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terça-feira, 29 de abril de 2025

Pequeno guia das grandes falácias – 74º tomo: o vaticinium ex eventu

(A morte do papa ressuscita uma velha profecia)

“Só entendemos as profecias quando elas acontecem”

Pascal

Olá!

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Morreu o Papa Francisco. Em outras épocas, eu estaria aflito, preocupado com as diretrizes que a Igreja Católica iria tomar. Para além das piedades e caridades, mudanças no Vaticano poderiam apresentar avanços ou retrocessos políticos, e, dessa forma, influenciar a vida nas paróquias, onde vivíamos e militávamos. Isso acontecia porque a igreja era bem mais presente na vida das pessoas, e, se já sentíamos impactos nas mudanças de bispos, quanto mais não se esperava com a chegada de um papa novo. Hoje em dia, despido de fé, cumpre a mim o interesse pela curiosidade e pela reconhecida influência que, embora menor, ainda se exerce sobre as sociedades ocidentais.

É preciso esclarecer alguns pontos. Um filho do proletariado deveria se incomodar com os destinos da Igreja Católica? Para quem olha para a face mais conservadora, que proíbe as pessoas de se entenderem com seus próprios corpos, que mantém uma estrutura antiquada e que renega as mudanças do mundo, de fato não faz muito sentido. Só que quando lembramos que era das CEBs que vinha o estudo disponível para os bairros periféricos, que veio dela muita defesa de direitos humanos na ditadura e que é a partir dela que as Santas Casas foram criadas, notamos que se deram momentos em que havia apenas ela para recorrermos.

É bem verdade que o fenômeno evangélico, onde os pastores se metem muito mais na vida dos fiéis estendem sua influência de maneira muito mais estreita em suas assembleias, obnubilaram significativamente a presença católica na sociedade, mas é preciso lembrar que isso é fenômeno recente, e o Cristianismo como um todo moldou decisivamente os pensares e fazeres dos latinos, nós inclusos.

O que explica melhor minha expectativa, no entanto, é que eu não só era um frequentador das naves, mas das sacristias. Eu fiz de tudo na igreja. Fui um catequista incômodo, porque dizia a rapazes e moças que deveríamos cuidar de controlar nossos impulsos, mas sempre ter um subterfúgio de látex para quando fosse impossível resistir. Eu era um músico que tocava trechos de Cio da Terra nos ofertórios ou de Pérola Azulada no Dia da Terra. Eu era, principalmente, um instrutor de coroinhas que recomendava aqueles cuidados óbvios que vocês devem estar pensando. É… não tinha como dar certo. Mas funcionou por quase vinte anos. Eis o bumbo da minha bateria com a iconografia dos tempos em que eu mandava minhas pancadas na São Francisco.


Essa relativa liberdade existia porque eu trabalhava com os franciscanos, a ala mais progressista dos católicos. Confrontados com setores mais conservadores, muito mais ligados à forma ortodoxa dos cultos e mantença de costumes, pareciam fazer parte de outra religião. Então qualquer mudança poderia parecer desejável, só que o medo era que fosse para trás. É preciso lembrar que o papado de João Paulo II foi longuíssimo, com mais de 26 anos, e a igreja ficou estacionada por todo esse tempo, dado seu perfil pouco dado a grandes guinadas. Foi até surpreendente a eleição do argentino moderado, em um cardinalato formado na sua maioria por nomeações mais conservadoras. Isso é o que dava mais medo.

Os franciscanos, mesmo com meu afastamento da religião, continuam guardando meu respeito. Quando a pandemia começou, lá estavam eles, na linha de frente do apoio à população de rua, que depende diretamente da existência de pessoas para fazerem esmolas. O Chá do Padre forma filas todos os dias no largo de São Francisco. A ceia de Natal dos pobres, os cursos para estudantes carentes, o apoio aos idosos, o acolhimento de estrangeiros, o aviamento de reciclagem, praticamente todas as ações sociais do centro de São Paulo estão vinculadas aos franciscanos.

Esse aspecto caritativo e a escolha do nome adotado pelo cardeal Bergoglio fez eu dar uma das maiores barrigadas da minha vida. Quando ele optou pelo nome Francisco, inédito no rol de papas até então, o pessoal da São Francisco exultou com a homenagem ao poverello de Assis. “Bando de burros”, pensei eu, sem empatia alguma. Frente às pouco comentadas (mas conhecidas no meio) rusgas entre jesuítas e franciscanos, tolamente pensei que a homenagem iria para São Francisco Xavier, este sim nome emérito da ordem do novo papa. No final das contas, o burro fui eu, porque o entendimento foi acertado, e eu, arrotando conhecimento e empáfia, falei uma grande merda. Mais um aprendizado para aquele que vos fala.

Mas eu queria falar sobre a rememoração de uma profecia que sempre acontece por ocasião da morte de um papa. Desde que me conheço por gente, assisti a quatro passagens de bastão: começando pela morte de Paulo VI, as de João Paulo I, João Paulo II, Bento XVI e Francisco I, envolvendo cinco papas ao total. A que veio após a morte de Paulo VI foi ainda na minha infância, mas fiquei marcado pelo medo da profecia de São Malaquias, já bastante explorada pela mídia da época, a ponto de ser necessário um longo sermão do vigário da região, Padre Antônio, informando que ninguém precisava ficar alarmado. Pois é, fake news não vem de hoje.

A tal da profecia dos papas é um texto atribuído a um abade irlandês do século XII, São Malaquias de Armagh. O texto descreve, através de designativos, uma visão em que o clérigo teria vislumbrado a sucessão de papas que ocorreria através dos tempos, partindo do momento dessa revelação até o que seria o último dos sumos pontífices, o Papa Pedro Romano, ao término dos tempos. Como ele enumera 112 papas nesta lista, então estaríamos, em algumas contagens, com o papa recém falecido sendo ele próprio o Pedro Romano ou sendo o seguinte, que será escolhido no conclave que está acontecendo agora, dependendo da interpretação que se fizer das contagens. Como o Papa Francisco já morreu, parece que a aposta vai recair neste que vem em breve.

A questão é que a profecia somente aparece escrita quatro séculos depois do início da lista, em uma coletânea de textos coligida pelo monge Arnoldo Wion chamada de Árvore da Vida. Lá, a profecia dos papas lista-os por designativos, e não pelo nome próprio. Eles dizem respeito à origem, a fatos marcantes da vida do pontífice ou mesmo de aproximações com o nome de batismo. Neste escrito, nota-se que os primeiros papas descritos têm uma precisão impressionantemente grande. Por exemplo, o 13º papa da lista é Clemente III, que é apontado como “de schola exiet”, que significa “ele virá da escola”. O nome próprio deste papa é Paolo Scolari, o que demonstra uma proximidade muito grande. Já Urbano IV, francês da região de Champagne, é designado “Jerusalém de Champagne”, e por aí afora. É impressionante, mas a questão é que essa precisão se perde a partir do século XVI, justamente quando se dá a publicação do livro de Wion. Os designativos passam a ser mais genéricos, podendo ser encaixado com justificativas mais amplas, sendo que várias vezes era necessário forçar a barra para dar liga. Designativos como “fogo ardente”, “fé destemida”, “de boa religião” podem ser atribuídos praticamente a qualquer cristão, com muito mais facilidade que os primeiros vaticínios, e assim a profecia continua se “realizando”.

Somado ao fato de não se encontrarem outras fontes que contenham a profecia, tal fenômeno denuncia que não há historicidade neste texto. Para os adeptos da tese de que o último papa seria Francisco, já deram com a cara no muro. Quanto aos que julgam ser o próximo, veremos. Quando você sai do campo e vai para a arquibancada, acha o jogo mais maluco ainda, e tem gente ressuscitando essa história por chacota, mas há pessoas religiosas, de dentro da igreja que leva a história a sério.

E por que diabos (epa!) alguém faria toda essa história da carochinha? A troco do que? São boas perguntas. A consequência direta é dar credibilidade para uma profecia, algo normalmente muito difícil de fazer, como provam outras técnicas, como a ambiguidade. Manter uma aura de mistério sempre prenuncia a necessidade de um iniciado que interprete o dito, o que dá uma autoridade a esse vate, porque somente ele e poucos outros mantém contato direto com as divindades. Também é possível pensar em problemas de tradução, seja das palavras, seja das intenções, o que pode distorcer a versão apresentada. Ou pode simplesmente ser uma chacota, ou ainda uma vontade de concretizar um desejo, talvez até de boas intenções. Há ainda a intenção de dar consistência para algumas predisposições morais que, com a existência de uma profecia, ganha aspecto mais divinatório, e, portanto, com a chancela da divindade que lhe dá cobertura. O fato é que a manobra é falaciosa e exemplificativa de um artifício muito utilizado quando se quer dar a impressão de que uma profecia foi cumprida. O nome que os historiadores dão a ela é vaticinium ex eventu, ou vaticínio após o evento.

A ideia é simples. Ao atribuir um fato qualquer a uma fonte muito antiga, eu ganho a possibilidade de dizer que estava adivinhando um evento que, na verdade, eu já conhecia. Ou seja, eu “prevejo” fatos passados como se eles ainda fossem acontecer no momento em que faço o vaticínio. É um modo que, a um primeiro olhar, parece ingênuo nos dias de hoje, mas que funciona muito bem com eventos antigos, ou seja, onde há dificuldade de estabelecer a cronologia exata dos eventos. A própria dedução de que a profecia dos papas é furada se dá por meios indiretos, notadamente pela mudança do teor das descrições, que mudam do certeiro para o ambíguo em um momento específico, o que é a melhor certidão de que tem carne por baixo do angu.

A melhor explicação psicológica vem do viés de juízo retrospectivo, aquele famoso efeito eu-já-sabia que tenta nos colocar como renomados analistas dos mais variados assuntos. Falei com detalhes sobre ele neste texto, mas, só para criar um elo com o que estou discutindo agora, trata-se da tendência em acreditar que algo do passado era mais passível de previsão do que era de fato após a sua concretização. 

Esse é só o exemplo que me inspirou o texto. O vaticinium ex eventu é sobejamente utilizado em épocas antigas. Bons exemplos vêm da própria Bíblia.  Historiadores sérios (inclusive cristãos) perceberam que muitas das profecias contidas nos Evangelhos foram escritas após os fatos que preveem. Isso porque, partindo da premissa de que o Evangelho mais antigo, o de São Marcos, foi escrito cerca de 40 anos após os fatos que procura descrever, deduz-se que todos os eventos ocorridos no período que vai da morte de Jesus até a escrita do texto já eram conhecidos. A destruição do templo de Jerusalém, por exemplo, já era um acontecimento, e não uma predição. Outro caso está no livro de Daniel, que é preciso nas incursões de Antíoco IV na Judéia, mas tropeça nas previsões sobre sua morte. Isso significa que ele é escrito durante o reinado do déspota em questão, e não antes de sua chegada ao palco dos eventos.

Sendo assim, podemos concluir que nossa sanha por grandes eventos traz predisposições para aceitar manobras falaciosas, que deem qualquer fundamento maior a eles, mesmo que nasçam do absurdo. Que o novo papa seja digno digno de admiração até mesmo de nós, ateus. Isso significará que ele será bom para a humanidade inteira. Amém! Bons ventos a todos!

Recomendação de leitura:

Nada como ir à própria fonte. Tem um endereço onde podemos ler a árvore da vida completa, com a dificuldade de ser o texto original em latim, mas que é facilmente compreensível na parte da profecia.

WION, Arnold. Lignum Vitae. Disponível em: https://archive.org/details/bub_gb_a4o8AAAAcAAJ/page/n3/mode/1up. Acesso em 26.04.2025.

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