(O que é Filologia? Muito utilizada nos estudos de obras antigas, é uma ferramenta imprescindível no estudo filosófico)
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Não é a lei do eterno
retorno, mas sim, as coisas que vão e voltam. Tinha fechado esta série, e
não pretendia retomá-la, porque tinha lá seu escopo fechado e bem completo, e
acrescentar coisas não estava na pauta. Acontece que há momentos em que parece
existir um bicho-de-pé fazendo incômodo, e enquanto não nos livramos dele não
temos sossego. Achei que faltavam coisas
aqui e resolvi reabrir o catálogo. Vamos, então, para a segunda temporada.
Quando iniciamos os estudos de uma graduação em Filosofia,
sempre nos deparamos com as instruções dos mestres nos mandando tomar cuidado
com as interpretações de época. Isso acontece pelo óbvio motivo de que
começamos pelo começo e vamos buscar coisas lá da Grécia antiga. Como se pode
supor, nem os gregos atuais falam da mesma maneira que há três mil anos, e
muito pode se fazer de confusões quando não se adotam as prudências de estilo. Ocorre
que somente descemos a essas profundezas quando vamos partir para empreitadas
mais complexas, como em uma tese de mestrado ou em uma monografia bem feita. É
exatamente aí que podemos nos deparar com as inúmeras contradições da
linguagem, que pasmem, não são exclusivas do português.
O ideal seria aprender a língua-mãe do autor em tela ou
cenário que gostaríamos de estudar, mas primeiro que os cursos são caríssimos e
o problema não seria totalmente resolvido, porque, como eu disse, o grego
moderno é bem diferente do grego antigo, o latim nem existe mais e via discorrendo. Isso vai dando um pouco
da dimensão da complexidade da temática, porque um termo mal interpretado pode,
eventualmente, mudar toda a compreensão que temos de uma frase, de uma sentença
ou até de um texto todo. Por esta razão, os estudos filosóficos, religiosos,
históricos e linguísticos perceberam a necessidade de analisar cuidadosamente o
efetivo significado dos termos originários e sua articulação com o texto, o que
fez com que nascesse a Filologia.
O próprio termo em si já pode nos trazer uma ideia de sua função. Quando queremos fazer uma tradução da etimologia desta palavra, desmembramos os termos gregos philo e logos. O primeiro significa aquele amor que temos por pessoas e coisas sem a necessidade de uma ligação física, com quem temos uma afinidade. Já o logos é normalmente traduzido como razão, o mecanismo do correto pensamento. Desta forma, Filologia pareceria querer dizer "amor à razão". Ora, mas não é exatamente isso que Filosofia significa?
Aqui, precisamos desdobrar outros significados possíveis
para o termo logos. Além de razão, pode significar estudo. Assim sendo,
teríamos um significado de “amor aos estudos”. Não parece fazer sentido, porque
é genérico demais. Porém, se procurarmos ainda mais um significado, teremos
logos como sinônimo de palavra. Amor às palavras? Agora parece que está mais
correto, porque é esse o sentido: o filólogo é o estudioso do significado
remoto das palavras, que tem tanta afinidade com a literatura que vai buscar
suas raízes mais profundas, embora seja importante não confundi-lo com os etimólogos,
tema que também tratarei, mas para diferenciar rapidamente, temos que o filólogo
busca o sentido dos termos através de sua pesquisa temporal, enquanto o etimólogo
se preocupa mais com a sua origem em si.
A Filologia, portanto, estuda as fontes antigas para
determinar a melhor formação de um determinado texto que carece de uma
compreensão mais completa. É importante porque em todo pensamento
utilizamos dados, e quanto mais próximos da realidade eles estiverem, melhor
embasadas estarão nossas conclusões. Quando pensamos em origens muito
longínquas, sempre maiores serão os desvios semânticos que poderão ser
causados.
A necessidade de se estudar a adequação dos textos é
bastante antiga. Já na Biblioteca de Alexandria, que existiu entre III aC
e III dC, percebeu-se que os textos do grego Homero tinham muitas divergências
entre si, dependendo do copista e da região da Grécia da qual um manuscrito
tivesse chegado. Claro, estamos em uma época em que o fator humano influenciava
muito mais o trabalho de reprodução do que nos dias de hoje, porque lá ocorriam
erros de supressões, de repetições, de inversões de ordem e até mesmo de
alterações propositais, então era através da comparação entre estes textos e da
consideração de outros fatores contextuais que faziam com que esses primeiros
filólogos desenvolvessem suas técnicas. Não bastava pegar dois manuscritos homéricos
divergentes e fazer um uni-duni-tê para dizer qual estava mais correto. É
preciso trazer subsídios que possam trazer paralelos e apontar para uma melhor
opinião sobre o que é mais válido.
O trabalho do filólogo é fundamentalmente de pesquisa e
investigação, e ele usa dos mais diferentes artifícios para conseguir dar
unidade e uniformidade a um texto. Em Filosofia, para dar um exemplo, temos
inúmeros pensadores dos quais só possuímos fragmentos de suas obras, como é o
caso dos poemas de Parmênides
e Empédocles.
Um dos trabalhos dos filólogos está em supor de maneira coerente o que
preencheria essas lacunas, especialmente pela remissão a outras fontes.
É preciso lembrar que compilados muito antigos nem sempre
estão colocados em ordem cronologicamente correta, o que pode causar
dificuldades em compreensão. Um dos casos mais famosos é a organização da obra
aristotélica por Andrônico de Rodes, o que, sem querer, acabou denominando a Metafísica.
Ele agrupou simplesmente os textos a que tinha acesso por temática, não se
preocupando muito em obedecer uma cronologia. Essa questão da datação é um dos
grandes problemas para a Filologia.
Vamos fazer uma brincadeira aqui. Vamos fazer de conta que
pediremos para um filólogo ordenar os trezentos e tantos textos deste blog,
supondo que não existam as datas. Lá pelo meio dos textos, ele vai encontrar um
que falará sobre uma apresentação,
e concluirá que se trata do início. Depois, procurará por contextos de época,
mesmo que sejam discretos, como a informação do término de uma novela.
Depois, ele perceberá que há uma série de hiperlinks fazendo referência a
outros textos deste mesmo espaço. Se há referência, ela só pode ser feita
apontando para uma preexistência. Ou seja, um texto referido é anterior ao
texto referente, o que facilitará na ordenação. Ainda procurará por outros
sites que apontem para o meu, estes contendo data ou outra dica temporal, e com
isso irá construindo a melhor sequência possível.
Um outro exemplo do trabalho filológico, desta vez concreto,
vem do texto conhecido como Epístola aos Hebreus, que as igrejas cristãs
costumavam atribuir ao apóstolo São Paulo. Entretanto, uma análise mais
aprofundada faz com que essa autoria não seja mantida em pé. Isso é feito
através de um amplo trabalho filológico, que considera os seguintes pontos: é um
documento que não possui formato de carta, como é costumeiro de se ver nas
outras epistolas do santo em questão, que utiliza uma saudação aos
destinatários e faz um preâmbulo dos temas que serão tratados, além de se
identificar claramente, o que não ocorre aqui. Outra questão é estilística: a Epístola
aos Hebreus é de uma densidade literária muito mais sofisticada do que a rudeza
da escrita típica paulina. Alguns termos usados frequentemente, como Cristo
Jesus e Deus Pai estão ausentes em Hebreus, sem contar que certas atribuições
teológicas lhe são exclusivas, como o Cristo considerado como sacerdote. Sendo
assim, a crítica tende a considerar desconhecido o autor desta carta, ainda que
a tradição e alguns elementos secundários possam indicar a autoria de são
Paulo. Poder-se-ia considerar que o nosso caro santo pudesse ter multiplicidade
estilística? Poder-se-ia, mas é preciso lembrar que nem todo mundo é Fernando
Pessoa, e há o ponto da objetividade que precisa ser considerado. Não havendo
um forte motivo para a variação estilística, não faz sentido que esta seja
aplicada.
Um texto nunca é escrito para si mesmo, a não ser aqueles
famosos entitulados "meu querido diário". Isso significa que São
Paulo escrevia para a florescente comunidade cristã, que Aristóteles escrevia
para os alunos do Liceu e eu escrevo para interessados em Filosofia geral. Como
se pode ver até agora, há método no desvendar filológico, que deve ser seguido
no máximo da possibilidade. Todos aqueles que buscam estabelecer uma
comunicação lançam mão de um determinado código que não lhes é exclusivo, e,
portanto, possuem elementos de identificação das chaves de leitura. Isso pauta
o trabalho do filólogo, que, grosso modo,
possui fases distintas, mas que se entrelaçam para dar forma às suas
conclusões.
Como todo trabalho minucioso, um estudo filológico é dividido
em fases que, por sua vez, é dividida em etapas. Segundo Bassetto (2001), uma
boa metodologia para a análise filológica é assim dividida:
1ª fase: crítica
textual – este é o momento em que o pesquisador vai buscar reconstituir “fisicamente”
o texto, ou seja, juntar todos os elementos disponíveis para se obter um
documento o mais próximo possível do original. Tem as seguintes etapas:
Recensio – este é
o levantamento dos códices existentes de uma obra. Por códice, podemos entender
as diferentes versões da mesma, feitas pelo próprio autor ou por copistas, os
seus fragmentos e as remissões que lhe são feitas. São os “caquinhos” que vão
reconstituir a obra.
Collatio codicum –
estando todas as versões e fragmentos disponíveis, este é o trabalho de
comparação feita entre eles para que seja possível obter um manuscrito mais
completo. É como se estivéssemos colando as peças do vaso de maneira a deixar a
menor quantidade de buracos possível.
Estemática – agora,
com o códice remontado à sua frente, o filólogo vai desvendar a sua geneaologia,
identificando suas origens possíveis através dos relacionamentos e como ele foi
transmitido pelos tempos até chegar na peça que tem à sua frente.
Emendatio – é a
última etapa desta fase, quando são realizadas correções necessárias no texto,
como erros de cópia, intervenções inapropriadas, máculas e lacunas. É uma etapa
decisiva para a qualidade do trabalho, porque contará com o conhecimento e com
a intuição do pesquisador que a esteja executando.
2ª fase: crítica
histórico-literária – tendo um códice restaurado, estão reunidos os
elementos que permitem ao filólogo partir para a fase qualitativa da análise,
que visa aclarar os pontos obscuros do texto a partir de elementos
circunstantes a ele, ou seja, através do encaixe em contextos.
Autenticidade – o
mais óbvio, consiste em verificar a correta autoria do texto. Não se trata
apenas de dizer se o autor atribuído é o correto, mas de se determinar se a
escrita não se deu por copistas ou por epígonos*.
Datação – aqui,
busca-se determinar a data em que a obra foi redigida. Às vezes, isso não é
possível de se fazer, e neste caso a tentativa é de ao menos determinar uma
época em que se deu a redação do códice.
Fontes – são citações
diretas e indiretas feitas à obra, um elemento muito importante para detecção
de autenticidade, porque busca encontrar imitações, plágios ou influências
legítimas de outros autores no texto. Pesquisando-se fontes, é bastante comum a
detecção de obras perdidas, como o Evangelho de Matias em relação ao Novo
Testamento.
Circunstâncias – aqui,
o filólogo colocará o códice à luz de seu contexto histórico, social, cultural
e político, ou seja, tudo o que estava ao redor do texto para a compreensão da
mensagem que ele carrega.
Sorte – sim,
sorte. Não no sentido de que somos sortudos por achar um texto tão valioso, mas
para desvendar o êxito de uma obra: a quantidade de cópias disponíveis, suas
versões, a quantidade de referências e remissões que outros autores fazem a ela
e assim por diante.
Unidade e integridade
– é a verificação se existem adições de textos complementares ou supressão de
partes através da pesquisa das fontes ou da falta de coesão textual.
Linguagem – neste
ponto, é averiguada a originalidade da linguagem utilizada ou se a mesmo imita
outros autores e estilos de época.
Avaliação crítica –
Este é o ponto final desta fase, em que o filólogo determinará o valor documental
e literário do códice apreciado. O parecer favorável garante o prosseguimento
da análise, por conta do interesse acadêmico que é despertado pela
reconstituição de obra relevante.
3ª fase: Exegese do
pormenor – quando um filólogo conclui seu trabalho, tem diante de si uma
peça plena de detalhes e pormenores que são herméticos, mas que necessitam de maior
detalhamento para que os leitores possam compreender não somente o texto, mas toda
a análise que foi realizada, esclarecendo obscuridades, dúvidas e incoerências.
É nesta última fase que o trabalha ganha, formalmente, aquele sem número de
notas de rodapé e explicações contextuais, buscando trazer autonomia para quem
a ler. Feito essa fase, o códice está pronto para conclusão e edição, seu
verdadeiro final feliz.
Diante de todos esses pontos, podemos perceber como é
importante a Filologia para o estudo de toda área que necessita de elementos
antigos, porque, se assim não fosse, muito mais complicada seria a tarefa de
aduzir algum tanto de conhecimento. Já pensou, Filosofia sem Sócrates?
Bons ventos a todos!
Recomendações de leitura:
Utilizei a obra abaixo para dar fundamentos a este texto:
BASSETTO, Bruno Fregni. Elementos
de Filologia Românica. São Paulo: Edusp, 2001.
Recomendo também a revista de Filologia e Linguística Portuguesa, editada pela USP e disponível
no link abaixo:
https://www.revistas.usp.br/flp
*Epígonos eram muito comuns na Antiguidade Clássica.
Geralmente, eram discípulos que escreviam em nome de um mestre, basicamente
para lhe granjear o prestígio ou fazer homenagens.
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