(O que você faz quando um ato solene é tomado como inutilidade? Eu vou para o banheiro)
“Da privada eu vou dar com a minha cara de panaca pintada no espelho, e lembrar, sorrindo, que o banheiro é a igreja de todos os bêbados"
Cazuza
Olá! 
Já tem um tempão que venho dialogando com vocês aqui neste
humilde espaço, meus bissextos leitores, sempre sobre temas que não são
exatamente líderes de audiência. Efetivamente, rende mais falar sobre futebol,
novelas e conspirações do que epistemologia, metafísica e estética (a não ser
que seja facial). É que versar sobre filosofia pressupõe muito estudo, horas de
empenho e um estranho lazer com coisas que não parecem lazer, normalmente se assemelhando
mais a excentricidades do que a diversão. Quem me lê, talvez tenha de mim
aquela imagem do senhor sentado numa poltrona da sala, lendo seus livros
espessos à luz de um abajur de pé alto. Ledo engano, triste ilusão, desditosa
fantasia. Para mim. Eu estou sempre para lá e para cá, já descontados os dias
de serviço, atrás de algum afazer doméstico ou aflição familiar.
Eu divido os cuidados de minha própria casa, versões Sampa e
Taubaté, acompanho meus sogros idosos e tenho um filho em cada cidade. A patroa
não dá conta de tudo, e é preciso que eu me mova em seu auxílio, muitas vezes.
Não passo um dia sem que eu corra, às vezes como um coelho assustado, às vezes
como um trem desgovernado, dando toda sorte de nó possível e imaginário em
realidades que, como se vê, estão longe de ser tranquilas.
Mas é óbvio que não é só isso. Existem algumas ocupações que
não são ocupações. Melhor dizendo, há ocupações que são consideradas puro
lazer, e, com isso, são colocadas no fundo do segundo plano. Quando alguém se
põe a ler, exceção feita ao ato de estudar para provas, vestibulares e
concursos, está em uma atividade que dificilmente será considerada essencial,
mesmo no âmbito doméstico, ou, pior ainda, nele. E então você ouve: “Já que
você não tá fazendo nada, leva o lixo lá fora”. Pois é, ler é não fazer nada.
Já falei por
aqui que a leitura é essencial não só para deleite dos espíritos, mas por
questões práticas também. Já me disseram que eu redijo bem, e isso vai além
deste blog, muito além. E as razões para isso passam obrigatoriamente por um
bom nível de leitura, modéstia à parte, porque nada sai se não entrar primeiro.
Para escrever bons contratos, boas petições, bons requisitos, bons artigos,
boas aulas, é preciso estar em dia com a leitura, e isso não se faz no momento
em que se está escrevendo contratos, petições, requisitos, artigos ou aulas,
mas naquela poltroninha com abajur. Por isso, ainda que componha o lazer do
contribuinte, uma boa leitura tem esse benéfico efeito colateral: aumentar o
patrimônio intelectual.
É possível ler abobrinhas? Claro. O pior é que muitas delas
são revestidas de uma capa de verdade que leitura nenhuma deveria ter, e de
seriedade que nenhuma crítica pessoal deveria deixar passar imune. Mas aí
entramos na regra geral de que o cuidado deve ser do comprador*, e esse
traquejo só se pega com o tempo. E há também o saudável costume de se ler
textos opostos: não adianta criticar Marx se você nunca leu Marx, para citar um
exemplo recorrente, aplicável a qualquer autor. Se prender apenas a quem corrobora
suas opiniões é um exercício ruim, de quem não usa a leitura como ferramenta de
aprendizado, mas de reconforto interior e fortalecimento acrítico de opiniões.
Isso vale para quem se lhe opõe.
Então ler nunca é um ato inocente: ou ele te evolui, ou te
estraga, e isso comprova o tal cuidado do comprador que eu mencionei. É
possível estabelecer critérios quando o conteúdo se dirigir a formação de
opinião, que é esse aí de cima: pegar comentadores de um e de outro lado. Mas
isso vai do leitor. Ele deve conseguir meios de ter um continuum para melhores
absorções daquilo que quer adquirir. Não faz sentido ler sem isso. É como ouvir
música de protetor auricular. Aí, é melhor dormir.
Ora (direis), se afirmas terdes pouca chance de
continuidade, por quais caminhos arrogas seguires em tuas pretensas leituras?
É, meu imaginário interlocutor, não é simples, de fato. Há muito, aproveito o
momento das compras da cara-metade, onde minha função é de burro de carga, mas
um burro culto, já que empurrar carrinhos não é exatamente um sacrifício. Mas
eu tenho um lugarejo inconfessável onde consigo emendar bom tempo de leitura
com baixo índice de perturbação. Sim, ele mesmo: o banheiro.
O hábito não é novo e nem unânime, porque o argumento dos
detratores do recinto como sala de leitura tem bons motivadores: é um local
que, por maior que seja a higiene aplicada, é sujo. Além disso, não é
propriamente confortável como a tal da poltrona acolchoada, e dizem que o
costume de ficar por muito tempo sentado em um buraco pode causar prejuízos aos
países baixos. E o mais mortífero dos argumentos se aplica em casas onde esse
lugar é único: ele é ocupado individualmente, e precisa ter acesso democrático
a todos na casa. Mas as razões de uso são igualmente boas.
A primeira é a privacidade. Dificilmente é possível
considerar simpático que alguém se tranque em um quarto enquanto lê, mas a
principal maneira de se conseguir a melhor absorção possível de conteúdos é
esse certo isolamento do mundo exterior. No banheiro, essa privacidade é obtida
automaticamente, já que, por suposição, não há como se desenvolver as
atividades típicas do recinto em outros lugares da casa. Além disso, não é de
bom tom existir companhia nos momentos de uso, pelos óbvios motivos. Embora seja
um ato naturalíssimo, praticado por absolutamente toda a humanidade, há um
constrangimento reconhecido socialmente de não se fazê-lo na solidão, porque,
vamos e venhamos, o produto cheira mal. Conclusão é que ninguém achará ruim que
alguém se isole, o mesmo isolamento que a leitura requer.
A segunda é a disponibilidade de tempo. Em tese, quando se
vai à casinha, o campo de atividades possíveis fica bastante limitado. Não dá
para executar a maioria das tarefas do quotidiano, mas dá para ouvir música,
fuçar no celular e… ler! Há clássicos armarinhos de revistas nos banheiros que
ficam repletos para cumprir essa tarefa, o que demonstra que não se trata de
situação excepcional. Quando eu era um molecão, era moda colocar bidês no
banheiro. A questão é que o costume de usar essa louça sanitária, destinada à
higiene íntima, não pegou entre os brasileiros, já que na maior parte do tempo
temos clima propício para banhos completos, e ela acabava ficando exposta como
uma mera marca de época, ou como porta-revistas, o que era mais costumeiro. E
ali tinha gibis, jornais dobrados, revistas de variedades e até alguma
publicação mais danadinha, oculta lá pela parte de baixo. Tirando tudo isso, é
perfeitamente possível, independentemente da existência do bidê, adentrar-se no
território com um bom livro, dos mais variados assuntos, inclusive filosofia.
A terceira é correlata, ou seja, se há disponibilidade de
tempo em um mundo onde vivemos reclamando de sua escassez, é um período ideal
para o uso mais proveitoso possível. Eu não só leio, mas também escrevo no
toalete, inclusive componho um bocadinho dos textos que vocês leem aqui.
Escrita virtual não pega cheiro, o que é um bem. Também gosto de cantarolar
algumas melodias para encaixar nas minhas cada vez mais raras poesias (sim, por
vezes também elas são escritas lá), o que é outro clássico do desprezado
cômodo, e, com isso, pode-se notar que é também um espaço da criatividade.
Por fim, e principalmente, a invisibilidade. Ao contrário da
poltrona, ninguém manda você colocar o lixo na rua se você está na privada. A
não ser que você tenha montado acampamento na retrete, e aí a cobrança será
pela desocupação, é garantido que haverá um lapso de paz durante o período em
que você estiver instalado, pelo simples fato de que estar fora do circuito te
deixa imperceptível. O contribuinte sentado na sala está dando sopa, quase
reluzente na sua “desocupação”, enquanto aquele em processo de alívio está
trancadinho, quietinho, silente, impossibilitado.
Jocosidades à parte, temos diante de nós a triste realidade
do que reputamos como importante ou irrelevante em nosso país. Conforme falei
em outro texto, ser flagrado em boa leitura durante o serviço deveria ser
considerado hora trabalhada, louvável dentro de certos limites, especialmente
para quem trabalha com a linguagem. Uma instrução bem escrita, uma
especificação bem redigida, uma determinação clara ou uma regra que não deixe
dúvida dificilmente produzirá erros, retrabalho ou necessidade de esclarecimentos,
o que representa ganho, cara-pálida. Não só de tempo, mas de grana, gaita,
erva, vil metal, wampum.
É um contrassenso o que nós fazemos. Reclamamos
diuturnamente da educação no país, e mandamos um leitor levar o lixo lá fora.
Falamos que as telas são prejudiciais, sem nem ao menos saber se o cidadão não
está lendo. Os livros físicos estão condenados à morte, como já aconteceu com
os jornais físicos, e a versão para celular tem os benefícios que vão além do
romantismo: portabilidade, compartilhamento de uso, iluminação própria, custo.
Se alguém diz que você “fica o dia inteiro no celular”, precisaria saber o que
você faz com ele. O pessoal que me vê enquanto eu escrevo certamente pensa que
estou em grupos de conspiração ou falando putarias com os amigos, mas nada mais
faço do que redigir para este blog ou pegar referências para ele. Certo:
precisamos ser parcimoniosos e levar o lixo, evidentemente, mas também é
preciso reconhecer o valor da cultura e não a considerar objeto de descarte,
coisa secundária, de somenos importância. Do contrário, vamos fixar no nosso
substrato mental que o hábito da leitura é um demérito e alimentar o círculo
vicioso do desprazer pela escola, ou então vamos enaltecer o subterfúgio do banheiro.
Eu não sou um bobo que prefere sentar-se na beira de um buraco a uma almofada
fofa, mas é fato que ali as coisas rendem. Tentem ler meia hora de Kant sem que
haja um mínimo de concentração. É a mesma coisa que ouvir músicas em sânscrito.
Desde que não compreendamos sânscrito, bem entendido.
Já ficou bem louco este texto. De vez em quando tenho mesmo
vontade de abordar temas mais leves, mas dessa vez eu me superei. Mas não deixa
de ser uma forma de ser filosófico falar sobre o quotidiano mais prosaico de
todos, aquele que todos precisam apelar, e não é de vem em quando. Bons ventos
a todos!
Recomendação de leitura:
Existe nos Estados Unidos um termo chamado de bathroom
reading, que diz respeito a leituras leves e rápidas, específicas para
serem absorvidas nos momentos de alívio, o que também comprova a universalidade
do hábito. Embora não se chegue a tanto, há uma boa série no Brasil que tem a
dupla função de ser leitura ligeira e de dar aprendizado a quem vem iniciando
no mundo das letras (independentemente do lugar onde se lê), já consagrada e
que traz muita coisa boa. 
VV. AA. Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, a partir de 1977.
*Caveat emptor é uma antiga expressão latina que significa algo como “tenha cuidado, comprador”. Ela significa que o cuidado em fazer uma aquisição deve estar do lado de quem granjeia, porque quem vende tem interesses diferentes, evidentemente. Essa expressão hoje parece obsoleta por conta do Código de Defesa do Consumidor, que inverteu a lógica de muitas das relações mercantis envolvidas no comércio, mas foi justamente por causa das intenções espúrias que se fez necessária a legislação. Como eu sempre digo, a necessidade da lei é o fracasso da moral.

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