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terça-feira, 19 de novembro de 2024

Pequeno guia das grandes falácias – 71º tomo: o ilícito menor

(Fazia tempo que eu não fazia um texto sobre falácias. Vamos nessa.) 

“Afirmar que os predicados podem ser sempre combinados sem qualquer exceção acarreta evidentemente muitos absurdos” 

Aristóteles

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Eu, a rigor, não sou um cara muito polêmico. Todos esses anos tendo que lidar com meus usuários (de sistemas) me fez criar uma política de boa vizinhança, primeiro porque é uma questão de educação, depois porque só assim as coisas saem do lugar em um universo francamente conservador, cuja menor virada de chave faz parecer que você está arrancando um órgão da pessoa. É fato. Já vi gente reclamando que vai ficar com tendinite por usar mais o mouse que o teclado, que ainda é usado como se fosse máquina de escrever. E é a mesma pessoa que aprecia mudar de ares, mudar de visual, mudar de cônjuge, e detesta mudar a cor da grama quando se trata de trabalho.

Mas não tem jeito. Há medo envolvido, há comodidade, há até vaidade, então é preciso procurar ser compreensivo. Mas mesmo com a condescendência e a paciência, certas armadilhas retóricas são inevitáveis, porque não conseguimos nos resguardar cem por cento do tempo. E vamos combinar que nem sempre queremos fugir do bom combate.

O caso que deu origem a esse prólogo foi simples, ou seja, não envolveu nenhum tipo de perigo, já que a coisa se desenrolou NO serviço, mas não EM FUNÇÃO do serviço.

A coisa foi mais ou menos assim: há uns tempos, quando queríamos testar funcionalidades novas, fazíamos uma cópia dos dados gravados em uso e vamos que vamos. Em decorrência da LGPD, que exige uma série de cuidados no trato com os dados, quando estamos homologando nossos trabalhos hoje em dia fazemos cargas com nomes fictícios. Tem gente que usa nomes genéricos, como Teste1, Teste2 e etc. Tem gente que usa os Lorem Ipsum da vida e tem gente que carrega nomes de fato, mas de pessoas públicas, para dar uma cara mais realista ao que se homologa. Um dos analistas com quem trabalho costuma usar nomes de pilotos de Fórmula 1, uma paixão sua (e minha). Lá está todo o grid atual, com Max Verstappen, Charles Leclerc, Pierre Gasly, Lewis Hamilton e todos os demais, assim como algumas feras do passado mais conhecidas, dentre eles Alain Prost, Nigel Mansell, Niki Lauda, além, é claro, do indefectível Ayrton, Ayrton, Ayyyyyyyyyrton Senna do Brasil!!!

Entre mim e ele, há uma diferença substancial de idade. No fatídico 01 de maio de 1994, ele era um bebezinho de fraldas, enquanto eu já era pai de duas crianças. Ou seja, entre nós, a testemunha ocular da tragédia era eu. O comentário sobre a carga de nomes automobilísticos inexoravelmente levou ao bate-papo que culminou com o falecido piloto, seus feitos e defeitos. Defeitos? Por incrível que possa parecer, o tema é espinhoso até os dias de hoje, trinta anos depois.

A cena é simples. O moço de seus trinta anos não testemunhou os feitos do grande piloto, embora haja YouTube com material à beça para ser assistido, livros e séries, com uma bastante recente fazendo falas por aí. Mas ele é fã, como se estivesse nos autódromos do mundo acompanhando a carreira desde o kart até a fatalidade. Eu não sou fã do Senna, já expliquei no texto em questão, porque não tenho ídolos no automobilismo. E eu externei isso, para meu desgosto.

A resposta veio seca: então você não é brasileiro.


Isso mostra que o piloto em questão é um símbolo que é defendido como defendemos nossos totens, nossos ícones, nossos objetos sagrados, e isso acontece porque sentimos o sagrado como parte de nós mesmos, e isso aumenta a veemência da resposta na mesma medida em que diminui a sua racionalidade, o que é, em casos extremos, perigoso até. Não se trata do momento em questão, mas pode derivar para isso.

Mas eu não desci do pedestal. Respondi que dizer que não sou brasileiro é uma falácia: o ilícito menor. Pelo inesperado, meu jovem colega me olhou com cara de ET, e tive que me explicar, para nunca esquecer do espírito professoral.

Sempre que pensamos em falácias, temos em mente uma intenção de engodo, o que é feito na base dos argumentos exagerados, ou com foco restrito, e assim por diante. Entretanto, existem argumentos que são construídos com defeitos lógicos, que são as chamadas falácias formais. Aqui, o erro não está propriamente na intenção, mas nos alicerces da proposição. Sabemos o que acontece com uma casa com mais alicerces.

Para explicar melhor, tenho que passar pela parte chata e mais técnica de explicar a estrutura dos silogismos, a ferramenta aristotélica que pretende utilizar a dedução para validar argumentos.

Grosso modo, existem duas formas clássicas de silogismo: o categórico e o hipotético. Como o que nos interessará no momento é o primeiro, vou dar uma espanadinha de leve no segundo. Silogismo hipotético, como o próprio nome diz, é voltado a estabelecer estrutura lógica em hipóteses, bem ao tipo daqueles “se… então”. Um argumento desse tipo bem simples é construído assim:

Se meu time vencer a final, será campeão.

Meu time venceu a final.

Portanto, meu time é campeão.

Ou seja, a conclusão é a confirmação de uma hipótese. Mas nos interessa hoje o silogismo categórico, e vamos nos debruçar sobre ele. Um silogismo é categórico quando ele propõe peremptoriamente um argumento, sendo que, uma vez cumprida as premissas, a conclusão seja de rigor.

O silogismo categórico, dessa forma, é uma forma de síntese de uma aplicação lógica, onde a linguagem expressa um fenômeno da realidade. Como pretende ter caráter veritativo, possui algumas regras para que funcione a contento. Vamos a elas.

1. Todo silogismo contém três termos:

Os silogismos não são meras frasezinhas bonitinhas, mas são encadeamentos linguísticos que se assemelham aos componentes de uma máquina, que interagem entre si para produzir um trabalho.  Silogismos possui três peças a quem damos o nome de termos: um termo maior, que faz referência a um universo mais abrangente; um termo menor, que limita o alcance do entendimento e dá mais precisão a ele, e um termo médio, que se encarrega de unir os outros dois e fazê-los desembocar em uma conclusão.

No silogismo por excelência, aquele do Sócrates, podemos ver com facilidade essa mecânica.

Todo homem é mortal

Sócrates é homem

Portanto, Sócrates é mortal

A primeira premissa tem abrangência universal, já que fornece um aspecto comum de toda a humanidade. A segunda particulariza em Sócrates o seu pertencimento ao sujeito prescrito na premissa anterior. Unidos pelo ponto comum (termo médio), deságuam na conclusão de que, por pertencer a um universo (todo homem), o particular (Sócrates) compactua com sua característica.

2. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior do que os das premissas:

Quando falamos em extensão de um silogismo, referimo-nos ao campo que a proposição alcança. Via de regra, podemos ter abrangência universal, particular múltipla, particular individual ou nenhuma, assim: quando eu falo em “todos”, estou me referindo à totalidade de um determinado sujeito, como “todas as pessoas”. Se eu falo em “alguns”, falo de parte das pessoas de um grupo. Se falo em um indivíduo específico, posso mencionar um nome, por exemplo eu mesmo, e a particularidade desce ao seu menor grão, o indivíduo. E se falo em “nenhum”, a aplicação é a ninguém. Em termos de extensão, essa ordem vai da maior para a menor, e a conclusão não pode indicar mais do que está sendo discutido nas premissas. Se eu estou falando em “alguns homens”, não posso concluir disso algo que atinja toda a humanidade.

3. O termo médio não pode constar da conclusão:

O termo médio existe em um silogismo para amarrar as premissas, e, por conta de seu próprio funcionamento, precisa estar ausente na conclusão. Distribuir um termo médio significa exatamente fornecer a porção que cada premissa terá na construção da conclusão.

4. O termo médio deve ser aplicado universalmente pelo menos em uma das premissas

O termo médio precisa alcançar toda a sua extensão ao menos em uma das premissas, do contrário sempre haverá um gap de elementos que poderá não ser atingido, o que impede o silogismo de ser categórico. Se eu falar que alguns homens são mortais e que Sócrates é homem, não conseguirei deduzir se ele faz parte do grupo dos alguns homens que são mortais ou não.

5. De duas premissas particulares, nada se conclui

Decorrência da regra anterior, também aqui é impossível chegar a uma conclusão firme, por falta de extensão.

6. De duas premissas negativas, nada se conclui

Mais uma vez, temos a questão da abrangência. Se eu estou negativando ambas as premissas, não tenho como firmar um entendimento que leve a alguma conclusão. 

7. De duas premissas afirmativas, não pode ser extraída uma conclusão negativa

Essa é a mais óbvia de todas. Se eu afirmo duas vezes alguma coisa, não há sentido em se chegar a uma conclusão negativa sem incorrer em erro. Quando eu falo que todos os homens são mortais e que Sócrates é homem, não há nenhuma maneira de torcer o argumento para dizer que Sócrates NÃO é mortal. Sem gracinhas de dizer que ele se eterniza em sua obra, por gentileza. Nossa referência é bem clara.

8. A conclusão sempre segue a premissa mais fraca 

O que são as premissas fracas? São aquelas que atingem mais frouxamente um argumento. Quando afirmamos uma coisa ou a atribuímos à universalidade, havemos de concordar que sua abrangência é muito maior do que um argumento que nega ou que se refere a apenas uma parcela dos objetos. Ainda assim, a conclusão, quando envolve uma negação ou o direcionamento a um particular, deve segui-los, porque uma conclusão não pode afirmar mais do que as premissas permitem.

Bom… como podemos construir um silogismo a partir da afirmação de meu camarada? Vamos tentar.

Segundo posso inferir, ele expressa que todo brasileiro tem algum ídolo, preferencialmente o Ayrton do Brasil. No entanto, existem pessoas que não possuem ídolos, e que, portanto, esses não são brasileiros. Colocando em forma de silogismo, temos…

Todos os brasileiros possuem ídolos 

Algumas pessoas não possuem ídolos

Portanto, todas as pessoas que não possuem ídolos não são brasileiras.

Onde está a falha deste argumento? Observemos que a premissa menor, a segunda, indica que temos uma extensão particular, ou seja, que diz respeito a uma parte dos objetos para os quais vira seu foco, já que falamos que há algumas pessoas sem ídolo, e não todas. Mas o que temos na conclusão? O mesmo termo tomado em toda a sua extensão. Quando fazemos uma afirmação dessa, é possível ver que há uma falha em sua estrutura, que não permite realizar a maior de todas as assertivas sobre o silogismo: a verdade das premissas garante a verdade da conclusão. E isso ocorre por haver quebra na última regra, a de que a conclusão segue a premissa mais fraca.

Por se tratar de um defeito relacionado a um uso indivíduo da premissa menor, esta falácia formal recebe o nome de ilícito menor. Não se trata, evidentemente, de um crimezinho de pouca monta, como uma contravenção ou roubo de galinha, porque a ilicitude no caso se dá no uso indevido de uma forma dedutiva aplicado à premissa menor, que, no caso, é particular, mas aplicada como universal.

Esse salto lógico normalmente é usado sem má intenção, talvez apenas com pressa ou vontade de firmar posição, principalmente porque, a depender da complexidade dos detalhes, pode ficar bem oculto. Mas tem momentos em que passa despercebido.

Fiquem tranquilos, não fiquei de mal do amiguinho. A coisa passou como quase tudo na vida, e até voltamos a falar do tema sem ressentimentos, apenas com as posições mais bem marcadas. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Não se fala em lógica formal sem se falar em Aristóteles, e vou bisar a recomendação aqui.

ARISTÓTELES. Organon. Bauru: Edipro, 2005.

E vamos ter uma série dramática sobre Ayrton Senna sendo lançada na Netflix no finzinho deste mês. É a primeira recomendação antecipada que faço, embora não esteja com bom palpite. Normalmente o que temos nesses casos são panegíricos que reforçam características que o personagem não tem, tornando-o falsificado. Prometo fazer um texto sobre ela.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O café filosófico do quotidiano – o tempo irreal da lógica

(Uma contradição lógica pode nos provar que o tempo não existe?)

“E o ar que já passou pelos pulmões

De tão velho já quer ir descansar

Daqui pro futuro falta só um piscar

Que é pro tempo não mais nos enganar” 

John Ulhoa, Pato Fu

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Depois de um longo e tenebroso inverno, trouxe para casa a joia da coroa. É um flagrante exagero, porque não passa de um método de extração de café que eu queria comprar faz tempo, mas cujo preço era proibitivo para um sujeito de minha renda. Acontece que os mecanismos de oportunidade da internet provaram sua utilidade. Deixei a intenção cadastrada já há mais de um ano, e uma notificação veio na telinha do meu celular, quando já nem ligava mais, causando-me estranheza pela pouca memória. Indicaram uma promoção muito boa em uma loja virtual, com preço reduzido e parcelas sem juros. Mesmo que um pouco dolorido ainda a tão delicado órgão, veio aquela perigosa sensação de “agora ou nunca” e mandei bala no cartão de crédito. Agora ele está lá, curtindo seu momento de primazia dentre os demais métodos. É a cafeteira de elegante nome Eva Solo.

A produtora do utensílio é uma empresa dinamarquesa especialista em inovações em design. Estruturalmente, é uma garrafa em vidro borossilicato onde se coloca café moído bem grosso, porque não se fará uma percolação convencional, mas se deixará em infusão por um tempo específico para fazer a extração.

Passado o tempo adequado, a filtragem é feita pela própria tampa, que retém os resíduos no momento em que o café é servido. Seu lado positivo é o corpo que dá à bebida, vez que retém pouquíssimo dos óleos naturais do grão. 

O objeto não é caro à toa. O filtro cônico de metal é encaixado de forma a evitar que se formem os temidos pingos que as vovós tanto detestam em suas toalhas, e a tampa tem um engenhoso sistema de abertura e fechamento automáticos para completar a função de servir.


A sofisticação chega ao ápice através de uma jaqueta de neoprene com zíper que é ajustada ao corpo esbelto da Eva, como se fosse uma mocinha surfista, ajudando a manter a temperatura e (dizem) diminuir o processo de oxidação do líquido, tornando a peça esteticamente única.


Nome do utensílio: Cafeteira Eva Solo

Tipo de técnica: Misto (Infusão e filtragem)

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: Deposita-se o pó no fundo da garrafa de vidro e despeja-se a água fervente, em tempo suficiente para uma extração adequada. Após, encaixa-se o filtro e a tampa no bocal para exercer a função de despejo do café.

Resíduos: Altos. Convém não despejar a totalidade do líquido nas xícaras 

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: médio/alto

Como todo método de infusão, o tempo é componente primordial neste tipo de extração. Se formos açodados, a extração será insuficiente e obteremos uma desanimada água de batata. Pelo contrário, se formos distensos, teremos um amargor digno das zurrapas de beira de estrada, o que é igualmente indesejável. Por esses motivos, métodos de infusão exigem um cuidado maior com o fator tempo para obter a bebida na medida certa.

Vou pensando nisso e o tempo vai passando, passando e passando, e eu pensando, pensando e pensando. Por fim, o toque de minutagem da balança me acorda do devaneio e vou servir o café, ainda tendo a cabeça numa forma de concretude do tempo, que não consigo vislumbrar, nem no relógio que demarca o prazo da extração, nem na posição da patroa que me aguarda já acordada na cama. Se o tempo não é concreto, por que dizemos que ele existe?

Aí é que está. Algo que não é tangível não é necessariamente inexistente. Não me refiro a entidades mágicas ou deidades, mas àquilo que damos o nome gramatical de substantivos abstratos, ou seja, objetos que possuem uma substância, uma existência real, mas que só operam em nível mental – abstratos. Está aí, evidentemente, toda sorte de sentimentos e sensações. Talvez os tais seres imateriais possam ser traduzidos em imagens concretas – pense em um anjo. O mesmo não acontece com os substantivos abstratos, que precisam emprestar de um substantivo concreto uma forma de lhes representar. Daí, temos os corações que representam amor, mas que não são amor em si, gelos que representam frio, mas que não são o frio em si, e assim sucessivamente.

E o tempo? É um substantivo concreto ou abstrato?

É possível encaixar argumentos nos dois lados. Se por um lado a representação de um relógio, uma ampulheta ou uma engrenagem que gira cumpre o mesmo papel de substituição típico dos abstratos, é inegável que a visualização das mudanças em nosso redor vai além das meras sensações, e a própria sucessão de eventos é a concretude dos tempos. Se o tempo pode ser medido, ele é concreto, como não acontece com o ódio, a ternura, as saudades, o tédio, a justiça, a misericórdia.

Será?

Às vezes a abordagem sobre o misterioso tempo é uma questão de lógica. Faz sentido conceder concretude a algo que é inerente à percepção humana? Sim, pode até ser que o tempo seja aplicável a cães e baratas, mas o fato é que eles não estão nem aí para relógios ou calendários. Mesmo que o tempo exista concretamente, ele só se aplica a nós.

O mesmo acontece com a lógica. Um leão não come a gazela porque é lógico que a coma, mas porque tem fome. Essas inerências e inferências são igual e tipicamente humanas. Portanto, é lícito dizer que, para que o tempo seja real, é preciso que ele seja lógico. Não lhes parece?

Pois bem. John McTaggart, filósofo inglês de cunho idealista, discordaria desse assertiva, e, por esse motivo, pensava ser o tempo uma irrealidade explicada unicamente pela percepção humana. É uma tese bastante complexa, na qual dei uma breve e insuficiente pincelada no texto onde eu falava sobre Filosofia do Tempo. Vou aprofundar um pouco melhor a partir de agora.

McTaggart parte do princípio aristotélico de que tempo é movimento. Se o mundo inteiro congelasse completamente por 30 minutos, por exemplo, esse lapso temporal não significaria nada, já que nada poderia ser percebido de diferente. Sendo assim, essa meia hora poderia ser uma hora inteira, um dia inteiro, a vida inteira. Também não vale aqueles exercícios budistas de meditação: o que está parado é o corpo, mas a mente está girando tanto quanto o sangue e o ar nos pulmões. Movimento imperceptível não é ausência de movimento.

Sendo o movimento um componente indissociável do tempo, existem dois eixos por onde este trafega: um que descreve o princípio da causalidade e outro que posiciona os eventos com relação ao momento.

O primeiro descreve a ordem com as quais os fenômenos acontecem no transcurso da história: o que vem antes, o que acontece no momento e o que ocorre depois. Se formos perceber bem, notaremos que este é o plano estático do tempo. Não temos como mudar o que tem anterioridade, o que tem simultaneidade e o que tem posteridade. Não há como o centroavante cabecear a bola antes que o ponta cobre o escanteio. E não há como ser assinalado o escanteio sem o corte providencial do zagueiro. A longa cadeia de nexo causal faz com que esse eixo seja, portanto, estático, e aplicável a toda a história. Sempre a Revolução Francesa terá acontecido antes da Revolução Russa, que sempre será concomitante à Primeira Guerra Mundial, e a Segunda sempre lhe será posterior, até porque, para que os fatos transcorram como transcorreram, é preciso que se desenrolem nessa ordem.

Aqui, começamos a perceber algumas colisões. Se esse eixo é estático, então pressupomos um imobilismo, já que é impossível trocas de posições dos eventos e, consequentemente, dos movimentos. Sendo assim, é preciso que exista um plano dinâmico, onde se possa observar movimentação. E é aqui que entra o segundo eixo.

Quando pensamos em qualquer tipo de evento, nós podemos imaginá-lo com relação a um referencial: se penso em algo que já aconteceu, temos o passado; se está acontecendo agora, é o presente, e se ainda ocorrerá, o evento é futuro. Este plano é dinâmico porque os estados se transformam. Algo que hoje é futuro, será presentificado e tornar-se-á passado, assim como o que está no passado, já foi presente e futuro. Dessa forma, ao contrário da série B, encontramos aqui dinamicidade e, consequentemente, movimentação, fator essencial para reconhecimento do tempo.

McTaggart deu ao trânsito passado-presente-futuro o nome de série A, e à anterioridade-simultaneidade-posterioridade o nome de série B. O grande problema é que, olhando para o sentido lógico, elas são contraditórias em si mesmas e entre si, e este é o cerne no argumento do inglês.

Começando pela série B. O entendimento de fixidez que a mesma contém não permite supor que um evento seja variável. Quando eu idealizo o tempo como uma régua, onde é possível vislumbrar que um evento acontece antes ou depois de outros, verifico que, se fosse factível a sua variabilidade, teríamos então ferido o princípio lógico da não-contradição, consagrado desde os tempos aristotélicos (vide). O eixo estático não permite antever posições variáveis, porque como as posições da régua são sempre imutáveis, pensar em mudanças na posição na série desmontaria sua lógica. Sendo assim, a mudança que é elemento necessário para constatar o tempo não se enxerga aqui. A série B não é possível como reflexo da realidade.

Essa mobilidade então deve ser buscada na série A, para verificar se ela sustenta a realidade do tempo e salva a série B. Como eu já disse, aqui os eventos ganham uma qualidade em relação a um ponto de referência. Se na série B um evento sempre será anterior ou posterior a outros, na série A este mesmo evento tem uma caraterística variável. Digamos que eu esteja dentro de um estádio esperando um jogo de vida ou morte do meu time favorito. Este momento era futuro no momento em que eu vestia o manto sagrado e me encaminhava para a estação do metrô, assim como se convolou em passado quando eu, já satisfeito (tomara), desembarcava na mesma estação de volta a casa. Ainda poderíamos dizer que há um elemento de fixidez semelhante à série B, mas a regressão ao passado e a projeção ao futuro podem se dar de forma infinita: passado e futuro próximos ou remotos. Eu posso dizer que estou no campo porque meu pai me ensinou a gostar de futebol, e que seu pai fez o mesmo, e assim por diante. E, com isso, podemos perceber a mobilidade do tempo.

Mas notem. A própria expressão da língua já traz alguma ambiguidade. Um evento qualquer é presente, e aqui não temos problemas. Mas ele também foi futuro e será passado. Percebam que, para expressar a referência do tempo gramaticalmente, eu inverto as relações, porque uso o tempo futuro para referenciar o passado e vice-versa. Mas isso não é o problema central. A questão é que essa posição é relativa a referenciais que são igualmente móveis. Eu percebo que me joguinho é presente no momento que estou em campo, mas, se eu olhar para o banhão que tomo para tirar aquela catiça de torcedor, ele está no passado. Portanto, dependendo do referencial que eu usar, a qualificação do evento varia. Não se trata somente da distância temporal, como no exemplo da regressão infinita, mas da própria posição relativa no que seria a régua do tempo. Se um evento é colocado nesse círculo vicioso, podendo ser passado, presente ou futuro ao mesmo tempo, caímos na mesma contradição lógica da série B, e inviabilizando a série A como expressão da realidade. Visto que só podemos enxergar mudança nela, conclui-se que o tempo é irreal.

A contra-argumentação mais simples que podemos fazer à hipótese de McTaggart é semelhante à que fazemos aos paradoxos de Zenon, por exemplo. Mesmo que seja lógico dizer que um caminho pode sempre ser dividido pela metade para justificar uma teórica nunca chegada, o fato concreto, real e palpável e que nós chegamos. Dizer que o tempo não existe como realidade porque ele não é lógico talvez fale mais sobre o alcance da lógica do que da existência factual do tempo, que certamente tem aspectos abstratos, mas mesmo lá, na abstração, ele existe.

De toda forma, o princípio geral que norteou o pensamento de McTaggart ao discernir sobre o tempo é o de que a lógica plasma o mundo e o mundo deve ser traduzido pela lógica. Sendo assim, se algo não pode ser explicado pela lógica, há duas alternativas possíveis: ou o raciocínio não está bem feito, ou temos alguma ilusão à nossa frente.

Diante do método, em cima da balança temporizadora, por exemplo, mostra a mim que o tempo faz diferença, mesmo que seja percepcional. O tempo em que cheguei ao consenso com minha Eva Solo está bem sólido e realmente demonstra sua existência. Ou não? Bons ventos a todos!!!

Recomendação de leitura:

MCTAGGART, John. A Irrealidade do Tempo. In: Revista Kriterion, nº 130. Disponível em: [https://www.researchgate.net/publication/315931954_A_irrealidade_do_tempo]. Acesso em 01/11/2024.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Dados sensíveis: o que eles são e o que eles não são

(Dados sensíveis são difíceis de compreender? Parece que sim).

“Até pouco tempo era inimaginável pensar nas aplicações e a interação que a internet teria em nosso dia-a-dia, ao mesmo tempo em que podemos imaginar que isso continuará em ritmo acelerado e de incremento, tendo em vista a velocidade em que novas tecnologias são desenvolvidas para a comunicação com as pessoas” 

Milton Monti, relator da LGPD

Olá!

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De novo eu com as minhas reuniões. A última foi para discutir os dados pessoais de funcionários* que são armazenados em bancos para fornecer aos mais diferentes sistemas. Calma, este é um espaço da filosofia, e não da informática, mas é preciso falar um pouco desta área para dar contexto, já que é meu ganha-pão. A grande questão são os dados. Processamento de dados era o nome do curso que eu fiz no técnico, ainda na já distante década de 80. Eles são o alimento dos computadores, que, sem eles, servem como peso de papel. Como o próprio papel físico tende a ser extinto por essas maravilhosas (???) maquininhas, é mais fácil que estes se tornem peso de computadores, e dados e mais dados serão processados por esse mundo afora, incluindo as nuvens. Mas dados dizem coisas, e dizer coisas pode ser um tanto perigoso. Certos dados são coisas genéricas, que não representam dor de cabeça substancial para seu portador, e a manutenção deles pode ser, digamos, um pouco menos rigorosa. Já outros dados representam encrenca se divulgados, especialmente nesse nosso mundão tão cheio de gatunos, loucos e à espreita para faturar em cima dos incautos. O caso aqui é que, se é verdade que todo dia saem de casa um malandro e um mané, também é verdade que seu encontro não pode se dar nas ruas virtuais da instituição em que trabalho. Por isso, fazemos reuniões e mais reuniões.

Como diria um peru à porta do forno, até aí, tudo bem. A questão é que percebemos, com frequência, que nós, os paladinos da segurança da informação, nem sempre sabemos para onde ir, nem temos muita noção da matéria-prima com a qual lidamos. E isso não é bom, nada bom.

A pauta específica dessa última reunião era “dados sensíveis”. Uma lei razoavelmente recente, conhecida como LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, versou sobre o tema, exigindo guarida mais robusta a esses dados, de modo a não só evitar, mas antever possibilidades de sua exposição indevida.

A questão foi que começamos a discutir sobre esses dados de uma maneira que, para o time de analistas, ficaria muito mais difícil de extrair dados, porque não bastava mudar a forma de proteger, mas mudar nomes de campos e método de criptografia, o que fazia com que todas as aplicações precisassem ser modificadas. O problema era o ridículo prazo para fazer tudo isso, e aí a chapa esquentou. O consenso foi a gradatividade: primeiro vamos trabalhar os dados sensíveis, depois partiremos para as questões menos problemáticas. Beleza. Então vamos pegar a lista de dados sensíveis, coisa pouca para o começo: matrícula, CPF, RG e título de eleitor.

A reunião foi seguindo em tensão pela urgência, mas em aparente consenso sobre os dados sensíveis, quando entrou um colega atrasado, mas que mudou o rumo da prosa. “Dados sensíveis? Quem disse que esses são dados sensíveis?”, disse o gajo retardatário. O clima pesou de vez, mas o tardio colega tinha razão - a lei não considera nada disso como dados sensíveis. Em meio ao furdunço, procura daqui, interpreta dali, chama o jurídico de acolá, eu tomei aquela atitude que me é característica nesses momentos: alheei e filosofei. Pode não ser um assunto que seja tão remetido diretamente à própria filosofia, mas onde a coruja de minerva não enfia seu nariz?

Se há dúvida e falsos consensos entre pessoas que deveriam conhecer a lei de cabo a rabo, quanto mais não deve ocorrer com as pessoas que vivem seu dia-a-dia com a cabeça voltada para outras atividades completamente distintas? Por esse motivo, ainda que de um ângulo mais filosófico, achei por bem fazer um serviço de utilidade pública e tentar falar sobre o que são e o que não são os dados sensíveis.

O que são dados sensíveis?

São dados que tem o potencial de distinguir uma pessoa com relação a aspectos que podem colocá-la em alguma situação de discriminação, embaraço, mau uso ou qualquer outra situação que a destaque de um conjunto maior de dados sob um prisma que fira a intimidade. São dados sobre gênero, religião, filiação política e sindical, raça e etnia, dados de saúde, genéticos e biométricos, que constroem informações bastante complexas sobre uma individualidade.

 

Vamos devagar. O que são dados e o que são informações?

Dados são uma espécie de átomo informativo. Quando você olha uma ficha de cadastro, há diversos campinhos que, isolados, não dizem nada. Por exemplo, se eu vejo o dado 1,77, não sei dizer do que se trata. Pode ser o preço de uma bala, uma fração de um objeto ou uma medida. Se há um rótulo escrito “altura”, então já sei a o que esse dado se refere, e agora temos uma informação. Ou seja, os dados são os elementos fundamentais da informação, e informação é o sentido construído dos dados.

 

E por que isso é um problema?

Vou dar alguns exemplos que são autoexplicativos. Como sabido, o Brasil viveu diversos períodos em regime de exceção, quando os militares exerceram o poder central. Sendo um momento particularmente instável socialmente, a manutenção do controle se dava por toda e qualquer informação que pudesse ser obtida, inclusive de alcaguetes. Ter o registro de sindicalizações ou filiações partidárias eram indicativos de que o cidadão em questão era ativo politicamente, e isso ao menos o candidatava a ser monitorado.

 

Tá, isso eu entendi. Mas e os outros dados?

Mais um exemplo: há situações condicionantes para a contratação de funcionários que nada tem a ver com a capacidade de desempenho do candidato. Quem nunca ouviu falar de alguém que não foi contratado em razão de sua religião, que atire a primeira pedra. Por isso, os dados que podem submeter uma pessoa a preconceitos são também considerados sensíveis.

E CPF, RG, título de eleitor e etc? São dados que podem dar acesso a aspectos financeiros, fiscais, bancários e etc. Eles também não são sensíveis?

Não. Uma informação dessas te individualiza como pessoa, mas não traz nenhum elemento que te situe como pertencente a um grupo específico, nem informa nenhuma de suas preferências ou visões de mundo. Como se diz por aí, somos apenas números, como um CPF, por exemplo, que vai te identificar como contribuinte**, e nada mais. Os dados pessoais também precisam ser protegidos, não se preocupe com isso. Só não são sensíveis, ao menos na concepção da lei.

 

Mas nunca um dado desse gênero pode ser utilizado? Como ficam as estatísticas necessárias para as políticas públicas e direcionamentos empresariais?

É uma parte chata para nós, aqueles da TI, mas é a única solução possível para estes casos: anonimização. Que diabos é isso? É tornar um dado disponível sem que seja possível discernir a quem pertence. Sabe quando você está recuperando uma senha e aparece uma validação de documento do tipo “310.***.***-68? Isso é facilmente identificável como sendo um CPF, sem que, no entanto, seja possível decifrar a quem pertence. Esse é um modelo de dado anonimizado.

 

Por que o conceito de dados sensíveis apareceu?

Não gostamos que nossos dados pessoais fiquem disponíveis por aí, porque sabemos que podemos ter problemas de fraudes e golpes, mas não negamos esses números aos nossos empregadores, por exemplo, que são partes legítimas para exigi-los. Já os dados sensíveis são informações da intimidade. Um empregador não pode exigir dados de sua religiosidade ou de sua sexualidade. Se, por ventura e por sua livre decisão, este os possuir, não pode fazer usos diversos de seu propósito devidamente autorizado ou que redundem em riscos para o livre exercício de direitos.

 

Por que a confusão?

Provavelmente porque o conceito é razoavelmente novo. O mundo girou e, de uns anos para cá, muitas coisas que nem pensávamos passaram a ser levadas em conta nas relações humanas. Eu lembro que, quando garoto, fazer e sofrer bullying era a coisa mais normal do mundo, e ajudava a criar casca, como se dizia à época. Hoje em dia o fenômeno explica como boa parte da repulsa pela escola se dá, para citar um exemplo. São coisas que não dependem de dinheiro do governo investido. Só que eu e meus coetâneos temos dificuldades em entender por que as coisas mudaram, e acabamos por dar mais importância a dados que potencialmente firam nossos bolsos do que nossas mentes.

 

Essa história tem origem nas demandas da esquerda?

A primeira impressão que se tem é vinda dos estereótipos, especialmente por conta das questões de gênero, já que basta se tocar no assunto para gerar um rebuliço. Não deveria ser assim, já que são demandas que versam sobre liberdade, e a palavra liberal compartilha o mesmo radical. Independentemente disso, o fato concreto é que a LGPD foi aprovada pelo governo Temer e emendada pelo governo Bolsonaro, que não são exatamente nomes de esquerda.

 

Não é muita frescurinha então?

Sempre é possível pensar em um ir e voltar de uma mola, onde o estado inicial de tensão leva a uma resposta tão intensa que sobrepuja o estado de repouso, ou seja, de estabilidade. Mas o fato é que nunca aparece uma placa proibindo de subir no abacateiro sem que alguém tenha tentado pegar um abacate (e se arrebentado, provavelmente). Se foi criada uma lei nesse sentido, devemos tentar compreender onde a sociedade estava errando, especialmente nesses tempos acelerados de internet.

 

Isso significa que a questão só aconteceu recentemente?

Não. Já há muito tempo que há uso indevido de dados. Mas a questão tomou proporções titânicas com o advento das comunicações digitais. Eu lembro dos anos 2000, com o famoso CD da Telefônica, suposto catálogo contendo uma pilha de dados dos usuários de telefone de São Paulo. Como há o monopólio da telefonia no Brasil, isso significa que quem possuísse telefone instalado, tinha seus dados nessa lista. Sendo assim, há um longo caminho que vem sendo traçado para se chegar ao ponto da necessidade da criação de uma lei.

 

E resolve?

Este é o cerne de toda a discussão. Eu costumo dizer que toda lei que determina comportamentos é sinal do fracasso de uma sociedade. As pessoas falam muito de moral e bons costumes, mas sua aplicação já é bem mais rara. Um lugar onde as pessoas já têm por costume ceder lugar no ônibus para os velhinhos não tem necessidade de uma lei que determine o ato. O centro ético de uma nação é a maneira como as pessoas se respeitam mutuamente, e é essa relação que diz o quanto as engrenagens sociais podem ser menos ou mais engessadas. Não seria necessária uma lei para informar que dados sensíveis deveriam ser tratados com um mínimo de cuidado, mas, já que não se tem esse cuidado, então a lei se torna de rigor. Pior ainda: não seria necessária a lei se não se fizesse mau uso desses dados, mas o fato é que se faz, e muito. O problema são as exceções legítimas, que ficam difíceis por força da lei. Resolver envolve fiscalização competente e meios coercitivos eficientes, que não dão em árvores no Brasil.

Só para deixar relatado, meu regresso ao planetinha azul, ainda no momento da reunião, deu-se com o arrefecimento dos ânimos, de modo a me deixar um pouco perdido com as conclusões (precisei ler a ata depois), mas confiante de que seria bom trazer um pouco destes esclarecimentos à luz. Não sou advogado, mas me meto a tentar entender o mundo, e partilhar isso com vocês. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Vai para a própria LGPD. É importante que conheçamos minimamente as nossas leis para que saibamos dos nossos direitos e deveres. Sendo uma lei nova, provocou certo estrépito, mas com o tempo a vitalidade da novidade vai arrefecendo e podemos acabar esquecendo das proteções que ela dá.

 

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2018. Disponível em [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm]. Acesso em 02.10.2024.

 

* Desde uns bons anos para cá, existe a tendência de se chamar os funcionários de colaboradores, de parceiros ou até mesmo de stakeholders, para dar maior noção da importância dos mesmos em uma organização. Puta mentira, essa é a real. O funcionário, salvo honorabilíssimas exceções, continua no mesmo lugar onde sempre esteve. Portanto, sou funcionário e continuarei a usar o termo que melhor me define: ter uma função remunerada dentro de uma entidade.

** Tá, também dá uma ideia do estado em que foi feito o cadastro, mas vocês entenderam o sentido.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

O café filosófico do quotidiano – trazer novidades faz parte do pensamento científico

(Cafés e juízos podem sempre trazer novidades consigo)

“Certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parecem que estendem o círculo de nossos juízos além de seus limites” 

Immanuel Kant

Olá!

Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra

Certos métodos não são métodos. Deixe explicar melhor. Quando falamos de métodos de extração de café, pensamos em filtros, prensas, cadinhos e etc. Mas eles não são as únicas parafernálias que povoam esse mundo. Há também apetrechos que não são propriamente métodos, mas que são acessórios que prometem coisas, como é o caso da pecinha que tenho diante de mim neste momento: a cápsula Lily Drip.

Há toda uma narrativa por trás da criação deste curioso equipamento. Diz-se que a Lily é filha do inventor do objeto, e um dia desses colocou uma bolinha de gude dentro do filtro em que seu pai japonês percolava seu café, dizendo que aquilo ia deixar o líquido mais gostoso. Dito e feito, o pai percebeu uma real diferença positiva no sabor e nos aromas, e resolveu desenvolver a ideia. A princípio, o efeito se deu por conta do aumento do espaço de contato da água com o pó, sem que se aumentasse o tempo de escoamento. Isso é feito virando um filtro modelo V60 do avesso com o gabarito que vem junto da cápsula de porcelana.

Feito isso, a cápsula é encaixada no fundo do porta filtro Hario e o filtro já virado é colocado sobre ele. Feita a saturação com água quente, o pó é despejado no fundo, como de costume, e a água vai na sequência, como se fosse outro método de filtragem qualquer.


Nome do utensílio: Lily Drip

Tipo de técnica: Acessório cônico de filtragem 

Dificuldade: Média, já que é possível rasgar o filtro na viragem

Espessura do pó: a gosto, normalmente acompanhando o habitual do método V60

Dinâmica: Uma cápsula de porcelana que aumenta a superfície de contato com o pó em um porta-filtro do tipo v60. Antes do uso, é necessário virar o filtro do avesso para encaixe da cápsula

Resíduos: Os mesmos de uma percolação normal

Temperatura de saída: A mesma de uma percolação normal

Nível de ritual: médio/alto


Eu vou manter meu compromisso de ser franco e admitir que não percebi diferença alguma no café feito com ou sem a cápsula. Para tirar a teima, fiz um teste cego com uma Hario e uma Waalz, irmãs gêmeas. Mesmo café, mesma moagem, mesma temperatura, mesmos ataques, tudo igual, garante a patroa, e não senti nada de diferente entre ambas as amostras. Certo: minha sensibilidade de ex-fumante não é mesmo das melhores, e isso é um fator. Portanto, para quem achar que há melhoras, que aproveite bem. 

A verdade é que o café é uma das paixões possíveis para uma pessoa, e a busca por aperfeiçoar a relação que temos com nossos gostos é uma das coisas que dá sabor à vida. Enquanto nós, seres humanos que elegemos nossas coisas de acordo com nossas possibilidades, há cabeças que procuram essas aproximações com a perfeição em outros campos, tipo com a razão, como fez Immanuel Kant. Ele não quis descobrir como filtrar um bom café, mas como funciona definitivamente a razão humana. Cada um com suas possibilidades, procuro me conformar.

Meus caros amigos, eu recomendaria que vocês fizessem ao menos a leitura do texto deste link, para que partíssemos do mesmo ponto, mas vou resumir muito rapidamente: Kant pôs fim na velha discussão entre racionalistas e empiristas ao deduzir que o conhecimento provém dos sentidos, mas a mente humana já possui inatamente estruturas que permitem fazer com que esse processo flua. Desta forma, vê se que, em alguma medida, ambas as correntes estavam certas (ou erradas, dependendo do ponto de vista do copo meio cheio ou meio vazio), e que a capacidade de conhecer está muito relacionada com a espécie e com o indivíduo.

Depois de compreender como se dava o processo de cognição humana, e já levando em conta suas limitações, Kant passou a tentar responder uma pergunta: é possível que a filosofia tenha caráter científico? A pergunta não tem a simplicidade com a qual poderíamos revesti-la, tendo em vista que nosso caro alemão não tinha foco meramente em seu caráter especulativo, mas na capacidade mental de construir conhecimento puramente conceitual, como parece ser possível para problemas metafísicos. Fez isso imbuído pelas leituras que fez de David Hume, a quem lhe atribuirá mais tarde o despertar do sono dogmático.

Para que um conhecimento pudesse ganhar o estatuto de científico (àquela época) deveria alcançar dois objetivos: ser necessário e universal por um lado, e trazer informações novas por outro. Trocando em miúdos, algo é necessário quando é de uma forma e não poderia ser de outra, assim como universal é aquilo que é igual em qualquer tempo ou lugar. Trazer informações novas, por outro lado, consiste em não repetir aquilo que já está contido no próprio sujeito. A tarefa não é simples, como se verá a seguir, porque envolverá uma dimensão epistêmica e outra lógica, com uma aporia a ser resolvida em seus cruzamentos.

Começando pelo começo, o que era um juízo para Kant? Não se tratava de um julgamento, como o nome pode fazer pensar, mas uma relação predicativa do tipo a=b, ou seja, uma afirmação onde é atribuída uma qualidade a um objeto qualquer. Como qualquer boa e velha proposição, pode ganhar ou não um atributo de verdade ou falsidade. Portanto, uma afirmação do tipo…

Todo homem é mortal

… tem um sujeito (“Todo homem”) que recebe uma predicação e um predicado (é mortal) que nos conta alguma coisa do sujeito, ou seja, temos a construção de um juízo, uma articulação mental que procura traduzir um conhecimento.

Kant dava uma qualificação referente ao valor lógico-linguístico de uma afirmação que tinha relação com sua capacidade de trazer novidades com relação ao sujeito. Ele dizia que os juízos podiam ser analíticos ou sintéticos. No primeiro caso, os predicados estão contidos nos próprios sujeitos, e sua utilidade está em fixar um conceito. São inúmeros os casos dos juízos analíticos: um triângulo tem três lados e três ângulos internos que, somados, sempre resultarão em 180 graus; retas paralelas nunca se tocam; corpos sempre possuem alguma extensão e por aí vai. São ocasiões em que se faz a análise de um objeto qualquer, no sentido de atribuir conceitos a ele, sem variabilidade local e temporal. Dessa forma, os juízos analíticos atendem ao requisito de universalidade e de necessidade da cientificidade. Já os juízos sintéticos são aqueles que acrescentam informação, que formam síntese com o objeto para trazer descrições contingentes, de cada caso observado empiricamente. Juízos sintéticos dizem que borboletas podem ser azuis, que a lua tem fases, que a maré está alta ou baixa, e assim sucessivamente. Os juízos sintéticos são descendentes diretos da observação empírica, e, por isso, dizem respeito ao âmbito dos objetos observados. Coligem, assim, informações novas aos juízos.

Por outro lado, Kant fazia uma classificação cognitiva dos juízos, de acordo com o momento em que se dava o fenômeno do conhecimento. Se ele se dava antes do contato com o objeto a ser conhecido, dizia ser um juízo a priori, ou “o que vem antes” em latim. São todos os juízos que prescindem da experiência para ocorrerem, como é o caso dos círculos, nos quais não preciso ter nenhum contato empírico para saber que não possuem arestas. Grosso modo, os mesmos juízos analíticos que mencionei no item anterior são todos eles, a princípio, também a priori. Por outra mão, os conhecimentos que derivam da experiência são, por uma questão lógica, obtidos após o contato cognitivo com o objeto, e, por isso mesmo, são a posteriori. Eu sei a cor de uma camisa quando eu a vejo, ou o timbre de uma guitarra quando eu a ouço, o amargor de uma cerveja quando eu a bebo. Eu acrescento essas informações e enriqueço as coisas que sei sobre ela, mas há problemas.

É que, relembrando o critério de cientificidade de Kant, conhecimento científico é aquele que é universal e necessário, além de trazer informações novas ao objeto. É uma combinação bombástica, porque os juízos analíticos são universais e necessários, mas não trazem novidade alguma. No exemplo clássico do triângulo, dizer que ele tem três lados já está embutido em sua própria definição. É universal, é necessário, mas não há nada de novo nessa informação. Alguém por acaso diz “um triângulo de três lados”? Não basta simplesmente dizer “triângulo”? Sendo assim, seria uma informação completamente vazia para além de seu poder definitório. Já os juízos sintéticos dizem algo que acrescenta informação de fato. Se eu digo que Laura e Ana são cientistas (homenagem ao pessoal do Nunca Vi 1 Cientista) trarei uma informação que não é inerente a nenhuma das duas, mas que é contingencial. Laura e Ana não deixarão de ser quem são se fossem pintoras, tatuadoras, informatas ou quartas-zagueiras. Por acaso, são cientistas, mas isso é uma contingência, e não uma necessidade. Ora (direis), uma vez cientistas, sempre cientistas, e com isso o acidental acaba. Não, senhor (responderei), porque Laura e Ana permanecem cientistas, mas a Ciência permanece o que é? Digamos que os critérios para estabelecer o que é ciência mudem, como já aconteceu antes. Se, por exemplo, passa a ser científico apenas aquilo que é útil, o que faremos com as milhares de expressões matemáticas que, a fim e a fogo, não têm significado tangível? Para que servirá uma matriz com mais de três dimensões? Se isso for estabelecido, pode ser que as formações de Laura e Ana não sirvam para mais nada, e isso prova que o fato de serem cientistas é, sim, contingencial. Ufa!

Com relação ao momento em que se dá o processo cognitivo, não faz sentido achar que a obrigatoriedade do ato empírico dê universalidade e necessidade ao conhecimento, sendo que é impossível que algo contingente seja conhecido antes de seu componente estrutural e definitório. Eu sei que um guarda-chuva é preto, está furado e molhado porque eu já sei estruturalmente o que é um guarda-chuva. Mas o conhecimento a priori do objeto em termos analíticos também não me traz novidade alguma. Dizer que o guarda-chuva é um utensílio que serve para proteger da chuva (e ser esquecido) não traz nada de informação. É a mesma coisa eu dizer que “o guarda-chuva que protege da chuva está molhado” e “o guarda-chuva está molhado”, percebem? Nada mais é do que um pleonasmo. Os juízos analíticos a priori não trazem novidades, enquanto os juízos sintéticos a posteriori não são universais e necessários.

Então não só não conhecemos as coisas em si mesmas, mas também o conhecimento científico é impossível??? Não é assim, segundo Kant. Pelo cruzamento entre o caráter epistemológico e o lógico-linguístico, haveria dois outros caminhos, sendo um impossível, e outro que é a cereja do bolo. O impossível é o juízo analítico a posteriori, porque não faz sentido. Ele funcionaria, já que guardaria a universalidade e necessidade dos juízos analíticos e traria a novidade dos juízos a posteriori. Entretanto, se é um juízo analítico, pressupõe-se a desnecessidade do contato empírico com o objeto, que só poderia trazer informações contingenciais. Dessa forma, não há como ocorrer um juízo analítico a posteriori. Resta então um juízo que traria as informações novas dos juízos sintéticos e a universalidade e necessidade dos juízos a priori. São estes os juízos sintéticos a priori, a créme de la créme do pensamento científico kantiano.

Mas o que são esses tais juízos? O exemplo kantiano mais célebre é o 5+7=12, para comprovar que a matemática dá juízos sintéticos a priori aos borbotões, mas sempre o achei muito difícil de entender, porque sua simplicidade não me convencia. Porém, ao observar outras proposições mais elaboradas, é possível penetrar nesse mundo misterioso com um pouco mais de facilidade. Kant mesmo usa o exemplo da reta. Quando se afirma que uma reta é o menor caminho entre dois pontos, podemos deduzir que esta afirmação é verdadeira em qualquer tempo e em qualquer lugar, e isso é válido ainda que não seja possível concretizar uma reta na nossa frente que nos faça perceber, experimentalmente, que a coisa é assim. Não preciso traçar uma reta entre Taubaté e Curitiba para ter ciência dessa assertiva. E o principal: não está na definição de reta que ela é o menor caminho entre dois pontos. A definição de reta é ser uma sequência de pontos colocados um do lado do outro. A reta é um objeto abstrato: não vemos retas espalhadas por aí sendo apenas e tão somente retas. Essa abstração, de que a reta tem a qualidade de extensão, é puramente intuitiva, sem a necessidade de ter derivação empírica. Portanto, é uma proposição que não somente é sintética, porque traz informação, como também é apriorística, porque é universal e necessária. Pegando o exemplo de uma regra da química: A soma das massas das substâncias reagentes é igual à soma das massas dos produtos da reação, a famosa lei de Lavoisier. Os conceitos de massa não trazem junto de si a informação da equivalência pré e pós reação, assim como a lei sempre se aplicará do mesmo modo e podemos estar em Marte, Lua, Sol, no presente, passado ou futuro. Tudo sempre se dará de forma igual, independentemente da experiência que tenhamos das mesmas. O processo empírico, no caso, é confirmatório, e não definitório. Sendo assim, ciências como a matemática e outros conhecimentos matematizáveis, como a geometria, a física e a química são considerados ciências em sua plenitude.

Kant assegura que as proposições da matemática e da geometria são todas desse tipo, e é nos fenômenos que são redutíveis a elas que poderemos encontrar os tais juízos, e, dessa forma, confirma-se que o conhecimento científico é possível.

Mas… e a metafísica?

Quando Kant elaborou sua crítica, não tinha em mente sacrificar esta ou aquela manifestação do conhecimento, mas determinar os limites da razão. Procurou estabelecer critérios balizadores do que pode ser considerado conhecimento seguro, sem, no entanto, invalidar a porção especulativa da filosofia. Por isso, ele coloca matemática, a física e os correlatos como científicos, porque estão no âmbito da possibilidade da mente humana, por mais complexas que sejam. Entretanto, embora as disposições metafísicas não consigam alcançar juízos científicos, Kant não diz que eles são inválidos. Essa é uma confusão comum que se faz quando o meninão de Königsberg é estudado superficialmente.

Mas não dá para dizer que o edifício metafísico não tenha sido de fato abalado por Kant. A revolução científica já vinha fazendo isso, e duros golpes vinham sendo proferidos. O juízo kantiano foi só um cruzado de direita. A questão é que disposições metafísicas têm dificuldades em formar conceitos a priori. Em um exemplo, podemos projetar todos os atributos que definiriam Deus: um ser transcendente que é onisciente, onipresente e onipotente, que é a causa primeira de todas as outras e così via. Por que essa proposição seria mais válida do que qualquer outra sobre diferentes configurações de divindades, ou simplesmente dizer que não há algo como um deus? 

Resta à metafísica formar dogmas, que, ao fim e ao cabo, são mecanismos da religião, e não da ciência. Kant não fala de uma extinção sua, mas de uma refundação, onde “a dificuldade intrínseca e a oposição externa não nos afastem de uma ciência tão indispensável a razão humana, cuja raiz não poderia estragar-se ainda que se cortassem todos os seus ramos exteriores e que, mediante um método diferente e oposto ao que até hoje tem sido empregado, pode adquirir um útil e fecundo desenvolvimento”.

De certa forma, a metafísica vem se reinventando, através da especificidade da ontologia, ou dos estudos sobre o tempo, ou ainda coisas mais malucas como os mundos possíveis, e com isso, de certa forma, as preconizações de Kant vão fazendo sentido, ainda que haja pensadores posteriores que destoem de seu pensamento. Mas é com essas novidades que se consagram filosofias. E cafés.

Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Pela terceira vez, vamos olhar para a Magnum Opus kantiana. É difícil, mas é obrigatória. Desta vez, em versão on line.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Disponível em [http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2246]. Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia). Acesso em 01.10.2024.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Futebol e filosofia em campo: uma brincadeira montypythoniana

(Vamos brincar de futebol e filosofia. Não é inédito, mas é divertido)

“O futebol não é uma questão de vida ou morte. É muito mais importante que isso” 

Bill Shankly, treinador escocês 

Olá!

Dizia a esposa do velho Pacheco, o camisa 12, que ele via futebol em tudo. Velho quem? Pacheco, o fictício* torcedor símbolo da Seleção Brasileira na Copa de 1982, aquela que era para ser, mas não foi. Pacheco foi lançado pela Gilette™ como exemplo de peça publicitária de mão dupla, representando um inegável sucesso em seu mercado, e também como sinônimo de torcedor irracional, que torce pela sua seleção pelo único fato de ser sua seleção, que é vista como a melhor do mundo sob qualquer aspecto e circunstância e, nas derrotas, sendo uma inevitável vítima de conspirações. O lado divertido morreu com a desclassificação, restando a porção jocosa. O termo “pachequismo” vem disso, um ufanismo irracional que pensa ser tudo o que é nacional melhor. E isso nos cega diante de bons desempenhos, mas que não são os melhores do mundo. Não gostamos de ser vices.

Muitos de nós temos esses traços. Menos da paixão cega, e mais de sempre lançar comparativos da vida com o futebol, e, nesse aspecto, sou um especialista empedernido. Sim, gosto um bocado de futebol, e isso inclui o futebol de seleções, embora haja um crescente desinteresse e desgosto com a atual fase da Canarinha (e um ranço político também – leia aqui). Uma seleção é quase sempre uma seleção dos melhores, e, com o componente subjetivo que isso carrega, sempre temos concordâncias e discordâncias, de modo a sermos tão técnicos quanto os profissionais. Nem sempre é fácil definir o que é melhor ou pior. 

Também é tão comum usarmos termos do futebol na vida factual… Veja quantas metáforas vindas dos campos aplicamos nas situações do dia-a-dia. São jogos de conquistas (“a morena está dando condição”), traição (“levar bola nas costas”), liderança (“você é o capitão do time”), multidão (“mais gente que a torcida do Corinthians”), e assim por diante. E, assim, ver futebol em tudo é uma característica social, e não individual.

Por conta disso tudo, é normal que esse mesmo fenômeno ocorra no campo artístico, especialmente no humor, essa área que fica na divisa entre a teatralidade e as coisas que temos travas em dizer. E não é só em Terra Papagallia que há os apaixonados que traduzem risadas em futebol e vice-versa. No país onde o esporte tomou a forma atual também há muita graça com ele.

Monty Python é um grupo inglês de humor já bem antigo, caracterizado por seu anedotário ácido e piadas que trafegam entre o humor negro e o nonsense. Vocês já assistiram alguma coisa deles?

Eu devo confessar que tenho um pouco de dificuldade de compreender o modelo de comédia dos ingleses. Enquanto tem gente que rola de rir vendo as micagens do Mr. Bean, eu ergo o canto da boca, no máximo. Mas há coisas que são boas de verdade, como o filme “A Vida de Brian”, por exemplo. Talvez eu volte com mais rigor ao humor inglês em outro momento; agora, quero me referir a algo bem menor, uma esquete que ficou famosa nesses tempos de internet, chamada The Philosophers’ Football Match (“O Jogo de Futebol dos Filósofos"). Embora seja do começo da década de 70, a internet a fez ressurgir com bastante força, provavelmente por conta do assunto popular e de nossa estranha sanha por listas e disputas.

O desenrolar é muito simples: em uma competição de futebol filosófico, chegam à final as duas seleções mais fortes, os gregos e os alemães. Vestidos de túnicas os helênicos, e de casacas os teutônicos, desdobram-se em pensamentos em campo, sem nem dar bola para a bola, até que, em um laivo de genialidade, os gregos saem tabelando até chegarem à meta dos atônitos alemães, que reclamam da jogada com argumentos filosóficos, e não futebolísticos. Como se trata de obra do absurdo, sua interpretação é absolutamente livre, embora fosse possível discutir certos elementos à luz das posições dos jogadores e coisas semelhantes.

Pois outro dia eu amanheci pensando nisso, e resolvi fazer minha própria escalação das duas equipes, imaginando como seria a composição das duas equipes de acordo com os feitos filosóficos de cada “jogador”. E assim ficou a coisa até hoje, quando faço o arremate final.


Minha ideia não é repisar a ideia montypythoniana de colocar os pensadores para pensar, mas de traduzir alguma característica de suas filosofias em dote futebolístico, e, com isso, imaginar como seria uma partida de fato. Na vida real, embora a Grécia tenha a respeitável (e completamente inesperada) conquista da Eurocopa 2004 em suas prateleiras, o fato é que eles estão no terceiro escalão do futebol mundial, enquanto os alemães se situam na crista da onda, com quatro mundiais, três euros e tantos outros troféus na sua polpuda coleção. Por esse motivo, não levaremos a brincadeira para esse flanco, já que, em termos quantitativos e qualitativos, no campo da filosofia a briga é muito mais equilibrada.

Primeiro vou pensar em uma formação. O mundo do futebol é esplendidamente cíclico, e nos meus tempos de garoto o mais comum era uma tática 4-3-3, com quatro defensores, três jogadores na linha média e três atacantes. De lá para cá, passou-se a fortalecer o meio de campo no 4-4-2, jogar com três zagueiros em um 3-5-2, algumas vezes com líbero, aumentar a quantidade de linhas com um 4-2-3-1, até voltar-se ao mesmo 4-3-3 em voga atualmente. Gira o mundo, grande mundo. Por isso, é com esse esquema tático que eu vou, um 4-3-3 clássico, com goleiro (1), dois laterais (2, o direito; 6 o esquerdo), um zagueiro-central (3) elegante que fica mais à direita e um quarto-zagueiro (4) parrudo, daqueles que mete medo só com a feiúra, guarnecendo o lado esquerdo da grande área. No meio, um médio-volante (5) de boa cobertura e bom passe, para dar sustentação a um meia-armador (8) que busca o jogo e um ponta-de-lança (10) que se posiciona encostado no ataque. Lá na frente, dois pontas (7, o direito e 11, o subversivo) procuram o centroavantão (9) que mistura força e habilidade. É assim que vamos a campo, dos dois lados para não complicar.

Começamos pensando nos times que foram eliminados nas semifinais. Como uma brincadeira, e sendo uma Copa do Mundo dos filósofos, imagino que a disputa pelo terceiro lugar tenha sido um belo Grã-Bretanha** X França, que, apesar do desencanto típico dessa partida entre derrotados, também tem potencial para um jogo e tanto. Penso nas seguintes escalações:

França: Bourdieu; Montesquieu, Merleau-Ponty, Guattari e Comte; Foucault, Sartre e Descartes; Montaigne, Voltaire e Bergson.

Reino Unido: Hume; Hobbes, Locke, Adam Smith e Russell; Oakeshott, Bentham e Francis Bacon; Ockham, Berkeley e Ryle.

Partindo para a final, e em respeito à idade mais avançada, vamos começar pelos gregos. O goleiro será Parmênides, uma pedra inamovível, que previu a eterna permanência de todas as coisas que existem no universo. Essa eterna essência, igual a si mesma em todo lugar e em todo tempo, dá a segurança necessária para que todo o time possa fazer seus avanços sem temer vacilos.

Nas duas laterais, como é bom haver variação de características, vamos colocar o abstrato Pitágoras e o materialista Demócrito. Pela direita, os avanços com precisão matemática e alternância entre jogadas bem calculadas e passes milimétricos, com projeção de pontos futuros executados com exatidão, como a soma do quadrado dos catetos que é igual ao quadrado da hipotenusa. Já na esquerda, um flanco em que se palmilha atomicamente cada espaço a ser ocupado, de modo a desconcertar o adversário (talvez por isso nosso lateral viva dando risada).

A junção de características também existe no miolo de zaga. Embora atue como zagueiro, o classudo Anaximandro é extremamente plástico, adaptando sua atuação à moda do time rival, como se conseguisse traduzir a arché de seu futebol em múltiplos modos. Já o açougueiro Empédocles (diziam que ele gostava de fazer seus churrascos na boca de um vulcão) mistura todas as armas possíveis para espantar qualquer perigo para o mato, ou para a água, ou para o ar, ou até para o fogo.

O médio volante Heráclito tem consciência de que tudo muda, e nunca se joga duas vezes no mesmo campo. Altamente adaptável às necessidades de uma partida, pode tanto ser um encarniçado cabeça de área, quanto um estiloso condutor da pelota.

Tales é o nosso talentoso meia-armador, porque, afinal de contas, foi ele quem criou a porra toda. Seu futebol é fluido como a água que está em tudo, na grama do campo, no suor do time, dentro do apito do juiz (eca), e, desta maneira, está na forma e uniformidade de todo o time.

Na ponta de lança, o grande destaque do time, que não tem só nome de filósofo, mas de craque: Sócrates. É com ele que o time muda o rumo das partidas, deixando de questionar a essência do jogo para se questionar a essência do jogador, do ser humano que está por trás dele. Com ele, nosso joguinho é questionado em si mesmo, e isso faz com que se renove a cada pensamento-jogada.

Agora, o ataque. Pela ponta-direita, o conceitual Platão, uma espécie de técnico dentro de campo, que traz do mundo das ideias os mais perfeitos desenhos táticos, embora ache que eles sempre sejam apenas suas cópias imperfeitas. Do lado oposto, temos Aristóteles transformando potência em ato, o que significa que ele segue em muito a causa final do jogo. Por fim, o centroavante é aquele que melhor condensa a virada ética helenística, Epicuro, um cara de quem podemos dizer que tem prazer em jogar bola.

O técnico do time será Melisso de Samos. Mas não é um nome muito menor para um time repleto de estrelas? Três pontos: Melisso é discreto, mas é importantíssimo, porque sintetizou a característica de todos. Segundo, é organizador e isso é imprescindível em um mar de vaidades. E terceiro, ele mesmo não é mais uma última bolacha do pacote.

Time bom, hein?

Vamos fazer o mesmo exercício com o escrete alemão.

Começamos pelo goleiro Heidegger. Sabendo que a bola que vê é um ente, procura evitar que o deslumbramento do gol faça-lhe ver que seu Ser é estar no fundo das redes. Melhor o nada.

Na lateral direita, o futebol moleque de Bruno Bauer. Não se benze, nem ergue as mãos aos céus quando chega aos raros gols, mas costuma ser muito incisivo em suas penetrações, a ponto de receber críticas de seu colega Marx. Bem-feito, já que adora criticar seu companheiro Hegel.

Na esquerda, vamos convocar Fichte. Ele não vê o jogo como a manifestação de um fenômeno, mas como uma realidade que parte da própria consciência, o que dá a ele uma inventividade maior que a de seus colegas (converter isso em lances nem sempre dá certo).

O zagueiro central será Frege, para que o time entenda do que está falando e não tenha dúvidas em sua comunicação, dizendo todos uma só língua e sob uma só lógica. Seu companheiro será Feuerbach, cético por natureza, que entende que aquilo que os colegas falam sobre o técnico do time, diz mais sobre eles mesmos.

O volante Leibniz é um artista da bola, que defende e ataca com a mesma desenvoltura, atuando em mais de uma posição. É movido por sua apetição, que jamais lhe deixa em repouso. Para ele, o futebol é uma coisa só e várias ao mesmo tempo, porque sua ideia é única, mas se concretiza das mais diversas maneiras.

O meia-armador Schopenhauer não costuma ser otimista nos seus jogos. Acha que a vontade de vencer é uma moção infinita que acaba quando outra começa. “De que vale eu vencer um campeonato se já quero ganhar o seguinte?”, costuma dizer a seus companheiros. Entretanto, é hábil nos seus discursos, mesmo quando reconhece que não tem razão. Por isso, é eficiente quando o objetivo é desequilibrar seus adversários mais difíceis. Os gregos que se cuidem.

Com a 10, não poderíamos ter outro senão ele, Immanuel Kant. Jogador muito crítico, entende que não há como ser dono da verdade, porque tudo o que acontece em campo são fenômenos, ou seja, uma representação do futebol em si mesmo. Costuma ser muito contundente com suas jogadas sintéticas a priori, que são, no seu ponto de vista, a única maneira de praticar futebol novo.

Na linha de frente, muitos craques com características diferentes. O ponteiro direito Nietzsche cai pelo lado de campo como se encarasse o abismo. Explosivo e intuitivo, dizem se tratar de dinamite pura, embora atribua seu caráter à sua imensa vontade de potência. Seus gols costumam ser comemorados com imenso deboche, mas nunca com indicadores para os céus.

Na ponta esquerda, a piada mais pronta deste texto: Karl Marx. Dizem que a expectativa sobre seu futebol é sempre alta, mas a realidade mostra um fominha que quer sempre ter a tarja de capitão. De toda forma, é adepto do futebol coletivo e da pouca posse de bola, e muitos se baseiam no seu jeito de jogar. Talvez não seja tão bom quanto ele pensa ser, nem tão ruim quanto dizem que é. Também não é comum vê-lo comemorar com reverências a um deus. Time de pouca fé.

E o centroavante não poderia ser outro que não fosse Hegel. Com amplo repertório de jogadas, admirado por muitos, criticado por outros tantos, sabe que há um espírito que faz com que o ritmo de jogo mude, e por isso não gosta de ir para o banco de reservas. E há uma certa inimizade com os pontas, que não acham que ele joga essa bola toda.

O técnico dessa talentosa equipe será Gadamer, que entende tanto a linguagem do boleiro, quanto a das táticas e técnicas, já que sabe fazer a hermenêutica de todas essas linguagens. Em time tão briguento, é bom ter alguém que assente a poeira.

Os times em campo e certamente veríamos os gregos com táticas claras e jogadas objetivas, enquanto os alemães marcariam golaços, mas com jogadas muito complexas. Embora com francas oposições, o time grego me pareceria mais coeso, com progressões mais bem definidas, embora os alemães possuam futebol mais sofisticado, até o ponto de tropeçarem uns nas pernas dos outros. Por isso, o placar talvez seja uma nova vitória grega, mesmo de placar apertado, porque ainda dá para sentir um cheirinho do milenar futebol helênico no requintado escrete germânico, e contrário não vale, pelo princípio da causalidade (que é aristotélico). Mas não dá para apostar dinheiro nisso, até que uma bet da vida inclua também este certame… Que medo!

Terminamos esse pequeno exerciciozinho mental concluindo que é só uma distração para aqueles que gostam de estudar e se pôr a pensar em filosofia, e também para reconhecer o quanto eu já escrevi neste espaço, já que todos os filósofos citados tem algum link para algum texto que eu já tenho escrito. Tô ficando velho… Bons ventos a todos!!!

Recomendação de vídeo:

É a tal esquete, que pode ser encontrada em trinta segundos com qualquer pesquisinha Google. Vou deixar um deles aqui embaixo.

Partida de Futebol dos Filósofos (The Philosophers' Football Match) - Monty Python - Legendado

*Fictítcio pero no mucho, já que ele foi baseado no publicitário Natan Pocanowski, um doente torcedor da seleção que forneceu as características gerais do personagem (fonte: https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/pacheco-3180)

** Ora (direis), mas no futebol os ilhéus do norte não disputam em unidade, e sim nas suas quatro nações. Meu enfadonho interlocutor, sempre por aqui. Faça de conta que a Copa é pelas Olimpíadas.