Marcadores

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Sobre o destino manifesto e o falso espírito democrático de quem o proclama (Pequeno guia das grandes falácias – 76º tomo: a alegação especial)

(Dá-lhe, tarifaço... E depois são os paladinos da democracia)

“Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo sobre o que comer no jantar”

Benjamin Franklin 

Olá!

Clique aqui para ver a lista das falácias já publicadas

Meninas e meninos, vivemos tempos insanos, como vocês podem perceber. Na verdade, nunca saímos deles, mas de vez em quando vem uma lufada de vento fresco e parece que vamos ter um pouco mais de sensatez, para logo em seguida tudo voltar ao que era. O mundo gira, a lusitana roda e não há nada de novo debaixo desse sol escaldante do Vale do Paraíba.

A novidade é a guerra comercial que o mandatário estadunidense resolveu empreender contra o mundo. Parte do princípio geral de que os seus cidadãos vêm sendo prejudicados em suas relações de mercado e quer chantagear os demais países na base das imposições tarifárias. Recentemente, lançou seus olhos vorazes contra a pobre Ilha de Vera Cruz, e uniu interesse financeiro com suposta injustiça legal para impor uma alíquota extorsiva. Evidentemente, foram colocadas na mesa outras questões, maquiadas como defesa da liberdade e da democracia (que se foda o livre mercado). Esse é o resumo da ópera, que não preciso levar muito adiante porque todo mundo sabe o que está acontecendo.

Não é de hoje que os poderosos vizinhos fazem valer seu poderio econômico e militar para pressionar outros países. Isso não muda nunca. O fato de termos um desequilibrado no poder ianque atualmente apenas tira a vaselina da relação conosco, terceiro-mundistas, porque ele me faz lembrar daqueles molecões de pouco brilhantismo, mas muito fortes, e que conseguem o que querem na base da porrada. Os democratas no poder são diferentes no sentido cortesia, mas não no resultado. Tem mais tato, mais jeito, oferecem flores, mas te comem dominam as ações ao seu bel-prazer do mesmo jeito.

Isso tudo acontece porque há no substrato ideológico gringo uma ideia de que eles são diferenciados em relação aos demais povos. Eles são os detentores das virtudes mais magnânimas, mais sublimes, mais excelsas, e tem o dever de propagar essas ideias para o mundo todo, especialmente onde for possível ganhar um dinheirinho. Ou dinheirão.

Mas não vamos ficar nesse discurso de esquerda latino-americana, e vamos olhar mais de perto o fenômeno da distinção dos ianques perante todos os outros povos do mundo, América Latina em evidência.

Todas as vezes em que vemos jogos de poder, observamos que há um certo ingrediente religioso por trás dos discursos. Podem até mesmo ser ateíssimos regimes comunistas, mas a autoridade atribuída a um líder tem a mesma característica messiânica que o mais empedernido dos reinados islâmicos: há uma ideologia da missão salvífica por trás das personalidades. Isso funciona muito bem, porque faz perdoar medidas que, na sua estrutura, não são favoráveis às massas populacionais, mas que precisam de algum tipo de argumento para serem aceitas, ou então da necessidade de alguma forma de amálgama que una as opiniões. Nada melhor que um portador do propósito divino.

Isso deveria acontecer nas democracias? Em tese, não, porque ela favorece o Estado laico, abre mais possibilidades para posições divergentes, protege a liberdade religiosa, mas como este regime é mais aberto, não há como impedir que essas teses da missão divina acabem imbuindo seu espírito. Afinal de contas, não é necessário que haja uma declaração explícita de religiosidade, mas um protocolo de benesses, como a confiabilidade das instituições religiosas que apoiam uma causa, ou a ideia de submissão a uma entidade externa doadora de moral. Lembrem-se, crianças: as religiões são elementos culturais, oriundas e formatadas para se adequar às sociedades onde surgem, e não o contrário. Com isso, adequações à religiosidade de uma comunidade correspondem a adequações à moralidade que aquela própria comunidade construiu. Qualquer democracia que se encaixe nesse contexto tem um elemento religioso em seus fundamentos.

E nos Estados Unidos? Bom… eles se autoproclamam como a terra da liberdade, mas os fundamentos religiosos estão lá, até mais fortes do que em Terra Brasilis, que somente mais recentemente vem adotando esse paradigma, especialmente pelo crescimento da população evangélica e da penetração de seus líderes na política. Se hoje os EUA constituem um território imenso, e ainda buscam espalhar seus tentáculos para o mundo que os interessa, é porque suas placas tectônicas se movem à base dos fenômenos ideológicos sustentados pela religião. Falo do Destino Manifesto.

A doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny) é uma ideologia que aproveita um fundo religioso para justificar a política expansionista dos Estados Unidos no século XIX que dizia, fundamentalmente, que era inevitável que as terras da América estavam divinamente reservadas para os puritanos refugiados da Inglaterra. Por que chegaram a essa conclusão?

Bom, aí tem uma boa dose daquilo que sabemos ser o uso religioso das manipulações de convicções. Os puritanos eram uma corrente dentro do Anglicanismo que visava afastá-lo ainda mais dos ritos católicos. Esta corrente do Cristianismo era uma dissidência do Catolicismo menos pela discordância com seus dogmas e doutrinas, e mais pela questão de comando. A estrutura hierárquica católica era muito semelhante à anglicana, com a diferença crucial de que o mais alto comando nesta última era do rei da Inglaterra, que assume o lugar do papa no topo da hierarquia. Dentro dessa nova realidade, os puritanos surgem com a ideia de um retorno ao Cristianismo primitivo, sem os vícios e desvios derivados dos anos de luta pelo poder e modificações impostas pelo clero, de forma a atingir a purificação dos seus membros. Era uma derivação da vertente calvinista do Protestantismo, que chegava à Grã-Bretanha após seu surgimento na França. É de rigor que tratemos um pouquinho do dogma da predestinação, portanto.

Segundo acreditavam os calvinistas, a realização de boas obras não era o que salvava uma pessoa, como indicava as doutrinas católica, luterana, anglicana e ortodoxa, mas uma livre eleição do próprio Deus. Afinal de contas, a ação humana não poderia suplantar ou ser mais decisiva do que a vontade divina. Sendo assim, a pessoa ser salva ou não, não era um critério dela, mas do seu senhor.

Isso causa um problema. Se tanto fazia ser bom ou não, como seria possível saber se uma pessoa estava na categoria dos salvos ou dos condenados? Deus era indireto, e dava certas indicações aos seus eleitos durante a sua vida. Uma delas eram as provas de resistência na fé, que seriam bem suportadas pelos escolhidos. Um impulso psicológico e tanto. Outra era a prosperidade: Deus não garantia apenas uma vida eterna prolífica, mas o conforto na própria vida terrena. A lógica vinha da ideia de que toda a criação divina era perfeita, e não somente o plano espiritual da eternidade era bom e valoroso para a vida, mas também a própria vida terrena já havia sido construída pela divindade para ser igualmente boa e valiosa. Dessa forma, os eleitos tinham posses e benesses que fugiam da doutrina escapista dos católicos e outras designações protestantes, que criam que esse é um mundo de sofrimento, e que todas as recompensas viriam a posteriori, já passando pelo filtro das boas ações. Dessa forma, os crentes não precisariam ter vergonha de amplas posses e de lucros, porque também esses eram manifestações divinas, em um perfeito casamento com o emergente Capitalismo, como bem notou o sociólogo Max Weber. Vejam mais neste texto.

A migração dos puritanos da Inglaterra para os Estados Unidos pode ser facilmente acomodada à narrativa calvinista. Com a divergência de entendimento bíblico (e uma boa dose de conveniências políticas), os anglicanos viam os puritanos como infiéis ao rei, chefe supremo não só da religião, mas também, e principalmente, da nação. A perseguição ocorrida no âmbito do Anglicanismo é um dos mecanismos de resiliência propostos por Deus aos eleitos, que são obrigados a deixar sua terra para povoar um ambiente novo, incerto e potencialmente inóspito, enquanto o tamanho das terras, a presença de minérios, a fertilidade dos meios são inequívocas demonstrações da prosperidade oferecida, uma nova Israel, uma nova terra prometida. A licença para a ocupação é idêntica: da mesma forma que Deus permite e incentiva a ocupação de Jericó, faz o mesmo com as populações originárias além-Apalaches e com os colonos espanhóis da região da costa oeste. O destino manifesto proclama a dominação legítima por um povo escolhido do Atlântico ao Pacífico.

Não é fácil justificar uma sanha exploratória de um território que já se encontrava habitado por autóctones ou mesmo que já se encontrasse dominado por outros povos sem se usar o argumento da ganância. A conquista do oeste norte-americano não se deu pacificamente, mas à custa de sangue indígena e de guerras contra espanhóis e mexicanos, e isso não é bonito de se assumir unicamente pela riqueza que isso tudo traz. A justificativa divina não dava apenas uma resposta para o mundo, mas para os próprios executores das invasões. A guarida de uma ordem divina é perfeita como licença para avançar sobre terras alheias.

A questão é que o destino manifesto teve derivações que vivem até hoje, como as falas que aquele senhor alaranjado proclama de vez em quando. Ele serviu de justificativa para que a área de influência gringa se estendesse para muito além da imensa faixa de terra que liga os dois oceanos.

Existe a doutrina Monroe, derivada de um dos primeiros presidentes daquela terra, James Monroe. Ela diz que não é aceitável que potências coloniais europeias queiram expandir suas esferas de influência na política dos países da América, e, caso isso aconteça, será considerada como uma ameaça aos próprios Estados Unidos. Ademais, a doutrina procura demonstrar aos demais países americanos a superioridade dos regimes republicanos em relação às monarquias. Até aí, nada demais.

Os dois fenômenos, destino manifesto e doutrina Monroe, foram mais ou menos concomitantes, e acabaram se entrelaçando, naturalmente. O direito divino de se expandir vinha ao encontro do direito político de se defender, ainda que os EUA não fossem ainda potências militares à época. Ocorre que o desenrolar da história assim os tornaram, chegando ao ápice no pós-guerra, fortalecidos pelo fato de estarem do lado vitorioso sem que uma única bomba tenha chegado ao seu território. Com tanto poder nas mãos, eles foram ficando mais e mais “folgados”, e, a partir do corolário Roosevelt, assumiram o papel de polícia do mundo. O intervencionismo estadunidense veio em um crescendo desde então, litigando fronteiras que não são as suas, certificando governos nem sempre legítimos e financiando a oposição a regimes que os desagradam, de maneira nem sempre explícita. O corolário adiciona à doutrina Monroe o direito de intervenção direta onde quer que os EUA achem que exista uma ameaça. O problema é que isso é extremamente aberto, e que muitas vezes avilta a autoafirmação dos povos, a origem da própria doutrina.

A questão é que essa expansão não é somente física ou geográfica, o que já é uma imensa intrusão na vida dos povos, mas também cultural. Não está apenas nas músicas e nos filmes, ou nas roupas que se usam, mas especialmente nos valores. Se fosse só a calça jeans e o rock’n’roll, nada mais seria do que uma cultura que agrada outra gente, mas os estadunidenses acham que sua cultura é superior às outras não só por mera arrogância, mas pelo destino manifesto. Certos valores são, de fato, aplicáveis de modo universal, como o formato republicano e a democracia liberal, mas o problema não é efetivamente esse. Se é verdade que os povos devem ter autoafirmação, então não faz sentido o intervencionismo proclamado pelo corolário Roosevelt. Defender a democracia inclui aceitar o regime alheio, reconhecer o direito de outros países de dar a guia que queiram aos seus destinos e, principalmente, demover-se da ideia de povo escolhido. Não no sentido de se sentirem especiais, eleitos por Deus ou coisa que o valha. O diabo é que, se eu sou um escolhido, o resto é escolho. Se eu sou eleito, todos os outros são condenados, e não é possível arrogar isso a si próprio. Os Estados Unidos são poderosos demais para abrir sua carga pesada contra países claudicantes como o Brasil, que não representam ameaça real à sua existência, principalmente à sua poderosa economia. Eles mesmos são seus principais adversários.

Evidentemente, foi possível perceber pelo exposto até agora que as regras estabelecidas pelos Estados Unidos servem para todos os países, menos para eles mesmos. Como se dizem cobertos pelo destino manifesto na teoria, e tendo os mais poderosos meios de guerra na prática, alegam ser os guardiães de uma democracia que, preto no branco, eles mesmos não praticam. A democracia é fácil de retorcer, justamente por sua maleabilidade, e sempre tem como servir mais a quem tem mais poder, como Benjamin Franklin tão bem detectou na frase da epígrafe. Além de toda a hipocrisia que há por trás disso, há também um uso falacioso da linguagem, distorcida para fazer crer que traz argumentos válidos. É a falácia da alegação especial.

Essa falácia diz que algo que é aplicável para todos não é aplicável para alguém específico, sem que haja algum motivo justificável para a exceção. Essa invocação nunca é voltada para algum ponto desfavorável, mas como justificativa de algum privilégio. Dessa forma, abre-se um desvio apropriado para uma pessoa ou grupo específico sem um imperativo lógico. Se os EUA são defensores exacerbados da democracia e de todos os seus princípios, deveriam, eles mesmo, ser os primeiros a praticá-la, e não evocar ideologias de fundo religioso para justificar sua ação.

Outro exemplo gritante vem das próprias religiões. Alega-se que todas as religiões são mitos, porque são constituídas por deuses e entidades vindas do folclore das diferentes populações, que surgiram de maneira intuitiva e pouco corroborável, e que, portanto, representam modos de formações de culturas, mas não de uma realidade. Nada disso vale quando aplicável à religião adotada por quem profere a alegação: essa, sim, é expressão da verdade, mesmo que seja formada a partir dos mesmíssimos elementos culturais que circunscrevem as demais culturas.

Uma boa parte da explicação vem da intenção da religião em ser expressão da verdade, o que motiva esse fenômeno do nós contra os outros, da mesma forma que as adesões patrióticas seguem lógica semelhante.

Alegações especiais, entretanto, podem ser justas e lógicas, e, obviamente, não falaciosas. Qualquer ação inclusiva, por exemplo, está enquadrada nesse caso: não se pode exigir de alguém que possua alguma limitação que realize ações fora de seu alcance. Nestes casos, a alegação especial é justificativa plenamente válida.

Enquanto isso, crianças, vamos tentando sobreviver com as atitudes pouco republicanas do democrático vizinho poderoso. É uma boa chance de se desvencilhar um pouco mais de sua esfera de influência e, quem sabe, chegarmos a uma independência mais plena. Patriotas deveriam gostar disso. Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Um livro e tanto para entender se a democracia nos Estados Unidos é realmente tudo aquilo que eles proclamam:

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Nenhum comentário:

Postar um comentário