(Surfar no sucesso de uma música pode esconder tanta coisa que não vale a pena fazê-lo)
“Bem-vindo, meu filho, bem-vindo à máquina. Com o que você sonhou? Tudo bem, nós te dissemos com o que sonhar”
Roger Waters
Olá!
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Vivemos em um mundo onde o primado do indivíduo tem
resultado em pessoas que vivem cada vez mais sozinhas. Isso é um problema em si
mesmo? Para mim, é, principalmente levando em conta que eu tinha uma família
grande, que eu estudei em escola pública, que eu trabalhei em firmas grandes,
que eu tenho costumes de grandes espaços, especialmente nos campos de futebol
da vida. Mas hoje em dia, nossas redes de dependências têm se tornado mais
optativas do que obrigatórias, e como há momentos em que o melhor é estar só de
fato, as pessoas lançam mão de subterfúgios para compensar as ausências
físicas, redes sociais à frente.
Isso leva a uma redução nas coisas da vida, nas dimensões e
nas quantidades. Apartamentos de 20 metros quadrados são suficientes, modas
minimalistas tornam desnecessárias grandes coleções de pratos, copos e talheres;
carrinhos 1.0 que carregam uma mochila são mais do que suficientes, isso quando
não se lança mão de motos. E há o café.
Esta minúscula cafeteira de uma dose só tem uma historinha
por trás dela. Eu estava em um daqueles chatíssimos eventos de lançamento de
uma determinada plataforma de antivírus, que apresentam maravilhas que te
salvaguardarão de qualquer ameaça virtual através de um appliance
assim-assado e etc. Sabemos que essas coisas nunca batem com a realidade, mas
tenho que admitir que uma coisa foi inesquecível: um café da tarde de cinema,
com quantidade e qualidade a toda prova, daqueles de fazer um monge arregar.
Como souvenir, um artefato relacionado - um minicafeteira individual.
O utensílio é simples, bonito e funcional. A mesma tampa que
lhe protege é o porta-copos que recebe a xícara. Esta, por sua vez, é um
recipiente de vidro, que é muito mais agradável do que o esperado copinho de
plástico. Óbvio que há uma logomarca impressa, mas, como não ganharei centavo,
vou mantê-la oculta.
O coador é uma tela de metal que recobre o fundo do filtro,
e, uma vez montado, não passa de dez centímetros de altura, resolvendo muito
bem os supostos problemas de armazenamento em um canto de trabalho ou estudo,
por exemplo.
Nome do utensílio: Conjunto de dose única
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média/grossa
Dinâmica: O conjunto é multifuncional, e deve ser montado na ordem certa. A tampa superior deve ser virada para despejo do pó, e o liquido deve ser vertido aos poucos até o limite do filtro, para não extrapolar a capacidade da xícara abaixo.
Resíduos: Médios
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Baixo
Ideal para hoje, quando estou sozinho em casa. Isso é raro, mas a patroa precisou sair cedinho e eu estou com pouco ânimo, demandando a energia que a cafeína me propicia. Só que enquanto escoo meu cafezinho, dou-me conta de que chegou gente nova no segundo andar. Nem faz tão pouco tempo assim, mas é hoje que eles se dão a perceber, da pior maneira possível: um rádio com uma música alta o suficiente para perfurar a parede do horizonte de fundo sonoro. Se você viesse com um decibelímetro, acharia que os limites do conforto estariam longe de ser vazados, mas a questão é de conteúdo, e não de volume. Pelo vitrô da cozinha, começam a subir os acordes de uma música conhecida - Wish You Were Here. Mas em versão sertaneja.
Não vou perder nem dois minutos tentando saber quem canta,
porque eu já o odeio, sem que nem ao menos eu lhe deduza o rosto. Recaio no
mesmíssimo fenômeno que já descrevi neste
texto, com os mesmos efeitos físicos e psicológicos. O incômodo, já natural
em mim, é multiplicado por mil por conta do vilipêndio. Quem faz essas versões
não sabe (e está cagando para saber) o que está modificando. Embora não haja a
menor perspectiva de que eu esteja mudando o mundo, sinto uma espécie de
obrigação em me manifestar, e vou tentar explicar que tipo de pérola estão
atirando aos porcos.
Começamos desagravando. Meus vizinhos não estão cometendo
crimes, nem praticando pecados, nem perpetuando comportamento sem ética. Eles
estão curtindo o que gostam e isso basta para eles. A questão se limita a mim
mesmo, e, se quero deixar claro o desconforto, devo explicá-lo. Balizados
estamos, andiamo avanti.
Já pronunciei uma pincelada daquilo que me aprofundarei neste
texto. Nominar o que consideramos como arte é problemático, o que não
impede de existirem fronteiras mensuráveis pelo esforço e pela técnica, sendo
esses critérios um pouco mais objetivos. Mas arte não é só isso, e tem muito a
ver com a relação pessoal que temos com o mundo. Artistas inovadores costumam
quebrar a cara várias vezes, porque fugir de padrões nunca é confortável para
grandes públicos. Revisitar arte já existente, portanto, dá a vantagem de
apostar na certeza, mas também forja um aspecto de preguiça, embora haja sempre
o argumento da homenagem. Certos bustos de jogadores consagrados demonstram que
homenagens nem sempre pode ser uma boa ideia*, mas não há problemas em fazer
covers e versões de músicas consagradas. Só que é preciso, salvo melhor juízo,
saber onde se está tocando. Daí para frente, a decisão é sua.
Mas de onde vem tanta deferência por uma música e a revolta
pela sua execução fora do círculo original? Aí, vai ter que ter história,
porque é justamente todo o seu pano de fundo que dá sentido a isso tudo. Vou
tentar alongar e cortar um monte de detalhes.
O Pink Floyd é uma banda que nasceu no contexto da
psicodelia dos fins dos anos 60. Como tal, inseriu-se na mesma mecânica que
seus parceiros de movimento, o que inclui muita pesquisa sonora, temas pouco
convencionais e experimentação de todo tipo, em especial a abertura química das
portas de percepção. Em outras palavras, no consumo de drogas psicoativas,
principalmente alucinógenas. E, aqui, imperava o ácido lisérgico. Com efeitos
psicotrópicos descobertos em 1943, chegou ao seu auge duas décadas depois, quando,
sob
impulso de efeitos psicoterápicos, espalhou-se pela classe artística, sob
argumento de percepção sensorial mais aguçada e consequente incremento
criativo.
Como em tudo na vida, há os famosos dois lados. Se por um
lado a derrubada dos bloqueios mentais fazia com que a criatividade ficasse a
mil, por outro, fígados e cérebros eram detonados pela substância pouco
compatíveis com eles. E ao lado da explosão criativa, vinha o fim de feira
orgânico. É aqui que vamos falar de Syd Barrett.
Este guitarrista e compositor era o líder do Pink Floyd, e
suas composições falavam de um tempo e de um espaço criados a partir da
confusão mental, como em See Emily Play, ou dimensões siderais exóticas,
como em Astronomy Domine, dentre outras maluquices. Estas músicas estão
em The Piper at the Gates of Down, primeiro álbum da banda e o único
gravado sob sua liderança. O sucesso deste disco levou a banda a uma infinidade
de shows, mas o excesso de consumo de substâncias rapidamente demonstrou seu
efeito devastador na mente de Syd. O seu comportamento esquizofrênico lhe
causava longos períodos de catatonia, o que, no palco, resultava em momentos de
paralisia enquanto o show se desenrolava. Esse, inclusive, foi o motivo pelo
qual foi chamado um segundo guitarrista, David Gilmour. Sem horário, sem
comunicação e errático, se tornou um empecilho ao bom funcionamento da banda. Com
isso, Syd passou a ser figura decorativa nos palcos, até chegarem à conclusão
de que ele era um peso morto, e o excluíram em definitivo, mesmo tendo pensado
inicialmente em deixá-lo a cargo das composições.
Como sabemos, o sucesso veio retumbante, em especial após o
álbum The Dark Side of the Moon, até hoje uma obra-prima da música contemporânea,
daquelas que até os mais empedernidos metaleiros respeitam. Isso trouxe um
problema para a banda, daqueles bons: criar uma obra que o sucedesse com
dignidade. No começo, pensaram em partir para a ignorância, com uma
experimentação ainda mais intensa, cheia de efeitos sonoros e sons extraídos do
ambiente, como tão bem fazia Hermeto Paschoal, mas acabaram trabalhando em
pesquisas de palco, sentindo o que assentava bem com o público e sem um destino
muito certo. Durante essa fase de construção, com sérios bloqueios criativos e
sem uma linha clara a seguir, receberam a visita inesperada de Syd Barrett no
estúdio, quase sete anos depois de seu último contato, muito gordo,
inteiramente sem pelos e com as falas e comportamentos completamente desconexos.
A fase de início do Pink Floyd o destruiu física e mentalmente, e o abandono só
reforçou sua condição.
O peso da culpa se abateu sobre os membros, e o novo álbum
deu uma virada completa no seu direcionamento. Do experimentalismo sonoro, o
trabalho guinou para um tom menor, melancólico de ponta a ponta. O álbum virou
conceitual, percorrendo todo ele a ideologia massacrante da busca pelo sucesso
e sua manutenção comercial, destruindo corpos e consciências no mesmo ritmo da
busca dos cifrões. A visita era a gota que faltava para transbordar o balde da
revolta.
O álbum é temático, coisa inexistente no universo que o
imita, e gira em torno da pressão ocasionada pelo mercado sobre a área
criativa. Essa pressão era sentida pelos membros do grupo, que precisavam
suceder o megasucesso anterior com um mínimo de resultado financeiro. A
gravadora não estava lá muito preocupada com o teor artístico, como sói
acontecer até hoje.
Só que o difícil é tirar o leite criativo da pedra
financeira. Não se trata de ligar o gerador de lero-lero e falar sobre qualquer
coisa. O processo criativo não funciona com um botão de liga e desliga, e
demanda tempo, atmosfera, reflexão, escrita e reescrita, tanto de músicas,
quanto de letras, de arranjos, de ideia de todo, harmonia entre as partes,
conciliação temática. Fora disso, é lero-lero sim.
O álbum fala exatamente sobre o desfazimento de laços
humanos. É toda uma cadeia de causas e consequências que fala sobre a
desnaturação e desestruturação mental (Shine on You Crazy Diamond),
ocasionado por um ambiente de pressão e objetificação (Welcome to Machine),
em um processo de avareza e cinismo que não se importa com a história das
pessoas (Have a Cigar?). A pungência chega ao máximo na música título.
Uma ode lírica que retrata a lamentação por ter deixado o antigo amigo sozinho,
deixado à própria sorte e todo o arrependimento causado pelo ato impensado. A
poética é aplicável universalmente a quem se remói de ter deixado uma amizade
de lado em nome de um objetivo mais mesquinho. Ela fala sobre o dogmatismo de
nossas ideologias, de como nos alienamos e desconectamos de realidades e de
como abandonamos pessoas e projetos, para depois acharmos falta de tudo isso.
É um dos usos mais nobres da linguagem: a expressão de
realidades interiores, a tradução de estados de espírito, ainda que sejam
dolorosos (muitas vezes, é tudo o que nos resta de nossas escolhas). “Como eu
queria que você estivesse aqui” pode significar um monte de coisas, mas a
música não é sobre a perda de uma paixão, e sim sobre como renegamos nossas
origens, como permitimos que se ergam muros entre nossas subjetividades, como
deixamos que nossas personas dominem nossas pessoas, como esquecemos de estender
a mão a quem amávamos. Wish you were here não é uma linguagem que rima
amor com dor, mas sobre correr sobre a mesma estrada e sempre encontrar a mesma
dor. É tentador aproveitar a melodia comovente e reaproveitá-la, mas isso se
torna impossível quando ela observada na lupa.
Percebem como há inúmeras coisas por trás de uma canção? Não
se trata de ser chato com o uso de uma melodia bonita, mas do que se destrói ao
colocar uma historinha de amor mal resolvido no lugar de tudo o que uma obra de
arte carrega, e isso equivale a jogar uma lata de tinta na Mona Lisa. E ninguém
fica feliz com isso. Pegue a canção que você acha mais bonita na sua igreja e a
transforme em um metal satânico. Você não se sentiria mal?
Há certas reservas de sacralidade que fazemos por conta de
nossas próprias idiossincrasias. Pode ser qualquer coisa: um objeto antigo, uma
camisa de time, uma foto de um antepassado, um brinquedo de infância, até um
chaveirinho de estimação. O que importa é que por trás disso há valores que nos
são caros, como é o caso das músicas que apreciamos, que nos tocam. E por mais
que sejamos liberais e tolerantes, o fato é que a adulteração da sacralidade
tem em nós o efeito de um ultraje. E não dá para dizer que está tudo bem.
Há um efeito maléfico nas versões que não respeitam
minimamente o original, aproveitando deles unicamente a melodia adaptada. Ao
invés de estimular o ouvinte a procurar saber mais sobre a origem, incitam-no a
entender que a música é só isso, um choramingo sentimental sobre a perda da
mulher amada ou coisa parecida. Não significa que toda e qualquer versão seja
ruim, sendo até possível uma superação do original. É célebre a versão de With
Little Help from my Friends, dos Beatles, na voz de Joe Cocker. Uma cançãozinha
com ar infantil pegou um peso apoteótico. Outra versão que ficou soberba é a
música Special Care, originalmente do grupo folk Buffalo Springfield,
que ganhou uma consistência absurda na voz das meninas do Fanny, virando um
hardão daqueles de arrebentar a tampa da cabeça. Mas nota-se o respeito
justamente pelo que se acrescenta à versão, e não do que se tira. Afe!
Eu acho que sou um Dom Quixote atacando moinhos de vento.
Bons ventos a todos!
Recomendação de álbum:
Ele acabou de fazer 50 anos e ainda está no panteão dos
grandes discos de rock progressivo, psicodélico, espacial ou seja lá o nome que
se der ao estilo. Grandioso como seu antecessor, sendo que bons nomes o colocam
até como melhor. Como obra da coesão, é melhor mesmo, na minha humilde. Vale a
pena prestar a atenção, deitar no sofá com os fones de ouvido e fazer seguidas
incursões. Percebam o fenômeno de se aperceber de detalhes em cada uma delas.
Obra de gênio, que não deveria ser tratada sem reverência.
WISH YOU WERE HERE. Pink Floyd. Londres: EMI, 1975.
* Olhem “belos” exemplos neste endereço:




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