(Contexto é tudo na interpretação de fatos e fenômenos. Quer dizer… conhecimento também é)
Olá!
Eu ia descendo pelos lados da praça Clóvis para almoçar
quando vi a cena, das mais prosaicas, comezinhas, consuetas, corriqueiras,
quotidianas, chãs, vulgares, banais. Uma mocinha, bastante jovem, chegou para
um grupo de policiais e perguntou onde ficava o Sesc* do Carmo. A cena me
rememorou imediatamente a infância. Sempre que eu ia à "cidade" com
minha mãe, ela recomendava que eu procurasse um guarda, caso me perdesse. Meu
avô, acidíssimo, dizia que era mais seguro procurar um ladrão, talvez movido
pelo sabor das borrachadas nas costas. Tirante os maus bofes do velho, estava
certa a genitora. Mas a cena da menina me chamou a atenção pela resposta. Um
dos homens lhe disse que deveria pegar o metrô da linha vermelha, ir até a
estação Itaquera e de lá pegar o ônibus tal. A mocinha em tela olhou o grupo
com uma cara de interrogação flagrante, como se dissesse que tinha acabado de
chegar de lá. Tivesse perguntado a mim, eu lhe diria para entrar na segunda rua
à direita, andar por uns duzentos metros até chegar perto de uma igrejinha, e o
Sesc é praticamente em frente. Mas outro guarda lhe disse para entrar na
segunda rua à direita, andar por uns duzentos metros até chegar perto de uma
igrejinha, e o Sesc é praticamente em frente. O primeiro policial confundiu os Sesc's:
o Carmo é na rua do Carmo, rua histórica do centro de Sampa, e o Itaquera é,
ora, em Itaquera, parte integrante do Parque do Carmo, o mais conhecido da
região e um dos maiores da cidade.
De uma cena tão comum, vem o vírus filosófico causar-me os
espasmos. Como somos facilmente confundidos, de modo até mesmo inocente... É
óbvio que o policial não queria sacanear a guria, mas o teria feito, caso
estivesse só. E eu mesmo já me peguei fazendo coisas semelhantes. No meu
pedaço, há duas ruas chamadas Conde, a de Sarzedas e a do Pinhal. Como a
primeira é uma meca dos artigos evangélicos, muita gente me admoesta
perguntando por ela. "Sabe dizer onde fica a Conde?", é a pergunta
frequente. Eu respondo pelo óbvio, mas não posso assegurar qual Conde o
transeunte procura. Menomale que são muito próximas, mas hoje pergunto
qual delas, para não obrigar o contribuinte a atravessar o complicado miolinho
da Conselheiro Furtado.
Mas não é bem sobre isso que eu queria dizer. Antes de
estudar filosofia, eu já gostava de filosofia, e lia bastante coisa sobre o
assunto. Uma delas era a obra de Platão, especialmente os diálogos socráticos.
Um deles, o Fédon, descreve os últimos instantes do mártir grego, e tem uma
conclusão que eu, antes do período acadêmico, achava insólita. Acompanhem o
trecho final:
“Sócrates declarou que começava a sentir suas pernas pesarem
e se deitou com o rosto para cima, como lhe haviam ordenado. O homem que lhe
dera o veneno se aproximou e, após ter examinado por um momento seus pés e
pernas, apertou-lhe com força um pé e perguntou-lhe se o sentia. Sócrates
respondeu que não. O homem apertou-lhe os tornozelos e foi subindo as mãos,
mostrando-nos assim que Sócrates começava a esfriar e tornar-se rígido. Quando
o tocou de novo, disse-nos que no instante em que aquilo chegasse ao coração,
Sócrates nos deixaria. Seu baixo-ventre já se encontrava rijo e frio quando, ao
descobrir o rosto que havia coberto, proferiu as seguintes palavras:
- Críton, devo um galo a Asclépio. Por favor, paga minha
dívida, não te esqueças.
- Farei isso - respondeu Críton - Tens mais alguma coisa
para me pedir?
Sócrates não respondeu a Críton. Um momento depois, teve um
tremor. O homem do veneno deixou-lhe o rosto a descoberto: os olhos estavam
fixos. Críton aproximou-se e fechou-lhe a boca e os olhos.
Foi desta forma, ó Equécrates, que nosso grande amigo
faleceu. Podemos afirmar que foi o melhor homem entre todos que conhecemos, o
mais sábio e o mais íntegro”.
Eu fiquei um pouco desconcertado com essa conclusão. Que
coisa estranha para se pensar na porta do forno. Há várias últimas palavras
célebres: "Pai, em tuas mãos entrego meu espírito" teriam sido as
últimas palavras de Jesus. "Eu saio da vida para entrar na história"
é o pré-suicídio de Getúlio Vargas. "Espero a saída com alegria, e espero
nunca mais voltar", seriam as últimas palavras do diário de Frida Kahlo. E
Sócrates, o grande sábio, o fundador do pensamento ocidental, ao invés de uma
lição moral definitiva, fala de um galo. Coloquei duas hipóteses: ou Sócrates
já se encontrava em delírio, e com isso estava se incomodando com coisas de
relevo zero; ou ele era tão ético, mas tão ético, que nem queria deixar a conta
da avícola sem pagar, mesmo sabendo que estaria morto em instantes. É algo como
acontecia nos tempos de eu-menino. Quem vê os grandes mercados e os inúmeros
postos 24 horas não imagina que lá pela década de 70 tudo fechava no domingo,
até mesmo em Terra da Garoa. Deu meio-dia do sábado, só na segunda. Isso
acabava por formar uma cadeia de solidariedade entre vizinhos quando se
precisava de uma coisa qualquer no domingo. Minha madrinha pedia e lá ia eu:
"Dona Elza, tem uma lata de leite moça?", "Dona Nair, tem um
copo de óleo?", "Dona Lúcia, tem uns três ovos?", com o
complemento já decorado - a gente devolve na segunda. Ninguém era prevenido o
suficiente, e ocorria de donas Elza, Nair e Lúcia virem pedir leite moça, óleo
ou ovos lá em casa também, com a mesma promessa de devolução na segunda. Cumprir
o combinado era importante por dois motivos: manter a honra (e não ficar
falada) e o crédito. Fico imaginando Sócrates recebendo uma visita inesperada
no domingo e indo à casa do seo Asclépio pedir um galo para o almoço. Só
que, pelo jeito, ele não devolveu na segunda.
Mas essa foi só aquela anedótica impressão inicial. Há muito
mais por trás dessa história, incluindo uma prova adicional da inocência de
Sócrates. Vamos dissertar sobre.
Como bem sabemos, a cultura grega era predominante no mundo
ocidental nos tempos socráticos. Ela era tão bem costurada que até mesmo um império
dominante como o romano recebeu influências preponderantes sobre sua própria
cultura, incluindo aí a religião. O paganismo romano era uma cópia quase fiel
da religião pública grega, que incluía um amplo panteão de divindades, onde
cada deus regia algum aspecto do cosmos. Normalmente, temos uma correspondência
entre os deuses gregos e romanos que se materializa quase que somente na
tradução dos nomes. Alguns desses nomes ficaram mais marcados no original
grego; outros na língua românica e há ainda aqueles que se dividem. Assim, o
Zeus grego é correspondente ao Júpiter romano, que é mais conhecido como
planeta do que como deus - no plano das deidades, o grego é bem mais conhecido.
Já a Vênus romana é um pouco mais falada que a Afrodite grega, em parte por
suas famosas esculturas e pinturas, enquanto Eros e Cupido tem um equilíbrio,
dependendo do sentido que se quiser aplicar - se o assunto é psicologia, só dá
Eros; se for representação do enamoramento, aí é com Cupido. O seo Asclépio não
é um chacareiro que empresta galos, mas um semideus, filho do deus Apolo e da
humana Coronis, e que é um protetor dos médicos. Segundo o mito, sua mãe foi
morta pelo seu próprio pai, que, arrependido, colocou o menino sob os cuidados
do centauro Quiron, que lhe ensinou todas as artes de cura disponíveis no
conhecimento de então. Asclépio superou o seu mestre, de modo a tornar sua
atividade incômoda, já que salvava todos aqueles que lhe chegavam às mãos. Isso
estava despovoando o reino de Hades, o deus dos mortos, que foi reclamar com
Zeus, o deus maior. Como era costume naqueles tempos antigos, Zeus passou a
faca no pobre Asclépio (melhor dizendo, deu-lhe com um raio na cabeça),
fazendo-o virar uma constelação**.
Seu nome romano é Esculápio, o que elucida muita coisa. Nome
muito mais famoso que Asclépio, seu nome está no símbolo da medicina, o Bordão
de Esculápio, um bastão envolvido por uma serpente. Nele, o bastão tem o
sentido de domínio, como os cajados dos pastores, que os utilizam para
controlar suas ovelhas. Sabe de onde vem a palavra "bordoada"? Vem
disso. Já o réptil representa a cura, pela renovação de pele que faz de tempos
em tempos. A cobra sai de sua pele antiga como se estivesse renascendo, e é bem
comum o pessoal confundir o couro abandonado com uma cobra viva, tamanho o medo
que o bicho causa. Além disso, rememora-se que o veneno, uma vez atenuado,
torna-se fármaco. Um bom exemplo moderno é o Captopril, extraído como uma cópia
do veneno da bothrops jararaca, cuja principal ação é derrubar a pressão
arterial da vítima. Bem dosado, o medicamento controla a hipertensão. Desta
forma, fica representado o controle sobre o dualismo doença e cura, que era a
arte do semideus em questão.
Todavia, o fato de que Sócrates demanda ao amigo Críton que
lhe ofereça um sacrifício, muda em muito a justiça da penalidade que lhe foi
aplicada. Temos dois itens em sua acusação: desvirtuamento dos jovens, a quem
imputa ideias transgressoras; e impiedade, consistida nos desvios à religião
oficial.
Ora, a oferenda de sacrifícios não foi uma invenção
socrática. Ela é, como eu disse, uma prática imemorial, de complicado
desvelamento das origens, e que era prescrita através de ritos bem elaborados
no antigo paganismo grego, não consistindo em um rito particular que podia ser
levado a cabo a bel-prazer de quem se dispusesse a realizá-lo. Uma oferenda a Esculápio
pode ter dois significados. O mais óbvio deles é um agradecimento por uma cura.
Não temos notícias sobre padecimentos físicos relevantes, mas era um costume
semelhante aos que têm os cristãos, que fazem promessas a santos dedicados a
doenças. Sendo um especialista em curas, Esculápio poderia ter sido procurado
para mitigar eventuais dores, e, em troca, Sócrates teria oferecido o tal do
galo. Mas há uma possibilidade mais profunda, que coaduna com os dizeres de
Nietzsche sobre Sócrates. Acompanhem.
Como bem sabemos, Nietzsche não
gostava nadinha de Sócrates. Segundo o alemão, é com a ética socrática que
a vida instintiva dos trágicos gregos foi abandonada em troca do racionalismo,
uma forma de ver e pensar o mundo sob o ponto de vista dos fracos, dos
fracassados e dos menos adaptados. A obrigação que Sócrates repassa para Críton
é um epitáfio de toda a lógica que se inicia com o socratismo. Vejamos o que
ele diz na Gaia Ciência:
“Eu gostaria que também no último instante da vida ele
ficasse calado - talvez pertencesse então ainda a uma ordem mais alta de
espíritos. Mas, se foi a morte ou o veneno ou a devoção ou a maldade, algo lhe
soltou a língua naquele instante e ele disse: ‘Ó, Críton, devo um galo a
Asclépio’. Essa ridícula e terrível última palavra significa, para quem tem
ouvidos: ‘Ó, Críton, a vida é uma doença’".
Com seu estilo peculiar, Nietzsche nos dá uma boa dica e
pode estar certo. Se pensarmos que Sócrates vivia um momento de extrema
injustiça, e que ele sentia na pele algo que via pelo mundo, e que, pior ainda,
via o desconhecimento daqueles que deveriam conhecer o que é a justiça, é muito
lícito pensar que a sua condenação era parte de uma imensa doença, e que a
morte era a sua cura almejada. É bem verdade que Nietzsche via tudo isso sob um
ângulo absolutamente crítico, um desperdício de energia e de vida, mas não há
como não reconhecer que, independentemente de quem tem razão, o fim de Sócrates
denota, no mínimo, um erro daquela sociedade, do seu sistema de coisas e,
partindo da premissa de que os homens são estruturalmente iguais, repetível em
qualquer lugar. A vida é uma doença, diz Nietzsche sobre Sócrates, e, se assim
o é, faz bem o grego em render sacrifícios ao deus que o liberta do mal.
Essa é uma das provas de que a acusação contra Sócrates não
pára em pé, e como sua morte rompe com qualquer justiça. Isso o aproxima de
outros mártires, como discorri neste
texto, e falseia a tese de que ele não rendia culto aos deuses da cidade.
Talvez tenha sido, nesse sentido, um ato mais de didatismo do que verdadeira
devoção, e, com isso, obtendo um sentido mais autêntico do que a restituição de
uma mera lata de leite moça, como eu cheguei, tolamente, a pensar. Isso porque
contexto e conhecimento precisam se combinar para que não pensemos baboseiras. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
PLATÃO. Fédon. In: Platão. São Paulo: Nova Cultural,
1999. Col. Os Pensadores.
*Para quem não sabe, o SESC é o Serviço Social do Comércio,
uma entidade mantida pela iniciativa privada com dinheiro público para manter
ações educativas e culturais.
** A constelação de Ofiúco, da qual faz parte Esculápio, é
pedra no sapato dos astrólogos, porque, estando entre as constelações de
Escorpião e Sagitário, deveria ser um 13º signo do zodíaco.
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