(Números assustam, mas só enquanto não conseguimos encontrar aplicação prática para eles. Vamos falar sobre Estatística, importante para todas as áreas do conhecimento, inclusive Filosofia).
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Toda vez
é a mesma pergunta: por que tenho que entregar as estatísticas se o ano ainda
não acabou? Talvez a casa onde eu trabalho não seja o único lugar do mundo onde
as coisas são assim, mas ainda acho absurdo que tenha que entregar números de
um exercício que ainda não fechou, porque o fator chute sempre estará presente.
Mas o pessoal de cima quer fazer bonito para os sacerdotes mais de cima ainda e
querem entregar números no último dia do ano, como se nossa realidade fosse
pitagórica link. Isso já deu rolo, inclusive. Havia previsão de uma entrega que
se daria no baixar das cortinas do ano corrente. Por um desses jenesequás da
vida, a coisa não deu certo e ficou para o ano seguinte, ocorrência do
dia-a-dia. Não seria nada para quebrar a bolsa, mas aconteceu o quiproquó. Qual
foi o problema? Nas estatísticas do ano seguinte, constou novamente a entrega
do tal módulo, só que lá em janeiro. Alguém mais espertinho se deu conta e veio
reclamar a dualidade. Até explicar que isqueiro com canudo não faz lança-chamas,
foi um palavrório de dar dó, principalmente se levarmos em conta que estava
vetada a exposição da real razão: a pressa na produção dos números, como se
isso fosse modificar a realidade.
De fato,
e contrariando a premissa contábil, os números aí estão para dar reflexo do
mundo ao nosso redor, vitalidade das empresas inclusa, e não aquilo que
queiramos/precisemos. Só que um número desencaixado de seu contexto não
significa nada, mesmo que digamos que, por exemplo, representem valores
monetários. Se eu falo R$ 10.000,00, o que isso significa? Se for um carro, é
baratíssimo; se for uma roupa, é muito caro, e se for um salário, é bem
razoável. Por esta razão, sempre é importante, para propósitos práticos, que
haja bases de comparação e de contextualização. Em resumo, é preciso que os
números não vivam sozinhos, mas que convivam com outros, e que esta articulação
seja interpretada. Eles traduzem quantidades, qualidades, variações, previsões
e muita coisa que é útil para dizer quem somos e o que podemos ser. E isso é
uma função da Estatística.
Mas,
peraê… este é um blog de Filosofia, e que tipo de relação ela pode extrair da
Estatística? É que temos uma ideia preconcebida de que a Estatística é uma mera
aplicação matemática, quando, na verdade, temos um espelho da realidade por
trás dos números, algo semelhante ao que a Filosofia faz com as palavras.
Claro, a
objetividade da Estatística costuma ser muito maior, já que ela trabalha com
conceitos muito mais concretos que a linguagem dúbia da Filosofia, mas por ela
também se reflete, se especula, se raciocina e se aplica lógica, além de ser
uma ferramenta primordial em pesquisas, o que também faz parte do universo
filosófico. Vamos aprofundar uns dois palmos.
Uma boa
definição para Estatística é a parte da Matemática link que estuda as relações
entre fenômenos e números, através de metodologias apropriadas de coleta e
interpretação dos dados. Tem origem mais remota no latim status, que significa
'estado', ou seja, o modo no qual determinado objeto se encontra, como ele
está, como ficou parado, estático. Dessa forma, a Estatística nasce com o
propósito de demonstrar uma fotografia de um determinado momento de um objeto
de estudo. Quando o governo solta as revoadas de recenseadores do IBGE pelo
Brasil agora, quer, no seu fundamento, levantar estatísticas, um retrato do
país em um momento específico, e que pode ser comparado com os censos
anteriores.
E por que
isso? Porque é preciso estudar a população como ela é, para que sejam
desenhadas as políticas públicas de acordo com os anseios e necessidades dos
agrupamentos humanos. É preciso medir como são e como eram, para entender a sua
evolução ou regressão. Os levantamentos estatísticos, nestes termos, são
imprescindíveis para descobrir o que somos como coletividade, e, sim, isso é
ontológico, porque descortina a parte visível do nosso corpo social.
A
Estatística é daquelas disciplinas que causam arrepios na moçada do ensino
médio, embora esteja presente em nosso quotidiano de maneira imperceptível às
vezes. É que matemática assusta, eu mesmo fico assustado diante de qualquer
chave de raiz. Mas a Estatística é uma das áreas onde mais nós podemos ver a
ideia abstrata dos números se tornar concreta. Em tudo é visível a Estatística:
quando temos um aplicativo de scout dos jogos de futebol, tão comuns hoje em
dia, aquilo é pura estatística - quantos chutes, quantos desarmes, os árbitros
que mais dão cartões. Quando alguém está bombando no Ibope, é porque há uma
estatística que mede isso. As pesquisas de intenção de voto é mais um exemplo,
inclusive o cálculo das tão famosas margens de erro. Exames patológicos são
estatísticos, seguros de automóvel são estatísticos, aumentos salariais são
estatísticos. Em tudo há Estatística.
Uma
numeração absoluta é uma entidade muito abstrata para nossos pobres cérebros
humanos. Isso acontece em várias circunstâncias, seja quando falamos em números
muito grandes, seja quando falamos em quantidades de dados muito diversas.
Quando um índice fala que setenta por cento da população está insatisfeita com
certo governante, temos uma dimensão muito mais palpável - a cada dez pessoas,
sete desaprovam o mandatário. Isso está no escopo do que presenciamos
habitualmente, é facilmente perceptível. É bem possível que haja dez pessoas ao
seu redor neste exato momento, e isso pode te dar uma dimensão bem mais próxima
da realidade do que dizer que há um número tal de insatisfeitos.
A Estatística
produz resultados que podem ser classificados em dois tipos: descritivos e
inferenciais. Vamos lançar mão de uma historinha fictícia que vocês vão
entender rapidinho a diferença. Imaginemos um clube qualquer que esteja às
vésperas de trocar sua diretoria. Várias chapas são formadas e quebram o pau
entre si, como sói acontecer nestes momentos, buscando angariar seus votos
daquele jeitinho que tão bem conhecemos em Terra Papagalia. Coincidentemente,
esse clube fica perto de casa, e eu acompanho todo o burburinho que cerca o
grande evento. Na padaria se discute, no boteco se discute, na banca de jornal
se discute e eu vou ouvindo preferências e deméritos. Boa parte daqueles que eu
ouço são votantes, e daí consigo perceber uma linha de tendência para a chapa
encabeçada pelo candidato Fulano, e isso me permite supor que o tal será o novo
presidente da efusiva agremiação. Entretanto, o tal pleito transcorre em um
domingo ensolarado, e o resultado sai já a noite, antes do dominical favorito
da galera: vitória da chapa de Sicrano, com 57% dos votos.
Vamos lá.
Quando eu estava ouvindo as bravatas nos bares e farmácias, registrava na minha
cabeça não uma totalidade dos eleitores do conselho, mas parte dela, uma
amostra. Sendo assim, era-me possível fazer uma suposição, uma hipótese, uma
inferência. Essa inferência não vinha do nada, mas de uma coleta muito superficial
que eu mesmo realizava, empiricamente. Por isso, a estatística inferencial é
aquela em que, a partir de um grupo amostral, podemos generalizar uma
expectativa de resultado para o grupo maior. Por outro lado, a eleição contém a
totalidade dos votos, e o resultado final é um espelhamento da vontade de todo
aquele grupo, e não há o salto da generalização porque ele já abarca todas as
possibilidades. A estatística, neste caso, descreve um fenômeno, sem
necessidade de suposições, e é aí que ela é chamada de descritiva.
Este
exemplo também serve para diferenciar o conceito de população e de amostra.
Quando é possível fazer uma pesquisa que conglomere todo um grupo de interesse,
sem deixar nenhuma parcela significativa de lado, temos uma população, que é o
objeto calculado na eleição. Se, por outro lado, não é possível inspecionar por
completo esse mesmo campo, então temos uma amostra, e a partir dela fazemos a
projeção para o todo, o que gera a famosa margem de erro. Isso significa que,
quanto maior o n amostral, menor será a chance de que a projeção esteja errada.
Isso é o que chamamos de intervalo de confiança, vital em metanálise, que
veremos em breve em outro texto que estou preparando. Vou dar um exemplinho bem
breve e comum. Imagine que você vai ao seu médico e alega sede excessiva, uma
certa fadiga e tenha um evidente sobrepeso. O doutor suspeita que você tenha
diabetes. Para se certificar, ele lhe pedirá um exame de sangue. O laboratório
colherá uma amostra que, naturalmente, não representará a totalidade do sangue
que há em seu corpo, sob pena de que você morra. Entretanto, ele não retirará
apenas uma gotícula, pois seria uma amostra muito pequena, o que geraria um
intervalo de confiança ruim, porque o sangue não é absolutamente homogêneo. Um
frasquinho é suficiente, por conter quantidade o bastante para dar uma margem
de erro baixíssima. A margem de erro precisa ser bem calculada, para que não
seja tão grande a ponto de inviabilizar a pesquisa, e não tão pequena a ponto
de seu resultado não levar a conclusão alguma. Haverá pouca diferença entre a
medida do frasquinho e a inspeção total do sangue do seu organismo, a ponto de
ser desprezível. É isso que significa aqueles famosos “2% para mais ou para
menos” das pesquisas eleitorais. Sendo assim, o intervalo de confiança é a
faixa em que uma amostra reflete com precisão a totalidade pesquisada. Quanto
menor ele for, mais preciso será seu resultado.
A partir
da tipificação estatística, podemos pensar nos seus modelos. Quando analisamos
uma população como um todo, nossa análise estatística é determinística, ou
seja, a coisa é o que é, sem nenhuma margem de dúvida. Por outro lado, quando
analisamos amostras, o resultado obtido é probabilístico. Desta forma, não
conseguimos certeza absoluta de um resultado, mas sim o quanto ele é provável.
Novamente vamos dar um exemplo de cada. Quando fazemos um experimento
científico com o ponto de ebulição de determinados líquidos, perceberemos que,
a cada vez que cumprirmos os mesmos conjuntos de fatores, um líquido ferverá sempre
na mesma temperatura, não importando quantas vezes se repetir o feito. Isso
indica que não há uma probabilidade de ocorrer o fenômeno, mas uma
determinação. Com relação à probabilidade, vamos pensar em um problema das
grandes cidades: o roubo de veículos. Não é absolutamente certo que você será
assaltado quando for dar um rolê no seu possante, mas sabemos que a
possibilidade existe. Com base na probabilidade de você ser roubado, as
seguradoras fazem complexos cálculos que elevam ou diminuem o valor do prêmio a
ser pago. Não há uma determinação no evento roubo, mas uma probabilidade, que
pode ser traduzida em índices que embasarão a facada no seu bolso.
Por fim,
a Estatística é uma ciência como as outras, que busca seu aprimoramento e
aproximação com a verdade através de técnicas cada vez mais apuradas. Um dos
índices mais famosos em Sociologia moderna é o IDH - Índice de Desenvolvimento
Humano. Ele não é perfeito, porque considera apenas três itens de um conjunto
muito maior - saúde, educação e renda, e deixa de lado certos fatores mais
pessoais, como a percepção de bem-estar ou da sensação de liberdades
democráticas, mas mesmo assim é contundente em dar um retrato da qualidade de
vida das populações mensuradas. E é um mecanismo bastante recente. Foi
desenvolvido em 1990, e adotado pela ONU nesta mesma época. Dessa forma, com um
único numerinho, que varia de 0 a 1, conseguimos situar um país com foco nas pessoas
que lá habitam, sem as longas volutas dos índices e quocientes econômicos.
São
inúmeras as aplicações da Estatística: a Sociologia mede por ela os índices
sociais, a Medicina computa a eficácia de remédios, a Física calcula a
probabilidade de colisões espaciais, a Contabilidade verifica as variações
patrimoniais, a Economia traduz estatisticamente as valorizações de moedas e
assim sucessivamente. A estatística mede variância, probabilidade, posição em
uma escala, tendência e dispersão, desde simples médias de notas que te afligem
ao fim do ano até milimétricas margens de erro que conduzem foguetes a Marte.
Por isso ela é fascinante e assustadora. Bons ventos a todos.
Recomendação
de canal:
A UNIVESP
possui uma bela playlist que aborda o tema em questão. Para assisti-la, segue o
link do primeiro vídeo da série.
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