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terça-feira, 22 de julho de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a injustiçada Portuguesa e os símbolos deixados de lado

(É bom se atualizar, mas sem que isso apague nossas origens)

“O senhor afasta muitos homens da velha tripulação para embarcar outros na outra margem: tenha cuidado para que não lhe aconteça perder os velhos sem encontrar os novos”.

Giovanni Guareschi

Olá!

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Quando eu era pequeno, morei por um brevíssimo tempo na vila do Manito, um imigrante português que veio para o Brasil em fuga da pobreza e das peripécias de Salazar, lá pela década de 40, em uma dessas travessas perdidas pela então semi-agrícola Vila Ema. Era um lugar curioso, porque não se tratava de um cortiço, mas de um beco sem saída em forma de “S”, todo feito de casinhas de cômodo e cozinha, iniciando pela venda do Manolo (outro português, ora pois), e terminando em uma pracinha onde ficava a casa maior, do próprio Manito. Uma passagem pela lateral garantia acesso à chácara do seo João, lindeira ao Córrego da Mooca, onde hoje reina o asfalto precário da Anhaia Melo. Bem ao fundo, havia um galpãozinho encimado por um tabique onde nosso herói criava pombos, e tudo isso ficava ao lado de uma fábrica de brinquedos, a Bandeirante. Acho que todo mundo já teve um brinquedinho de plástico dessa fábrica. Era evidente que sua intenção era ter uma vila de casas operárias com aluguel de baixo custo, para abastecer a tal fábrica.

Eu ainda era beeeeem criança, e, desse tempo, não lembro de quase nada. A questão é que minha nonna morava na rua paralela, e da laje de onde ela criava suas codornas e estendia suas roupas dava para ver todo o complexo do Manito, e, mais tarde, lá eu praticava uma rara atividade contemplativa: as revoadas dos pombos do nosso caro senhorio lusitano. Eles ficavam circulando toda a área que ia da fábrica à beira do córrego, por cima das chácaras. Faziam traçados que incluíam curvas suaves e repentinas, subidas e descidas, trocas de lideranças, em uma coreografia que me deixava dúvidas de seus motivos, mas que me encantava pela orquestração, que terminava com o pouso no barracão, todos juntos, como se fosse a esquadrilha da fumaça (sem fumaça). Ali, logo ao lado, um puxadinho permitia à dona Rosa, esposa do Manito, estender suas roupas, e daí ambos provavam suas origens e predileções: os coletes e bombachas do bailarico que participavam e as camisas da Portuguesa, a sua grande paixão.


A Portuguesa era, então, um dos grandes times de São Paulo. Uma mistura folclórica de azares inexplicáveis e má vontade arbitral fazia com que os títulos fossem raros, mas a Lusa estava sempre no topo das tabelas, formando esquadrões respeitáveis e, principalmente, disponibilizando muitos jogadores para o futebol brasileiro. Seus jogos contra os papa-títulos eram considerados clássicos, ou seja, a Portuguesa era um deles, um dos grandes, capaz de fornecer jogadores para a Seleção Brasileira e conquistar títulos mundiais, embora fosse atribuída a ela uma espécie de síndrome de Robin Hood: roubar pontos dos maiores para entregar aos pequenos. São pequenas coisas de um grande futebol, já diria Ary Silva.

Estranhamente, entretanto, as camisas que eu via nos varais do Manito não eram comuns de se ver por aí. Nos botecos que meu pai frequentava não se viam, nem na escola, nem nas ruas em que eu brincava. Nos jogos que meu avô me levava no Canindé, a torcida era sempre pequena, muitas vezes superada pelo adversário que a visitava. No Pacaembu, onde meu pai me levava, ela sumia, restrita a um cantinho do tobogã. E isso foi uma das perguntas que eu me fazia nos meus primórdios futebolísticos: por que ninguém gosta da Portuguesa?

Na verdade, a pergunta pós maturidade mudou um pouco, até mesmo porque eu gosto da Portuguesa, sempre fui bastante frequente em seus jogos, e vi gerações diferentes de ótimos jogadores, como Enéas, Toninho, Edu Marangon e outros, até mesmo em sua fase de derrocada, ocorrida após 2013. E, sim, já escrevi sobre ela. A pergunta passa a ser: por que a torcida lusa é tão pequena?

Eu tenho minhas teorias, muitas delas já pensadas por outras pessoas (poucos títulos, concorrência com times maiores, nicho imigratório), mas a principal delas diz respeito a uma contradição de identidade: ao mesmo tempo em que há um vínculo evidente com uma colônia específica, há também uma perda de tradições que faziam sua magia. Vamos detalhar.

As coisas são únicas não apenas porque se distinguem das demais, mas porque se mantêm assim ao longo do tempo. Mais: embora possa se compreender que a identidade é uma relação que se tem consigo mesmo, ela é rigorosamente necessária para que se estabeleça relações com os outros. Aquele que é único carrega consigo a característica de ser distinguível entre os demais, e oferecer justamente isso em suas relações. Afinal de contas, a maneira com a qual eu me apresento em uma relação já diz sobre mim. Pois bem.

A Portuguesa tem símbolos pesados, como as cores da bandeira portuguesa e seu próprio nome, mas que, volta e meia, pensa-se em mexer neles. Houve algumas vezes em que se pensou em mudar seu nome, ideia cretina na opinião deste pouco humilde escriba. Acabou não acontecendo, mas algo teria que sofrer respingos da tentativa de popularizar a equipe. A Lusa tinha como um de seus principais símbolos a Severa, sua mascote humana, coisa rara neste mundo que adota bichos e mais bichos para esta função. É uma dançarina de vira* com todos os trajes típicos, como o lenço na cabeça, o xale, o avental com o distintivo e as tamancas. Representa, portanto, uma das manifestações culturais mais típicas da comunidade portuguesa e mais distinguíveis dentre tantas etnias que temos em Terra Brasilis. Sempre que você for a uma festa das nações, é dessa forma que a comunidade portuguesa se apresentará, indefectivelmente. Sendo assim, a Severa é indubitável.

Acontece que a Portuguesa resolveu mudar sua mascote, passando a utilizar um prosaico, ordinário, trivial, corriqueiro, consueto, banal, comezinho leão, mais um dentre tantos. Há incontáveis times cuja mascote é um leão: Sport, Vitória, Fortaleza, Jabaquara, Remo, Bragantino, Mirassol, Avaí, Inter de Limeira, Cianorte, Comercial de Ribeirão, Villa Nova, Nacional de Manaus, Peñarol de Manaus, Baraúnas, Jacuipense, Hercílio Luz, Potyguar, Capivariano, Bandeirante, Taquaritinga, Inter de Lages, União Barbarense, entre tantos outros que não tive paciência para pesquisar. Fora os estrangeiros, como o Chelsea, Estudiantes, Bologna, dentre muitos outros. Nada contra os simpáticos leõezinhos, que representam força, reinado e tantos outros atributos associáveis ao futebol, até mesmo porque os motivos para a doação são diferentes para cada um deles, mas é que a Portuguesa trocou um elemento forte de identificação por outro muito menos concatenado às suas origens. A dançarina compartilhava unicamente seus dotes com sua coirmã do litoral, a Cachopa da Briosa, o que fazia todo o sentido do mundo. Com o leão, é um entre outros.

A ideia parece dupla: criar uma mascote popular e puxar o saco homenagear sua principal torcida, a Leões da Fabulosa. Essa organizada tem fama de ser pequena (quando comparada a uma Gaviões da Fiel da vida), mas extremamente engajada e, às vezes, meio brusca nas cobranças. Na verdade, conversando no miúdo, a ideia é tripla. Há também um fator muito mais doloroso, que já debati no texto sobre a coirmã santista. A Severa não é reconhecida por este nome pelas demais torcida, mas como “burra”, fruto do preconceito arraigado e tão conhecido contra os portugueses. Ou seja, o terceiro sentido está em uma ocultação, o que, se for verdade, é um erro desditoso. Mas vamos partir da premissa dupla, para não gerar polêmicas.

Ora (direis), símbolo é símbolo. O que resta de efetivo é o concreto, então é lícito que os símbolos sejam mudados e adequados a uma realidade distinta. Certo, interlocutor imaginário, símbolos mudam como a própria vida, mas a questão é que se mira a cabeça e não se acerta nem o pé se a escolha não for ponderada. Vemos milhares de leõezinhos tatuados em braços e pernas hoje em dia, demonstrando o quanto o símbolo de realeza e força é potente e popular**. Perguntado sobre o assunto, o tatuador que me traça rabiscos disse ser, de longe, a mais pedida de todas as figuras contemporâneas, a quilômetros de distância da segunda colocada. Portanto, leões são símbolos bem acolhidos sob vários aspectos. Mas o mascote não é um mero símbolo, e sim uma representação de uma marca com valor intrínseco, o que traz uma espécie de “promessa” fundamental, de que há algo nela que a distingue das demais. A marca marca, e é um elemento tão forte que, por vezes, é o ativo mais valioso que uma empresa possui. Pergunte à fábrica dos Sucrilhos© se você pode usar o tigre dela para fazer sua publicidade – você terá um sonoro “não” sucedendo uma gostosa gargalhada, ou, no mínimo, um orçamento impagável. Mascotes não são objetos que se trocam, como os bibelôs das estantes, porque carregam significados inapagáveis para quem os adota. A não ser em casos especialíssimos. E este não me parece um deles.

A mascote é um símbolo, e, como tal, traslada um sentido abstrato através de sua materialidade. Em outras palavras, seu valor concreto deixa provisoriamente de ser o que é para adquirir um novo significado. E nós não somos só nosso corpo material, mas também tudo o que nós queremos transmitir aos outros e a nós mesmos. Sentimos orgulho em vestir a camisa de nosso time e incorporar em nós toda a chuva de significados que ela nos traz, e dizer ao mundo que aqueles valores são nossos. Dizemos muito através dos símbolos, como a cruz pendurada no pescoço, o círculo pacifista dos hippies, as camisas pretas dos rockeiros. Tudo isso transmite uma mensagem ao mundo que nos rodeia, dizendo como gostaríamos de ser reconhecidos, e sua escolha, mesmo que feita de modo espontâneo, precisa de uma carga de intencionalidade. Até mesmo uma cruz gamada diz muito sobre o que alguém pensa.

É bem verdade que a Portuguesa vem tentando resgatar a Severa, mas não sei até que ponto pode ser tarde. Já há bastante problemas a resolver, embora a recente adoção do modelo SAF possa ser o sopro esperado para resolver o que parecia insanável. Eu faria fortes campanhas de reparação nesse aspecto simbólico também. Deixem o leão para a torcida, onde ele está em bom lugar.

Sendo assim, embora eu não me considere um conservador, tenho reservas a guinadas que, por um lado não conduzem a nada, por outro abandonam o que tínhamos de mais importante. A um mascote, é atribuído um poder semelhante ao de um talismã, ou seja, a atribuição de se trazer boas energias, de atrair sorte, e isso vai além da mera crendice. É o resumo de um sistema de valores e, sendo assim, não se troca assim como se muda de camisa. Não se muda de camisa de um time.

Mas, pensando aqui, um talismã, se atrai boa sorte, não atrairá seu oposto se abandonado? A se pensar***.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Esse eu tenho autografado. É um livro de rememoração da maior campanha dos tempos recentes da Portuguesa, que chegou à final do campeonato brasileiro de 1996, que levou consigo toda a torcida da cidade. Comprei em uma feira de camisas na estação São Bento, antes da pandemia, diretamente com o autor, colunista do site www.netlusa.com.br. Nem sei se fazem esses eventos ainda.

ZORZI, André Carlos. Para Nós és Sempre o Time Campeão. A Portuguesa de Desportos no Ano de 1996. São Paulo: Edição do Autor, 2017.

* Ao lado do fado, o vira é uma das expressões musicais mais típicas de Portugal. São como duas faces da mesma moeda: enquanto o fado é mais introspectivo, o vira é mais comemorativo, evocando as chegadas das épocas de colheita e abundância.

** E o quanto temos de evangélicos hoje em dia, especialmente com uma certa flexibilização do lastro moral que norteia a vaidade. A figura do Leão de Judá, uma das designações mais populares para Jesus nos meios cristãos, cresceu na mesma medida em que as referências explícitas à religiosidade do contribuinte se tornaram mais importantes. Quem sabe eu não escreva mais sobre isso?

*** Mera brincadeirinha. Não acredito em poderes metafísicos, mas não quis perder a oportunidade.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

De volta às águas e trilhos que ficaram para trás – 1º lugar: Campanha e as representações simbólicas que nos acompanham

(Vamos rodar o pequeno mundo de novo, e por lá vamos achar cobras e símbolos)

Olá!

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“Aprendamos, senhores, a sonhar, e então talvez possamos encontrar a verdade. Mas evitemos publicá-los antes de colocar os sonhos à prova do mundo real.” - Kekulé

Quando eu conto no meu serviço que eu não programo minhas férias, quase ninguém acredita. É que meus colegas costumam comprar com antecedência e parcelas suas estadias em lugares bem assentados, às vezes até no exterior, coisa que nunca fiz. Eu pego alguns dias quando me dão, e vou para onde é possível. Isso vai de uma dupla tendência minha: de não me endividar e de não criar gigantescas expectativas. Para quem vai ao mundo de mochila como eu, não faz imensas diferenças se vai ser hoje ou na semana que vem. E meto as caras, sem saber se vou encontrar estada. Quase aconteceu dessa vez.

O fato é que, mais uma vez, quando eu e a patroa pegamos a bagagem, não sabíamos muito bem para onde ir. Havia o problema do feriado: ir para grandes destinos corresponderia a grandes gastos e pequenas chances de achar lugar. Fizemos um meio termo, indo para o Sul de Minas Gerais mais uma vez, desta feita para passar por cidades que tínhamos deixado para trás em nossas três viagens anteriores, o que fizemos. Começamos passando a noite em Lambari, já que conseguimos achar um único quarto penduradíssimo, graças a um atraso pelo seu ocupante, e teríamos que deixá-lo já no dia seguinte. Deu tudo certo no final das contas e começamos a jornada pela cidade de Campanha.

Campanha é uma cidade que, embora não possua grandes mananciais de água mineral, nem mesmo um parque de águas, faz parte do Circuito de Águas Mineiro porque seu território era imenso, e abraçava todas as cidades do circuito, como a citada Lambari, Cambuquira, Caxambu, São Lourenço e tantas outras. Praticamente todo o Sul Mineiro era a área desta cidade, formando uma grande reunião de diversidades, mais ou menos como ocorreu com Mogi das Cruzes em São Paulo. Porém, esta última manteve, mesmo após seu grande desmembramento, uma área ainda bastante grande (é o maior município da região metropolitana, excluída a capital) e uma população bastante significativa, de aproximadamente 450.000 pessoas. Já Campanha ficou bastante reduzida, com uma população que tem em torno de quinze mil habitantes. Seu núcleo central, no entanto, ainda preserva boa parte de construções originais, dando bom exemplo dos estilos arquitetônicos nascidos no império.

Entretanto, o exemplo mais ostentativo que poderia estar disponível não existe mais. Um solar oitocentista que servia como residência para duas das famílias mais ricas do sul de Minas Gerais foi consumido pelo fogo em 1996, e dele só restaram as colunas de sustentação em pedra e os fundamentos do piso térreo. Hoje as ruínas estão sob responsabilidade da Universidade Estadual de Minas Gerais.


Consegui fotos do imóvel original e do incêndio que lhe reduziu a pó no trabalho “Entre Passagens e Memórias: as Ruínas de um Sítio Arqueológico Histórico Mineiro e os Indivíduos que o Reafirmam”, dos pesquisadores Leonardo V. Klink e Dora Shellard Corrêa. Era, de fato, muito belo.

Restou ao lado do local a praça do Obelisco, em frente à qual está situada a Igreja de Nossa Senhora das Dores, construída no finzinho do século XVIII.

Aliás, o obelisco é esse, um distintivo fálico típico para representar uma identidade coletiva local e demarcar datas significativas para essa comunidade. Aqui, temos a rememoração da elevação à condição de vila e de transformação em município.

Outro marco arquitetônico importante de Campanha é a sua igreja principal, a Catedral de Santo Antônio, construída em taipa de pilão. Seu tamanho é atípico para igrejas construídas nesse material, sendo uma das maiores do Brasil.

Na praça defronte, muita coisa típica de cidades do interior, como o coreto, as barracas e as homenagens aos próceres da terra, dentre os quais o filho mais célebre desta terra, o cientista Vital Brazil, biólogo que foi o criador do soro antiofídico.


Um pouco mais abaixo, em meio a estas e outras construções históricas, está a sua casa.

A casa por si só já é uma amostra interessante da arquitetura da época de sua vida, mas também abriga um museu com várias fotos, documentos e objetos, muitos dos quais cedidos por outras instituições, como, por exemplo, o Instituto Butantan de São Paulo.

Há diversas amostras de animais peçonhentos, com painéis explicativos das descobertas de Vital Brazil, especialmente da lógica por trás de suas ações. Olhem uma estranha “cortina” feita com o couro de uma imensa sucuri:

Não somente há material científico, mas bastante informação pessoal de sua vida, como as pinturas retrativas dele e de suas esposas. à esquerda, sua primeira mulher, Philipina, de quem ficou viúvo em 1913. Do outro lado, Dinah, com quem se casou em 1920.

Dentre outras curiosidades, uma mais ou menos sinistra, que não se usa mais: sua máscara mortuária.

Agradecemos à simpatia da Tainara, que enriqueceu nossa visita com muitas informações sobre a vida e o trabalho do cientista, além dos dados sobre a construção em si.


Como se pode ver logo na entrada da cidade, na primeira foto, há uma representação do filho ilustre segurando uma serpente. É a reprodução de uma de suas fotografias mais famosas, e carrega, além do significado concreto, uma simbologia bastante forte: a do homem dominando a natureza. Afinal de contas, sabemos que as cobras são bichos perigosos desde sempre, e uma picada em épocas anteriores à criação do soro deste mesmo Vital Brazil significava grande perigo à vida. Essa relação de medo e até encanto criou um sem-número de histórias que envolvem esses bichos fascinantes. Isso pode ser demonstrado pela imensa quantidade de lendas envolvendo o réptil, algumas delas fundantes de nossa sociedade.

Evidentemente, quando olhamos concretamente para a questão, observamos que serpentes deixaram de ser problema nas grandes cidades e, por ações como a de Vital Brazil, diminuíram muito no meio rural. Se for possível haver um frasco de soro antiofídico nas proximidades, o risco de acidente por picada diminui consideravelmente. Mas não diminui a quantidade de referências simbólicas, que permanecem com a mesma força de sempre, e talvez possamos deduzir que o símbolo é ainda mais poderoso do que o próprio fenômeno por ele é representado.

Quando você quiser ter uma dimensão exata do medo que a serpente traz, procure por uma pessoa que tenha vivido por longos anos na roça. Eu tenho como exemplo meus sogros, que viveram no interior do Paraná até se casarem, quando finalmente vieram para São Paulo. Em uma época em que os meios de salvaguarda para acidentes com cobras eram ainda escassos, encontrar uma bicha dessas enrolada embaixo da cama era um temor recorrente. O sogrão nem se incomoda com baratas e outros bichos; o que são eles diante de um animal com peçonha mortífera? Já a sogra se arrepia até de ver uma cobra na tevê, que fará se o fizer pessoalmente? Então a primeira carga simbólica que temos é o medo, que é bastante eficiente para múltiplas causas. Mas os símbolos são tudo isso mesmo?

A lógica do símbolo é inerente à humanidade. Enquanto a vida é, para a esmagadora maioria dos animais, uma função biológica, para nós, os caniços pensantes, os bípedes implumes, tem seu melhor significado no plano social, sintetizado em especial na nossa cultura, que não se constrói sem símbolos. Basta saber que é necessária a existência de todo um sistema simbólico para expressar a linguagem, parte integrante não só dos aspectos emocionais, mas do próprio mecanismo racional da mente. Não existe linguagem sem símbolos, simples assim. Isso dá uma dimensão aproximada da sua importância na nossa constituição como seres humanos. Para remeter a conteúdos com altíssima carga simbólica, que substituem uma narrativa concreta, muitas vezes eles são os únicos recursos que temos. É o caso das lendas e relatos de criação, que veremos já, já. Como não temos nenhum relato direto de um evento tão seminal para a história da humanidade, é natural que se busquem explicações com base em deduções e, óbvio, simbolizações.

Sabemos que os animais são utilizados em profusão no plano simbólico. Uma borboleta é símbolo de beleza e transformação; uma tartaruga, de paciência; um cavalo, de inexorabilidade; um cão, de fidelidade e assim sucessivamente. Entretanto, como a serpente é vista como um ser dual, sua simbologia é muito mais complexa. Ao mesmo tempo que tem seu decantado perigo, também é vista como animal sagaz, que se vira com uma limitação física inimaginável para nós, humanos. Quando olhamos para a concepção filosófica grega, por exemplo, notamos que a serpente é a síntese do pharmakon, a substância que tanto serve para remédio quanto para veneno, e isso é refletido no distintivo da medicina, representado por uma cobra que se enrodilha em um bastão, conhecido como báculo de Esculápio (de quem falei bastante neste texto). E a medicina moderna comprova como esse símbolo pode ser concrescível. A substância conhecida como Captopril, consagrada para tratamento de hipertensão, é originária da estrutura química do veneno da serpente bothrops jararaca, porque se percebeu que os indivíduos vitimados por seus ataques eram acometidos por uma queda abrupta de pressão arterial, resultando em parada cardíaca, sua principal causa mortis.

Esse é o motivo pelo qual a serpente é um símbolo múltiplo, e carrega consigo aspectos que podem ser negativos, como a perspectiva de morte e de sofrimento, ou positivos, como a astúcia e a sagacidade (como se virar sem ter membros?), além de ser um dos melhores símbolos de renascimento, como a fênix que ressurge das cinzas. Vamos falar sobre isso no decorrer do texto.

Sabemos como o medo é um motor em nossas vidas, e, quando ele é exacerbado, faz com que tenhamos não somente ele em si, mas uma reverência. O objeto do medo ganha não só uma vontade de distanciamento, mas uma espécie de admiração, porque é uma representação de poder, e isso transforma a relação com que nos damos com ele. E isso influencia toda uma cultura. Quando pensamos em mitos fundantes onde tenhamos o uso simbólico da serpente, é impossível não pensar no Gênesis, a narrativa abraâmica de criação do universo. Nela, após toda a criação estar concluída, temos a confrontação entre a divindade e a criatura na forma de desobediência. Diz a história que foi dada toda a liberdade aos homens para dominar a Terra, alimentando-se daquilo que melhor lhe apetecesse, exceto dos frutos da árvore do centro do jardim. Tudo deu certo até a serpente induzir o casal originário a descumprir a ordem divina, o que originou toda forma de sofrimento que conhecemos até hoje. As religiões mais simplistas e literalistas dizem que a serpente representa a ação diabólica, que se opõe a deus. No entanto, uma visão mais elaborada permite supor que a serpente aqui utilizada é a representação da vontade de autonomia dos homens perante as determinações divinas, o que é considerado um mal, tendo em vista que a explicação para a proibição vem na forma de ameaça: certamente morrereis*. A serpente, aqui, portanto, significa o espírito transgressivo inerente ao humano, e, com sua derrota, estabelece-se uma relação hierárquica basilar do modo de vida ocidental, que podemos verificar até hoje em nossa estrutura social. A lição que fica é que a humanidade precisa temer seus próprios impulsos, e retraí-los em nome de uma autoridade superior. Nietzsche ama até a raiz da medula.

Outro significado atrelado às serpentes está na estrutura cíclica da existência. Como eu disse um pouco atrás, as cobras representam uma constante renovação, como a fênix que ressurge das cinzas. Isso vem desde o tempo de esplendor do império egípcio, e costuma ganhar representação na forma do ouroboros, a cobra que morde a própria cauda (vide aqui um exemplo). Esta representação certamente está vinculada ao fato de que as cobras são animais que renovam sua pele de tempos em tempos, e aparentemente o fenômeno faz parecer que uma cobra saiu de dentro da outra, como se a pele deixada para trás fosse uma vida que se abandona para retomá-la em um novo revestimento. Esta construção simbólica é tão poderosa que ajudou a solucionar um difícil problema químico do século XIX, embora possa parecer revestido com a aura de lenda. August Kekulé era um químico alemão que tentava desvendar a estrutura molecular do benzeno, um solvente líquido de aroma bastante peculiar. Era um problema difícil, porque a maneira com a qual os elétrons se organizavam em sua órbita era contraditória. Cansado de tanto estudar, começou a cochilar à frente de seus livros, quando lhe surgiu a imagem de uma cobra que mordia o próprio rabo. Ela saltava e se apresentava risonha, como se escarnecesse do cientista, como se dissesse: “idiota, olha a forma que você busca”. Ao se tornar novamente em vigília, Kekulé deduziu que a molécula de benzeno poderia ser descrita exatamente como o ouroboros: em forma de anel, com o compartilhamento dos últimos dos elétrons de sua cadeia. Não se trata de um mero exercício de vaticínios por meios místicos, mas um formato de pensamento que estava expresso nos sonhos através do símbolo. Não é sensacional?

Com uma temática tão abrangente, não é de admirar que a cobra seja um símbolo quase universal. Aqui mesmo no Brasil há inúmeras lendas que incluem o sagaz réptil, sempre como sinal de perigo e de esperteza, algumas vezes de maldade, de extinção, de vingança. Boitatá, Cobra Norato, a gigantesca serpente adormecida sob a igreja da cidade de Silvânia, pronta para despertar e devorar todo mundo se a mesma for derrubada; a serpente que cresce sem parar sob a cidade de São Luís, e que a arrastará para o fundo do mar quando encontrar seu rabo e inúmeras outras existem aos borbotões em um país que convive com ofídios em todo o seu território, demonstrando como a humanidade é mesmo toda parecida, como diriam os estruturalistas.

O resumo todo da ópera é que temos uma série de histórias e sentimentos que não tem como ser materializados, a não ser através dos símbolos. Sua aplicação primária é arbitrária, nascida a partir de um indivíduo, mas que possui fácil consenso, porque há alguma relação de semelhança ou contiguidade entre representação e representado, como a cobra e a morte, e a coletividade à qual esse indivíduo pertence facilmente vê evocado os mesmos sentimentos, adotando o símbolo. É fácil de fazer um exercício. Procure pensar no amor materializado. Você vai pensar na esposa, nos filhos, nos pais, em uma grande obra de caridade, em algum santo, em um coração, sei lá. Como se trata de uma abstração, não será possível imaginar um amor concreto, apenas seus reflexos: a patroa, os rebentos, etc. Eles não são o amor em si, mas representações simbólicas do amor, que as pessoas como um todo sentem e compreendem. Idem ocorrerá com qualquer outro sentimento - saudade, ternura, ódio, medo… Uma das melhores representações do medo é formada por um animal astuto e agressivo, que, por parecer reencarnar, é eterno. A serpente é um símbolo e tanto para concretizar o medo, dentre outras simbologias.

Depois de visitar a casa de Vital Brazil, fomos procurar um lugar para comer em Campanha, atividade obrigatória para quem está em Minas Gerais. Até a próxima cidade e bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para o interessante livro abaixo, onde os antropólogos se dedicam longamente à interação entre os símbolos e a constituição das diferentes culturas humanas.

WHITE, Leslie; DILLINGHAM, Beth. O conceito de cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.

* E que, no final das contas, nem foi verdade, já que, apesar das punições, o casal original continuou vivendo e populando a Terra.