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quarta-feira, 7 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – tudo o que sabemos vem do universo ao nosso redor

(Como aprendemos o que sabemos? Nascemos com algo ou pegamos tudo do mundo?)

“Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma ideia; como ela será suprida? (...) A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento”

John Locke

Olá!

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Eu não posso dizer que sou dos mais renomados utilizadores das benesses digitais disponibilizadas contemporaneamente. Mesmo sendo um cara de TI, faz muito tempo que não desenvolvo, e trabalho mais com a parte de requisitos, como já andei falando por aqui. Ah, eu não trabalho mais com ensino? Não, eu preciso comer.

Voltando ao assunto, se comparado a qualquer pessoa de menos de 40 anos, meu celular fica muito mais quieto do que os da rapaziada. Eles fazem tudo pelo celular, e eu até hoje não confio de ter a conta do banco, que está em um outro aparelho, quietinho em casa, por pura obrigação. Mas não sou tão dinossauro assim, e uso algumas coisas que a pandemia me ensinou/obrigou. São os aplicativos de compras, aqueles mais clássicos, vocês sabem quais.

É preciso resiliência para não sucumbir às ofertas. O que tem de badulaques interessantes é uma grandeza. Pesquisei por pratos de bateria e parecia que eu estava em uma forjaria de bronze. E aí você compra uma coisa, lembra que precisa trocar os feltros, aparece umas baquetas black fiber, e mais outra, e mais outra… quando você vê acontecem dois fenômenos: você compra um gongo que vai usar em uma única pancada de uma única música, e seu cartão vai para a caixa-prego. São maldições do capitalismo, contra os quais precisamos levantar todos os nossos sortilégios.

Mas há quinquilharias que não comprometem de forma tão radical o nosso orçamento. São porcarias que a gente compra meio que na base do “serviu, serviu; não serviu, lixo”. E às vezes se revelam verdadeira e surpreendentemente úteis, mesmo que não cumpram o que prometem.

Foi mais ou menos isso que aconteceu quando eu estava pesquisando por métodos de café, na esperança de achar alguma oportunidade boa e barata. Entre inúmeros repetecos, vi um objeto que em nada lembrava uma cafeteira, parecendo mais um infusor de chá, com a promessa de ser prática e eficiente para extrair doses individuais de café. Olhei com o bico retorcido típico das minhas desconfianças, mas estava tão barato e com frete grátis que resolvi encarar. É essa peça aqui:

A pecinha, autodenominada prensa manual para café, se chama Mimo Style e vaticina combinar três mundos: a praticidade de um infusor pequeno, o aproveitamento maximizado de uma prensa e a suavidade de um coador. A combinação vem do fato de possuir uma mola que espreme o café quando pronto, para arrancar o máximo do pó.

O esquema consiste em colocar pó no pequeno recipiente composto de telas filtrantes e depositá-lo na água fervente. A quantidade de pó que cabe nele só é suficiente para uma xícara pequena.


No final das contas, realmente funciona, mas há um problema: para cafés coados, eu prefiro quantidades maiores. Pequeninos assim, só os espressi, mas aí o pequeno utensílio não chega. Muito melhor quando usado para infundir cáscara, o saboroso subproduto do processo de descascamento do café, com suave sabor de amendoim.

Bom… não havia outra opção possível para saber se a bugiganga poderia surpreender. Eu poderia pressupor, mas saber, de fato, só tendo uma a meu alcance. Como não vejo esse método em cafeterias, dei meu jeito, apelando para a modernidade. É experimentando que conhecemos.

Essa é uma frase que os antigos empiristas fariam coro, fácil. No final das contas, é a perfeita síntese do que eles pensavam. Mas o que são eles? Já falei muitas vezes sobre o embate racionalistas vs empiristas neste espaço, mas não custa relembrar rapidinho. Os empiristas são pensadores que se opunham à ideia de que o conhecimento já estava internalizado no ser humano, esperando a ocasião de ser despertado, como queriam os racionalistas. Por entender que o conhecimento era algo inerente ao ser humano, forçosamente as ideias teriam de ser inatas, ou seja, nascidas junto com cada indivíduo.

Os empiristas se opunham radicalmente ao conhecimento preexistente. No fundo, entendiam que o princípio geral do inatismo tinha uma base religiosa, onde o conhecimento era uma doação de uma via externa, como o hiperurânio platônico ou o mundo das ideias divinas agostiniano. Para eles, a única fonte do conhecimento era oriunda dos sentidos, que, uma vez colocados à disposição do cérebro, podiam ser por ele processados. Muito se disse antes sobre o universo como a fonte do conhecimento e dos sentidos como sua via de entrada, mas o debate aberto sobre sua fonte vem mais tarde, e é aqui que vamos falar sobre um dos mais célebres membros do movimento empirista, John Locke.

É quase indissociável seu pensamento dos demais contratualistas*, tanto que é plenamente possível fazer comparações diretas com Hobbes e Rousseau, como fiz aqui. Dentre estes, é o que tem ideias mais sólidas sobre o processo de conhecimento oriundo da experiência.

Antes de estabelecer como é sua tese sobre o conhecimento, Locke tece pesadas críticas sobre a base racionalista. Seu questionamento já vem de sua própria linha empirista: pensavam os racionalistas que havia uma espécie de acordo universal a quem toda a humanidade assentia, como se fosse uma base epistêmica comum a todos os homens, e como se estivessem para o conhecimento como os axiomas estão para a ciência. Entretanto, se o conhecimento é inato, por qual motivo este acordo universal não está aparente nas crianças, nem em pessoas com algum tipo de transtorno mental? Ideias genéricas, como fome e frio, não estão impressas na alma, porque elas só surgem enquanto sensação, ou seja, um impulso advindo de um fator vindo de fora: a falta de comida ou de agasalho. É um aprendizado que pode ter um início ainda muito remoto, mesmo no ventre, mas não que esteja gravado na alma. Em qualquer circunstância, o feto conhece através dos seus sentidos; ele recebe alguma forma de estímulo e registra essa sensação, agradável ou não. Em resumo, crianças e tolos possuem alma, e, por conseguinte, possuem mente**. Se as impressões preexistentes pensadas pelos racionalistas fossem reais, não faz sentido que não existam neles, segundo Locke.

Outra questão que leva Locke a desconfiar do inatismo é a diversidade de respostas que os diferentes povos dão a um mesmo problema. Peguemos o exemplo deus. Em todos os lugares do mundo, existe uma forma de religiosidade. Ponto para o inatismo. Só que, entretanto, cada um desses povos traz uma resposta diferente para a mesma colocação. Há povos que adoram muitos deuses, outros possuem uma hierarquia divina, onde um deus está no alto de um séquito também divinizado, mas subalternos ao deus maior. Outra maneira de ver a religião inclui um deus único, e há ainda aqueles que não centralizam a transcendência em uma divindade, embora exista algo de metafísico***. Se o conhecimento de deus viesse inatamente, não haveria motivo para tantas concepções diferentes. Basicamente, cada povo tem ao menos uma forma de ver a divindade, totalmente própria, e isso depõe contra as ideias inatas****.

Locke vai além, utilizando os próprios princípios inatos para fazer contraposições. Se as ideias estão já presentes na mente de um ser humano, é preciso que ela preexista de alguma forma, senão não haveria como plasmá-las nas demais mentes. Será que temos algum lugar platônico onde as ideias estão todas armazenadas? É preciso lembrar que essa noção platônica não fazia parte nem dos postulados racionalistas, mas parece incoerente que haja verdades gravadas na mente que não são percebidas imediatamente como tal.

Óbvio que os racionalistas rebatem as declarações de Locke, justificando que as ideias inatas não representam soluções unívocas, já que cada comunidade as adaptaria às suas necessidades em particular, ao que nosso intrépido inglês retruca dizendo não ser prova do inatismo, vez que as diferentes soluções dadas são somente as provas de que as necessidades existem e são resolvidas de formas diversas, principalmente porque cada comunidade tem justamente uma experiência distinta do problema enfrentado. Comprovação disso vem da variedade de princípios morais que são absolutamente distintos em diferentes partes do mundo. De fato, os sacrifícios são repelidos em lugares vizinhos de onde eles são de rigor. Se houvesse princípios inatos universais, não haveria motivo para tanto.

Locke concorda, entretanto, que há, sim, algo que é efetivamente inato: a capacidade de articular conteúdos em raciocínios. Essa característica é inerentemente humana, e nos constitui como tais. Mas essa capacidade de articulação não é, ela mesma, os conteúdos com os quais ela lida. Sem eles, o raciocínio não tem ingredientes para assar seu bolo.

Se não há nenhum conteúdo pré-impresso, então como se forma o conhecimento na mente humana? É aqui que Locke vai chegar à sua mais célebre doutrina: a tabula rasa. Sempre tratamos desse conceito quando falamos de empirismo, e ele se resume no seguinte: a mente é um papel em branco, que é preenchido pelas mãos dos sentidos através da observação do universo, como se burilasse uma placa de argila. Eles ficam lá, prontos para serem utilizados quando requeridos. Apesar disso, as fontes do conhecimento não se limitam aos sentidos, mas também às operações mentais. Isso é mais facilmente perceptível quando o processo abstrato se instaura. Vemos à nossa frente objetos que não tem existência real, mas que, na opinião dos empiristas, não tem como ser desenvolvido sem que haja uma sensação anterior. Isso acontece, para dar um exemplo, na ideia de aceleração. Não conseguiríamos abstrair uma fórmula que a descrevesse se não observarmos objetos em estado acelerado, porque nem mesmo formaríamos essa noção.

As primeiras coisas que são apreendidas são as ideias mais difusas, como as cores, as luminosidades, as dicotomias cheio-vazio, quente-frio, alto-baixo, que vão dar parâmetros básicos para a construção de ideias mais rebuscadas, mais sofisticadas. Afinal de contas, não há como dizer que fulano é mais alto que sicrano se não houver antes uma ideia mais fundamental do que seriam essas qualidades.

A complexidade das ideias aumenta, portanto, na medida em que ideias simples se conjugam de forma a darem novas funções a si mesmas. Ou seja, a ideia é como um átomo do pensamento. Os processos cognitivos se dão pela contemplação, que é quando o objeto está presente e há interação direta, ou pela memória, quando os conteúdos são resgatados do acervo mental. Esse trânsito de inúmeras sensações simples permite que ideias complexas se formem. Por exemplo, para se ter uma ideia de infinitude, é preciso primeiro passar por experiências de duração, que, por sua vez, são percebidas através das ideias mais simples de tempo, colhidas da experiência pela observação da velocidade das transformações.

O grande fundamento do empirismo como um todo, e de Locke em particular, está, portanto, no fato de que o conhecimento não é uma estrutura universal, aplicável igualmente a qualquer lugar e momento, mas dependente da percepção individual. Sendo assim, todas as vezes que observamos um objeto, extraímos dele informações que são parciais de sua essência. Essas são essências nominais, porque dizem respeito a ESSE cachorro, a ESSA planta, a ESSE texto, e não à universalidade desses mesmos objetos, embora contenham em si as características que sejam comuns a todos eles. A essência nominal é construída a partir das ideias formadas a partir das sensações que temos dos vários componentes do universo, enquanto a essência real seria a sua natureza intrínseca. Daí que, entre ambas, podem ser encontradas diferenças em função da experiência de quem os observa.

Desta forma, para universalizar os juízos, e reconhecendo que as essências reais das coisas não são perceptíveis ao intelecto, mas apenas as essências nominais extraídas de cada objeto individual, é necessário que haja o compartilhamento de ideias e conceitos, através da comunicação e da educação. O ser humano é caracterizado pelo compartilhamento de vários elementos, como os produtos do trabalho, dos espaços públicos, da terra, dentre outros. Deve compartilhar também os conhecimentos individuais para enriquecer o patrimônio intelectivo humano, porque é da depuração das experiências através dos pontos em comum que é possível obter algo que se aproxime o máximo possível do que seria essa tal de essência real. 

O que podemos concluir é que eu precisava de experiência individual para determinar se faz sentido usar este pequeno utensílio para extrair um café minimamente competente, bem mais do que se fiar unicamente na minha intuição. E, neste sentido, valeu a experiência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Não tenho como deixar de novamente indicar a obra em que Locke discorre sobre tudo o que foi discutido aqui.

LOCKE, John. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

 

*São os filósofos modernos que exploraram o conceito de contrato social, ou seja, o acordo de convívio entre os seres humanos.

**Locke era cristão e, portanto, fazia identificação entre mente e alma.

***Budistas, de certa forma, são enquadrados nesta categoria. Vide este texto.

****Obviamente Locke não conhecia os ateus pirahãs, dado ao fato de ser um povo praticamente oculto até pouco tempo atrás. Para saber mais, leiam este post.

terça-feira, 6 de maio de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: a histórica Portuguesa Santista e as exclusões que estão carimbadas em nossas cabeças

(É bom ter orgulho das origens, e não podemos ser culpados por causa disso)

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!”

Fernando Pessoa

Olá!

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No prédio que habito, há um senhor português. Fiquei sabendo disso quase que por acaso. No entra-e-sai constante e no trafegar dos corredores, já havia o visto, mas era aquela coisa do bom-dia, boa-tarde, boa-noite e pouco mais do que isso. Entretanto, ele me viu com uma determinada camisa no corredor de entrada e ficou quase emocionado, puxando bem meia hora de papo. Contou-me sobre a infância na comuna de Boticas, na região de Trás-os-Montes, ao norte, onde se fala com um certo puxadinho do espanhol. Falou de como seu pai fugiu da ditadura de Salazar e se estabeleceu na zona norte de São Paulo, abrindo um botequim próximo do Campo de Marte, onde os recrutas da aeronáutica iam gastar seus parcos soldos com linguiças e cachaças. Contou ainda como conheceu sua patroa, igualmente portuguesa, e vinda de Penafiel, igualmente no Norte, mas mais próxima do Porto. Contou dos filhos, dos gatos e dos peixes, e viramos amigos, um dos poucos que tenho no prédio. Já comi de sua realmente saborosa bacalhoada e lhe trouxe taiadas e licor de cambuci do Vale do Paraíba, e, com isso, vamos enfrentando o mau cheiro do centro de São Paulo.

Mas que misteriosa camisa foi essa, que despertou tantas lembranças doces e fez nascer uma amizade? É essa aí embaixo:

A Portuguesa Santista é mais uma das equipes fundadoras da Federação Paulista de Futebol, prima-irmã da sua homônima da capital, nascida da colônia portuguesa da cidade de Santos, ao verem que os espanhóis da cidade fundaram seu clube Hespanha, hoje Jabaquara, já discorridos por aqui.

Não tem sido bons os últimos tempos da Briosa. Ela foi rebaixada à terceira divisão do Campeonato Paulista e agora vai ter que penar para recomeçar sua missão de voltar aos melhores tempos. Estrutura ela tem, já que se trata de um belo clube, que, como tal, é até mais robusto que seu vizinho célebre, o Santos. Mas ela padece dos males de vários outros fundadores da Federação. Ela cumpre a dura missão de compartilhar a cidade com um dos grandalhões, que cresceu muito exatamente no momento em que as torcidas se amalgamavam, além de ser muito marcadamente próxima de uma colônia específica, que, mesmo numerosa, cada vez mais tem se mesclado com a população geral. Isso faz com que o clube caia na mesma roda de seu conterrâneo, o precitado Jabaquara. E o círculo vicioso é muito difícil de sair.

Isso tudo não tira as suas virtudes. Além da tradição, houve momentos em que a Santista esteve mais próxima dos seus rivais, e mesmo hoje ela tem na sua história um dos principais patrimônios. Como não é possível que um torneio termine empatado, mesmo onde há o maior equilíbrio possível, sempre há quem leve e quem apanhe, ou seja, há o primeiro e há o último. Como o Santos foi acumulando títulos e revelando jogadores meia-boca do tipo Pelé, Juary, Pita, Coutinho e Edu, a Briosa foi ficando para trás, até atingir o lugar onde está hoje: um ponto intermediário no futebol paulista.

Entretanto, a Briosa tem uma dor um pouco mais oculta, que incomoda mais. Não são poucos que a chamam de “burrinha”, em razão do estereótipo que se formou de que os portugueses são simplórios, faltos de inteligência, tardos de pensamento. É diferente do que acontece com o Taubaté, burrinho da Central, em que o animal representa os tropeiros que povoavam a região. Neste caso, o símbolo é exibido com orgulho, porque traz uma série de adjetivos positivos e tem conotação histórica. Diferentemente, a origem remota da atribuição aos portugueses diz respeito, provavelmente, à dificuldade de compreensão de certos termos utilizados pelo vulgo brasileiro. Como sabemos, na formação do povo do Brasil há muitos ingredientes que não estão presentes na cultura portuguesa, especialmente elementos africanos e indígenas. Isso tudo sem contar que a distância estabelece uma realidade muito distinta entre a antiga metrópole e colônias, com diferentes usos, costumes e necessidades. Desta forma, os portugueses interpretam termos forjados no Brasil com literalidade, enquanto o campo semântico coloquial se desloca para outro sentido. Inúmeras expressões que utilizamos corriqueiramente em nosso quotidiano são recebidas com estranheza pelo luso nativo, que pergunta, por exemplo, como é possível “matar tartarugas a beliscão”, quando queremos, de fato, dizer que temos poucos recursos para enfrentar dificuldades. Os coloniais aproveitam, e deitam e rolam, alimentados pelo ressentimento decorrente da situação de dominação. Vingam-se do grandalhão pisando em sua sombra. São os ingredientes para o caldo problemático.

A principal questão é entender por que a ofensa se mantém mesmo após perder seu sentido original, dada uma inversão nas relações. Hoje, os portugueses reclamam do abrasileiramento dos seus linguajares, o que é um distintivo da mudança de direção nas influências culturais. O diabo é que começamos a fazer as coisas sem nem perceber direito porque as fazemos. É aquela mesma coisa de tentar explicar a origem de um olho. Depois de tantas transformações, é óbvio que os elementos presentes atualmente não se explicam por si só, e parece que as coisas sempre foram do jeito que são agora. Mas o olho um dia foi um mero nervo sensível à luminosidade, para depois ganhar um abaulamento que lhe permitiu captar luz de partes distintas, e ganhar membranas, e contratilidade, e esfericidade, até se tornar irreconhecível para o que foi sua origem mais remota. Hoje em dia, não faz mais sentido pensar em uma relação de dominante e dominado. Não é mais justificável a vingança possível, porque os motivos palpáveis sumiram, mas o vestígio ficou, e a ridicularização que sobrou se dirige a quem não a merece.

Meu amigo português se melindra dessa mesma pecha que lhe é imposta no particular. Eu, contemporizador, digo-lhe para não ligar, para entender que a tendência diminui a cada dia e, politicamente incorreto, que as loiras têm dividido a inglória com eles. Mas ele ainda insiste que não há conforto em ser chamado de burro a vida inteira. Concordo.

A situação é de exclusão. Ser burro é coisa de quem está alijado da intelectualidade, e está ligado a uma pretensa incapacidade de até mesmo pensar por si só, quanto mais gerir coisas importantes. O subterfúgio de dizer que é só uma brincadeira não se sustenta quando você recebe a notícia de que o professor que te ensinará é um português e os ponteiros do seu desconfiômetro são acionados. Isso vale para qualquer forma de preconceito.

Ser excluído não é fácil, e eu, homem, branco, paulistano, classe média baixa, heterossexual e cisgênero, tenho dificuldades para me encaixar em situações de real exclusão para assumir o ponto de vista de quem sofre o preconceito. É bem verdade que minha posição não-religiosa é boa candidata, mas eu não milito nessas questões, e pouca gente sabe do meu ateísmo. Mas, de tanto raciocinar, achei um bom exemplinho caseiro, que vem da minha condição de diabético.

Se há algo que posso falar sobre minha parentagem é que as palavras planejamento e organização não fazem sentido para os seus membros. É extremamente comum que só decidamos coisas de Natal, Páscoa, Dia das Mães e outras festividades na véspera (ou até no próprio dia). Isso vai influenciar em tudo - se não sabemos nem onde vamos comer, obviamente não sabemos o que vamos comer. Só que a vida caótica pode até ser divertida, porque gera muitas histórias para contar, mas tem seu preço.

Eu sou diabético, já contei para vocês. Isso significa que é preciso um pouco mais de cuidado no preparo de minhas comidas, como é óbvio. No meio do pandemônio, é um pratinho minúsculo que precisa ser feito para atender minha necessidade, e que normalmente acaba ficando para o final, para quando a anarquia já houver ganho governo. Faz sentido até, porque fazer uma panela de doce rende para muita gente, basicamente todo mundo, fora eu. Mas quase todo ano acontece de não dar tempo de fazer a minha tacinha, o meu pratinho, a minha sobremesinha. Como normalmente o estado é de balbúrdia, falo para deixar para lá, pego uma fruta, como só um pedacinho, porque prefiro a paz possível ao doce impossível. Mas, ainda que eu procure não me importar, fato concreto é que eu sobro no dopopranzo. E não há como dizer que não fico na condição de excluído, que eu não sinta isso. Não que eu quisesse um doce a qualquer custo. O que eu queria mesmo é não ser diabético para não dar trabalho a ninguém e não me fazer passar vontades.

Essa condição é tão arraigada que eu acabo tendendo a achá-la natural. É básico em um pensamento utilitarista que o melhor benefício deve ser distribuído para o maior número de pessoas possível, então fazemos associações. O maior benefício possível certamente não vem de doces dietéticos, muito mais caros. Portanto, a maior distribuição possível está para os não diabéticos. 

O mercado precifica os produtos diet de acordo com a necessidade dos consumidores, porque o custo não é uma justificativa plena. Um bom exemplo é o das bananadas que tem ingredientes a menos nos artigos zero, e mesmo assim custam mais. Leia as composições e veja que nada há a mais no produto mais caro, mas a menos.

No final, é coisa assim: só dá para fazer um doce zero, então nem basta para todo mundo. Já do doce padrão pode ser feito dois ou três, atingindo todos, menos um. Eu entendo e me conformo, mas é óbvio que, se eu levar de cabo e a rabo, há uma lógica excludente aí.

Não dá para dizer que uma vida inteira levada na exclusão é fácil, é justa. Então sou obrigado a me alinhar com meu amigo português, e concordar que há tempos que começam e tempos que se encerram, como diz sabiamente o Eclesiastes, aquele livro completamente fora da curva na Bíblia. Idem com o time que tem uma mascote tão criativa e representativa, a Cachopinha, uma dançarina de bailarico com seus trajes típicos, cabelos morenos e cores do país e do time, um time cuja história ora é um fado, com sua poesia triste, e ora é um vira, celebrante da alegria, o que, no final das contas, é um espelho da vida de todos nós. Alguém tão igual a nós não pode ser considerada maior ou menor por conta de sua procedência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É o livro do centenário da Portuguesa Santista, que relata suas aventuras e desventuras década a década.

SILVEIRA, Álvaro; ROGÉRIO, Paulo. 100 anos: Sou Mais Briosa. Santos: Realejo, 2017.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

O café filosófico do quotidiano – a Ciência que procura a utilidade

(Procurar essências e realidades últimas é muito bom, mas é melhor ainda quando essa busca traz algo de prático para nós)

“Nós pensamos quando nos defrontamos com um problema”

John Dewey 

Olá!

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Mais de uma vez, eu assemelhei a extração de café a um rito religioso, com todas as suas passagens e cerimoniais. Também já a comparei às obras de arte, colocando o barista amador na condição de um pintor que trabalha carinhosamente com seus pinceis. E também já defrontei a atividade com os trabalhos dos laboratoristas, que usam suas vidrarias para o bem do ofício culinário. Já mostrei, inclusive, alguns casos onde a origem do método é realmente laboratorial, como a charmosa Chemex. Mas eu extrapolei dessa vez.

Como já contei para vocês em alguns textos, moro no centro de São Paulo, exatamente na rua onde está o mais amplo sortimento de casas de essências. Elas não se limitam a vender o produto, mas toda a parafernália necessária à produção de perfumes e derivados, incluindo, ora vejam, material de laboratório. A grande vantagem é que esses artigos estão ao alcance da minha mão, nem precisando recorrer às modernidades da internet para consegui-los, e a um preço MUITO mais em conta. Juntando isso à minha nova febre por produzir o cold brew (vide), resultou na montagem de uma station completa de extração. Olhem que belezinha:

A ideia geral é reproduzir uma cafeteira Yama, caríssima e elegantérrima, mas muito longe da minha inteligência orçamentária. O que importa é a lógica da coisa, e essa é a mesma: um depósito de água gelada libera o líquido aos poucos, que recai em um filtro contendo pó moído grosso, que desemboca em um recipiente.

O conjunto todo inclui uma ampola de decantação, onde eu coloco a água gelada ou o gelo e regulo seu escoamento para uma gota a cada dois segundos. O processo é lento mesmo.

A peça que vai ao centro é um funil de haste longa, onde eu coloco um filtro de papel para a saída e onde acomodo o pó. Também tenho recoberto o pó com mais um filtro, para evitar impurezas que por ventura estejam na água. Utilizo um dos filtros planos de Aeropress, que casam bem com o tamanho.

Para receber o líquido pronto, um recipiente do tipo Erlenmeyer graduado, onde a ponta do funil vai encaixada, evitando que a mistura se contamine, já que o processo demora um bocado de tempo.

Tudo isso vai encaixado em um suporte universal de laboratório, que me permite não somente regular as distâncias necessárias, como também utilizar outros materiais que eventualmente eu queira.

 

Nome do utensílio: Station de cold brew

Tipo de técnica: Percolação de liquído frio 

Dificuldade: Alta

Espessura do pó: grossa

Dinâmica: É inserido gelo em uma ampola de decantação regulada para escoamento lento, que deve recair sobre um funil filtrado contendo pó de espessura grossa, para extração a frio em um recipiente Erlenmeyer na base

Resíduos: Dependendo do elemento filtrante utilizado

Temperatura de saída: Baixa

Nível de ritual: alto

Como eu disse, o produto final é um cold brew, o café gelado que tenho produzido cada vez mais, dada sua versatilidade. Este processo, apesar de lento, acaba sendo mais rápido do que as doze horas mínimas do método mizudashi, razão pela qual, vejam vocês, acaba por se constituir em uma extração rápida. Não é surpreendente?

Essa parafernália toda ocupa um bom lugar no meu armário, e somente a monto quando vou usar, o que nem é tão frequente. Mas é uma forma de colocar para fora meu espírito científico, de experimentação e de novas soluções. Talvez essa seja uma resposta bastante abrangente para os problemas da vida.

Isso também é um motivador para falar várias vezes sobre filosofia da ciência. É que causa incômodo quando a gente vai assistir um videozinho e vê afirmações sobre as maravilhas do óleo de ozônio, ou vai a um veterinário que jura loas aos florais de Bach. Eu não teria nada contra se não fossem promessas de solução para condições de saúde, mas são. Não há problemas em se acreditar nisso ou aquilo no âmbito religioso ou filosófico, mas na ciência é preciso exatidão. Então eu insisto.

Muitas discussões existiram sobre métodos que melhor poderiam garantir os acertos científicos, mas talvez poucos fossem os substratos dos impulsos para tanto. É óbvio que sempre poderemos pensar na curiosidade inerente à espécie humana, ou na possibilidade de ganhar dinheiro, mas em ambas temos alguns problemas. Na primeira, podemos colocar qualquer coisa no lugar apenas para termos uma explicação, enquanto na outra teríamos favorecimentos a poucos afortunados. Mas há um grande motivador que justifica toda a produção científica: a sua utilidade.

O nome da corrente é pragmatismo, e já falei sobre ela no âmbito filosófico (aqui) e científico (aqui), mas há pensadores que trataram do tema de maneira a descobrir com maior apuro como o processo científico se constrói a partir do dia-a-dia e segue para a solução desses problemas práticos. Vou falar sobre John Dewey.

Vamos começar pensando no seguinte. Grandes questões universais podem não ter nenhum sentido prático. Quando colocamos uma questão de ordem metafísica, por exemplo, podemos levar anos e anos para chegar a uma conclusão que, no final das contas, não nos diz nada. A discussão sobre o sexo dos anjos não foi só uma metáfora para ilustrar isso, mas um evento histórico que não mudou um único centavo no preço do dólar, ou, melhor dizendo, não se derramou uma única gota de sangue a mais ou a menos nas batalhas pela tomada de Constantinopla, enquanto os excelsos teólogos discutiam se os anjos tinham alguma forma de sexação.

Por mais sofisticada que possa ser uma discussão dessa natureza, o que ela nos traz de fato? Nada. Muito mais proveitoso é discutir se manga com leite faz mal, uma informação que pode ser relevante para quem tem esses dois ingredientes na geladeira. Enfim, ainda que você estude e especule se a realidade última da natureza provém de deus, ou de uma substância específica, abstrata como a pitagórica, concreta como a dos atomistas, ainda assim o que muda a sua vida é compreender se uma mera manga misturada a um prosaico leite pode te causar uma congestão.

Na visão do pragmatismo de Dewey, é do senso comum que vem o combustível do conhecimento. O senso comum, como bem sabemos, não significa conhecimento inválido, mas formas irrefletidas de encarar a realidade. A cada vez que refletimos sobre nosso próprio universo, retiramos um recorte acrítico e passamos a problematizá-lo, que é a mecânica que conduz o conhecimento e tudo o que deriva dele, como a educação e a ciência. A problematização induz a investigação, ou seja, as pesquisas que permitirão trazer uma resposta à questão levantada. Para seguir aos princípios pragmáticos, não faz sentido procurar respostas metafísicas a questões concretas. A especulação não é a matéria-prima dessa corrente, mas a investigação extraída da experimentação, da interação com o mundo existente. Percebam que os pragmáticos não negam instâncias transcendentais, apenas as isolam das soluções científicas. Mesmo quando pensam na filosofia, querem que ela se volte para a resolução de problemas práticos. O pensamento metafísico sempre desfalecerá em conclusões indefinidas. Portanto, o grande objetivo do pragmatismo em geral, e em Dewey em particular, não é descobrir o fim último da realidade, mas a trazer elementos que levem a atuar de maneira prática no mundo, a resolver problemas de fato, do quotidiano.

A base para essa direção está na característica natural do ser humano de interagir permanentemente com o ambiente onde vive. Como o mundo onde o ser humano habita é composto não somente pelos meios necessários à sobrevivência, mas também por outros humanos, tal interação não é somente natural, mas cultural também. Como viver significa resolver conflitos, é por esse caminho que o processo empírico funciona.

Dewey passa então do senso comum ao conhecimento científico ao pinçar uma situação que se torna um problema. Após a problematização, passa-se à investigação para se desembocar em uma conclusão. Como manda o bom espírito científico, essa conclusão não é definitiva, mas uma proposta de resposta ao problema baseado na observação dos processos que lhe dizem respeito. Vou dar um exemplo com um estudo de caso: minha sogra. Acompanhem.

A veneranda senhora vinha há tempos reclamando dos tratamentos que lhe eram recomendados no posto de saúde, que lhe traziam mais problemas que soluções, como veremos. Começou a reclamar de palpitações e piora na pressão, casos que costumam surgir quando há hipercolesterolemia, o famoso colesterol alto. A patroa, que nessas coisas de cardiologia é bastante preocupada, achou melhor levá-la a um médico pago, para obter um veredicto mais acurado, frente a insistência de sua mãe. Marcou a consulta e lá se foram as duas, expor as aflições ao especialista. A questão era uma pressão alta que demandava um cuidado com os índices de colesterol, cujos remédios vinham provocando os eufêmicos desconfortos. Explicado tudo o que foi receitado e relatados os efeitos, a pergunta do médico veio cortante: são os remédios que fizeram mal ou é a senhora que está comendo comida estragada?

Dito assim tão rude, alinhei-me inicialmente à indignação da patroa e de sua macrobia mãe, senhora minha sogra. Mas, abstraindo a moldura da cena, o que poderíamos extrair do retrato? O quanto, no final das contas, não assistia de razão ao réprobo médico? Vamos ver, e é na geladeira.

Creme de leite: vencido e aberto há mais de sete dias. Manteiga: mais de trinta dias aberta. Queijo fresco: já meio amarelado, denunciando o tempo de abertura. Leite: em um recipiente de plástico avulso, incerto e não sabido. Verduras: devidamente murchas. Em adição, a caixinha de remédios apresentava uma série deles já vencidos, inclusive colírios. Diante do quadro, parece que a razão faltou ao médico somente pela maneira de expressar sua opinião. Quanto ao resto, acertou na mosca, fácil, fácil.

Pois então temos que ocorreu diante de nós uma situação corriqueira transformada em problema, algo do quotidiano extraído de seu lugar comum e colocado perante um cérebro, capaz de transformar interações casuais em causais. A situação de senso comum vinha da barriga da sogrona - tomar remédio de colesterol dá caganeira. Por que essa é uma situação colhida do dia-a-dia? Primeiro porque causa sofrimento, segundo porque é uma condição surpreendente. Eu mesmo tomo remédios para colesterol todos os dias e nem quando eu comecei, tive algum revertério. Com isso, há uma situação mal resolvida que clama por ser ajustada: um problema. A problematização, palavra tão utilizada hoje em dia é isso: Colocar em evidência um fenômeno que precise ser resolvido.

O próximo passo deweyiano é a investigação, e, nesse exemplo, temos a realidade sendo observada: a geladeira e os alimentos nela conservados. A experiência de ver esse ambiente de todo impróprio é o grande material que permite verificar, experienciar, investigar aquilo que explica uma situação antes impensada.

Por fim, a conclusão. Ainda que a resposta abrigue outras possibilidades, um fato é inegável e, no mínimo, precisa ser tirado da frente: a inadvertida sogra, precisa, sim, melhorar as condições do cardápio. Por mais que vivam em condições de aposentados, o veterano casal tem algumas rendinhas extras e dá para comer alimentos frescos. A questão é mais da mania de estocar do que da sua necessidade, que pode ter sido real outrora, mas que, hodiernamente, não faz mais sentido.

Percebem como o pensamento racional fez com que investigássemos um problema e trouxéssemos uma resposta prática para ele? Dewey ensina que o problema colhido do senso comum retorna a ele na forma de resposta, ou seja, de conhecimento racional. Ele volta ao senso comum e às interações humanas internalizadas ou destes com o ambiente onde vivem, já agora desfazendo o problema inicial. Dessa forma, temos a característica mais desejável do conhecimento, que é ser útil.

O conhecimento desconexo com a realidade é um problema cognitivo. Basta que se recorde das nossas aulas de matemática. Eu até hoje, e sou sincero, não sei onde são aplicáveis os logaritmos e equações, embora tenha aprendido a desenvolvê-los. Isso traz a mim um conhecimento olvidável, incongruente, desvinculado da realidade de sua aplicação e, no limite, inútil. Eu precisaria observar onde esse conhecimento se conecta à realidade e, talvez aí, dominasse, lembrasse, aplicasse e (quiçá) gostasse dele. Tem cara de processo educativo? Tem, mas as ideias de Dewey para a educação precisam ser analisadas em um texto à parte, o que farei oportunamente.

Café mais fraco, mais encorpado, que intercambia melhor com marotas trançagens alcoólicas são alguns dos pequenos problemas que pedem por investigações mais detalhadas para o gáudio deste escriba, e deweyanamente agindo, vou tirando minhas conclusões e enriquecendo meu acervo gastronômico, enquanto aproveito para refletir sobre conhecimento e ciência. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

O texto abaixo é um artigo de Dewey onde ele fala mais especificamente sobre o roteiro que tracei acima.

DEWEY, John. Lógica: a Teoria da Inquirição. In: Experiência e Natureza. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Col. Os Pensadores.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 74º tomo: o vaticinium ex eventu

(A morte do papa ressuscita uma velha profecia)

“Só entendemos as profecias quando elas acontecem”

Pascal

Olá!

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Morreu o Papa Francisco. Em outras épocas, eu estaria aflito, preocupado com as diretrizes que a Igreja Católica iria tomar. Para além das piedades e caridades, mudanças no Vaticano poderiam apresentar avanços ou retrocessos políticos, e, dessa forma, influenciar a vida nas paróquias, onde vivíamos e militávamos. Isso acontecia porque a igreja era bem mais presente na vida das pessoas, e, se já sentíamos impactos nas mudanças de bispos, quanto mais não se esperava com a chegada de um papa novo. Hoje em dia, despido de fé, cumpre a mim o interesse pela curiosidade e pela reconhecida influência que, embora menor, ainda se exerce sobre as sociedades ocidentais.

É preciso esclarecer alguns pontos. Um filho do proletariado deveria se incomodar com os destinos da Igreja Católica? Para quem olha para a face mais conservadora, que proíbe as pessoas de se entenderem com seus próprios corpos, que mantém uma estrutura antiquada e que renega as mudanças do mundo, de fato não faz muito sentido. Só que quando lembramos que era das CEBs que vinha o estudo disponível para os bairros periféricos, que veio dela muita defesa de direitos humanos na ditadura e que é a partir dela que as Santas Casas foram criadas, notamos que se deram momentos em que havia apenas ela para recorrermos.

É bem verdade que o fenômeno evangélico, onde os pastores se metem muito mais na vida dos fiéis estendem sua influência de maneira muito mais estreita em suas assembleias, obnubilaram significativamente a presença católica na sociedade, mas é preciso lembrar que isso é fenômeno recente, e o Cristianismo como um todo moldou decisivamente os pensares e fazeres dos latinos, nós inclusos.

O que explica melhor minha expectativa, no entanto, é que eu não só era um frequentador das naves, mas das sacristias. Eu fiz de tudo na igreja. Fui um catequista incômodo, porque dizia a rapazes e moças que deveríamos cuidar de controlar nossos impulsos, mas sempre ter um subterfúgio de látex para quando fosse impossível resistir. Eu era um músico que tocava trechos de Cio da Terra nos ofertórios ou de Pérola Azulada no Dia da Terra. Eu era, principalmente, um instrutor de coroinhas que recomendava aqueles cuidados óbvios que vocês devem estar pensando. É… não tinha como dar certo. Mas funcionou por quase vinte anos. Eis o bumbo da minha bateria com a iconografia dos tempos em que eu mandava minhas pancadas na São Francisco.


Essa relativa liberdade existia porque eu trabalhava com os franciscanos, a ala mais progressista dos católicos. Confrontados com setores mais conservadores, muito mais ligados à forma ortodoxa dos cultos e mantença de costumes, pareciam fazer parte de outra religião. Então qualquer mudança poderia parecer desejável, só que o medo era que fosse para trás. É preciso lembrar que o papado de João Paulo II foi longuíssimo, com mais de 26 anos, e a igreja ficou estacionada por todo esse tempo, dado seu perfil pouco dado a grandes guinadas. Foi até surpreendente a eleição do argentino moderado, em um cardinalato formado na sua maioria por nomeações mais conservadoras. Isso é o que dava mais medo.

Os franciscanos, mesmo com meu afastamento da religião, continuam guardando meu respeito. Quando a pandemia começou, lá estavam eles, na linha de frente do apoio à população de rua, que depende diretamente da existência de pessoas para fazerem esmolas. O Chá do Padre forma filas todos os dias no largo de São Francisco. A ceia de Natal dos pobres, os cursos para estudantes carentes, o apoio aos idosos, o acolhimento de estrangeiros, o aviamento de reciclagem, praticamente todas as ações sociais do centro de São Paulo estão vinculadas aos franciscanos.

Esse aspecto caritativo e a escolha do nome adotado pelo cardeal Bergoglio fez eu dar uma das maiores barrigadas da minha vida. Quando ele optou pelo nome Francisco, inédito no rol de papas até então, o pessoal da São Francisco exultou com a homenagem ao poverello de Assis. “Bando de burros”, pensei eu, sem empatia alguma. Frente às pouco comentadas (mas conhecidas no meio) rusgas entre jesuítas e franciscanos, tolamente pensei que a homenagem iria para São Francisco Xavier, este sim nome emérito da ordem do novo papa. No final das contas, o burro fui eu, porque o entendimento foi acertado, e eu, arrotando conhecimento e empáfia, falei uma grande merda. Mais um aprendizado para aquele que vos fala.

Mas eu queria falar sobre a rememoração de uma profecia que sempre acontece por ocasião da morte de um papa. Desde que me conheço por gente, assisti a quatro passagens de bastão: começando pela morte de Paulo VI, as de João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco I, envolvendo cinco papas ao total. A que veio após a morte de Paulo VI foi ainda na minha infância, mas fiquei marcado pelo medo da profecia de São Malaquias, já bastante explorada pela mídia da época, a ponto de ser necessário um longo sermão do vigário da região, Padre Antônio, informando que ninguém precisava ficar alarmado. Pois é, fake news não vem de hoje.

A tal da profecia dos papas é um texto atribuído a um abade irlandês do século XII, São Malaquias de Armagh. O texto descreve, através de designativos, uma visão em que o clérigo teria vislumbrado a sucessão de papas que ocorreria através dos tempos, partindo do momento dessa revelação até o que seria o último dos sumos pontífices, o Papa Pedro Romano, ao término dos tempos. Como ele enumera 112 papas nesta lista, então estaríamos, em algumas contagens, com o papa recém falecido sendo ele próprio o Pedro Romano ou sendo o seguinte, que será escolhido no conclave que está acontecendo agora, dependendo da interpretação que se fizer das contagens. Como o Papa Francisco já morreu, parece que a aposta vai recair neste que vem em breve.

A questão é que a profecia somente aparece escrita quatro séculos depois do início da lista, em uma coletânea de textos coligida pelo monge Arnoldo Wion chamada de Árvore da Vida. Lá, a profecia dos papas lista-os por designativos, e não pelo nome próprio. Eles dizem respeito à origem, a fatos marcantes da vida do pontífice ou mesmo de aproximações com o nome de batismo. Neste escrito, nota-se que os primeiros papas descritos têm uma precisão impressionantemente grande. Por exemplo, o 13º papa da lista é Clemente III, que é apontado como “de schola exiet”, que significa “ele virá da escola”. O nome próprio deste papa é Paolo Scolari, o que demonstra uma proximidade muito grande. Já Urbano IV, francês da região de Champagne, é designado “Jerusalém de Champagne”, e por aí afora. É impressionante, mas a questão é que essa precisão se perde a partir do século XVI, justamente quando se dá a publicação do livro de Wion. Os designativos passam a ser mais genéricos, podendo ser encaixado com justificativas mais amplas, sendo que várias vezes era necessário forçar a barra para dar liga. Designativos como “fogo ardente”, “fé destemida”, “de boa religião” podem ser atribuídos praticamente a qualquer cristão, com muito mais facilidade que os primeiros vaticínios, e assim a profecia continua se “realizando”.

Somado ao fato de não se encontrarem outras fontes que contenham a profecia, tal fenômeno denuncia que não há historicidade neste texto. Para os adeptos da tese de que o último papa seria Francisco, já deram com a cara no muro. Quanto aos que julgam ser o próximo, veremos. Quando você sai do campo e vai para a arquibancada, acha o jogo mais maluco ainda, e tem gente ressuscitando essa história por chacota, mas há pessoas religiosas, de dentro da igreja que leva a história a sério.

E por que diabos (epa!) alguém faria toda essa história da carochinha? A troco do que? São boas perguntas. A consequência direta é dar credibilidade para uma profecia, algo normalmente muito difícil de fazer, como provam outras técnicas, como a ambiguidade. Manter uma aura de mistério sempre prenuncia a necessidade de um iniciado que interprete o dito, o que dá uma autoridade a esse vate, porque somente ele e poucos outros mantém contato direto com as divindades. Também é possível pensar em problemas de tradução, seja das palavras, seja das intenções, o que pode distorcer a versão apresentada. Ou pode simplesmente ser uma chacota, ou ainda uma vontade de concretizar um desejo, talvez até de boas intenções. Há ainda a intenção de dar consistência para algumas predisposições morais que, com a existência de uma profecia, ganha aspecto mais divinatório, e, portanto, com a chancela da divindade que lhe dá cobertura. O fato é que a manobra é falaciosa e exemplificativa de um artifício muito utilizado quando se quer dar a impressão de que uma profecia foi cumprida. O nome que os historiadores dão a ela é vaticinium ex eventu, ou vaticínio após o evento.

A ideia é simples. Ao atribuir um fato qualquer a uma fonte muito antiga, eu ganho a possibilidade de dizer que estava adivinhando um evento que, na verdade, eu já conhecia. Ou seja, eu “prevejo” fatos passados como se eles ainda fossem acontecer no momento em que faço o vaticínio. É um modo que, a um primeiro olhar, parece ingênuo nos dias de hoje, mas que funciona muito bem com eventos antigos, ou seja, onde há dificuldade de estabelecer a cronologia exata dos eventos. A própria dedução de que a profecia dos papas é furada se dá por meios indiretos, notadamente pela mudança do teor das descrições, que mudam do certeiro para o ambíguo em um momento específico, o que é a melhor certidão de que tem carne por baixo do angu.

A melhor explicação psicológica vem do viés de juízo retrospectivo, aquele famoso efeito eu-já-sabia que tenta nos colocar como renomados analistas dos mais variados assuntos. Falei com detalhes sobre ele neste texto, mas, só para criar um elo com o que estou discutindo agora, trata-se da tendência em acreditar que algo do passado era mais passível de previsão do que era de fato após a sua concretização. 

Esse é só o exemplo que me inspirou o texto. O vaticinium ex eventu é sobejamente utilizado em épocas antigas. Bons exemplos vêm da própria Bíblia.  Historiadores sérios (inclusive cristãos) perceberam que muitas das profecias contidas nos Evangelhos foram escritas após os fatos que preveem. Isso porque, partindo da premissa de que o Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito cerca de 40 anos após os fatos que procura descrever, deduz-se que todos os eventos ocorridos no período que vai da morte de Jesus até a escrita do texto já eram conhecidos. A destruição do templo de Jerusalém, por exemplo, já era um acontecimento, e não uma predição. Outro caso está no livro de Daniel, que é preciso nas incursões de Antíoco IV na Judéia, mas tropeça nas previsões sobre sua morte. Isso significa que ele é escrito durante o reinado do déspota em questão, e não antes de sua chegada ao palco dos eventos.

Sendo assim, podemos concluir que nossa sanha por grandes eventos traz predisposições para aceitar manobras falaciosas, que deem qualquer fundamento maior a eles, mesmo que nasçam do absurdo. Que o novo papa seja digno digno de admiração até mesmo de nós, ateus. Isso significará que ele será bom para a humanidade inteira. Amém! Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Nada como ir à própria fonte. Tem um endereço onde podemos ler a árvore da vida completa, com a dificuldade de ser o texto original em latim, mas que é facilmente compreensível na parte da profecia.

WION, Arnold. Lignum Vitae. Disponível em: https://archive.org/details/bub_gb_a4o8AAAAcAAJ/page/n3/mode/1up. Acesso em 26.04.2025.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 73º tomo: o termo médio não distribuído

(Vamos falar em como éramos na juventude, e como prenunciávamos tempos que estavam por vir. E de falácias também)

“E agora minhas mãos amarguradas 

Embalam cacos de vidro

Do que era tudo

Todas as imagens foram

Todas banhadas em preto

Tatuando tudo”

Eddie Vedder/Stone Gossard

Olá!

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Mudanças sempre implicam em revisitação. Neste exato momento estou na enésima mudança de andar no serviço, o que é sempre um aborrecimento, principalmente quando nossa hierarquia superior entende que esse é assunto da mais elevada importância. E lá se vai às gavetas e aos armários remover velharias e inutilidades que nosso instinto de esquilo insiste em preservar. Mas eu também fiz uma curiosa meia mudança de casa, e agora tenho a base Metrópole e a base Vale do Paraíba. E, com isso, abrimos caixas e encontramos velhas fotos. Inclusive de infância e juventude, aquele estado intermediário entre a inocência e a rabugice. Lá estavam os tempos do eu-magrinho, tão sonhador e cheio de vontades, em oposição completa aos dias de hoje.

Das fotos que achei, vi meu baixo e minha bateria, minha pose diante do microfone, seja em pé ou sentado, as caretas nas horas dos gritos. Deve até estar chato de tanto que repito, mas eu aprendi alguns acordes e alguns grooves na minha juventude e, por causa disso, resolvi que ia ser músico, um sonho mais ou menos comum naquela década de 80 que viu explodir tantas bandas por estas bandas.


Mas o que eu tocava não era muito semelhante às músicas de então, descendentes do punk e do new wave. Tocava coisas muito mais puxadas para o hard rock dos anos setenta, com efeitos limitados nas guitarras e muitos buracos nas peles das baterias, fruto da muita vontade e da pouca verba. O importante era montar um bom riff e escrever algo que se considerasse poético. Talvez uma referência para o meu som seja o REO Speedwagon dos primeiros tempos, que tinha o ótimo Larry Luttrell no lugar do insosso Kevin Cronin nos vocais. O hard boogie das meninas do Fanny talvez também lembre um pouco o que eu fazia. Com menos talento, porém.

Isso me deslocava um pouco da grande massa juvenil da época. A turma da new wave era colorida com gosto, cheios de amarelos marca-texto, verde-limão e laranjas que faziam um copo de Tang morrer de inveja. Já os metaleiros eram aquilo de sempre: camisetas pretas das bandas favoritas, pulseiras de tachas, coturnos, jeans e couro. Mais adiante, com a corrente do Glam Metal, vieram os cabelos mega-armados, as calças agarradas, a androginia, os brincos e etc. Eu não fazia nenhum desses estilos. Aliás, eu não fazia estilo algum. Sim, é verdade que eu tinha minhas camisetas de bandas, mas como nunca tive rabo preso, a camiseta podia ser tanto do Pink Floyd quanto do Voivod. Meu estilo eram as velhas camisetas usadas até o limite do mau gosto, os tênis “foruáiti”, os velhos e surrados jeans já desbeiçados. Tudo usado até o limite da mendicância. Algumas vezes além dela.

Não era o tempo dos Balenciagas artificialmente descolados. Era tempo de economizar no que era possível para sobrar para outras coisas. Eu tinha cordas e peles para comprar, não dava para ter os calçados do momento, e nem tempo de ficar babando nas lojas do Brás, já então um destino comercial do Brasil inteiro.

O descolamento ficava ainda mais claro quando eu ia tocar para algum público, em um bar, um festival, um clube ou outra coisa qualquer. Enquanto a maioria da galera da música tinha guarda-roupa todo próprio (por vezes maquiagem também), a roupa que eu usava para ensaiar era a mesma que eu usava para tocar, que era a mesma que eu usava para ir à escola, e era a mesma que ia para o trabalho. Eram tempos em que o salário de eu-rapazola ia integral para o orçamento doméstico, e as escolhas de gastos tinham balizas muito bem delimitadas. A gandola de general era a mesma no ensaio e no show, o cap confederado era o mesmo também. Assim era com a camisa de flanela e com a calça rasgada, muitas vezes remendadas com patches da banda favorita. O tênis sujo era o que eu usava quando tocava baixo, e os pés descalços ficavam assim para o ensaio da bateria e para o show também, dependendo da minha função naquele dia. O cabelão não era hidratado, naturalmente armado pela genética, sem brilho e eventualmente amarrado. Um cavanhaquezinho eventual completava o visual.

Fazendo essa descrição, parece que estou falando sobre uma corrente que veio logo no começo da década seguinte: os grunges, que se caracterizavam exatamente por causa dessa indumentária despojada. Eu posso arrogantemente me colocar como uma prefiguração dessa moda? Inicialmente, eu humildemente diria que não, mas, se eu parar para pensar, faz algum sentido essa afirmação. Evidentemente, não é o caso da rapaziada de Seattle ter visto fotos minhas e ter dito “é isso!”. Só que é válido imaginar que as agruras que passamos foram parecidas, e isso nos aproximou, de certa forma.

O caso mais emblemático é o das camisas de flanela. Por que eu as usava? Em primeiro lugar, são relativamente baratas, se observada sua flexibilidade. Ao contrário de uma camisa de microfibra ou poliéster, a flanela é mais quente, o que, em uma cidade com variações bruscas de temperatura como São Paulo, quebra um bom galho. A não ser nos dias verdadeiramente frios, ela é suficiente para agasalhar sem exageros. Estando aberta, inclusive os punhos, ganham um respiro que admite uso em dias mais quentes. Além disso, pode ser usada como uma blusa de fato, colocada sobre uma camiseta. Esqueçam do xadrez das festas juninas: há flanelas de qualquer cor. Por isso tudo, o custo/benefício da flanela é favorável a quem vem das famílias de pouco orçamento. Com o preço de uma blusa California Racing (popular na época) eu comprava fácil um guarda-roupa completo de camisas desse gênero.

No final das contas, e antes de cair no mainstream, a filosofia grunge era exatamente essa: não é a roupa que conta, mas quem a veste. Os shows das grandes bandas até o surgimento deste fenômeno eram performances grandiosas, onde o item de menor relevância era a música em si, e, principalmente, a mensagem que ela trazia. Shows, desta forma, não eram para quem gosta de música, mas de fogos de artifício. A estética grunge vai no sentido contrário: não é preciso olhar para um palco como se se estivesse vendo uma divindade, mas gente como a gente, tão deprimida e revoltada quanto. Dessa forma, minha maneira simples de vestir prenunciava a simplificação do processo de show business, de maneira completamente inconsciente.

O som grunge também bate em certas medida com o que eu praticava. Cru, sem arranjos performáticos e exageros do heavy metal, mas com mais sofisticação do que a porradaria punk. Era mais ou menos isso que eu tocava com os meus amigos, exceção feita à última das bandas, essencialmente de rock progressivo.

Isso significa que eu era um grunge? Não, dizer isso é um anacronismo. Toda a minha “história modística” se dá antes da tendência, e chamá-la de grunge não faz nenhum sentido. É como aquela velha história de que Cristo era comunista. Por mais que seus métodos e discursos fossem assemelhados à conduta socialista de hoje em dia, o fato é que não existia esse termo a dois mil anos atrás. Portanto, não vamos seguir este caminho. Isso não faz sentido nem quando baixamos a coisa em termos de sentenças lógicas.

Por exemplo, digamos que o costume dos adeptos do visual grunge seja tão arraigado que constatamos que todos os que têm camisas de flanela são grunges. Desta forma, podemos baixar a seguinte sentença:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela eram grunges.

Também podemos dizer que o som grunge é fundamentalmente composto por um rock básico com letras profundas. Suas guitarras são distorcidas e os vocais são rasgados, viscerais. As temáticas não falam de demônios, como as dos grupos de heavy metal, a não ser dos interiores. Também não são diretamente políticas, como as dos punks. Falam mais sobre as contradições de um mundo dissonante com as realidades internas. Isso não é inédito na música, mas é um distintivo dos grunges, e foi com eles que essa abordagem esteve presente na música no começo da década de 90. Então, podemos dizer que…

Todos os que falavam de angústia na década de 90 eram grunges.

… o que, pela mecânica dos silogismos, resulta na seguinte conclusão:

Todos aqueles que usavam camisas de flanela falavam de angústia na década de 90.

Isso obviamente é falacioso, mas por que, se as premissas parecem válidas? E mais: se é preciso que haja distribuição onde em ao menos uma das premissas espere-se atingir a universalidade, o que dizer daqui, onde ambas as premissas são universais (todos)?

Não há como evitar fazer uma breve recapitulação. Um silogismo tem o objetivo de extrair, a partir de duas premissas, uma conclusão válida, que talvez nem seja verdadeira, mas que não pode produzir nenhum absurdo. O que liga as duas premissas é o que conhecemos por termo médio, um elemento que pode ser enxergado em ambas, mas que fica excluído da conclusão porque já cumpriu sua função de concatenar as premissas. As regras dos silogismos estipulam que as premissas precisam, em pelo menos um momento, que o termo médio seja abrangido em sua totalidade. Do contrário, nada poderá ser concluído. Olhando para o silogismo proposto, temos que o termo médio em ambos está no predicado. Ele precisa estar se referindo a todos os membros da categoria proposta ao menos em uma das premissas.

Ora, temos então duas distribuições totalizantes, e não somente uma, já que tanto na premissa maior quanto na menor a categoria está apontada na totalidade, certo? Bem, não.

Embora tanto a premissa maior quanto a premissa menor falem de totalidades, é uma universalidade falsa, porque não diz respeito ao termo médio. E isso traz um defeito. Falamos em todos os que usam camisas de flanela e todos os que falam de angústia, mas não falamos de todos os grunges em nenhum momento, e isso provoca uma ilusão em quem olha para o silogismo. Flanelados podem ser dançarinos de quadrilhas, idosos, andarilhos e qualquer outra pessoa que aprecie o tecido. Lamentosos podem ser da MPB, do samba, do (eca!) sertanejo. Além disso, a filosofia grunge não exclui camisas que não sejam de flanela, nem canções que não falem de miséria humana. Por isso, a articulação entre as frases contém um defeito lógico, e isso faz dela uma falácia formal, chamada de termo médio não distribuído, da mesma família dos ilícitos maior e menor.

O termo médio é discreto, pelo fato de não aparecer na conclusão de um silogismo. Este modelo de pensamento precisa de uma mediação, porque as premissas não são suficientes para que se perceba o encadeamento lógico. Como Aristóteles queria reduzir o pensamento a formulações, percebeu que era necessário em elemento de ligação entre premissas, algo que fosse comum a ambas e pudesse estabelecer um vínculo racional.

Já expliquei que, no exemplo dado, temos uma falácia formal, que é dedutível por si mesma. No caso, o termo médio, além de não ser tomado em sua máxima extensão em nenhuma das duas, liga duas premissas que não possuem identificação entre si, e isso resulta no pensamento absurdo.

Minhas fotos estão lá, esperando a próxima mudança. Quem vive de aluguel é assim mesmo, pulando de galho em galho. Às vezes me sinto como o eu-lírico da canção Pais e Filhos, do Legião Urbana: “Já morei em tanta casa que nem me lembro mais”. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que fala sobre a principal figura do movimento grunge, a mais emblemática de todas, que minha nora inclusive utilizou em sua monografia de formação na faculdade de jornalismo.

CROSS, Charles. Mais Pesado que o Céu: Uma biografia de Kurt Cobain. Rio de Janeiro: Globo, 2002.

Navegações de cabotagem – o Mercado Municipal de Guararema e o mercado, divindade moderna

(Mercado é um termo tanto afetivo, quanto aterrorizante. Tudo depende a que estamos nos referindo)

“Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que devemos esperar nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”

Adam Smith

Olá!

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Este texto só não fez parte do anterior porque eu queria tratar de outro tema. Até porque era só atravessar a rua. Quando falamos do centro de Guararema, uma cidade que nasceu em função de um rio, pensamos naquela espécie de parque linear que acompanha os contornos do Rio Paraíba do Sul, onde estão os bares, os restaurantes e o comércio em geral, mas há algumas travessas onde continuamos a encontrar coisas boas. Da mesma forma que fui conhecer a Casa da Memória, também achei que seria legal conhecer o Mercado Municipal local, modelo de negócio que é muito comum em todo o Vale do Paraíba. Vamos até lá.

Os mercados municipais são, na sua maioria, entrepostos que serviam para distribuir produtos agrícolas utilizáveis nas viagens dos tropeiros, razão pela qual são sempre equipamentos históricos muito importantes, porque é praticamente um distintivo de que aquela localidade era rota dos caminhos de expansão do Brasil.

Eles ficavam em grandes praças públicas, onde era possível estacionar as tropas para alimentar os animais e fazer as negociações e escambos de produtos.

Como os ciclos de subida do litoral para as regiões produtoras e auríferas se deram há alguns séculos, a arquitetura dos mercadões costuma pertencer aos mesmos períodos históricos, salvo os casos em que ocorreu uma descaracterização dos edifícios originais.

No caso deste mercado em específico, ele teve uma reforma recente e, portanto, está trincando de novo, com todas as coisas nos seus devidos lugares, com os tijolos maciços expostos e estruturas em arco dando um bom exemplo de soluções de época.

O Mercado Municipal de Guararema não é gigantesco como seu correlato paulistano, com seus produtos gourmetizados, ou mesmo seu irmão de Taubaté, verdadeira feira livre coberta. É mais uma atração turística que contém produtos locais e convencionais, alguns típicos da região.

Alguns deles são marcantes na região, que é rica na produção de verduras (faz parte do Cinturão Verde de São Paulo), orquídeas e cachaça.

Desta última, a amplitude da gama de produtos faz com que surjam algumas coisas exóticas, como a cachaça de caranguejo, uma daquelas velhas misturas que se dizem afrodisíacas. O velho efeito placebo (quando funciona).

Nós falamos muito de mercados em seu contexto predial, como o local em que vamos fazer nossas comprinhas e queimar nossos escassos níqueis. Esse é seu sentido mais popular e que guarda até uma certa afetividade. Eu-criança, por exemplo, tinha uma escala mensal de idas ao mercado. Quando era tempo de pagamento, minha mãe ia até um supermercado para “fazer despesa”, ou seja, a compra grande do mês, que precisava resistir até o próximo salário. Ficava um tanto longe, mas como não tínhamos carro, o negócio era levar um carrinho de feira para as necessidades mais imediatas e esperar o caminhão entregar o restante no final do dia. Gostava um bocado dessa compra porque eu me punha a pilotar o carrinho de mercado, e sempre me sobrava uma bolachinha recheada. Quando as coisas acabavam antes do previsto, ou para comprar perecíveis e inesperados, já aí a operação se dava nos empórios e mercearias, genericamente tratados por mercadinhos. Era famosa a “Venda do Chico”, que até virou ponto de referência naqueles tempos em que os bairros ainda tinham um certo ar interiorano: servia para indicar a rua que subia para a Vila Santa Clara, para “apear” do ônibus, para achar o começo da Estrada do Oratório. Era lá que se compravam esses remanescentes menores, mais caros que o supermercado, mas bem mais perto de casa.

Só que esse não é o sentido único dessa palavra, sendo que sempre que a ouvimos no noticiário, trememos nas pernas. O mercado parece uma espécie de divindade que guia a economia de um país para o Olimpo ou para o precipício, muitas vezes de forma imprevisível, e que nos empobrece ou faz respirar. Isso tudo coloca essa entidade no mesmo patamar de outros deuses quaisquer, ou seja, somente os iniciados conseguem se comunicar e interpretar seus sinais, os economistas. Mas, como toda e qualquer atividade humana, também aqui conseguimos achar fundamentos filosóficos, e é o que tentarei fazer agora. Acompanhem o tio.

Estudar a etimologia da palavra mercado já nos ajuda a entender algumas coisas. A referência direta é ao latim mercatus, o lugar onde os antigos romanos se encontravam para realizar o comércio. A raiz mais profunda da palavra, entretanto, vem de Mercúrio, o deus romano correspondente ao Hermes grego, e que regia os negócios, a oratória e as trapaças. Parece tudo coligado? Pois é mesmo. Os comerciantes eram todos como raposas prontas para dar o bote nos manés, a ponto de ser criado um provérbio que tinha o enunciado de caveat emptor, ou “cuidado, comprador”. Servia para alertar que o incauto está sempre prestes a tomar prejuízo nas operações comerciais. Talvez isso explique os códigos de defesa do consumidor. Não que todos os comerciantes queiram nos golpear, mas, se fosse possível distinguir os bons dos maus, não teríamos tantas piadas a esse respeito.

Mas o mercado, no ponto de vista racional, é algo mais abstrato, uma espécie de espaço que abarca os componentes que faz girar os recursos de uma determinada sociedade. Os principais fenômenos que fazem parte desse espaço são a oferta e a demanda. Para isso, precisamos pensar um pouquinho em como surge o comércio.

Imagine você em um tempo antigo, já dominando as técnicas agropecuárias, mas precisando se virar por si próprio, o que lhe faz perceber que há momentos em que te sobra coisas que você plantou para comer, e há os momentos em que te faltam outros objetos de necessidade. Tendo seu vizinho esses mesmos objetos, é lícito imaginar que você queira conseguir com ele alguns que lhe sobrem. Como a solidariedade humana é um conto da carochinha, ele certamente concordará em trocar contigo alguns produtos, desde que haja um consenso entre ambos de que há justiça no ato. Esse é o escambo, a forma mais primitiva de comércio. Tudo funciona nessa base, apenas trocando a mercadoria física por dinheiro.

Agora imagine que você tenha algo que todos queiram ou precisem muito, como uma erva que cure uma determinada doença que tem se espalhado em epidemia. Essa erva, antes ordinária, passa a ser preciosa, e você poderá exigir muito mais do que conseguiria por ela em situações normais. As pessoas ao seu redor estarão dispostas a oferecer mais por ela, e, com isso, diante de uma procura grande, a oferta vai se tornando mais e mais escassa, te autorizando a cobrar ainda mais por ela.

Só que chegará um limite. Você pode pedir tanto por sua erva milagrosa que não haverá quem queira ou possa pagar o preço que você propõe, preferindo enfrentar a epidemia sem o conforto oferecido. Neste caso, sua erva começará a ficar estocada e estragando, até que o movimento se inverta e você aceite comerciá-la por menos. Pode ocorrer ainda que um de seus vizinhos consiga uma muda da tal planta e passe também ele a oferecer o produto, de modo a passar a existir uma oferta mais abundante. Para conseguir esvaziar os estoques mais rapidamente, você passa a aceitar retribuições menores pela sua venda, o que também pode acontecer pelo chato do vizinho. É a tal da concorrência.

Esses são os princípios básicos que norteiam o mercado, cuja lei geral é regida por oferta e procura: os preços são guiados pela articulação entre ambos, que se movimentam de formas inversas. A oferta maior faz com que o preço caia, enquanto a demanda maior faz com o preço suba. Vale o inverso - oferta menor, preço maior; demanda menor, preço menor.

Os economistas defendem essa lei da mesma forma que os astrônomos defendem a gravidade e os biólogos, a seleção natural. Isso ocorre porque parece existir uma espécie de algoritmo  por trás de um movimento natural. Mas a observação da vida prática demonstra que muitos fatores podem perturbar essa ordem, como a formação de cartéis e a intervenção governamental. No primeiro caso, os empresários de um determinado setor agem em conluio para impedir que os preços caiam, como são os clássicos casos de especulação imobiliária. Basta que se olhe o tempo que demora para um prédio ser preenchido totalmente. Meu melhor exemplo é quando passo pelo elevado onde começa a Radial Leste. Transito às oito da noite e vejo os novos prédios da Baixada do Glicério. Apesar de novos, eles já têm mais de cinco anos, e pelo menos a metade deles está apagada. Ninguém nesta cidade dorme a esse horário, portanto, são apartamentos vazios. Se os apartamentos são caríssimos e não são vendidos, por que seus preços nunca caem? Teorizo que a venda de metade deles já é suficiente para dar retorno à construtora, e o que vier daí para frente é lucro, na mais pura acepção da palavra. Isso não é possível de fazer se todas as construtoras não agirem da mesma forma. Compreendem por que o preço do imóvel não cai? E isso porque estou falando do Glicério, uma parte pobre da cidade.

Já o governo pode interferir no mercado de forma oposta. Um exemplo acontece quando o dólar ameaça subir, fazendo com que o preço dos importados subam na mesma proporção. Neste caso, é possível que o governo pegue uma parte dos dólares que estão na reserva internacional (dinheiro que fica “embaixo do colchão” para pagar dívidas com entidades estrangeiras) e os disponibilizem aos operadores financeiros. Com isso, usa uma lei do mercado para atuar contra seus próprios princípios, aumentando artificialmente a oferta de dólares para diminuir o seu valor no mercado interno.

Os fatores que influenciam o tal do mercado são tão vastos e detalhados que é um desafio até hoje aos economistas para bem compreendê-lo e entender como se pode fazer previsões sobre ele, como compete a qualquer ciência. Um dos economistas mais definidores dos mecanismos de mercado foi Alfred Marshall, que criou o conceito de ponto de equilíbrio financeiro, que consiste no momento em que oferta e procura chegam a um “consenso” e estabilizam os preços de um determinado produto.

A primeira coisa na análise de Marshall, um  britânico da então nascente escola neoclássica, é distinguir o mercado de curto e de longo prazo. É como quando queremos analisar a teoria da evolução acontecendo diante dos nossos olhos: precisamos olhar a nível microscópico. No caso do mercado de curto prazo, estamos falando de bens de consumo imediato, que, se não forem comercializados, poderão estragar ou perder propriedades, como a erva que usei no exemplo. No longo prazo, é como se olhássemos por um telescópio, analisando um todo. É quando pensamos em bens duráveis, que podem resistir melhor ao tempo, como no caso dos apartamentos*. Nestes casos, a movimentação de preços não é tão imediata como nos casos de curto prazo. De qualquer forma, Marshall criou uma forma visual de análise de uma situação de mercado, que ficou conhecida como cruz de Marshall.

Esse gráfico funciona da seguinte forma: em um plano cartesiano, onde as coordenadas dizem respeito a quantidades (x) e preços (y), são inseridas duas linhas curvas: uma que representa a variação de preço da demanda e outra, a variação da oferta. A oferta, que está na perspectiva de quem vende, nasce do preço mínimo aceitável para a venda de um produto e vai crescendo à medida que se procura uma maior lucratividade pelo aumento das quantidades produzidas. Sob o ângulo de quem consome, a curva de procura vai do preço mais alto para pequenas quantidades oferecidas até o preço mais baixo que estimula novas compras. Vou utilizar uma moderna planilha gerada por um avançado módulo financeiro para exemplificar o gráfico:

Gráfico 

Percebam que a informação central do gráfico é o ponto de interseção chamado de equilíbrio, e é nele em que o mercado de um determinado produto se estabilizará. Variações muito grandes de preços ou produtos tenderão ao fracasso, já que o ponto de equilíbrio é atrativo - preços muito altos serão refutados, preços muito baixos trarão prejuízos. Por outro lado, quantidades muito pequenas serão consumidas de imediato, sendo insignificantes no mercado, enquanto quantidades muito altas são inviáveis financeiramente.

Como essa, muitas outras ferramentas foram criadas por diferentes economistas para tentar compreender esse tal de mercado, uma entidade tão estranha quanto qualquer outra que transcenda a realidade em si mesma, razão pela qual vou parar por aqui, porque eu mesmo já estou ficando cansado. Mas é o suficiente para demonstrar que não é um mundo tocado pela caridade, mas pelo interesse das pessoas. É um mal em si mesmo? Deve ser, mas tem coisas com as quais precisamos lidar como elas são, e não como queríamos que elas fossem.

As ações do deus mercado são válidas também aqui, no pequeno mercado de Guararema? Certamente sim, com a diferença de que aqui eu posso puxar um papo com a menina que serve o café e que me conta da paz que encontrou em sua vida, ou do rapaz da cachaça que me engabela com as vantagens reprodutivas da cachaça com caranguejo. Talvez esse Deus não seja de misericórdia como falam dos outros. Bons ventos a todos!

Recomendações:

Para quem curte Economia, é uma das obras essenciais.

MARSHALL, Alfred. Princípios de Economia. Col. Os Economistas. São Paulo: abril cultural, 1982.

Para quem quiser visitar o Mercado:

Mercado Municipal de Guararema

R. Major Paula Lopes, 125

Centro

Guararema/SP 

A aproximadamente 75 km do centro de São Paulo

*Minha hipótese permanece válida porque, do ponto de vista do vendedor, há as necessidades imediatas, como pagamento de salários e compras de materiais são imediatas, embora se trate de bens duráveis. Se é possível considerar para eles um bem durável, isso significa que já lhes foi possível fazer reserva suficiente para especular.