(Como aprendemos o que sabemos? Nascemos com algo ou pegamos tudo do mundo?)
“Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento”
John Locke
Olá!
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Eu não posso dizer que sou dos mais renomados utilizadores
das benesses digitais disponibilizadas contemporaneamente. Mesmo sendo um cara
de TI, faz muito tempo que não desenvolvo, e trabalho mais com a parte de
requisitos, como
já andei falando por aqui. Ah, eu não trabalho mais com ensino? Não, eu
preciso comer.
Voltando ao assunto, se comparado a qualquer pessoa de menos
de 40 anos, meu celular fica muito mais quieto do que os da rapaziada. Eles
fazem tudo pelo celular, e eu até hoje não confio de ter a conta do banco, que
está em um outro aparelho, quietinho em casa, por pura obrigação. Mas não sou
tão dinossauro assim, e uso algumas coisas que a pandemia me ensinou/obrigou.
São os aplicativos de compras, aqueles mais clássicos, vocês sabem quais.
É preciso resiliência para não sucumbir às ofertas. O que
tem de badulaques interessantes é uma grandeza. Pesquisei por pratos de bateria
e parecia que eu estava em uma forjaria de bronze. E aí você compra uma coisa, lembra
que precisa trocar os feltros, aparece umas baquetas black fiber, e mais outra,
e mais outra… quando você vê acontecem dois fenômenos: você compra um gongo que
vai usar em uma única pancada de uma única música, e seu cartão vai para a
caixa-prego. São maldições do capitalismo, contra os quais precisamos levantar
todos os nossos sortilégios.
Mas há quinquilharias que não comprometem de forma tão
radical o nosso orçamento. São porcarias que a gente compra meio que na base do
“serviu, serviu; não serviu, lixo”. E às vezes se revelam verdadeira e
surpreendentemente úteis, mesmo que não cumpram o que prometem.
Foi mais ou menos isso que aconteceu quando eu estava
pesquisando por métodos de café, na esperança de achar alguma oportunidade boa
e barata. Entre inúmeros repetecos, vi um objeto que em nada lembrava uma
cafeteira, parecendo mais um infusor de chá, com a promessa de ser prática e
eficiente para extrair doses individuais de café. Olhei com o bico retorcido
típico das minhas desconfianças, mas estava tão barato e com frete grátis que
resolvi encarar. É essa peça aqui:
A pecinha, autodenominada prensa manual para café, se chama
Mimo Style e vaticina combinar três mundos: a praticidade de um infusor
pequeno, o aproveitamento maximizado de uma prensa e a suavidade de um coador.
A combinação vem do fato de possuir uma mola que espreme o café quando pronto,
para arrancar o máximo do pó.
O esquema consiste em colocar pó no pequeno recipiente
composto de telas filtrantes e depositá-lo na água fervente. A quantidade de pó
que cabe nele só é suficiente para uma xícara pequena.
No final das contas, realmente funciona, mas há um problema: para cafés coados, eu prefiro quantidades maiores. Pequeninos assim, só os espressi, mas aí o pequeno utensílio não chega. Muito melhor quando usado para infundir cáscara, o saboroso subproduto do processo de descascamento do café, com suave sabor de amendoim.
Bom… não havia outra opção possível para saber se a
bugiganga poderia surpreender. Eu poderia pressupor, mas saber, de fato, só
tendo uma a meu alcance. Como não vejo esse método em cafeterias, dei meu
jeito, apelando para a modernidade. É experimentando que conhecemos.
Essa é uma frase que os antigos empiristas fariam coro,
fácil. No final das contas, é a perfeita síntese do que eles pensavam. Mas o
que são eles? Já falei muitas vezes sobre o embate racionalistas vs empiristas
neste espaço, mas não custa relembrar rapidinho. Os empiristas são pensadores
que se opunham à ideia de que o conhecimento já estava internalizado no ser
humano, esperando a ocasião de ser despertado, como queriam os racionalistas.
Por entender que o conhecimento era algo inerente ao ser humano, forçosamente
as ideias teriam de ser inatas, ou seja, nascidas junto com cada indivíduo.
Os empiristas se opunham radicalmente ao conhecimento
preexistente. No fundo, entendiam que o princípio geral do inatismo tinha uma
base religiosa, onde o conhecimento era uma doação de uma via externa, como o
hiperurânio platônico ou o mundo das ideias divinas agostiniano. Para eles, a
única fonte do conhecimento era oriunda dos sentidos, que, uma vez colocados à
disposição do cérebro, podiam ser por ele processados. Muito se disse antes
sobre o universo como a fonte do conhecimento e dos sentidos como sua via de
entrada, mas o debate aberto sobre sua fonte vem mais tarde, e é aqui que vamos
falar sobre um dos mais célebres membros do movimento empirista, John Locke.
É quase indissociável seu pensamento dos demais
contratualistas*, tanto que é plenamente possível fazer comparações diretas com
Hobbes e Rousseau, como fiz aqui.
Dentre estes, é o que tem ideias mais sólidas sobre o processo de conhecimento
oriundo da experiência.
Antes de estabelecer como é sua tese sobre o conhecimento,
Locke tece pesadas críticas sobre a base racionalista. Seu questionamento já
vem de sua própria linha empirista: pensavam os racionalistas que havia uma
espécie de acordo universal a quem toda a humanidade assentia, como se fosse
uma base epistêmica comum a todos os homens, e como se estivessem para o
conhecimento como os axiomas estão para a ciência. Entretanto, se o
conhecimento é inato, por qual motivo este acordo universal não está aparente nas
crianças, nem em pessoas com algum tipo de transtorno mental? Ideias genéricas,
como fome e frio, não estão impressas na alma, porque elas só surgem enquanto
sensação, ou seja, um impulso advindo de um fator vindo de fora: a falta de
comida ou de agasalho. É um aprendizado que pode ter um início ainda muito
remoto, mesmo no ventre, mas não que esteja gravado na alma. Em qualquer
circunstância, o feto conhece através dos seus sentidos; ele recebe alguma
forma de estímulo e registra essa sensação, agradável ou não. Em resumo,
crianças e tolos possuem alma, e, por conseguinte, possuem mente**. Se as
impressões preexistentes pensadas pelos racionalistas fossem reais, não faz
sentido que não existam neles, segundo Locke.
Outra questão que leva Locke a desconfiar do inatismo é a
diversidade de respostas que os diferentes povos dão a um mesmo problema.
Peguemos o exemplo deus. Em todos os lugares do mundo, existe uma forma de
religiosidade. Ponto para o inatismo. Só que, entretanto, cada um desses povos
traz uma resposta diferente para a mesma colocação. Há povos que adoram muitos
deuses, outros possuem uma hierarquia divina, onde um deus está no alto de um
séquito também divinizado, mas subalternos ao deus maior. Outra maneira de ver
a religião inclui um deus único, e há ainda aqueles que não centralizam a
transcendência em uma divindade, embora exista algo de metafísico***. Se o
conhecimento de deus viesse inatamente, não haveria motivo para tantas
concepções diferentes. Basicamente, cada povo tem ao menos uma forma de ver a
divindade, totalmente própria, e isso depõe contra as ideias inatas****.
Locke vai além, utilizando os próprios princípios inatos
para fazer contraposições. Se as ideias estão já presentes na mente de um ser
humano, é preciso que ela preexista de alguma forma, senão não haveria como
plasmá-las nas demais mentes. Será que temos algum lugar platônico onde as
ideias estão todas armazenadas? É preciso lembrar que essa noção platônica não
fazia parte nem dos postulados racionalistas, mas parece incoerente que haja
verdades gravadas na mente que não são percebidas imediatamente como tal.
Óbvio que os racionalistas rebatem as declarações de Locke,
justificando que as ideias inatas não representam soluções unívocas, já que
cada comunidade as adaptaria às suas necessidades em particular, ao que nosso
intrépido inglês retruca dizendo não ser prova do inatismo, vez que as
diferentes soluções dadas são somente as provas de que as necessidades existem
e são resolvidas de formas diversas, principalmente porque cada comunidade tem
justamente uma experiência distinta do problema enfrentado. Comprovação disso
vem da variedade de princípios morais que são absolutamente distintos em
diferentes partes do mundo. De fato, os sacrifícios são repelidos em lugares
vizinhos de onde eles são de rigor. Se houvesse princípios inatos universais,
não haveria motivo para tanto.
Locke concorda, entretanto, que há, sim, algo que é
efetivamente inato: a capacidade de articular conteúdos em raciocínios. Essa
característica é inerentemente humana, e nos constitui como tais. Mas essa
capacidade de articulação não é, ela mesma, os conteúdos com os quais ela lida.
Sem eles, o raciocínio não tem ingredientes para assar seu bolo.
Se não há nenhum conteúdo pré-impresso, então como se forma
o conhecimento na mente humana? É aqui que Locke vai chegar à sua mais célebre
doutrina: a tabula rasa. Sempre tratamos desse conceito quando falamos
de empirismo, e ele se resume no seguinte: a mente é um papel em branco, que é
preenchido pelas mãos dos sentidos através da observação do universo, como se
burilasse uma placa de argila. Eles ficam lá, prontos para serem utilizados
quando requeridos. Apesar disso, as fontes do conhecimento não se limitam aos
sentidos, mas também às operações mentais. Isso é mais facilmente perceptível
quando o processo abstrato se instaura. Vemos à nossa frente objetos que não
tem existência real, mas que, na opinião dos empiristas, não tem como ser
desenvolvido sem que haja uma sensação anterior. Isso acontece, para dar um
exemplo, na ideia de aceleração. Não conseguiríamos abstrair uma fórmula que a
descrevesse se não observarmos objetos em estado acelerado, porque nem mesmo
formaríamos essa noção.
As primeiras coisas que são apreendidas são as ideias mais
difusas, como as cores, as luminosidades, as dicotomias cheio-vazio,
quente-frio, alto-baixo, que vão dar parâmetros básicos para a construção de
ideias mais rebuscadas, mais sofisticadas. Afinal de contas, não há como dizer
que fulano é mais alto que sicrano se não houver antes uma ideia mais
fundamental do que seriam essas qualidades.
A complexidade das ideias aumenta, portanto, na medida em
que ideias simples se conjugam de forma a darem novas funções a si mesmas. Ou
seja, a ideia é como um átomo do pensamento. Os processos cognitivos se dão
pela contemplação, que é quando o objeto está presente e há interação direta,
ou pela memória, quando os conteúdos são resgatados do acervo mental. Esse
trânsito de inúmeras sensações simples permite que ideias complexas se formem.
Por exemplo, para se ter uma ideia de infinitude, é preciso primeiro passar por
experiências de duração, que, por sua vez, são percebidas através das ideias
mais simples de tempo, colhidas da experiência pela observação da velocidade
das transformações.
O grande fundamento do empirismo como um todo, e de Locke em
particular, está, portanto, no fato de que o conhecimento não é uma estrutura
universal, aplicável igualmente a qualquer lugar e momento, mas dependente da
percepção individual. Sendo assim, todas as vezes que observamos um objeto,
extraímos dele informações que são parciais de sua essência. Essas são
essências nominais, porque dizem respeito a ESSE cachorro, a ESSA planta, a
ESSE texto, e não à universalidade desses mesmos objetos, embora contenham em
si as características que sejam comuns a todos eles. A essência nominal é
construída a partir das ideias formadas a partir das sensações que temos dos
vários componentes do universo, enquanto a essência real seria a sua natureza
intrínseca. Daí que, entre ambas, podem ser encontradas diferenças em função da
experiência de quem os observa.
Desta forma, para universalizar os juízos, e reconhecendo
que as essências reais das coisas não são perceptíveis ao intelecto, mas apenas
as essências nominais extraídas de cada objeto individual, é necessário que
haja o compartilhamento de ideias e conceitos, através da comunicação e da
educação. O ser humano é caracterizado pelo compartilhamento de vários
elementos, como os produtos do trabalho, dos espaços públicos, da terra, dentre
outros. Deve compartilhar também os conhecimentos individuais para enriquecer o
patrimônio intelectivo humano, porque é da depuração das experiências através
dos pontos em comum que é possível obter algo que se aproxime o máximo possível
do que seria essa tal de essência real.
O que podemos concluir é que eu precisava de experiência
individual para determinar se faz sentido usar este pequeno utensílio para
extrair um café minimamente competente, bem mais do que se fiar unicamente na
minha intuição. E, neste sentido, valeu a experiência. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Não tenho como deixar de novamente indicar a obra em que
Locke discorre sobre tudo o que foi discutido aqui.
LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano.
São Paulo: Nova Cultural, 1999.
*São os filósofos modernos que exploraram o conceito de
contrato social, ou seja, o acordo de convívio entre os seres humanos.
**Locke era cristão e, portanto, fazia identificação entre
mente e alma.
***Budistas, de certa forma, são enquadrados nesta
categoria. Vide este
texto.
****Obviamente Locke não conhecia os ateus pirahãs, dado ao fato de ser um povo praticamente oculto até pouco tempo atrás. Para saber mais, leiam este post.