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terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Futebol e suas diferentes filosofias: o insólito Santos e a incerteza do alvo para onde apontar os canhões

(Tem momentos em que não sabemos muito bem para onde ir, e a opção de ser ousado ou ser cuidadoso influenciam para sempre o que teremos para nós. Por que não para um time consagrado?)

“A vida é a soma de todas as suas escolhas”

Camus

Olá!

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O ano era 1974. As casinhas da Vila Diva eram iguais e diferentes entre si. Diferentes nos formatos, iguais na simplicidade operária de um bairro afastado para uma família vinda da Mooca. Muitas com o reboco caindo, várias com canteiros que serviam de horta, algumas com galinhas no quintal, davam um ar misturado de pobreza e ruralidade, e, com poucas exceções, denunciavam se tratar da periferia da Pauliceia Desvairada daquele complexo momento histórico. Havia as casinhas geminadas feitas em um bloco só, havia o cortiço comprido desembocando na rua de trás, havia cômodos-e-cozinhas em terrenos grandes, mas a mais simples de todas daquela rua era a casa da Maria, na verdade um barraco de madeira nos fundos do terreno ao lado da fabriquinha de rolamentos. Ela morava lá com o marido e os três filhos, todos, à moda de Macunaíma, pretos retintos e filhos do medo da noite. Não eram exatamente miseráveis, mas se sujeitavam a morar num canto extremamente precário para acelerar as obras da casinha, agora de alvenaria, em Itaquera. Naquela época, era quase o equivalente a ir para o interior, mas o terreninho era deles e representava uma conquista e tanto. Não tardaram muito a ir embora, satisfeitos com o teto mais sólido.

Das três crianças, lembro só do nome da Sabrina, a menina que deveria ter uns dois anos a mais do que eu, e que fritava minhocas à guisa de macarrão em suas brincadeiras infantis. Nojento e cruel, mas criativo. Minha mãe dizia que eles eram bonzinhos, embora serelepes, e a Maria era cliente dela nas costuras. Por isso, volta e meia eles estavam lá em casa. Eles achavam engraçada a minha brancura Omo Total, notável até mesmo quando eu me encardia no terrenão onde moravam, e tinham muita paciência com meu infante mau humor, não sei por quê.

Eu sei dessas coisas mais pelo que minha mãe contava do que propriamente pelas lembranças próprias, mas há algo marcante relacionado a esse quesito: é da Maria que eu ganhei o presente mais antigo do qual eu me recordo: duas caixinhas de jogos de futebol de botão, uma do meu Corinthians, e outra do Santos do marido dela, que eu tentei a custo lembrar do nome, mas não consegui. Eram daqueles botões que tinham a foto dos jogadores, e não o escudo do time. Levando em conta o branco dos uniformes de ambos, era meio difícil de diferenciar um do outro; mas falávamos de um molequinho de quatro para cinco anos, e não dá para cobrar primores de propriocepção de uma criatura dessas.

O Corinthians de então era uma banda de um único virtuose. Embora houvesse bons jogadores, é inegável que o mundo parque-são-jorgiano girava em torno do habilíssimo Rivellino, enquanto o Santos ainda era uma seleção completa. Carlos Alberto, Marinho Peres, Clodoaldo, Edu, Brecha, Cejas e o então garoto Cláudio Adão compunham a orquestra do maestro Pelé, majestoso ainda nos seus 34 anos, mas prestes a partir para sua aventura ianque, onde multiplicou a fortuna e arrefeceu o ímpeto. O Santos era uma verdadeira máquina de futebol, conhecido em todo o mundo que tinha o futebol como esporte relevante.

O Santos não é somente o maior do momento em que eu nasci, mas é também o time do sogrão e da patroa, motivo que me levou a assistir vários jogos do time da dita vila mais famosa do mundo in loco, inclusive na própria, um estádio pequeno e bom de ver jogos, com o devido silêncio de quem forma fileiras inimigas. Vi bons jogos: contra a Ponte Preta, contra o Flamengo e contra o América Mineiro, dos que me lembro, sempre com a característica que construiu o Peixe: dois ou três experientes dando guarida para a molecada formada na casa. Essa camisa é da cara-metade, que lhe dei em um aniversário, a mais bela do Peixe:

Esse time, assim como é muito comum, leva o nome da cidade onde sua sede está estabelecida. No momento de sua fundação, Santos (cidade) era a segunda maior em importância no estado de São Paulo. Dona do maior porto do país, ponto de chegada de inúmeros imigrantes que chegaram a Terra Brasilis para cultivar a própria sorte, rica em história e natureza, era um local de excelência, conhecida como Terra da Caridade e da Liberdade. E Santos (clube) tratou de levar seu nome para o mundo. Daí, seus vínculos são viscerais.

Santos (cidade) era provavelmente o principal destino turístico do estado nos meus tempos de criança. Casais faziam lua de mel lá, famílias se juntavam para farofar no final de semana ou concentravam esforços para esticar uma temporada. Exceção feita à região portuária, a cidade é razoavelmente bonita e bem estruturada, com ótimo patrimônio histórico, e tem o mar, por óbvio. Sendo muito próxima à capital, ainda é um passeio relativamente barato. Mas Santos (cidade) tem um problema: não tem mais para onde crescer. Sua área é composta por terrenos ocupados ou protegidos, e os cantos onde poderiam ser construídos novos bairros já estão em regiões de outros municípios. Santos (cidade) virou um local espremido.

O mesmo pode se dizer com relação ao clube. Ele é o estádio, o velho campo da Vila Belmiro, onde pouca coisa mais há. A não ser que se derrube as casas do entorno, com um dinheiro que o Santos (clube) não tem, e o que Santos (cidade) provavelmente não quer, não há como construir um novo estádio que seja maior do que já é o Urbano Caldeira, com amplos estacionamentos (arena do Corinthians) e anexos que atraiam um público novo, como um shopping (arena do Palmeiras). Ainda que o projeto esteja nos seus princípios, e por melhor que seja conduzido, o Santos tem uma arapuca: não há como crescer. Santos (clube) é espremido como Santos (cidade).

A situação do Santos (clube) é sui generis. Mesmo que esteja passando por uma fase um tanto escassa, não deixa de ser um dos maiores times do futebol tupiniquim, mas, ao contrário de seus concorrentes mais diretos, fica situado em uma cidade mediana, se comparada a São Paulo, Rio, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Isso faz com que sua maior torcida não esteja na própria cidade, um fenômeno do qual o clube se orgulha, porque transcende a limites, mas que traz esse sufoco. Tem muita gente que coloca como solução o deslocamento da sede principal para São Paulo, onde poderia apresentar o renovado Pacaembu, um neo-elefante branco que implora por ocupação desde que o Corinthians, seu principal inquilino, abriu seu boteco próprio. Na Pauliceia, o Santos teria espaço suficiente para tentar reexpandir sua torcida e sua capacidade de engajamento, haja vista a diferença de tamanho entre ambas as cidades. Poderia ser uma boa ideia, mesmo considerando que abandonar a praia pode não trazer os novos barcos esperados, ao mesmo tempo em que os antigos podem pegar o alto-mar e aportar em outros cantos, mas eu não creio que isso aconteça.

Conto mais uma história. Logo que me casei, fui morar no porão da casa do meu sogro. Era isso ou pagar aluguel. Ficamos bons sete anos lá, tempo suficiente para nascerem os três filhos, suficiente também para comprar um terreninho típico ZL, de 5 x 25, próximo do Jardim Elba, então um grande morro pelado. Era preciso expandir, porque o porãozinho de três cômodos já estava apertado demais. Minha filha mais nova, por exemplo, não dormiu em berço, indo direto para a parte de baixo de um beliche. Eu, um jovem assalariado, não vislumbrava dias tranquilos, mas era preciso dar o passo: construir o que seria o andar de baixo do sobrado e se mudar para lá, a fim de acumular novos recursos e depois erguer os cômodos de cima, no momento em que as crianças não fossem mais crianças. O primeiro passo foi dado, mas não o segundo, porque não havia pernas para dá-lo. Financiamentos estavam fora de cogitação, porque eu já precisava pagar o que havia ficado do andar de baixo. Eu dependia de algum fator externo que nunca veio. A mudança para o Centro foi outra história, para contar em momento mais propício.

Não sou favorável a fazer loucuras. Já tive minha época de falsificar documentos para tocar minha bateria na noite, usar cigarros de altos teores, zerar garrafas de bebida barata e outras pequenas ilicitudes que, somadas, poderiam trazer encrencas. E isso já não cabe mais para quem tem filhos a ensinar não fazerem nada disso. Temos limites razoáveis até mesmo para sermos ousados, para não dizer que sou um conservador bundão. Isso explica por que hoje tenho minhas contas razoavelmente controladas, obrigo-me a vestir paletós em dias saarauís e passo perfumes de preço mediano: o mundo lá fora me quer assim, e eu tenho que atendê-lo ao menos algumas vezes. Triste, mas calcado na realidade. Não posso aconselhar nada diferente para um time como o Santos. Afinal de contas, dá sempre vontade de meter o louco, mas nessas coisas de responsabilidade coletiva, não se arca sozinho com as consequências.

É um momento em que o Santos (clube) precisa lidar com cuidado a questão de sua expansão e continuidade. Não é sempre que brotará uma geração que vai resolver seus problemas imediatos. Não acredito em obras do acaso, mas em competência para gerar bons jogadores, mas é certo que existem safras, como de bons vinhos e de excelentes cafés. Por motivo A ou motivo B, há momentos em que os talentos não surgirão, e um clube com base sólida não poderá se fiar em soluções transitórias. Mas ele tem margem de manobra maior do que Santos (cidade). Não dá para a Terra da Caridade e da Liberdade simplesmente levantar acampamento e procurar terreno maior: ela É o seu território. Já o clube não tem esse mesmo limitador. Pelo menos não nesse sentido, já que ele carrega as cores, a história e a vontade de continuar representativo, e isso pode ser em mais de um lugar.

Notem que o laço não pode se transformar em grilhão. Em um sonho idealista, Santos (clube) ficaria em Santos (cidade), especialmente se fosse possível dois fatores: não eliminar patrimônio histórico e ambiental, e estar bem próximo da rodovia, para facilitar acesso dos torcedores vindos da metrópole. Como sabemos que terrenos não dão em árvores, e árvores dão em terrenos, temos a dimensão do problema: não vai dar para construir sem destruir.

Então eu acho que há um momento talvez em que nada resta a não ser baixar a cabeça e aceitar o próprio destino. Reformar a Vila não me parece uma boa ideia, sendo o ideal pegar o prontíssimo Pacaembu e tentar fechar um acordo razoável com seus arrendadores. Basta lembrar que o bairro é protegido por lei dos excessos de ruídos, o que fará com que não sejam os shows sua principal fonte de renda. Como palco de futebol, um acordo com o Santos seria seu melhor caminho, com sua grande torcida, sua certa familiaridade com o time e com a falta de alternativas, visto que os times do trio de ferro já possuem suas casas. Parece a mim que é possível fixar ótimas bases para esse uso, tornando o reavivado estádio da Capital sua sede oficial. Com isso, toda a sua atividade, incluindo diretoria e demais esportes viriam a reboque, e a velha Vila permaneceria lá, para jogos menores, para os momentos de reforma do gramado, para lembrar da sua origem.

A vida é isso, um eterno encarar de muros erguidos por ela mesma, e é preciso saber fazer limonadas com os limões que temos. Lá da praia ainda é possível pegar bons ventos, que impulsionam para o alto da serra e permitem que a história se mantenha, tão grande quanto for possível, quanto já foi um dia. E que esses bons ventos sejam para todos!

Recomendação de leitura:

É um livro que eu dei para o sogrão por ocasião do centenário do Peixe.

JATENE, Celso. 10 Décadas. A História do Santos Futebol Clube. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012.

E um post-scriptum: ficou chato à beça esse negócio de Santos, cidade e clube. Mas eu tentei tirar e ficou tão confuso que eu resolvi manter, sacrificando a fluidez do texto para obter um pouco mais de clareza entre os sujeitos. Desculpem-me se ficou maçante. A gente vive e aprende.



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