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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

O café filosófico do quotidiano – fios que fazem café e livros que guardam vidas

(Livros são formas compactas da vida. Por isso, também são bons para não esquecermos de lições)

“Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio”.

Camus 

Olá!

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Certas conveniências da vida moderna não estão nos grandes tamanhos, mas justamente no contrário. Um carrinho compacto evita problemas para estacionar, studios (as antigas kitchenettes) nasceram para acomodar pequenas famílias e baixos orçamentos, computadores foram ficando cada vez menores, até caberem na palma das mãos – um celular é muito mais poderoso do que os monstrões com os quais eu trabalhava na década de 80, com tela de fundo preto e drives para disquetes de 5” ¼, e que geravam filas e mais filas de esteiras de papel destacável em impressoras barulhentas. Aliás, imprimir hoje é coisa vetusta: gera-se um PDF e manda-se por zap. A natureza agradece um pouco.

Minorar tamanhos otimiza espaços, e isso é essencial no nosso mundo cada vez mais compactado. A cozinha da madrinha Tia Nena era o maior cômodo da casa, e lá cabia uma mesa do estilo taberna, onde todos os familiares se reuniam, em uma balbúrdia admirável, como já descrevi neste texto. Já no moderníssimo apartamento da prima Simone, que visitei na semana passada, este compartimento é quase simbólico, objeto de uma engenharia de condensação digna de aplausos, tamanha a criatividade para conseguir arranjar todas as benesses contemporâneas naqueles exíguos centímetros quadrados: fogão de indução, geladeira, micro-ondas e air fryer (tem copyright envolvido?) estão todos presentes, mesmo que em versões utilizáveis em casas de bonecas.

Se todos esses dispositivos grandes, que ocupam espaços consideráveis, vão ficando cada vez menores e flexíveis, os utensílios que já eram pequenos se tornam diminutos, a ponto de serem carregáveis no bolso. Como é o caso do porta-filtro espiral.

Ele não nasceu para ser bonito, não nasceu para encantar. Ele é um método que nasceu para ser compacto, para caber em qualquer cantinho e ser útil em uma viagem ou em momento no qual se precise montar um porta-filtro que abrigue um V60, mais comum em terras estrangeiras do que em Pindorama.


E funciona, mesmo que seja meio chatinho de chegar em um formato adequado. Não se espere que ele sustente o conjunto com elegância, mas com eficiência.

Ele é um fio de aço que tem esse formato de mola justamente para esticar e encolher, bastando travar sua ponta para que fique com a espessura de uma bolacha para deitar copos, e lá se vai ele para uma mochila, para uma maleta ou algibeira do paletó.

Nome do utensílio: Porta-filtro espiral portátil

Tipo de técnica: percolação

Dificuldade: Baixa

Espessura do pó: Média

Dinâmica: Desdobra-se o porta-filtros pelo desenlace da ponta de aço inicial e alonga-se até obter a extensão necessária para acomodar um filtro V60. Os demais passos são iguais ao de uma percolação padrão. Após o uso, recolher novamente as espirais e travar a ponta de aço na primeira espira.

Resíduos: Baixos

Temperatura de saída: Média

Nível de ritual: Médio

Reduzir tamanhos, portanto, melhora a adaptação à vida moderna, e pode ser extensível a coisas mais abstratas. Olho para minha estante de livros e imagino que tudo aquilo cabe em ínfimos arquivos dentro do mesmíssimo celular, o que me liberaria um bom espaço para meu sonhado painel de chaveiros, ou para colocar um quadro surrealista, sei lá. Mas paro para pensar que mesmo esses livros físicos são também compactadores. Resumem histórias de nações, biografias de uma vida inteira, filosofias e pensamentos que demorariam anos para serem ditos, resumem pandemias. Há pouco mais de cinco anos nós fomos trancados dentro de casa por um “bichinho” invisível, ainda mais perigoso do que um homem com um porrete na mão, que pelo menos vemos e de quem podemos correr. Há livros que falavam sobre isso, e que não estavam nos compêndios médicos, mas no romanceiro, em obras que misturam filosofia e poesia, a abstração a serviço da realidade.

Já falei sobre um deles lá no momento do isolamento, este texto, em que citei “O Amor nos Tempos do Cólera”, chupinhando até mesmo o título da obra de García Márquez. Lá, temos o desenrolar de uma trama que mescla amor e infecção, relacionamento tóxico, objetivos mal resolvidos, e, por fim, concluímos que o tempo não para mesmo quando não há movimentos. Mas há outra obra que é ainda mais próxima da realidade em que vivemos naqueles dias, mais filosófica ainda, de um autor único na fusão entre filosofia e literatura, que já visitei aqui e aqui: Albert Camus. E o livro é “A Peste”.

Camus é a cara mais editorial da vertente contemporânea do Existencialismo, que desloca a análise filosófica das essências para a existência. Quando queremos compreender a realidade e suas justificativas, sempre tentamos chegar ao âmago das coisas, para estabelecer o que há de comum a todas elas, ou seja, capturar a essência que explica tudo o que existe. Os existencialistas chegaram à conclusão de que não há explicações essenciais para a vida, e que é ela mesma, a existência, a sua própria essência. Procurar explicações para perguntas do tipo “por que sofremos?”, “somos livres ou condicionados?” ou “de quem é a responsabilidade por minhas escolhas?” passa pela assunção do sujeito humano como centro da especulação. Certas conclusões são angustiantes, principalmente pela perda de sentido fixo na existência, que, por outro prisma, ao menos é reconfortante: o homem é uma construção de si mesmo, e fazer da vida o que se quiser é, antes de mais nada, uma incumbência assustadora, especialmente quando se conclui o absurdo que é existir. O existencialismo não é só isso, mas gira em torno.

O argelino Camus é um dos principais nomes da corrente, em especial pelo seu modo sui generis de filosofar pela via da ficção. Sua mão é suave como a do cirurgião que cinde uma pústula, e que põe todo o conteúdo para fora sem chocar. O livro que abordo aqui coloca a cidade de Oran no centro dos acontecimentos de um surto de peste bubônica, doença transmitida pelas pulgas de ratos contaminadas pela bactéria Yersinia Pestis, e que tem esse nome por sua característica mais distinta: a formação de bubões, inchaço nos gânglios linfáticos próximos aos locais de entrada das bactérias. Acompanham febre, náuseas, febre e, muitas vezes, êxito letal, a tal de morte. É uma doença que assolou várias vezes a humanidade, especialmente na Peste Negra do século XIV, onde se pensa que pelo menos metade da Europa foi para a caixa-prego.

É evidente que as causas para a praga não foram as mesmas na Idade Média e na hipotética contemporaneidade. A do passado distante tinha caráter de castigo divino, uma censura extrema pela vida pecaminosa, enquanto a recente teria como base fatores de higiene pública. Mesmo estando mais distante da realidade, a primeira tem um sentido: a ira divina, a conduta mundana, uma perspectiva salvífica. Na segunda, a hipotética epidemia baseada na real cólera da cidade argelina, nada mais do que o mundo girando, o universo indiferente e sem motivações. O sermão do padre Paneloux traz de volta à mente das pessoas a culpa pelo pecado e, principalmente, uma razão pela qual a desgraça se abate, assim como faziam os pregadores apocalípticos dos tempos da peste negra. A culpa está em nós mesmos, é o que se pode traduzir da homilia escatológica do ameaçador sacerdote. A peste como benção, para reconduzir as ovelhas ao redil. Por mais que seja assustadora a suposição de que há um Deus iracundo que aplica um castigo às suas ovelhas, ainda isso dá sentido ao sofrimento. Eu peco e nem percebo, então, se eu sobrevivo, preciso rever minhas atitudes, redirecionar minha vida. Agora, se eu dependo do acaso que é a proliferação de bilhões de seres que não vejo, mas me matam, fica desfeito qualquer sentido que a existência possa ter. Sonhos e planos não são nada diante do micróbio. Até mesmo a cura não depende de nenhuma vontade, humana ou divina. Depende de estreptomicina. Se há escolha, ela é minha, não do Deus. A vida não só é absurda; é sem graça.

Deveria ser obrigatória a leitura deste livro. Não por um decreto governamental, que impõe deveres às pessoas, mas uma obrigação dada pela ética de nós mesmos. Todas as perguntas que nos fizemos durante a pandemia de COVID já estavam contidas nesse livro de 1947, setenta e três anos à época do início dos acontecimentos. Ainda que haja evidentes diferenças temporais e situacionais, já que o confinamento é da cidade, e não dos indivíduos, é inevitável que não nos identifiquemos com todos os acontecimentos fictícios ma non troppo narrados com perícia pelo escritor-filósofo. Estão lá os negócios que claudicam, as pessoas que se isolam, as restrições que ninguém gosta e aqueles que querem furá-la a qualquer custo. E está lá a morte, crescente e incontrolável.

A relutância na assunção da epidemia tem a ver com os nomes malditos. “Peste” tem o sentido de fúria divina contra os pecados que não sabemos bem como (e se) cometemos. É uma palavra que causa arrepios, porque está vinculada a grande sofrimento, como o câncer que os nossos avós apelidavam de “doença ruim” – a doença sofrida e a morte inevitável. Lembro da finada dona Madalena, que todas as vezes que a zeladoria relaxava com a limpeza, dizia que “a peste viria entre nós (sic)”. A palavra peste, então, remete a morte terrível, suja, que se espalha e que gera abandono. Mais do que isso, é uma marca na testa de toda uma região – que se a ganha, está carregando uma condenação. Senão à morte, ao menos ao isolamento. Por isso, é evitada até o momento em que é impossível chamá-la por um nome que não lhe signifique.

Eu lembro que na pandemia de COVID o primeiro decreto de recolhimento foi de uma quinzena. Quinze dias, quem me dera… Foram dois anos colecionando tédios e defuntos. No livro de Camus acontece o mesmo: as pessoas procuram nos jornais notícias sobre um recrudescimento da peste, mas só veem o aumento das desgraças. As mortes de uma semana passam a ser diárias, e a expectativa de fim rápido vai desvanecendo. O verão que chega só intensifica a tragédia, favorecendo a sua transmissão. Um misto de impaciência e distanciamento vai tornando as pessoas menos compreensivas com o caos que se instala. Entretanto, há uma diferença substancial entre a Oran de Camus e o Patropi surreal em que vivemos. Enquanto os sobreviventes da crônica, à medida que vão sendo transformados em um único coletivo que segue o mesmo destino, e, sem opção, vão se entregando à solidariedade, aqui enxergamos uma forte cisão: quem tinha uma atitude, já vinha com todas as outras do pacote ideológico: quem era contrário ao uso de máscaras já vinha com o comportamento antivacina, com os elogios à cloroquina, ao fim dos lockdowns, o exato oposto da turma do lado de lá. Seria de se imaginar, em um país com 700 mil mortes, que as pessoas procurassem se unir mais, mas nisso, fracassamos mais do que na ficção. E continuamos assim.

As semelhanças não são meras coincidências porque nos mostram que a excepcionalidade também está presente na história humana, e demonstra a fragilidade da nossa situação. Assim como um belo dia um porteiro encontrou alguns ratos mortos, alguém no interior da Ásia acordou meio gripado, e, com dificuldades de respirar, foi a um hospital para a desconfiada constatação dos médicos que aquela “gripezinha” era um tanto estranha. Às vezes as calamidades vêm em camadas – nem sempre o tsunami vem de uma só vez.

O livro não é profético, como pode parecer. É uma crônica simbólica dos totalitarismos que impõe prisões a populações inteiras, o que estava em pleno andamento nos tempos em que é narrado, a plena atmosfera da Segunda Guerra, mas eu o vejo hoje pelo seu aspecto mais direto. Ele nada mais é do que um relato de um fenômeno recorrente, que as evoluções científicas faziam crer estar mais distantes, mas que estão sempre à nossa espreita, porque ainda não compreendemos completamente os mecanismos de surgimento de novos seres, e esse é o problema que ele nos faz relembrar: nunca estamos livres de acordar com a notícia de uma doença estranha surgindo em algum lugar do mundo e se espalhando rapidamente, pronta para romper laços, transformar modos de vida, aprisionar pessoas. A peste de Oran já ocorreu tantas vezes, na forma de outras epidemias da própria peste, ou como a Aids dos anos 80, o Ebola dos 90 e a recente COVID que nos faz pensar se essa não é a pedra de Sísifo que nós mesmos precisamos empurrar morro acima. A peste termina sem acabar, e cada um recebe sua própria influência, alguns felizes pelo fim da desgraça (e esperando pela próxima) outros com as cicatrizes inapagáveis, porque, como está lá pelo final do livro…

“Para esses - mães, esposos, amantes que tinham perdido toda a alegria com o ser agora abandonado numa cova anônima ou fundido num monte de cinza – era ainda a peste”.

Camus havia colocado esse caminho como o absurdo da existência e o faz novamente aqui, para refletirmos menos no âmbito da filosofia e mais da nossa própria realidade. A vida toda cabe em um livro, assim como todo um rito do café cabe em uma molinha. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Tenho uma coleção antiquíssima conseguida em um bazar, que inclui esta e outras preciosidades. A patroa vive querendo dar um fim, mas eu resisto bravamente, porque não tem livro ruim. Mas é fácil de conseguir versões bem mais recentes.

CAMUS, Albert. A Peste. Col. Prêmios Nobel da Literatura. Rio de Janeiro: Delta, s.d.

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

O super-homem de Nietzsche vai além da capa e da cueca por cima das calças

(Super-homem é, para a maioria das pessoas, um personagem do universo HQ. Mas, em filosofia, não só)

“O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade proclame: que o super-homem seja o sentido da terra. Eu vos conclamo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis naqueles que vos falam de esperanças sobrenaturais”.

Nietszche

Olá!

E lá vai mais uma edição do Super-Homem, ou Superman, como acabou virando consenso entre os novos cinéfilos. Seu subtítulo é Legacy, o que para mim, indica já uma questão que mistura continuidade e infinitude – novas versão, por certo. Em algum lugar, eu já falei para vocês sobre minha pouca afinidade com cinema, embora não seja propriamente um detrator. Apenas não tenho lá aquela sanha por lançamentos, em especial nessas séries que giram em torno de uma mesma temática. Não tenho também paciência em pagar um saco de pipoca mais caro que o ingresso, nem enfrentar filas para entrar no shopping, para comprar o ingresso, para desistir da pipoca, para acessar meu lugar. Estar naquele tempo em que não há o entusiasmo da juventude nem os direitos da velhice dá nisso.

É pior quando se trata desses filmes que desafiam a capacidade de suspender a descrença. Embora a tela grande amplifique as sensações visuais, esse tipo de filme perfura facilmente a barreira que nos faz sublimar a consciência de que não se trata de uma realidade posta à nossa frente, porque tudo é incrível demais, espetacular demais, infactível demais, e isso acaba atrapalhando a capacidade de extrair alguma coisa de substrato na estória (o que nem existe, por vezes). Além disso, embora eu tenha sido um leitor assíduo do universo Marvel na juventude, o fato é que criei um ranço idiota com heróis da DC, onde pontua o personagem em questão. Mas, nem só por isso, filmes de herói me provocam a incômoda sensação de porre sem bebida. Não se trata de pedir para que mudem de canal em casa alheia, mas é mudança na certa na minha. Não me chamem de chato, pode ser que Freud explique.

Acontece que eu milito informalmente na filosofia e esse nome tem outro significado para mim. Muito mais voltado para a ética, este personagem não é um ser concrescível, mas uma espécie de tipo ideal que nos faz exercitar a mente em busca de uma existência mais legítima. Se pensarmos no herói dos quadrinhos, que tem um desenho de justiça bem definido por regras morais, chega a ser seu oposto. Embora haja controvérsias, estou falando do decantado super-homem de Nietzsche. Não é algo que se explica em dois minutinhos. Portanto, sentem-se, crianças, e me acompanhem.

O super-homem (übermensch em alemão) nietzscheano é um conceito que indica um objetivo a ser perseguido, e que só é alcançado por aquele que se coloca acima dos limites impostos pela moral dos ressentidos. E isso começa pela maneira com a qual esse mundo é construído.

Há estudiosos que preferem a tradução além-do-homem, que agrega elementos à interpretação do termo, como a ideia de que a humanidade é algo a ser ultrapassado em objetivos que vão além das regras de rebanho, e que tira um pouco do ar elitista e eugênico dessa história de super, mas gosto mais do uso que faço aqui, porque é mais fiel à origem que Nietzsche foi buscar em Helvetius, o homme supérieur. A palavra super, tão usada na cultura ianque para designar os mais fortes, os mais rápidos, os mais poderosos, tem origem no latim superus, que significa aquele que está mais ao alto, mais acima. Desta forma, super seria uma apócope da palavra “superior”. Um super-homem seria, portanto, um homem que está acima dos outros homens, e o personagem dos quadrinhos é, de fato, mais forte e mais poderoso do que todos os demais homens. Para além da criação ficcional, entretanto, o super-homem de Nietzsche possui um sentido menos ligados aos bíceps, e mais à moral.

Nietzsche entende que a moral praticada através dos tempos é construída a partir de uma lógica do mais fraco. Quando defrontado com aqueles que são mais capacitados, este homem se ressente e lança mão da única estratégia que tem à sua disposição: a linguagem. Através da manipulação hábil dos discursos, ele consegue desvirtuar as qualidades positivas da vida em defeitos, e o que era bom, passa a ser considerado ruim. Isso vai se imbricando no substrato de nosso pensamento de modo a ser vergonhoso quando temos alguma característica virtuosa. Parece que não? Então pense em quantas vezes você mesmo colocou sua modéstia à parte, quase se desculpando por fazer algo com maestria. Ou quando alguém te elogia você diz que “é bondade sua”? Isso é sinal de que você também é afetado por essa lógica. Um jogador vence uma partida e o primeiro agradecimento vai para deus, que não mandou aquela canhotinha no ângulo. Esse mérito é tirado de si mesmo e colocado para o outro, para alguém fora dessa virtude. Notou como ser bom em alguma coisa é quase vexatório, é inferiorizante, é uma inversão de valores?

Notem que a ferramenta do mais fraco então é inverter a lógica do benefício da força, transformando-a através da linguagem em defeito. Através de construções de discursos da piedade, tudo o que é virtuoso, intuitivo e criativo fica colocado no erro, através da extensa criação de regras feitas sob medida para inferiorizar o que seria vantajoso.

Este uso linguístico denuncia que o mais fraco constrói uma realidade que não é a nossa. São criados ídolos que passam a ser perseguidos como se eles fossem objetivos a serem seguidos, porque a realidade é ruim em si mesma, e, dessa forma, os mais diferentes idealismos são colocados em seu lugar. Não se trata de ideal naquele sentido de fazer uma viagem no ano que vem, mas de criar um afastamento entre o real e o ideal, de tornar o mundo impalpável em mais importante do que o mundo tangível. Os homens buscam ideais e fogem do real.

Os mundos ideais são formados por criações em que as forças próprias do universo não mais atuam, e são substituídas por convenções que se acomodam a essa moral bipolar do certo e errado, uma espécie de caminho para escapar do que é corpóreo, do que é físico, do que é material, onde as forças reais atuam. Praticamente toda a moral tradicional se baseia nessa ideia.

Embora a atitude escapista possa parecer simplória, o fato é que ela moldou grandes sistemas filosóficos e religiosos, que acabam por formatar a vida da maior parte das pessoas. Nietzsche começa falando do Platonismo, um sistema de pensamento que retira a perfeição das coisas reais e a coloca no imaginário mundo do intelecto. Um exemplo que gostei de ouvir em algum lugar é o da coxinha, que tem formato cônico, ou da esfiha, que é triangular, o esférico bolovo ou o cilíndrico croquete. Você vai no boteco e olha para um croquete de carne, e sabe que ele é cilíndrico, mas, se vê-lo bem, mesmo a olho nu, verá que ele é todo irregular, amassadinho aqui, saliente acolá. Só que as coisas não são assim tão prosaicas. Mesmo se você produzir o mais brunido cilindro na mais avançada oficina, verá que, no micrômetro, ele não é a perfeita combinação de retidão e circularidade. Ainda que a tecnologia vá sendo aperfeiçoada, no nível atômico não se conseguirá uma forma perfeita, havendo pouco milhares de angstroms para lá do que para cá. Elas, as formas perfeitas, só existem em um lugar: no intelecto. Lá, pela via da matemática, teremos o cilindro perfeito, a esfera perfeita, o triângulo perfeito, o cone perfeito. Sabemos que o bolovo se assemelha a uma esfera porque temos essa noção partindo do nosso intelecto. A forma esfera “doa” a sua esfericidade, por aproximação, ao delicioso e indigesto acepipe.

Ora, de que serve essa noção se nós não a encontramos na realidade? Pugnamos por uma perfeição que não existe, e enquanto nos preocupamos em baixar o bolovo a fórmulas, esquecemos do que realmente importa, que é fruir da delícia, ainda que a custo do consequente Sonrisal®. O mesmo se aplica ao Cristianismo, que faz sonhar com o paraíso em troca da aceitação de uma enciclopédia de regras, que punem o que temos de mais nosso: o corpo e o pensamento. Dos sete pecados capitais, gula, luxúria e preguiça são atentados contra o corpo, são atos puníveis porque são manifestações da nossa própria natureza que clama pela concretização de sentido. Isso se ainda não incluirmos o orgulho do corpo bem feito e da mente prolífica. Só se chega ao paraíso pela negação das súplicas de nossos corpos.

Essa ideia se aplica a qualquer forma de idealismo, a qualquer ideia de que há um mundo lá fora que melhora a vida que temos ao nosso dispor. Isso passa pelo político e pelo científico: o Comunismo é o idealismo em uma sociedade onde há igualdade de posses, onde não há miséria, onde os próprios trabalhadores colhem diretamente o fruto de seus trabalhos e não há uma elite dominante para fruir do suor alheio; o Nacionalismo é o idealismo de que existe a pátria perfeita, que congrega as idiossincrasias de um povo e o impulsiona para o progresso e destacamento entre as nações; o cientificismo é a crença de que a ciência trará a todos condições de vida ideais, onde o conforto e a saúde serão obtidos ao toque de um botão virtual do celular. O mundo real continua mostrando a desigualdade entre classes, a nação débil diante do dinheiro dos bancos, a doença formatada por um vírus inesperado, e recusamos esse mundo feio, onde nós mesmos não nos encaixamos. Platonismo, Cristianismo, Comunismo, Patriotismo, Cientificismo... são todos inatingíveis e escapam daquilo que entendemos por realidade em si mesma. É exatamente isso a que Nietzsche dava seu peculiar conceito de niilismo, conforme já ensaiei neste texto, a negação do mundo onde agem as potências reais.

Nietzsche então lança o desafio do eterno retorno. Você está satisfeito com sua vida a ponto de repeti-la eternamente? Gostaria que tudo fosse exatamente igual, nos seus mínimos detalhes? Incluiria todos os erros, vergonhas, decepções? Se a resposta é não, alguma coisa está errada com a sua vida. Seus valores e suas escolhas estão te levando a negar sua própria existência, a estar entre os fracos, a estar na fase do camelo, que carrega em suas costas todo o peso de uma moral que o exclui da realidade.

É aqui que nasceu o super-homem. Ele é aquele que compreende que as amarras morais os desvinculam de seus próprios potenciais e vai além delas, produzindo o novo, o criativo, o superior. O super-homem não é aquele que subjuga ou que é necessariamente cruel, que quer superar os outros. É aquele que busca superar a si mesmo, fazer de sua vida, aqui na Terra, uma obra de arte, privado de falsas ilusões de que é fora daqui que está existência. O super-homem aceita a vida como ela é, com tudo o que tem de bom e mau, pacote completo, justamente porque transcende esses valores éticos.

O super-homem, portanto, não precisa ser alguém que seja um senhor dos exércitos, mas alguém que ri na cara dos valores prevalentes, moldados pela moral de rebanho que procura igualar todos os homens. O super-homem é dado ao êxtase e à criatividade, e, por isso mesmo, Nietzsche o sintetiza no artista, capaz de gerar um mundo novo a partir de sua própria consciência. O super-homem é uma postura, um modus vivendi e uma oposição à sociedade produtora de escravos.

É preciso dizer que o conceito não é tão bem fechadinho assim, abrindo interpretações ambíguas que foram desembocar em apropriação pelo regime nazista, mas a questão é muito complexa para ser tratada aqui. Vamos deixar para breve.

De vez em quando, ouço alguém dizer que “nunca se arrepende do que fez, mas do que não fez”. Adoto e acho uma das mais nietzschianas de todas as frases. E já me perguntaram como eu poderia exemplificar o super-homem. Propus um exercício mental: imaginem que há duas filas de entrega de alimentos na Praça da Sé, uma perto da Catedral, outra pelos lados do Marco Zero. Ambas atendem cem pessoas, com o mesmo cardápio. A diferença fundamental é que uma é composta por um grupo que atua por uma igreja qualquer, enquanto o outro age sozinho, tentando provar a si mesmo e aos outros que consegue dar conta de alimentar toda essa gente. O grupo se move pelo propósito caritativo, o outro pela sua própria vontade de potência. Notem que a diferença não está no resultado, mas na motivação que os leva a praticar a ação: enquanto o grupo busca conciliação com a divindade que os move, age não por si mesmos, mas para cumprir o mandato de seu senhor; o homem sozinho busca um propósito só seu. Notem que ele não age por outro além dele, que age por conta de seu próprio impulso vital, procura se superar e se afirmar como um primado do mudo real. Percebam que isso não tem nada a ver com força no sentido porrada, mas de superação. O super-homem não é aquele mais marombado, com o abdômen mais riscado, com as panturrilhas mais definidas ou com mais cuecas por cima das calças, mas aquele que age segundo seus impulsos vitais. ESSE é o Super-Homem.

Perguntando a quem me levantou a questão quem fazia a superação de si mesmo, recebi a resposta de que o ato verdadeiramente correto é o do grupo religioso, porque atuava com amor. E eis que me senti como o louco do mercado, fabulado pelo próprio Nietzsche na definição da morte de Deus: “eu venho cedo demais, ainda não é dado meu tempo”. Ensinar é didático para os dois lados. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Eu teria muitos livros de Nietzsche para recomendar, mas sua escrita é tão fragmentaria que fica difícil de apontar onde ela está mais completa. Vamos de Zaratustra mesmo, porque lá, embora bastante romanceado, o conceito é explorado com mais quantidade de citações.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um Livro para Todos e para Ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Sobre o destino manifesto e o falso espírito democrático de quem o proclama (Pequeno guia das grandes falácias – 76º tomo: a alegação especial)

(Dá-lhe, tarifaço... E depois são os paladinos da democracia)

“Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”

Benjamin Franklin 

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Meninas e meninos, vivemos tempos insanos, como vocês podem perceber. Na verdade, nunca saímos deles, mas de vez em quando vem uma lufada de vento fresco e parece que vamos ter um pouco mais de sensatez, para logo em seguida tudo voltar ao que era. O mundo gira, a lusitana roda e não há nada de novo debaixo desse sol escaldante do Vale do Paraíba.

A novidade é a guerra comercial que o mandatário estadunidense resolveu empreender contra o mundo. Parte do princípio geral de que os seus cidadãos vêm sendo prejudicados em suas relações de mercado e quer chantagear os demais países na base das imposições tarifárias. Recentemente, lançou seus olhos vorazes contra a pobre Ilha de Vera Cruz, e uniu interesse financeiro com suposta injustiça legal para impor uma alíquota extorsiva. Evidentemente, foram colocadas na mesa outras questões, maquiadas como defesa da liberdade e da democracia (que se foda o livre mercado). Esse é o resumo da ópera, que não preciso levar muito adiante porque todo mundo sabe o que está acontecendo.

Não é de hoje que os poderosos vizinhos fazem valer seu poderio econômico e militar para pressionar outros países. Isso não muda nunca. O fato de termos um desequilibrado no poder ianque atualmente apenas tira a vaselina da relação conosco, terceiro-mundistas, porque ele me faz lembrar daqueles molecões de pouco brilhantismo, mas muito fortes, e que conseguem o que querem na base da porrada. Os democratas no poder são diferentes no sentido cortesia, mas não no resultado. Tem mais tato, mais jeito, oferecem flores, mas te comem dominam as ações ao seu bel-prazer do mesmo jeito.

Isso tudo acontece porque há no substrato ideológico gringo uma ideia de que eles são diferenciados em relação aos demais povos. Eles são os detentores das virtudes mais magnânimas, mais sublimes, mais excelsas, e tem o dever de propagar essas ideias para o mundo todo, especialmente onde for possível ganhar um dinheirinho. Ou dinheirão.

Mas não vamos ficar nesse discurso de esquerda latino-americana, e vamos olhar mais de perto o fenômeno da distinção dos ianques perante todos os outros povos do mundo, América Latina em evidência.

Todas as vezes em que vemos jogos de poder, observamos que há um certo ingrediente religioso por trás dos discursos. Podem até mesmo ser ateíssimos regimes comunistas, mas a autoridade atribuída a um líder tem a mesma característica messiânica que o mais empedernido dos reinados islâmicos: há uma ideologia da missão salvífica por trás das personalidades. Isso funciona muito bem, porque faz perdoar medidas que, na sua estrutura, não são favoráveis às massas populacionais, mas que precisam de algum tipo de argumento para serem aceitas, ou então da necessidade de alguma forma de amálgama que una as opiniões. Nada melhor que um portador do propósito divino.

Isso deveria acontecer nas democracias? Em tese, não, porque ela favorece o Estado laico, abre mais possibilidades para posições divergentes, protege a liberdade religiosa, mas como este regime é mais aberto, não há como impedir que essas teses da missão divina acabem imbuindo seu espírito. Afinal de contas, não é necessário que haja uma declaração explícita de religiosidade, mas um protocolo de benesses, como a confiabilidade das instituições religiosas que apoiam uma causa, ou a ideia de submissão a uma entidade externa doadora de moral. Lembrem-se, crianças: as religiões são elementos culturais, oriundas e formatadas para se adequar às sociedades onde surgem, e não o contrário. Com isso, adequações à religiosidade de uma comunidade correspondem a adequações à moralidade que aquela própria comunidade construiu. Qualquer democracia que se encaixe nesse contexto tem um elemento religioso em seus fundamentos.

E nos Estados Unidos? Bom… eles se autoproclamam como a terra da liberdade, mas os fundamentos religiosos estão lá, até mais fortes do que em Terra Brasilis, que somente mais recentemente vem adotando esse paradigma, especialmente pelo crescimento da população evangélica e da penetração de seus líderes na política. Se hoje os EUA constituem um território imenso, e ainda buscam espalhar seus tentáculos para o mundo que os interessa, é porque suas placas tectônicas se movem à base dos fenômenos ideológicos sustentados pela religião. Falo do Destino Manifesto.

A doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny) é uma ideologia que aproveita um fundo religioso para justificar a política expansionista dos Estados Unidos no século XIX que dizia, fundamentalmente, que era inevitável que as terras da América estavam divinamente reservadas para os puritanos refugiados da Inglaterra. Por que chegaram a essa conclusão?

Bom, aí tem uma boa dose daquilo que sabemos ser o uso religioso das manipulações de convicções. Os puritanos eram uma corrente dentro do Anglicanismo que visava afastá-lo ainda mais dos ritos católicos. Esta corrente do Cristianismo era uma dissidência do Catolicismo menos pela discordância com seus dogmas e doutrinas, e mais pela questão de comando. A estrutura hierárquica católica era muito semelhante à anglicana, com a diferença crucial de que o mais alto comando nesta última era do rei da Inglaterra, que assume o lugar do papa no topo da hierarquia. Dentro dessa nova realidade, os puritanos surgem com a ideia de um retorno ao Cristianismo primitivo, sem os vícios e desvios derivados dos anos de luta pelo poder e modificações impostas pelo clero, de forma a atingir a purificação dos seus membros. Era uma derivação da vertente calvinista do Protestantismo, que chegava à Grã-Bretanha após seu surgimento na França. É de rigor que tratemos um pouquinho do dogma da predestinação, portanto.

Segundo acreditavam os calvinistas, a realização de boas obras não era o que salvava uma pessoa, como indicava as doutrinas católica, luterana, anglicana e ortodoxa, mas uma livre eleição do próprio Deus. Afinal de contas, a ação humana não poderia suplantar ou ser mais decisiva do que a vontade divina. Sendo assim, a pessoa ser salva ou não, não era um critério dela, mas do seu senhor.

Isso causa um problema. Se tanto fazia ser bom ou não, como seria possível saber se uma pessoa estava na categoria dos salvos ou dos condenados? Deus era indireto, e dava certas indicações aos seus eleitos durante a sua vida. Uma delas eram as provas de resistência na fé, que seriam bem suportadas pelos escolhidos. Um impulso psicológico e tanto. Outra era a prosperidade: Deus não garantia apenas uma vida eterna prolífica, mas o conforto na própria vida terrena. A lógica vinha da ideia de que toda a criação divina era perfeita, e não somente o plano espiritual da eternidade era bom e valoroso para a vida, mas também a própria vida terrena já havia sido construída pela divindade para ser igualmente boa e valiosa. Dessa forma, os eleitos tinham posses e benesses que fugiam da doutrina escapista dos católicos e outras designações protestantes, que criam que esse é um mundo de sofrimento, e que todas as recompensas viriam a posteriori, já passando pelo filtro das boas ações. Dessa forma, os crentes não precisariam ter vergonha de amplas posses e de lucros, porque também esses eram manifestações divinas, em um perfeito casamento com o emergente Capitalismo, como bem notou o sociólogo Max Weber. Vejam mais neste texto.

A migração dos puritanos da Inglaterra para os Estados Unidos pode ser facilmente acomodada à narrativa calvinista. Com a divergência de entendimento bíblico (e uma boa dose de conveniências políticas), os anglicanos viam os puritanos como infiéis ao rei, chefe supremo não só da religião, mas também, e principalmente, da nação. A perseguição ocorrida no âmbito do Anglicanismo é um dos mecanismos de resiliência propostos por Deus aos eleitos, que são obrigados a deixar sua terra para povoar um ambiente novo, incerto e potencialmente inóspito, enquanto o tamanho das terras, a presença de minérios, a fertilidade dos meios são inequívocas demonstrações da prosperidade oferecida, uma nova Israel, uma nova terra prometida. A licença para a ocupação é idêntica: da mesma forma que Deus permite e incentiva a ocupação de Jericó, faz o mesmo com as populações originárias além-Apalaches e com os colonos espanhóis da região da costa oeste. O destino manifesto proclama a dominação legítima por um povo escolhido do Atlântico ao Pacífico.

Não é fácil justificar uma sanha exploratória de um território que já se encontrava habitado por autóctones ou mesmo que já se encontrasse dominado por outros povos sem se usar o argumento da ganância. A conquista do oeste norte-americano não se deu pacificamente, mas à custa de sangue indígena e de guerras contra espanhóis e mexicanos, e isso não é bonito de se assumir unicamente pela riqueza que isso tudo traz. A justificativa divina não dava apenas uma resposta para o mundo, mas para os próprios executores das invasões. A guarida de uma ordem divina é perfeita como licença para avançar sobre terras alheias.

A questão é que o destino manifesto teve derivações que vivem até hoje, como as falas que aquele senhor alaranjado proclama de vez em quando. Ele serviu de justificativa para que a área de influência gringa se estendesse para muito além da imensa faixa de terra que liga os dois oceanos.

Existe a doutrina Monroe, derivada de um dos primeiros presidentes daquela terra, James Monroe. Ela diz que não é aceitável que potências coloniais europeias queiram expandir suas esferas de influência na política dos países da América, e, caso isso aconteça, será considerada como uma ameaça aos próprios Estados Unidos. Ademais, a doutrina procura demonstrar aos demais países americanos a superioridade dos regimes republicanos em relação às monarquias. Até aí, nada demais.

Os dois fenômenos, destino manifesto e doutrina Monroe, foram mais ou menos concomitantes, e acabaram se entrelaçando, naturalmente. O direito divino de se expandir vinha ao encontro do direito político de se defender, ainda que os EUA não fossem ainda potências militares à época. Ocorre que o desenrolar da história assim os tornaram, chegando ao ápice no pós-guerra, fortalecidos pelo fato de estarem do lado vitorioso sem que uma única bomba tenha chegado ao seu território. Com tanto poder nas mãos, eles foram ficando mais e mais “folgados”, e, a partir do corolário Roosevelt, assumiram o papel de polícia do mundo. O intervencionismo estadunidense veio em um crescendo desde então, litigando fronteiras que não são as suas, certificando governos nem sempre legítimos e financiando a oposição a regimes que os desagradam, de maneira nem sempre explícita. O corolário adiciona à doutrina Monroe o direito de intervenção direta onde quer que os EUA achem que exista uma ameaça. O problema é que isso é extremamente aberto, e que muitas vezes avilta a autoafirmação dos povos, a origem da própria doutrina.

A questão é que essa expansão não é somente física ou geográfica, o que já é uma imensa intrusão na vida dos povos, mas também cultural. Não está apenas nas músicas e nos filmes, ou nas roupas que se usam, mas especialmente nos valores. Se fosse só a calça jeans e o rock’n’roll, nada mais seria do que uma cultura que agrada outra gente, mas os estadunidenses acham que sua cultura é superior às outras não só por mera arrogância, mas pelo destino manifesto. Certos valores são, de fato, aplicáveis de modo universal, como o formato republicano e a democracia liberal, mas o problema não é efetivamente esse. Se é verdade que os povos devem ter autoafirmação, então não faz sentido o intervencionismo proclamado pelo corolário Roosevelt. Defender a democracia inclui aceitar o regime alheio, reconhecer o direito de outros países de dar a guia que queiram aos seus destinos e, principalmente, demover-se da ideia de povo escolhido. Não no sentido de se sentirem especiais, eleitos por Deus ou coisa que o valha. O diabo é que, se eu sou um escolhido, o resto é escolho. Se eu sou eleito, todos os outros são condenados, e não é possível arrogar isso a si próprio. Os Estados Unidos são poderosos demais para abrir sua carga pesada contra países claudicantes como o Brasil, que não representam ameaça real à sua existência, principalmente à sua poderosa economia. Eles mesmos são seus principais adversários.

Evidentemente, foi possível perceber pelo exposto até agora que as regras estabelecidas pelos Estados Unidos servem para todos os países, menos para eles mesmos. Como se dizem cobertos pelo destino manifesto na teoria, e tendo os mais poderosos meios de guerra na prática, alegam ser os guardiães de uma democracia que, preto no branco, eles mesmos não praticam. A democracia é fácil de retorcer, justamente por sua maleabilidade, e sempre tem como servir mais a quem tem mais poder, como Benjamin Franklin tão bem detectou na frase da epígrafe. Além de toda a hipocrisia que há por trás disso, há também um uso falacioso da linguagem, distorcida para fazer crer que traz argumentos válidos. É a falácia da alegação especial.

Essa falácia diz que algo que é aplicável para todos não é aplicável para alguém específico, sem que haja algum motivo justificável para a exceção. Essa invocação nunca é voltada para algum ponto desfavorável, mas como justificativa de algum privilégio. Dessa forma, abre-se um desvio apropriado para uma pessoa ou grupo específico sem um imperativo lógico. Se os EUA são defensores exacerbados da democracia e de todos os seus princípios, deveriam, eles mesmo, ser os primeiros a praticá-la, e não evocar ideologias de fundo religioso para justificar sua ação.

Outro exemplo gritante vem das próprias religiões. Alega-se que todas as religiões são mitos, porque são constituídas por deuses e entidades vindas do folclore das diferentes populações, que surgiram de maneira intuitiva e pouco corroborável, e que, portanto, representam modos de formações de culturas, mas não de uma realidade. Nada disso vale quando aplicável à religião adotada por quem profere a alegação: essa, sim, é expressão da verdade, mesmo que seja formada a partir dos mesmíssimos elementos culturais que circunscrevem as demais culturas.

Uma boa parte da explicação vem da intenção da religião em ser expressão da verdade, o que motiva esse fenômeno do nós contra os outros, da mesma forma que as adesões patrióticas seguem lógica semelhante.

Alegações especiais, entretanto, podem ser justas e lógicas, e, obviamente, não falaciosas. Qualquer ação inclusiva, por exemplo, está enquadrada nesse caso: não se pode exigir de alguém que possua alguma limitação que realize ações fora de seu alcance. Nestes casos, a alegação especial é justificativa plenamente válida.

Enquanto isso, crianças, vamos tentando sobreviver com as atitudes pouco republicanas do democrático vizinho poderoso. É uma boa chance de se desvencilhar um pouco mais de sua esfera de influência e, quem sabe, chegarmos a uma independência mais plena. Patriotas deveriam gostar disso. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um livro e tanto para entender se a democracia nos Estados Unidos é realmente tudo aquilo que eles proclamam:

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Ora (direis), 500 textos e alguma coisa sobre uma referência literária na minha escrita (além de 50 fatos sobre mim)

(Cheguei aos 500. Ora, direis, e daí?)

"A maturidade do homem consiste em haver reencontrado a seriedade que tinha na brincadeira quando era criança"

Nietzsche

Olá!

Números redondos causam uma estranha fascinação em nós, caniços pensantes. Aniversários de dez, vinte, trinta anos são dias iguais aos de 11, 21 ou 31 anos, mas damos uma atenção especial aos arredondamentos do sistema decimal. Talvez seja alguma forma atávica de criar marcos em uma vida que não sabemos ser longa, talvez seja uma necessidade de dar significado para coisas onde eles não têm, talvez seja a facilidade de rememoração, só isso. E o mesmo vai se aplicar não somente a datas, mas a qualquer outra coisa passível de mensuração numérica, como textos. E eu chego agora ao número 500, o que é um número razoável. Como combinei com vocês, vou aproveitar esses momentos para contar um pouco da história da minha escrita, para que vocês entendam um pouco mais dos meus processos de composição, se, por al, isso lhes vier a interessar.


Por mais que queiramos escrever livremente, o fato é que acabamos desenvolvendo uma “cara” na nossa escrita, da mesma forma que desenhamos uma “cara” facial mesmo. Nesse último caso, é comum em mim a barba malfeita, as olheiras pronunciadas e um certo ar blasé. Já na pena, certos usos e expressões dão um ornamento típico à mão que a conduz. Os mais atentos de vocês já devem ter percebido a recorrência de certas expressões, como alguns italianismos, uns truques de enfatização (como expressões tachadas) e algumas cositas más, mas uma das mais frequentes é a “ora (direis)”, que uso em vários e vários lugares deste humilde espaço. Ela não é gratuita, nem minha, mas tem algumas origens e significados. Vamos a eles.

Esse pequeno trechinho me foi inspirado pelo poeta Olavo Bilac, o maior representante do Parnasianismo no Brasil, a vertente lírica do Realismo. Extremamente preocupada com a forma e o resgate da antiguidade clássica*, a corrente deixou de lado o excesso de sentimentalismo do Romantismo, mesmo quando trata de temas afins. Afinal de contas, como sua intenção é o aspecto estético da literatura, uma espécie de arte pela arte, seus conteúdos possuem somenos importância quando confrontados com a forma, razão pela qual não são encontrados grandes tratados filosóficos dentre suas obras. Sua forma canônica é o soneto, uma estrutura composta por dois quartetos e dois tercetos**, utilizada na Itália da Idade Média pelos trovadores em suas pequenas canções (daí o nome soneto, do italiano sonetto, pequeno som). Além disso, possuem uma métrica fixa que busca trazer musicalidade mesmo quando simplesmente recitada. Qualquer soneto bem feito tem rimas extremamente bem colocadas e tamanhos exatos, precisos, como se aplicassem a matemática tão cara ao cientificismo que marcou a época.

Especificamente no meu caso, o poema de onde retiro a introdução é o Soneto XIII, que, por ser curtinho, reproduzo abaixo:

SONETO XIII

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda a noite, enquanto
A Via-Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
‘Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.”

Note que há até mesmo uma certa estranheza na maneira com a qual as palavras são distribuídas nos versos, porque é a forma o que importa, e não as posições. Embora eu não seja exatamente um admirador do estilo, o fato é que sempre que estudamos literatura é precisamente este soneto que nos é apresentado como exemplo do Parnasianismo brasileiro, o que é muito robustecido pela necessidade de reforços para os vestibulares. Desta forma, quem está nessa fase costuma ter esses versos decorados como se fosse o hit da semana na parada de sucessos (ainda existe esse termo?). Passado seu tempo, é esquecido igualmente, como se esquece de uma novela das seis qualquer.

Não foi o meu caso. Modéstia à parte, sou um bom e eclético leitor, pouco me importando a idade do texto. Muito pelo contrário, até gosto de observar maneiras diferentes de expressar um português bem escrito, e isso é visível nos clássicos. Essa é uma das razões pelas quais os vestibulares exigem essas leituras: para além da pseudochatice, aprende-se a língua materna lendo Machado de Assis, Gonçalves Dias, José de Alencar, Aluísio de Azevedo, Olavo Bilac.

A poesia em si não tem nada demais, conforme expliquei logo antes. É uma proclamação do amor como instrumento para aumentar a percepção e a metafísica por trás da aparência material das coisas. As estrelas, misteriosas e distantes, são objeto de visões mais líricas da existência, e a perspectiva mais científica dos realistas de então fazia com que essa espécie de magia estivesse se perdendo. Sendo assim, o ponto de contato deste soneto com o universo no qual eu o aplico vai um pouco mais para o substrato.

Percebam que Bilac dialoga com um sujeito indeterminado, uma espécie de voz geral que se opunha e, de certa forma, ironizava seus costumes e sua abstração, dada a maneira com a qual o considera louco. É um interlocutor inespecífico, uma síntese da voz cientificista de então. Provavelmente não se trata de um sujeito real, que lhe foi perturbar o lirismo, mas de uma instância dialética imaginária, criada para se opor filosoficamente às suas linhas de pensamento. Tendo esse tipo de tese desafiante em vista, transpus a dita cuja para uma boa parte de meus textos, especialmente quando eu mesmo faço esse zigue-zague de oposições ao meu próprio pensamento. 

Acho que é uma boa maneira de pensar. Não só porque é um exercício acerca das dúvidas que os outros podem ter sobre nossas colocações, o que não deixa de ser algo empático, mas também porque levantamos as dúvidas que temos dentro de nós mesmos, o que é essencial em Filosofia. Além disso, é um recurso estético de primeira e não deixa de ser uma bela remissão para a literatura de primeiro nível de Terra Brasilis. Espero sinceramente que a curiosidade atiçada por um fato tão prosaico sirva de estímulo para vocês, jovens leitores, rever os livros que te foram empurrados goela abaixo com um olhar mais livre, mais proveitoso.

Novamente eu coloco a questão aqui. É comum pensarmos que os membros da Academia Brasileira de Letras são nomeados por pura bajulação. Não vou dizer que isso nunca existiu, mas meia dúzia de indicações mais políticas que linguísticas não tiram sua principal função: a de serem guardiães da língua. Não fosse assim, os acordos ortográficos não passariam por seus crivos. Isso significa que depositamos neles a autoridade pelo que é certo ou errado em norma culta, assim como depositamos nas universidades a responsabilidade pelo bom conhecimento.

Ora (direis), justo você, que enche este espaço de gírias, estrangeirismos e neologismos, que defende a liberdade dos recursos linguísticos para trazer a melhor expressão possível de uma ideia vem proclamar a primazia de um certo diante de um errado? Então dizes que há uma hierarquia entre as línguas? Você tem quase razão, interlocutor imaginário, não fosse um detalhe - a comunicação precisa ser balizada quando buscamos sentidos precisos. Numa especificação funcional precisamos de acurácia e sentidos unívocos, sob pena de causarmos ambiguidades, compreende?

Isso significa que não estou hierarquizando, mas colocando cada coisa em seu devido lugar. Não se escreve artigos científicos com poesia, mas com linguagem precisa, a menos contraditória possível, enquanto não se é lírico com números e tabelas, mas com versos. É sobre isso que eu digo.

Fiz a contagem das vezes que utilizei o “ora direis” e cheguei a um número de 55, o que representa 11% do total de 500. Nada mal. Dá para dizer que é um recurso que uso frequentemente, de fato, e que acabo explicando para vocês. Afinal de contas, esse interlocutor imaginário também é um papel que pode ser assumido pelos meus leitores, e é a prova de que sua voz faz parte do momento em que estou escrevendo, razão pela qual reservo meus agradecimentos a todos os que passam por aqui.

Para finalizar, e de maneira completamente aleatória, retomo uma moda que espocou há alguns anos nesses facebooks da vida, aproveitando ainda a paráfrase dos 500, para relacionar 50 fatos sobre mim, que vão logo após a recomendação de leitura.

Até daqui a alguns anos, quando eu chegar no texto 600… Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Obviamente é um livro de Bilac, uma coletânea de suas poesias. Saboreiem o português como a língua bela que é, dispam-se de preconceitos e ganhem mais um campo para exercer seus prazeres.

BILAC, Olavo. Antologia. Via Láctea. São Paulo: Martin Claret, 2002

*O próprio nome do movimento é uma referência ao Monte Parnaso, um dos três mais importantes da mitologia, lar das musas e, por extensão, da poesia.

**Quartetos são estrofes de quatro versos, enquanto tercetos são estrofes de três versos.

Esta é uma pequena lista de fatos os mais aleatórios possíveis sobre mim e minha vida, apenas para cumprir uma moda tardia e provar que não tenho pensamentos filosóficos a todo momento. Uma coisa meio blogueirinha do começo da década passada, que provavelmente ninguém esperaria que eu colocasse por aqui. Foi uma sugestão de uns dez anos atrás, não lembro de qual das minhas afilhadas, que não foi levada a sério na época, mas que ficou adormecida e está saindo agora. É aquela velha história: no banheiro, há dias de pensar em Nietzsche e há dias de pensar em merda mesmo. Como homenagem a esses meus antigos leitores, que foram os primeiros impulsionadores deste espaço, uma juventude do ensino médio, e que adora essas coisas, finalmente solto a lista. Um beijo para vocês todos. Vamos lá!

  1. Eu adoro ficar descalço.  Provavelmente deve estar ligado à infância, mas o fato é que meias e sapatos me incomodam permanentemente;
  2. Sou um cara noturno. Isso não quer dizer necessariamente que eu durma tarde todos os dias, mas sim que eu funciono melhor à noite;
  3. Tive três filhos, mas o mais velho de todos morreu ainda nenê. É um clichê, mas um clichê de verdade: não há dor maior do que enterrar um filho;
  4. Falando em dor, costumo ser acometido anualmente por belas cólicas de rim. Minhas pedras costumam ser pequenas demais para serem implodidas, mas doem do mesmo jeito;
  5. Tenho pouquíssimas restrições alimentares, geralmente mais ligadas a nojo do que a sabores. Não há doce que eu não goste, o que é péssimo para um diabético;
  6. Sou destro, tanto de mão quanto de pé;
  7. Quando eu era muito criança, furei meu tímpano com um palito de fósforo. Desde então, ganhei uma diferença em acuidade auditiva digna de nota;
  8. Embora pareça que eu seja extrovertido, dada à quantidade de textos que escrevo, a verdade é que sou tímido, e luto diariamente contra essa característica; 
  9. Dizem que é uma forma extravagante de vaidade, mas o fato é que sou extremamente largado. Ando na rua como se estivesse andando em casa, exceção feita aos dias de trabalho, por força das chefias que me mandam andar elegante;
  10. Sou descendente de italianos e espanhóis, mas um daqueles testes de ancestralidade acusou uma ascendência armênia que me era completamente desconhecida. Bari aravot!
  11. O primeiro livro estritamente de Filosofia que eu li foi “O Mundo como Vontade e Representação”, de Schopenhauer. Comecei batendo forte!
  12. Não sou fã do uso indiscriminado de anglicismos, mas sou um coffee lover desde criancinha, e passei esse dom para os filhos;
  13. Eu alterno quase que de maneira bipolar meus períodos de paciência e ansiedade. Não tive até hoje capacidade de conseguir interpretar esses momentos. O negócio é procurar um psicólogo;
  14. Qualquer assunto relacionado a gestão, governança, curadoria me provoca sono imediato e irresistível. Não é metafórico, mas patológico;
  15. Comecei a fumar com doze anos, mesma idade que me pus a fazer a barba. Não sei dizer quando parei, mas faz tempo;
  16. Não sou muito para frente em termos de cinema, sendo um autêntico peixe fora d’água quando os colegas comentam sobre os últimos lançamentos. Mas gosto muito de teatro;
  17. Nunca fiz cirurgias. Que permaneça assim;
  18.  Tenho cinco tatuagens, todas relacionadas a música: uma bateria tribal, um baixo minimalista e três trechos de partituras, uma de Stairway to Heaven e duas de músicas minhas;
  19. Eu morei na beira de uma avenida onde se praticavam “rachas”. Uma vez livrei a cara de um desconhecido do baculejo dado pelos hômi, dizendo que era meu irmão. Foi pura compaixão inexplicável;
  20. Embora eu fale de Filosofia, meu trabalho remunerado é na área de Informática, como já falei bastante por aqui. Mas por doze anos militei na área da Contabilidade. Muito louco esse mundo;
  21. Tenho pouquíssimas fotos da minha infância, e menos ainda da minha juventude. Fotografia era um negócio caro, que envolvia não somente uma máquina na mão, mas também filmes, revelações, pilhas e, em alguns casos, flashes descartáveis. Não dava para abusar;
  22. Contei para vocês em várias partes deste espaço que eu tive várias bandas na juventude, algumas delas como baixista, outras como baterista, sempre como vocalista. O que eu não lhes disse é que eu tenho mais de cento e cinquenta músicas prontinhas. Mais da metade delas me dá vergonha hoje em dia;
  23. Passo a maior parte do meu tempo em Taubaté, mas, como meu domicílio eleitoral permanece em São Paulo, tecnicamente ainda moro lá;
  24. Minha preferência musical é por rock progressivo, mas sou absolutamente eclético no quesito música;
  25. É completamente irrelevante para mim, mas ok: sou geminiano. E meu signo chinês é o cachorro;
  26. Tenho quatro modelos de sonhos recorrentes: o mar invadindo a terra e eu me pondo a salvo; eu montando minhas parafernálias para tocar e algo impedindo; eu tentando voltar para casa à noite com todas as luzes do bairro apagadas, e a mais estranha, com uma empresa que trabalhei por pouco tempo, há tempos. Esse é o mais inexplicável deles, porque é o que mais recorre, e não tive nada de especial lá;
  27. Como quase todo mundo, não gosto de trabalhos domésticos. Entretanto, até curto cuidar da louça, meu momento de podcasts e vídeos;
  28. Entre mim e minha patroa, temos uma diferença que é o maior reforçador de estereótipos possível: enquanto eu me arrumo em cinco minutos, esse tempo não dá nem para ela escolher a cor do batom;
  29. Falando nisso, ela tem um apelido interno de Fô, apócope para flor, flor de maracujá. Quem vê aquela fruta toda amarrotada não imagina o quanto a flor é bonita;
  30. Embora eu considere que cante bem, não gosto da minha voz falada, o que é um fator para não gravar vídeos;
  31. Mas o fator principal é mesmo a falta de tempo para contentar meu perfeccionismo;
  32. Não sei por que, mas quando eu era criança eu detestava ficar no meio do que fosse: andando na rua, no banco do carro, no sofá;
  33. Não tenho uma expressão que seja muito característica minha, a não ser os paulistanismos típicos: mano, tá ligado, orra véi, essas coisas;
  34. Gibis: tive uma fase Marvel, onde li a história que mais me chocou: a morte da Fênix. Lembro até hoje de estar com os fones de ouvido escutando Listen to the Music, do Doobie Brothers, quando cheguei no desfecho. Falei mentalmente “pára tudo” e fui imediatamente pegar toda a série, desde o início, para chegar na conclusão calmamente. Foi uma espécie de apoteose para meu costume de quadrinhos;
  35. Isso tudo porque depois que casei eu abandonei o hábito, o que se deu a trinta e cinco anos nesta data;
  36. Nunca me dei bem com óculos escuros. Já me disseram que eu mudo de opinião se fizer um com os graus indicados para meus problemas oculares, mas estou com outras prioridades;
  37. Ouço as pessoas dizerem que gostam do frio ou do valor. Eu coloco as coisas nestes termos: funciono bem na faixa que vai dos 20 aos 30 graus;
  38. O primeiro disco que comprei por livre escolha foi Peter Frampton Special, e o tenho até hoje. Já com meu próprio dinheiro, foi Saints and Sinners, do Whitesnake;
  39. Que eu lembre: primeiro filme no cinema: Star Wars; primeiro circo: Vostok; primeira peça: uma chamada Bolívar. Primeiro jogo ao vivo: um do Desafio ao Galo, torneio de várzea famoso na década de 70; no profissional, Juventus x Guarani na rua Javari, ambos com meu avô;
  40. Aprendi violão praticamente sozinho, muito por conta dos colegas de escola que via fazendo sucesso com a galera;
  41. Doce ou salgado? Ambos;
  42. Não sou um bebedor contumaz. Na verdade, porre de verdade só tive um na vida, em uma daquelas festinhas dançantes dadas nos quintais das periferias, precursoras dos pancadões. Passei tão mal que foi suficiente. Era década de 80, e dada minha já citada falta de talento com a dança, fiquei cuidando do som. Deram a mim três garrafas de batida e sequei todas. Não preciso falar mais nada;
  43. Não sou daqueles malucos aficionados por carros. Talvez o fato de que meu primeiro carro tenha sido um Fiat 147 contribua para isso. Não dá para gostar de carros e ter um 147 na mesma relação;
  44. Minhas duas avós eram Marias: Mariquinha e Mariuccia. Acho que 90% das avós são Marias;
  45. Depois de velho, fiquei com a síndrome do jaleco branco. Ou será que eu estou com a pressão ruim mesmo?
  46. Nem nas tetas da minha mãe eu mamei: detesto leite;
  47. Quando eu era bem criança, um estabilizador caiu na minha cabeça. Isso explica muita coisa;
  48. Nunca viajei para o exterior;
  49. Nunca tive um apelido que tenha pegado. Deve ser porque nunca liguei para isso;
  50. Minha maior virtude é a paciência; pior defeito, a inconveniência.

Tá bom assim, né? Fui!