(Fazia tempo que eu não fazia um texto sobre falácias. Vamos nessa.)
“Afirmar que os predicados podem ser sempre combinados sem qualquer exceção acarreta evidentemente muitos absurdos”
Aristóteles
Olá!
Eu, a rigor, não sou um cara muito polêmico. Todos esses
anos tendo que lidar com meus usuários (de sistemas) me fez criar uma política
de boa vizinhança, primeiro porque é uma questão de educação, depois porque só
assim as coisas saem do lugar em um universo francamente conservador, cuja
menor virada de chave faz parecer que você está arrancando um órgão da pessoa.
É fato. Já vi gente reclamando que vai ficar com tendinite por usar mais o
mouse que o teclado, que ainda é usado como se fosse máquina de escrever. E é a
mesma pessoa que aprecia mudar de ares, mudar de visual, mudar de cônjuge, e detesta
mudar a cor da grama quando se trata de trabalho.
Mas não tem jeito. Há medo envolvido, há comodidade, há até
vaidade, então é preciso procurar ser compreensivo. Mas mesmo com a
condescendência e a paciência, certas armadilhas retóricas são inevitáveis,
porque não conseguimos nos resguardar cem por cento do tempo. E vamos combinar
que nem sempre queremos fugir do bom combate.
O caso que deu origem a esse prólogo foi simples, ou seja,
não envolveu nenhum tipo de perigo, já que a coisa se desenrolou NO serviço,
mas não EM FUNÇÃO do serviço.
A coisa foi mais ou menos assim: há uns tempos, quando
queríamos testar funcionalidades novas, fazíamos uma cópia dos dados gravados
em uso e vamos que vamos. Em decorrência da LGPD, que exige uma série de cuidados
no trato com os dados, quando estamos homologando nossos trabalhos hoje em
dia fazemos cargas com nomes fictícios. Tem gente que usa nomes genéricos, como
Teste1, Teste2 e etc. Tem gente que usa os Lorem Ipsum da vida e tem gente que
carrega nomes de fato, mas de pessoas públicas, para dar uma cara mais realista
ao que se homologa. Um dos analistas com quem trabalho costuma usar nomes de
pilotos de Fórmula 1, uma paixão sua (e minha). Lá está todo o grid atual, com
Max Verstappen, Charles Leclerc, Pierre Gasly, Lewis Hamilton e todos os
demais, assim como algumas feras do passado mais conhecidas, dentre eles Alain
Prost, Nigel Mansell, Niki Lauda, além, é claro, do indefectível Ayrton,
Ayrton, Ayyyyyyyyyrton Senna do Brasil!!!
Entre mim e ele, há uma diferença substancial de idade. No
fatídico 01 de maio de 1994, ele era um bebezinho de fraldas, enquanto eu já
era pai de duas crianças. Ou seja, entre nós, a testemunha ocular da tragédia
era eu. O comentário sobre a carga de nomes automobilísticos inexoravelmente
levou ao bate-papo que culminou com o falecido piloto, seus feitos e defeitos. Defeitos?
Por incrível que possa parecer, o tema é espinhoso até os dias de hoje, trinta
anos depois.
A cena é simples. O moço de seus trinta anos não testemunhou
os feitos do grande piloto, embora haja YouTube com material à beça para ser
assistido, livros e séries, com uma bastante recente fazendo falas por aí. Mas
ele é fã, como se estivesse nos autódromos do mundo acompanhando a carreira
desde o kart até a fatalidade. Eu não sou fã do Senna, já expliquei no texto em
questão, porque não tenho ídolos no automobilismo. E eu externei isso, para meu
desgosto.
A resposta veio seca: então você não é brasileiro.
Mas eu não desci do pedestal. Respondi que dizer que não sou
brasileiro é uma falácia: o ilícito menor. Pelo inesperado, meu jovem colega me
olhou com cara de ET, e tive que me explicar, para nunca esquecer do espírito
professoral.
Sempre que pensamos em falácias, temos em mente uma intenção
de engodo, o que é feito na base dos argumentos exagerados, ou com foco
restrito, e assim por diante. Entretanto, existem argumentos que são
construídos com defeitos lógicos, que são as chamadas falácias formais. Aqui, o
erro não está propriamente na intenção, mas nos alicerces da proposição.
Sabemos o que acontece com uma casa com mais alicerces.
Para explicar melhor, tenho que passar pela parte chata e
mais técnica de explicar a estrutura dos silogismos, a ferramenta aristotélica
que pretende utilizar a dedução para validar argumentos.
Grosso modo, existem duas formas clássicas de silogismo: o
categórico e o hipotético. Como o que nos interessará no momento é o primeiro,
vou dar uma espanadinha de leve no segundo. Silogismo hipotético, como o
próprio nome diz, é voltado a estabelecer estrutura lógica em hipóteses, bem ao
tipo daqueles “se… então”. Um argumento desse tipo bem simples é construído
assim:
Se meu time vencer a final, será campeão.
Meu time venceu a final.
Portanto, meu time é campeão.
Ou seja, a conclusão é a confirmação de uma hipótese. Mas
nos interessa hoje o silogismo categórico, e vamos nos debruçar sobre ele. Um
silogismo é categórico quando ele propõe peremptoriamente um argumento, sendo
que, uma vez cumprida as premissas, a conclusão seja de rigor.
O silogismo categórico, dessa forma, é uma forma de síntese
de uma aplicação lógica, onde a linguagem expressa um fenômeno da realidade.
Como pretende ter caráter veritativo, possui algumas regras para que funcione a
contento. Vamos a elas.
1. Todo silogismo contém três termos:
Os silogismos não são meras frasezinhas bonitinhas, mas são
encadeamentos linguísticos que se assemelham aos componentes de uma máquina,
que interagem entre si para produzir um trabalho. Silogismos possui três
peças a quem damos o nome de termos: um termo maior, que faz referência
a um universo mais abrangente; um termo menor, que limita o alcance do
entendimento e dá mais precisão a ele, e um termo médio, que se encarrega de
unir os outros dois e fazê-los desembocar em uma conclusão.
No silogismo por excelência, aquele do Sócrates, podemos ver
com facilidade essa mecânica.
Todo homem é mortal
Sócrates é homem
Portanto, Sócrates é mortal
A primeira premissa tem abrangência universal, já que fornece
um aspecto comum de toda a humanidade. A segunda particulariza em Sócrates o
seu pertencimento ao sujeito prescrito na premissa anterior. Unidos pelo ponto
comum (termo médio), deságuam na conclusão de que, por pertencer a um universo
(todo homem), o particular (Sócrates) compactua com sua característica.
2. Os termos da conclusão não podem ter extensão maior do
que os das premissas:
Quando falamos em extensão de um silogismo, referimo-nos ao
campo que a proposição alcança. Via de regra, podemos ter abrangência
universal, particular múltipla, particular individual ou nenhuma, assim: quando
eu falo em “todos”, estou me referindo à totalidade de um determinado sujeito,
como “todas as pessoas”. Se eu falo em “alguns”, falo de parte das pessoas de
um grupo. Se falo em um indivíduo específico, posso mencionar um nome, por
exemplo eu mesmo, e a particularidade desce ao seu menor grão, o indivíduo. E
se falo em “nenhum”, a aplicação é a ninguém. Em termos de extensão, essa ordem
vai da maior para a menor, e a conclusão não pode indicar mais do que está
sendo discutido nas premissas. Se eu estou falando em “alguns homens”, não
posso concluir disso algo que atinja toda a humanidade.
3. O termo médio não pode constar da conclusão:
O termo médio existe em um silogismo para amarrar as
premissas, e, por conta de seu próprio funcionamento, precisa estar ausente na
conclusão. Distribuir um termo médio significa exatamente fornecer a porção que
cada premissa terá na construção da conclusão.
4. O termo médio deve ser aplicado universalmente pelo
menos em uma das premissas
O termo médio precisa alcançar toda a sua extensão ao menos
em uma das premissas, do contrário sempre haverá um gap de elementos que poderá
não ser atingido, o que impede o silogismo de ser categórico. Se eu falar que
alguns homens são mortais e que Sócrates é homem, não conseguirei deduzir se
ele faz parte do grupo dos alguns homens que são mortais ou não.
5. De duas premissas particulares, nada se conclui
Decorrência da regra anterior, também aqui é impossível
chegar a uma conclusão firme, por falta de extensão.
6. De duas premissas negativas, nada se conclui
Mais uma vez, temos a questão da abrangência. Se eu estou
negativando ambas as premissas, não tenho como firmar um entendimento que leve
a alguma conclusão.
7. De duas premissas afirmativas, não pode ser extraída
uma conclusão negativa
Essa é a mais óbvia de todas. Se eu afirmo duas vezes alguma
coisa, não há sentido em se chegar a uma conclusão negativa sem incorrer em
erro. Quando eu falo que todos os homens são mortais e que Sócrates é homem,
não há nenhuma maneira de torcer o argumento para dizer que Sócrates NÃO é
mortal. Sem gracinhas de dizer que ele se eterniza em sua obra, por gentileza.
Nossa referência é bem clara.
8. A conclusão sempre segue a premissa mais fraca
O que são as premissas fracas? São aquelas que atingem mais
frouxamente um argumento. Quando afirmamos uma coisa ou a atribuímos à
universalidade, havemos de concordar que sua abrangência é muito maior do que
um argumento que nega ou que se refere a apenas uma parcela dos objetos. Ainda
assim, a conclusão, quando envolve uma negação ou o direcionamento a um
particular, deve segui-los, porque uma conclusão não pode afirmar mais do que
as premissas permitem.
Bom… como podemos construir um silogismo a partir da
afirmação de meu camarada? Vamos tentar.
Segundo posso inferir, ele expressa que todo brasileiro tem
algum ídolo, preferencialmente o Ayrton do Brasil. No entanto, existem pessoas
que não possuem ídolos, e que, portanto, esses não são brasileiros. Colocando
em forma de silogismo, temos…
Todos os brasileiros possuem ídolos
Algumas pessoas não possuem ídolos
Portanto, todas as pessoas que não possuem ídolos não são brasileiras.
Onde está a falha deste argumento? Observemos que a premissa
menor, a segunda, indica que temos uma extensão particular, ou seja, que diz
respeito a uma parte dos objetos para os quais vira seu foco, já que falamos
que há algumas pessoas sem ídolo, e não todas. Mas o que temos na conclusão? O
mesmo termo tomado em toda a sua extensão. Quando fazemos uma afirmação dessa,
é possível ver que há uma falha em sua estrutura, que não permite realizar a
maior de todas as assertivas sobre o silogismo: a verdade das premissas garante
a verdade da conclusão. E isso ocorre por haver quebra na última regra, a de
que a conclusão segue a premissa mais fraca.
Por se tratar de um defeito relacionado a um uso indivíduo
da premissa menor, esta falácia formal recebe o nome de ilícito menor.
Não se trata, evidentemente, de um crimezinho de pouca monta, como uma
contravenção ou roubo de galinha, porque a ilicitude no caso se dá no uso
indevido de uma forma dedutiva aplicado à premissa menor, que, no caso, é
particular, mas aplicada como universal.
Esse salto lógico normalmente é usado sem má intenção,
talvez apenas com pressa ou vontade de firmar posição, principalmente porque, a
depender da complexidade dos detalhes, pode ficar bem oculto. Mas tem
momentos em que passa despercebido.
Fiquem tranquilos, não fiquei de mal do amiguinho. A coisa
passou como quase tudo na vida, e até voltamos a falar do tema sem ressentimentos,
apenas com as posições mais bem marcadas. Bons ventos a todos!
Recomendações:
Não se fala em lógica formal sem se falar em Aristóteles, e
vou bisar a recomendação aqui.
ARISTÓTELES. Organon. Bauru: Edipro, 2005.
E vamos ter uma série dramática sobre Ayrton Senna sendo lançada
na Netflix no finzinho deste mês. É a primeira recomendação antecipada que
faço, embora não esteja com bom palpite. Normalmente o que temos nesses casos
são panegíricos que reforçam características que o personagem não tem,
tornando-o falsificado. Prometo fazer um texto sobre ela.