura ou normalidade de maneira
seletiva.
Também Lô Borges, outro mineiro, captou com maestria esse
espírito de exclusão com todos que caem na vala comum da loucura. Vou colocar
aqui a letra de sua música "Trem de Doido":
Noite azul, pedra e chão
Amigos num hotel, muito além do céu
Nada a temer, nada a conquistar
Depois que esse trem começa andar, andar
Deixando pelo chão os ratos mortos na praça
Do mercado
Quero estar, onde estão
Os sonhos desse hotel, muito além do céu
Nada a temer, nada a combinar
Na hora de achar meu lugar no trem
E não sentir pavor dos ratos soltos na praça
Minha casa
Não precisa ir muito além dessa estrada
Os ratos não sabem morrer na calçada
É hora de você achar o trem e não sentir pavor
Dos ratos soltos na casa, sua casa.
O eu-lírico se põe na posição dupla do alheamento dos doidos
que embarcam para a reclusão e na metáfora dos ratos, a praga indesejada de
quem só se quer o extermínio. Fala de mercado, fala de praça, fala dos ratos.
Fala da exclusão dos indesejados.
Esse trem de doido era a maneira com a qual os mineiros
tratavam o deslocamento de pretensos doentes mentais para o manicômio de
Barbacena, cujo nome oficial era Colônia, localizado na região do Campo das
Vertentes. Por lá, existia um amplo complexo que utilizava os métodos
consagrados até a segunda metade do século XX para controle de doenças mentais:
eletrochoques, sossega-leões, camisas de força e outros procedimentos que
visavam controlar os surtos psicóticos dos pacientes. Era o que se imaginava possível
de se fazer à época.
O que havia de mais triste, entretanto, era que lugares como
Barbacena se tornaram pontos de despejo dos indesejáveis, os ratos da canção de
Lô Borges. Para lá iam pessoas que teriam tratamento em suas casas, em suas
cidades, mas que eram consideradas irremediavelmente insanas, e que precisavam
de controle permanente. Pior ainda: para lá iam não só os considerados loucos,
mas aqueles que tinham qualquer atitude que pudesse ser considerada desvio de
conduta, como as "meninas namoradeiras" que tinham vida sexual ativa,
e que destoavam da moral da época. Iam aqueles que tinham tendências
homossexuais, os que não se davam com o trabalho, os que não se enquadravam no
modelo social, enfim.
Todas essas histórias estão contadas no chocante livro da
jornalista Daniela Arbex, recomendado abaixo, que nos conta como inúmeras vidas
foram dizimadas naquele hospital, em um período histórico que vem sendo chamado
de Holocausto Brasileiro, dados os pontos de coincidência com o evento ocorrido
durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que 60 mil pacientes morreram no
Colônia, seja pelos excessos cometidos nos “tratamentos”, seja pelas condições
sanitárias abaixo de qualquer crítica, pela alimentação precária ou pelo frio.
Era um imenso quarto de despejo, mais infecto que o mais ordinário dos
valhacoutos. Os próprios internos eram encarregados de fazer a pouca comida
disponível, acumularem-se para se proteger do frio e enterrar os mortos. Mais
não conto, porque é livro de leitura obrigatória.
Hoje em dia, o modo como é encarada a doença psíquica mudou
demais, para nosso gáudio. Os profissionais “psi”, em que pesem eventuais
tropeços, passaram a ser vistos com mais respeito, e fazer terapia deixou de
ser sinônimo de tratamento para malucos, mas de um hábito saudável de quem
reconhece não ser um super homem infalível. Fala-se muito em depressão hoje em
dia não porque o modus vivendi moderno a favoreça, mas porque ela é uma
condição mais estudada e compreendida. Falamos em TOC, em TDAH, em transtorno
bipolar porque hoje somos capazes de entender que o cérebro é uma máquina
complexa e sujeita a defeitos, mas que não faz sentido jogá-los todos no senso
comum da loucura, que deveria ter uma definição bem mais restrita, ou mesmo
inexistente. É bom que todas as questões de saúde mental sejam adequadamente
segregadas, porque a vala comum tende a produzir tratamentos comuns, mas a
camisa de força não serve para qualquer coisa, se é que serve para alguma.
Um porém. Tenho alguma preocupação com essa maneira com a
qual a coisa está sendo levada, e para tanto vou dar um exemplo. A atriz
Letícia Sabatella, talentosíssima, de quem já vi peças de teatro dignas de meus
textos (aqui),
foi diagnosticada com autismo, como pode ser lido aqui.
A par disso, lembro que tenho uma vizinha que também tem uma filha autista. A
menina é uma graça, alegre, lépida e saudável. Quero dizer que não há nada
fisicamente que denuncie sua condição, mas a dificuldade de comunicação que ela
tem é digna de nota. Ela vive efetivamente em um mundo próprio, e só sai dele
quando alguma condição especial e desconhecida mesmo de sua mãe faz com que ela
peça água, praticamente sua única verbalização de vontade. No mais,
praticamente nenhuma interação existe, e é difícil até mesmo conseguir escola
para ela.
Não é possível nenhum nível de comparação entre as duas
condições. Se alguém conviver com a atriz, talvez a ache um pouco estranha, no
máximo. Tipo distraída, ou incomodada com coisas pequenas. Eu que vejo a menina
todos os dias, compreendo que suas limitações vão muito, mas muito além disso.
Não entendo que, ainda que falando de níveis diferentes, possamos colocar ambas
no mesmo bojo. Uma não teve impedida uma carreira de sucesso e reconhecimento
público, a outra quase que luta para sobreviver. Neste sentido, a classificação
tende a ir ao sentido oposto do desejado: e de generalizar, ao invés de
especificar, exatamente como se chamam os loucos da Breganha. Como não sou
especialista da área, não vou ficar dando pitacos, mas é uma sensação que tenho
e que gostaria de externar.
Então, se aquele moço que estava com as tampinhas na
Breganha pudesse me ouvir, eu diria para ele não ligar para quem o chama de
doido. A humanidade erra demais e provavelmente o faria no seu caso, que
mereceria mais atenção social do que propriamente psíquica. Bons ventos a
todos!
Recomendações:
Vão de trambolhão hoje. A primeira é o famoso livro de
contos de Guimarães Rosa, que já continha sua peculiar maneira de contar
histórias.
ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1969.
Depois, vai a música transcrita, uma pérola dentro de um
disco fantástico, um hard rock no meio da MPB para provar todo o ecletismo do
movimento.
BORGES, Márcio; BORGES, Salomão. Trem de Doido. In:
Clube da Esquina. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1972.
Como não poderia deixar de ser, o essencial livro-denúncia
da jornalista Daniela Arbex, contendo toda a desgraça que foi a existência
dessa instituição.
ARBEX, Daniela. Holocausto Brasileiro. Genocídio: 60
mil Mortos no Maior Hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.
E, finalmente, a Breganha em si, que pode ser visitada todo
domingo de manhã, no endereço abaixo:
Feira da Breganha
Av. Des. Paulo de Oliveira Costa, 1030-1054
Centro
Taubaté/SP
A aproximadamente 130 Km do centro de São Paulo
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