(Livros são formas compactas da vida. Por isso, também são bons para não esquecermos de lições)
“Assim é, por exemplo, que, a partir das primeiras semanas, um sentimento tão individual quanto o da separação de um ente querido se tornou, subitamente, o de todo um povo e, juntamente com o medo, o principal sofrimento desse longo tempo de exílio”.
Camus
Olá!
Clique aqui para ler mais cafezinhos de minha lavra
Certas conveniências da vida moderna não estão nos grandes
tamanhos, mas justamente no contrário. Um carrinho compacto evita problemas
para estacionar, studios (as antigas kitchenettes) nasceram para acomodar
pequenas famílias e baixos orçamentos, computadores foram ficando cada vez
menores, até caberem na palma das mãos – um celular é muito mais poderoso do
que os monstrões com os quais eu trabalhava na década de 80, com tela de fundo
preto e drives para disquetes de 5” ¼, e que geravam filas e mais filas de
esteiras de papel destacável em impressoras barulhentas. Aliás, imprimir hoje é
coisa vetusta: gera-se um PDF e manda-se por zap. A natureza agradece um pouco.
Minorar tamanhos otimiza espaços, e isso é essencial no
nosso mundo cada vez mais compactado. A cozinha da madrinha Tia Nena era o
maior cômodo da casa, e lá cabia uma mesa do estilo taberna, onde todos os
familiares se reuniam, em uma balbúrdia admirável, como já descrevi neste
texto. Já no moderníssimo apartamento da prima Simone, que visitei na
semana passada, este compartimento é quase simbólico, objeto de uma engenharia
de condensação digna de aplausos, tamanha a criatividade para conseguir
arranjar todas as benesses contemporâneas naqueles exíguos centímetros
quadrados: fogão de indução, geladeira, micro-ondas e air fryer (tem copyright
envolvido?) estão todos presentes, mesmo que em versões utilizáveis em casas de
bonecas.
Se todos esses dispositivos grandes, que ocupam espaços
consideráveis, vão ficando cada vez menores e flexíveis, os utensílios que já
eram pequenos se tornam diminutos, a ponto de serem carregáveis no bolso. Como
é o caso do porta-filtro espiral.
Ele não nasceu para ser bonito, não nasceu para encantar.
Ele é um método que nasceu para ser compacto, para caber em qualquer cantinho e
ser útil em uma viagem ou em momento no qual se precise montar um porta-filtro
que abrigue um V60, mais comum em terras estrangeiras do que em Pindorama.
E funciona, mesmo que seja meio chatinho de chegar em um formato adequado. Não se espere que ele sustente o conjunto com elegância, mas com eficiência.
Ele é um fio de aço que tem esse formato de mola justamente
para esticar e encolher, bastando travar sua ponta para que fique com a
espessura de uma bolacha para deitar copos, e lá se vai ele para uma mochila,
para uma maleta ou algibeira do paletó.
Nome do utensílio: Porta-filtro espiral portátil
Tipo de técnica: percolação
Dificuldade: Baixa
Espessura do pó: Média
Dinâmica: Desdobra-se o porta-filtros pelo desenlace da ponta de aço inicial e alonga-se até obter a extensão necessária para acomodar um filtro V60. Os demais passos são iguais ao de uma percolação padrão. Após o uso, recolher novamente as espirais e travar a ponta de aço na primeira espira.
Resíduos: Baixos
Temperatura de saída: Média
Nível de ritual: Médio
Reduzir tamanhos, portanto, melhora a adaptação à vida moderna, e pode ser extensível a coisas mais abstratas. Olho para minha estante de livros e imagino que tudo aquilo cabe em ínfimos arquivos dentro do mesmíssimo celular, o que me liberaria um bom espaço para meu sonhado painel de chaveiros, ou para colocar um quadro surrealista, sei lá. Mas paro para pensar que mesmo esses livros físicos são também compactadores. Resumem histórias de nações, biografias de uma vida inteira, filosofias e pensamentos que demorariam anos para serem ditos, resumem pandemias. Há pouco mais de cinco anos nós fomos trancados dentro de casa por um “bichinho” invisível, ainda mais perigoso do que um homem com um porrete na mão, que pelo menos vemos e de quem podemos correr. Há livros que falavam sobre isso, e que não estavam nos compêndios médicos, mas no romanceiro, em obras que misturam filosofia e poesia, a abstração a serviço da realidade.
Já falei sobre um deles lá no momento do isolamento, este
texto, em que citei “O Amor nos Tempos do Cólera”, chupinhando até mesmo o
título da obra de García Márquez. Lá, temos o desenrolar de uma trama que
mescla amor e infecção, relacionamento tóxico, objetivos mal resolvidos, e, por
fim, concluímos que o tempo não para mesmo quando não há movimentos. Mas há
outra obra que é ainda mais próxima da realidade em que vivemos naqueles dias,
mais filosófica ainda, de um autor único na fusão entre filosofia e literatura,
que já visitei aqui
e aqui:
Albert Camus. E o livro é “A Peste”.
Camus é a cara mais editorial da vertente contemporânea do
Existencialismo, que desloca a análise filosófica das essências para a
existência. Quando queremos compreender a realidade e suas justificativas,
sempre tentamos chegar ao âmago das coisas, para estabelecer o que há de comum
a todas elas, ou seja, capturar a essência que explica tudo o que existe. Os
existencialistas chegaram à conclusão de que não há explicações essenciais para
a vida, e que é ela mesma, a existência, a sua própria essência. Procurar
explicações para perguntas do tipo “por que sofremos?”, “somos livres ou
condicionados?” ou “de quem é a responsabilidade por minhas escolhas?” passa
pela assunção do sujeito humano como centro da especulação. Certas conclusões
são angustiantes, principalmente pela perda de sentido fixo na existência, que,
por outro prisma, ao menos é reconfortante: o homem é uma construção de si
mesmo, e fazer da vida o que se quiser é, antes de mais nada, uma incumbência
assustadora, especialmente quando se conclui o absurdo que é existir. O
existencialismo não é só isso, mas gira em torno.
O argelino Camus é um dos principais nomes da corrente, em
especial pelo seu modo sui generis de filosofar pela via da ficção. Sua mão é
suave como a do cirurgião que cinde uma pústula, e que põe todo o conteúdo para
fora sem chocar. O livro que abordo aqui coloca a cidade de Oran no centro dos
acontecimentos de um surto de peste bubônica, doença transmitida pelas pulgas
de ratos contaminadas pela bactéria Yersinia Pestis, e que tem esse nome
por sua característica mais distinta: a formação de bubões, inchaço nos
gânglios linfáticos próximos aos locais de entrada das bactérias. Acompanham
febre, náuseas, febre e, muitas vezes, êxito letal, a tal de morte. É uma
doença que assolou várias vezes a humanidade, especialmente na Peste Negra do
século XIV, onde se pensa que pelo menos metade da Europa foi para a
caixa-prego.
É evidente que as causas para a praga não foram as mesmas na
Idade Média e na hipotética contemporaneidade. A do passado distante tinha
caráter de castigo divino, uma censura extrema pela vida pecaminosa, enquanto a
recente teria como base fatores de higiene pública. Mesmo estando mais distante
da realidade, a primeira tem um sentido: a ira divina, a conduta mundana, uma
perspectiva salvífica. Na segunda, a hipotética epidemia baseada na real cólera
da cidade argelina, nada mais do que o mundo girando, o universo indiferente e
sem motivações. O sermão do padre Paneloux traz de volta à mente das pessoas a
culpa pelo pecado e, principalmente, uma razão pela qual a desgraça se abate,
assim como faziam os pregadores apocalípticos dos tempos da peste negra. A culpa
está em nós mesmos, é o que se pode traduzir da homilia escatológica do
ameaçador sacerdote. A peste como benção, para reconduzir as ovelhas ao redil.
Por mais que seja assustadora a suposição de que há um Deus iracundo que aplica
um castigo às suas ovelhas, ainda isso dá sentido ao sofrimento. Eu peco e nem
percebo, então, se eu sobrevivo, preciso rever minhas atitudes, redirecionar
minha vida. Agora, se eu dependo do acaso que é a proliferação de bilhões de
seres que não vejo, mas me matam, fica desfeito qualquer sentido que a
existência possa ter. Sonhos e planos não são nada diante do micróbio. Até
mesmo a cura não depende de nenhuma vontade, humana ou divina. Depende de
estreptomicina. Se há escolha, ela é minha, não do Deus. A vida não só é absurda;
é sem graça.
Deveria ser obrigatória a leitura deste livro. Não por um
decreto governamental, que impõe deveres às pessoas, mas uma obrigação dada
pela ética de nós mesmos. Todas as perguntas que nos fizemos durante a pandemia
de COVID já estavam contidas nesse livro de 1947, setenta e três anos à época
do início dos acontecimentos. Ainda que haja evidentes diferenças temporais e
situacionais, já que o confinamento é da cidade, e não dos indivíduos, é
inevitável que não nos identifiquemos com todos os acontecimentos fictícios ma
non troppo narrados com perícia pelo escritor-filósofo. Estão lá os
negócios que claudicam, as pessoas que se isolam, as restrições que ninguém
gosta e aqueles que querem furá-la a qualquer custo. E está lá a morte, crescente
e incontrolável.
A relutância na assunção da epidemia tem a ver com os nomes
malditos. “Peste” tem o sentido de fúria divina contra os pecados que não
sabemos bem como (e se) cometemos. É uma palavra que causa arrepios, porque
está vinculada a grande sofrimento, como o câncer que os nossos avós apelidavam
de “doença ruim” – a doença sofrida e a morte inevitável. Lembro da finada dona
Madalena, que todas as vezes que a zeladoria relaxava com a limpeza, dizia que
“a peste viria entre nós (sic)”. A palavra peste, então, remete a morte
terrível, suja, que se espalha e que gera abandono. Mais do que isso, é uma
marca na testa de toda uma região – que se a ganha, está carregando uma
condenação. Senão à morte, ao menos ao isolamento. Por isso, é evitada até o
momento em que é impossível chamá-la por um nome que não lhe signifique.
Eu lembro que na pandemia de COVID o primeiro decreto de
recolhimento foi de uma quinzena. Quinze dias, quem me dera… Foram dois anos
colecionando tédios e defuntos. No livro de Camus acontece o mesmo: as pessoas
procuram nos jornais notícias sobre um recrudescimento da peste, mas só veem o
aumento das desgraças. As mortes de uma semana passam a ser diárias, e a
expectativa de fim rápido vai desvanecendo. O verão que chega só intensifica a
tragédia, favorecendo a sua transmissão. Um misto de impaciência e
distanciamento vai tornando as pessoas menos compreensivas com o caos que se
instala. Entretanto, há uma diferença substancial entre a Oran de Camus e o
Patropi surreal em que vivemos. Enquanto os sobreviventes da crônica, à medida
que vão sendo transformados em um único coletivo que segue o mesmo destino, e,
sem opção, vão se entregando à solidariedade, aqui enxergamos uma forte cisão:
quem tinha uma atitude, já vinha com todas as outras do pacote ideológico: quem
era contrário ao uso de máscaras já vinha com o comportamento antivacina, com
os elogios à cloroquina, ao fim dos lockdowns, o exato oposto da turma do lado
de lá. Seria de se imaginar, em um país com 700 mil mortes, que as pessoas
procurassem se unir mais, mas nisso, fracassamos mais do que na ficção. E
continuamos assim.
As semelhanças não são meras coincidências porque nos
mostram que a excepcionalidade também está presente na história humana, e
demonstra a fragilidade da nossa situação. Assim como um belo dia um porteiro
encontrou alguns ratos mortos, alguém no interior da Ásia acordou meio gripado,
e, com dificuldades de respirar, foi a um hospital para a desconfiada
constatação dos médicos que aquela “gripezinha” era um tanto estranha. Às vezes
as calamidades vêm em camadas – nem sempre o tsunami vem de uma só vez.
O livro não é profético, como pode parecer. É uma crônica
simbólica dos totalitarismos que impõe prisões a populações inteiras, o que
estava em pleno andamento nos tempos em que é narrado, a plena atmosfera da
Segunda Guerra, mas eu o vejo hoje pelo seu aspecto mais direto. Ele nada mais
é do que um relato de um fenômeno recorrente, que as evoluções científicas
faziam crer estar mais distantes, mas que estão sempre à nossa espreita, porque
ainda não compreendemos completamente os mecanismos de surgimento de novos
seres, e esse é o problema que ele nos faz relembrar: nunca estamos livres de
acordar com a notícia de uma doença estranha surgindo em algum lugar do mundo e
se espalhando rapidamente, pronta para romper laços, transformar modos de vida,
aprisionar pessoas. A peste de Oran já ocorreu tantas vezes, na forma de outras
epidemias da própria peste, ou como a Aids dos anos 80, o Ebola dos 90 e a
recente COVID que nos faz pensar se essa não é a pedra de Sísifo que nós mesmos
precisamos empurrar morro acima. A peste termina sem acabar, e cada um recebe
sua própria influência, alguns felizes pelo fim da desgraça (e esperando pela
próxima) outros com as cicatrizes inapagáveis, porque, como está lá pelo final
do livro…
“Para esses - mães, esposos, amantes que tinham perdido toda
a alegria com o ser agora abandonado numa cova anônima ou fundido num monte de
cinza – era ainda a peste”.
Camus havia colocado esse caminho como o absurdo da
existência e o faz novamente aqui, para refletirmos menos no âmbito da
filosofia e mais da nossa própria realidade. A vida toda cabe em um livro,
assim como todo um rito do café cabe em uma molinha. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Tenho uma coleção antiquíssima conseguida em um bazar, que
inclui esta e outras preciosidades. A patroa vive querendo dar um fim, mas eu
resisto bravamente, porque não tem livro ruim. Mas é fácil de conseguir versões
bem mais recentes.
CAMUS, Albert. A Peste. Col. Prêmios Nobel da
Literatura. Rio de Janeiro: Delta, s.d.
Nenhum comentário:
Postar um comentário