(Dá-lhe, tarifaço... E depois são os paladinos da democracia)
“Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”
Benjamin Franklin
Olá!
Meninas e meninos, vivemos tempos insanos, como vocês podem
perceber. Na verdade, nunca saímos deles, mas de vez em quando vem uma lufada
de vento fresco e parece que vamos ter um pouco mais de sensatez, para logo em
seguida tudo voltar ao que era. O mundo gira, a lusitana roda e não há nada de
novo debaixo desse sol escaldante do Vale do Paraíba.
A novidade é a guerra comercial que o mandatário
estadunidense resolveu empreender contra o mundo. Parte do princípio geral de
que os seus cidadãos vêm sendo prejudicados em suas relações de mercado e quer
chantagear os demais países na base das imposições tarifárias. Recentemente,
lançou seus olhos vorazes contra a pobre Ilha de Vera Cruz, e uniu interesse
financeiro com suposta injustiça legal para impor uma alíquota extorsiva.
Evidentemente, foram colocadas na mesa outras questões, maquiadas como defesa da
liberdade e da democracia (que se foda o livre mercado). Esse é o resumo da
ópera, que não preciso levar muito adiante porque todo mundo sabe o que está
acontecendo.
Não é de hoje que os poderosos vizinhos fazem valer seu
poderio econômico e militar para pressionar outros países. Isso não muda nunca.
O fato de termos um desequilibrado no poder ianque atualmente apenas tira a
vaselina da relação conosco, terceiro-mundistas, porque ele me faz lembrar
daqueles molecões de pouco brilhantismo, mas muito fortes, e que conseguem o
que querem na base da porrada. Os democratas no poder são diferentes no sentido
cortesia, mas não no resultado. Tem mais tato, mais jeito, oferecem flores, mas
te comem dominam as ações ao seu bel-prazer do mesmo jeito.
Isso tudo acontece porque há no substrato ideológico gringo uma ideia de que eles são diferenciados em relação aos demais povos. Eles são os detentores das virtudes mais magnânimas, mais sublimes, mais excelsas, e tem o dever de propagar essas ideias para o mundo todo, especialmente onde for possível ganhar um dinheirinho. Ou dinheirão.
Mas não vamos ficar nesse discurso de esquerda
latino-americana, e vamos olhar mais de perto o fenômeno da distinção dos
ianques perante todos os outros povos do mundo, América Latina em evidência.
Todas as vezes em que vemos jogos de poder, observamos que
há um certo ingrediente religioso por trás dos discursos. Podem até mesmo ser
ateíssimos regimes comunistas, mas a autoridade atribuída a um líder tem a
mesma característica messiânica que o mais empedernido dos reinados islâmicos:
há uma ideologia da missão salvífica por trás das personalidades. Isso funciona
muito bem, porque faz perdoar medidas que, na sua estrutura, não são favoráveis
às massas populacionais, mas que precisam de algum tipo de argumento para serem
aceitas, ou então da necessidade de alguma forma de amálgama que una as
opiniões. Nada melhor que um portador do propósito divino.
Isso deveria acontecer nas democracias? Em tese, não, porque
ela favorece o Estado
laico, abre mais possibilidades para posições divergentes, protege a
liberdade religiosa, mas como este regime é mais aberto, não há como impedir
que essas teses da missão divina acabem imbuindo seu espírito. Afinal de
contas, não é necessário que haja uma declaração explícita de religiosidade,
mas um protocolo de benesses, como a confiabilidade das instituições religiosas
que apoiam uma causa, ou a ideia de submissão a uma entidade externa doadora de
moral. Lembrem-se, crianças: as religiões são elementos culturais, oriundas e
formatadas para se adequar às sociedades onde surgem, e não o contrário. Com
isso, adequações à religiosidade de uma comunidade correspondem a adequações à
moralidade que aquela própria comunidade construiu. Qualquer democracia que se
encaixe nesse contexto tem um elemento religioso em seus fundamentos.
E nos Estados Unidos? Bom… eles se autoproclamam como a
terra da liberdade, mas os fundamentos religiosos estão lá, até mais fortes do
que em Terra Brasilis, que somente mais recentemente vem adotando esse
paradigma, especialmente pelo crescimento da população evangélica e da
penetração de seus líderes na política. Se hoje os EUA constituem um território
imenso, e ainda buscam espalhar seus tentáculos para o mundo que os interessa,
é porque suas placas tectônicas se movem à base dos fenômenos ideológicos sustentados
pela religião. Falo do Destino Manifesto.
A doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny) é uma
ideologia que aproveita um fundo religioso para justificar a política
expansionista dos Estados Unidos no século XIX que dizia, fundamentalmente, que
era inevitável que as terras da América estavam divinamente reservadas para os
puritanos refugiados da Inglaterra. Por que chegaram a essa conclusão?
Bom, aí tem uma boa dose daquilo que sabemos ser o uso
religioso das manipulações de convicções. Os puritanos eram uma corrente dentro
do Anglicanismo que visava afastá-lo ainda mais dos ritos católicos. Esta
corrente do Cristianismo era uma dissidência do Catolicismo menos pela
discordância com seus dogmas e doutrinas, e mais pela questão de comando. A
estrutura hierárquica católica era muito semelhante à anglicana, com a
diferença crucial de que o mais alto comando nesta última era do rei da
Inglaterra, que assume o lugar do papa no topo da hierarquia. Dentro dessa nova
realidade, os puritanos surgem com a ideia de um retorno ao Cristianismo
primitivo, sem os vícios e desvios derivados dos anos de luta pelo poder e
modificações impostas pelo clero, de forma a atingir a purificação dos seus
membros. Era uma derivação da vertente calvinista do Protestantismo, que
chegava à Grã-Bretanha após seu surgimento na França. É de rigor que tratemos
um pouquinho do dogma da predestinação, portanto.
Segundo acreditavam os calvinistas, a realização de boas
obras não era o que salvava uma pessoa, como indicava as doutrinas católica,
luterana, anglicana e ortodoxa, mas uma livre eleição do próprio Deus. Afinal
de contas, a ação humana não poderia suplantar ou ser mais decisiva do que a
vontade divina. Sendo assim, a pessoa ser salva ou não, não era um critério
dela, mas do seu senhor.
Isso causa um problema. Se tanto fazia ser bom ou não, como
seria possível saber se uma pessoa estava na categoria dos salvos ou dos
condenados? Deus era indireto, e dava certas indicações aos seus eleitos
durante a sua vida. Uma delas eram as provas de resistência na fé, que seriam
bem suportadas pelos escolhidos. Um impulso psicológico e tanto. Outra era a
prosperidade: Deus não garantia apenas uma vida eterna prolífica, mas o
conforto na própria vida terrena. A lógica vinha da ideia de que toda a criação
divina era perfeita, e não somente o plano espiritual da eternidade era bom e
valoroso para a vida, mas também a própria vida terrena já havia sido
construída pela divindade para ser igualmente boa e valiosa. Dessa forma, os
eleitos tinham posses e benesses que fugiam da doutrina escapista dos católicos
e outras designações protestantes, que criam que esse é um mundo de sofrimento,
e que todas as recompensas viriam a posteriori, já passando pelo filtro das
boas ações. Dessa forma, os crentes não precisariam ter vergonha de amplas
posses e de lucros, porque também esses eram manifestações divinas, em um
perfeito casamento com o emergente Capitalismo, como bem notou o sociólogo Max
Weber. Vejam mais neste
texto.
A migração dos puritanos da Inglaterra para os Estados
Unidos pode ser facilmente acomodada à narrativa calvinista. Com a divergência
de entendimento bíblico (e uma boa dose de conveniências políticas), os
anglicanos viam os puritanos como infiéis ao rei, chefe supremo não só da
religião, mas também, e principalmente, da nação. A perseguição ocorrida no
âmbito do Anglicanismo é um dos mecanismos de resiliência propostos por Deus
aos eleitos, que são obrigados a deixar sua terra para povoar um ambiente novo,
incerto e potencialmente inóspito, enquanto o tamanho das terras, a presença de
minérios, a fertilidade dos meios são inequívocas demonstrações da prosperidade
oferecida, uma nova Israel, uma nova terra prometida. A licença para a ocupação
é idêntica: da mesma forma que Deus permite e incentiva a ocupação de Jericó,
faz o mesmo com as populações originárias além-Apalaches e com os colonos
espanhóis da região da costa oeste. O destino manifesto proclama a dominação
legítima por um povo escolhido do Atlântico ao Pacífico.
Não é fácil justificar uma sanha exploratória de um
território que já se encontrava habitado por autóctones ou mesmo que já se
encontrasse dominado por outros povos sem se usar o argumento da ganância. A
conquista do oeste norte-americano não se deu pacificamente, mas à custa de
sangue indígena e de guerras contra espanhóis e mexicanos, e isso não é bonito
de se assumir unicamente pela riqueza que isso tudo traz. A justificativa
divina não dava apenas uma resposta para o mundo, mas para os próprios executores
das invasões. A guarida de uma ordem divina é perfeita como licença para
avançar sobre terras alheias.
A questão é que o destino manifesto teve derivações que
vivem até hoje, como as falas que aquele senhor alaranjado proclama de vez em
quando. Ele serviu de justificativa para que a área de influência gringa se
estendesse para muito além da imensa faixa de terra que liga os dois oceanos.
Existe a doutrina Monroe, derivada de um dos primeiros
presidentes daquela terra, James Monroe. Ela diz que não é aceitável que
potências coloniais europeias queiram expandir suas esferas de influência na
política dos países da América, e, caso isso aconteça, será considerada como
uma ameaça aos próprios Estados Unidos. Ademais, a doutrina procura demonstrar
aos demais países americanos a superioridade dos regimes republicanos em
relação às monarquias. Até aí, nada demais.
Os dois fenômenos, destino manifesto e doutrina Monroe,
foram mais ou menos concomitantes, e acabaram se entrelaçando, naturalmente. O
direito divino de se expandir vinha ao encontro do direito político de se
defender, ainda que os EUA não fossem ainda potências militares à época. Ocorre
que o desenrolar da história assim os tornaram, chegando ao ápice no pós-guerra,
fortalecidos pelo fato de estarem do lado vitorioso sem que uma única bomba
tenha chegado ao seu território. Com tanto poder nas mãos, eles foram ficando
mais e mais “folgados”, e, a partir do corolário Roosevelt, assumiram o papel
de polícia do mundo. O intervencionismo estadunidense veio em um crescendo
desde então, litigando fronteiras que não são as suas, certificando governos
nem sempre legítimos e financiando a oposição a regimes que os desagradam, de
maneira nem sempre explícita. O corolário adiciona à doutrina Monroe o direito
de intervenção direta onde quer que os EUA achem que exista uma ameaça. O
problema é que isso é extremamente aberto, e que muitas vezes avilta a
autoafirmação dos povos, a origem da própria doutrina.
A questão é que essa expansão não é somente física ou
geográfica, o que já é uma imensa intrusão na vida dos povos, mas também
cultural. Não está apenas nas músicas e nos filmes, ou nas roupas que se usam,
mas especialmente nos valores. Se fosse só a calça jeans e o rock’n’roll, nada
mais seria do que uma cultura que agrada outra gente, mas os estadunidenses
acham que sua cultura é superior às outras não só por mera arrogância, mas pelo
destino manifesto. Certos valores são, de fato, aplicáveis de modo universal,
como o formato republicano e a democracia liberal, mas o problema não é efetivamente
esse. Se é verdade que os povos devem ter autoafirmação, então não faz sentido
o intervencionismo proclamado pelo corolário Roosevelt. Defender a democracia
inclui aceitar o regime alheio, reconhecer o direito de outros países de dar a
guia que queiram aos seus destinos e, principalmente, demover-se da ideia de
povo escolhido. Não no sentido de se sentirem especiais, eleitos por Deus ou
coisa que o valha. O diabo é que, se eu sou um escolhido, o resto é escolho. Se
eu sou eleito, todos os outros são condenados, e não é possível arrogar isso a
si próprio. Os Estados Unidos são poderosos demais para abrir sua carga pesada
contra países claudicantes como o Brasil, que não representam ameaça real à sua
existência, principalmente à sua poderosa economia. Eles mesmos são seus
principais adversários.
Evidentemente, foi possível perceber pelo exposto até agora
que as regras estabelecidas pelos Estados Unidos servem para todos os países,
menos para eles mesmos. Como se dizem cobertos pelo destino manifesto na
teoria, e tendo os mais poderosos meios de guerra na prática, alegam ser os
guardiães de uma democracia que, preto no branco, eles mesmos não praticam. A democracia
é fácil de retorcer, justamente por sua maleabilidade, e sempre tem como servir
mais a quem tem mais poder, como Benjamin Franklin tão bem detectou na frase da
epígrafe. Além de toda a hipocrisia que há por trás disso, há também um uso
falacioso da linguagem, distorcida para fazer crer que traz argumentos válidos.
É a falácia da alegação especial.
Essa falácia diz que algo que é aplicável para todos não é
aplicável para alguém específico, sem que haja algum motivo justificável para a
exceção. Essa invocação nunca é voltada para algum ponto desfavorável, mas como
justificativa de algum privilégio. Dessa forma, abre-se um desvio apropriado
para uma pessoa ou grupo específico sem um imperativo lógico. Se os EUA são
defensores exacerbados da democracia e de todos os seus princípios, deveriam,
eles mesmo, ser os primeiros a praticá-la, e não evocar ideologias de fundo
religioso para justificar sua ação.
Outro exemplo gritante vem das próprias religiões. Alega-se
que todas as religiões são mitos, porque são constituídas por deuses e
entidades vindas do folclore das diferentes populações, que surgiram de maneira
intuitiva e pouco corroborável, e que, portanto, representam modos de formações
de culturas, mas não de uma realidade. Nada disso vale quando aplicável à
religião adotada por quem profere a alegação: essa, sim, é expressão da
verdade, mesmo que seja formada a partir dos mesmíssimos elementos culturais
que circunscrevem as demais culturas.
Uma boa parte da explicação vem da intenção da religião em
ser expressão da verdade, o que motiva esse fenômeno do nós contra os outros,
da mesma forma que as adesões patrióticas seguem lógica semelhante.
Alegações especiais, entretanto, podem ser justas e lógicas,
e, obviamente, não falaciosas. Qualquer ação inclusiva, por exemplo, está
enquadrada nesse caso: não se pode exigir de alguém que possua alguma limitação
que realize ações fora de seu alcance. Nestes casos, a alegação especial é
justificativa plenamente válida.
Enquanto isso, crianças, vamos tentando sobreviver com as
atitudes pouco republicanas do democrático vizinho poderoso. É uma boa chance
de se desvencilhar um pouco mais de sua esfera de influência e, quem sabe,
chegarmos a uma independência mais plena. Patriotas deveriam gostar disso. Bons
ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Um livro e tanto para entender se a democracia nos Estados
Unidos é realmente tudo aquilo que eles proclamam:
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
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