(Quando falamos de Ética ou Estética, necessariamente tocamos na atribuição de valores. Mas o que eles são? É o campo de estudo da Axiologia)
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Bem na semana que antecede o Natal, é costume que demos uma
puxadinha no freio. Não exatamente no comércio, que mesmo nestes tempos bicudos
redobra seu trabalho, mas nas outras áreas mesmo, incluindo na informática,
onde ganho meu pão. Sim, meus queridos. Professores precisam considerar outras
opções aos seus vencimentos decepcionantes. Mas é um bom momento de largueza
nas agendas, e que aproveito para deslanchar com um monte de validações que
preciso fazer e revisões nos documentos em que atuo, já que as demandas caem
quase a zero.
Uma dessas revisões levou a uma reunião, e em tempos de home
office, os companheiros de trabalho ficam íntimos de todo mundo na casa, que
passam para lá e para cá, às vezes indiscretamente. Nesta semana, as coisas
estão agitadas para o meu lado, porque uma série de desacertos no eixo
Curitiba-São Paulo-Taubaté fez com que tudo se atrasasse. Isso foi notado pelos
colegas, a quem pedi interrupções várias vezes para atender telefones e enviar
mensagens. Perguntado sobre o fenômeno, contei dos perrengues e o Carlão tacou,
filosófico e lapidar: “a alegria de reunir a família é proporcional à
trabalheira de reunir a família”. Foi parar no meu status do Skype.
Pois então temos aí, sintetizada nessa frase, um dilema. Ao
que damos mais importância, à festa ou à tranquilidade? À união ou à economia?
O que nos é mais caro? Ao que damos mais valor? Aliás, o que é um valor? Esse é
o campo de estudo da Axiologia.
Em primeiro lugar, precisamos esclarecer que este é um ramo
da Filosofia subsidiário à Ética,
à Estética,
e, de certa forma, à Epistemologia,
porque o valor não é uma coisa solta, e precisa ser atribuído a algum objeto,
seja do bom, do belo ou do verdadeiro. Como essas são atribuições que damos ao
meio em que vivemos, é preciso tornar claro o que significa cada um desses
valores e, mais ainda, qual o propósito de se existir um valor. É um termo que
vem do grego axios, que significa
algo que "possui valor", e que vem sendo utilizado desde os finais do
século XIX para tentar compreender a natureza dos valores, entendidos como
julgamento das qualidades das coisas.
Pensamos em valores e já temos mentalmente à nossa frente um
maço de dinheiro. Evidentemente, para a Filosofia, valor não só não é apenas
isso, como também nem mesmo está nas primeiras posições de uma ordem. Valor é
algo que podemos atribuir a um objeto de acordo com a necessidade ou com a
vontade que temos dele. Pense no ar que você respira, e você atribui algum
valor a ele pela sua necessidade; pense que este ar está perfumado, e você dá
valor a ele por conta de uma vontade sua, de sentir um cheiro agradável.
Pensemos inicialmente que a Axiologia está apontada
eminentemente para a humanidade. Isso acontece porque o ser humano é o único em
condições de atribuir valores. É possível pensar que animais tenham capacidade
nervosa para distinguir coisas boas para si, mas aqui caímos na capacidade
reflexiva. O Homem-Cueca,
por exemplo, sabe muito bem que a carne é uma coisa gostosa, mas isso não está
inserido em sua capacidade de julgamento. Faz parte de seu instinto definir que
coisas saborosas são também de valor nutritivo, mas a prova de que isso não é
conhecimento é o fato de que há coisas gostosas que também lhe fazem mal. O
animal não diz que isso é bom, aquilo é belo e esse outro é precioso, mas nós
sim. Por isso nós dizemos que o ser humano é o único que é valorativo, ou seja,
tem a capacidade de atribuir valor.
Um dos atributos do valor é o de pautar condutas. Se alguém
acha que é um valor a coragem, então deve fazer por onde para ter atitudes
corajosas; se entende haver valor em ser probo, deve evitar pretender os bens
alheios; se vê com bons olhos a caridade, precisa exercitar seu altruísmo, e
assim por diante. Como achamos caro aquilo a que damos valor, pretendemos
seguir as qualidades que esse valor nos dá, sob pena de sermos meros cínicos,
como o político que arrota honestidade cheio de dinheiro público nos bolsos.
Intuitivamente, nós sabemos que uma coisa é boa ou má, bela
ou feia. Contudo, sempre o fazemos baseados em um determinado parâmetro,
notadamente cultural e variável através dos tempos. Mas daí brotam algumas
questões: a que está vinculado esse parâmetro? Ele é contido no próprio objeto
ou parte do sujeito que lhe doa o valor?
Isso está diretamente relacionado ao modo com o qual
enxergamos as propriedades que um objeto tem. Quando olhamos para o que uma
coisa é, fazemos juízos de realidade. Uma bola, por exemplo, é redonda, é
branca e preta, está cheia e così via.
No entanto, a partir do momento em que atribuo um valor ético ou estético a
esta mesma coisa, eu faço um juízo de valor, como dizer que a bola é divertida.
Tenho um exemplo fácil para compreender essa diferença: chame uma pessoa de
gorda. Se ela não for, você estará fazendo despeito puro e simples, mas se ela
tiver índice de massa corporal acima de um determinado quociente, teremos, sim,
uma pessoa gorda, e isso é um dado da realidade. Entretanto, dada à condição
cultural que vivemos atualmente em nossas sociedades, há um vínculo da
obesidade com a feiura, e é aí que temos um juízo de valor, porque não há
apenas uma condição física exposta, mas uma condição estética, passível de
receber valor.
Há valores que estão intrinsecamente ligados às coisas, que
pertencem a elas e delas não se podem descolar. E há valores que são
extrínsecos, ou seja, que existem em função do valor intrínseco de outra coisa.
Como podemos exemplificar isso? O jeito é ir para o futebol.
Que valores podemos atribuir a uma partida de futebol?
Dependendo do juízo que se faça do esporte, ele pode ser bom quando as equipes
são capacitadas, enfadonho quando se armam fortes retrancas, triste para quem
perde, alegre para quem ganha, belo com a beleza plástica dos movimentos e dos
uniformes. São todos valores intrínsecos do futebol, que pertencem a ele mesmo
como prática. Entretanto, ele precisa de um espaço físico para ser praticado:
uma rua, um terreno, uma praia, um campinho ou seu local de excelência, um
estádio. O estádio faz parte da cadeia de valores do futebol, só que é um valor
extrínseco a ele. Se o estádio não tem futebol, ele não tem esse valor em si
mesmo que o futebol tem. Claro que ele tem os seus próprios valores intrínsecos,
mas é preciso perceber em que cadeia de valores estamos nos situando. Quando
pensamos no futebol em si, o estádio tem valor extrínseco.
Mas se há valores intrínsecos, quais seriam esses? Aqui,
vamos assistir ao nascimento de duas correntes: pluralistas e monistas. Para os
pluralistas, a coisa é simples. Há vários modelos diferentes de valores, que
podem ser atribuídos à felicidade, ao conhecimento, à liberdade e tantos
outros. Dessa forma, há inúmeras fontes de valores. Aos defensores do monismo,
todo valor se dá em função de uma única fonte: o prazer. Todo e qualquer valor
é atribuído a uma única característica: a capacidade de proporcionar prazer. A
única noção intrínseca é o prazer, e todos os demais valores são subjacentes a
ele. Dessa forma, a amizade é boa porque proporciona o prazer do relacionamento,
o conhecimento é bom porque proporciona o prazer de não se ver perdido perante
uma dúvida, a liberdade é boa porque proporciona o prazer de se tomar a decisão
que se quiser. Assim, cada uma delas possui um valor extrínseco em função do
único valor intrínseco, que é o prazer. Por isso, essa corrente é também
chamada de hedonismo, do grego hedoné.
Apenas aqui podemos atribuir valor: se proporciona prazer, é bom, é válido, é
precioso: se temos desprazer, tudo é o exato contrário.
Há ainda uma questão relacionada à posição em que o valor se
encontra na relação entre um sujeito e um objeto. Onde fica armazenado o
conceito do valor? Para o subjetivismo axiológico, não existe valor que esteja
fora do sujeito que doa valorização ao objeto ao qual volta sua
intencionalidade. Nesta visão, as coisas não possuem valor por si mesmas,
necessitando de alguém que lhes façam uma atribuição. Dessa forma, a bola é
divertida porque há alguém que lhe acha assim. Estando fora do campo da
consciência de um sujeito, a bola fica lá, parada em um canto, fora da cadeia
de valores. Já para o objetivismo, o objeto possui em si mesmo um valor,
ficando na dependência do sujeito unicamente fazer um juízo. Ou seja, uma bola
tem a característica de possibilitar diversão, dependendo do sujeito gostar ou
não dessa possibilidade. De qualquer forma, lhe é atribuído um juízo de valor:
divertido para quem gosta, entediante para quem não gosta.
Observando com cuidado a questão anterior, percebemos que o
valor, de qualquer forma, depende de um sujeito: ou ele doa o valor, ou
reconhece o valor. Entretanto, ainda é possível fazer uma investigação
ontológica do próprio valor: ele existe por si só? Existe o bom, o belo, o
justo destacados de um objeto e que são agregados a ele no momento de fazer a
valoração? Isso soa a platonismo, e é mesmo, porque este filósofo clássico
possuía a tese das formas perfeitas, que incluíam não somente os objetos físicos,
mas entes abstratos, como as virtudes. Modernamente, entretanto, é raro que uma
teoria substantiva com tal nível de isolamento prospere. O mais aceito coloca
os valores no campo dos conceitos e predicados, que tem sua existência em
função de um sujeito que observa e de um objeto que recebe uma atribuição. De
toda forma, um valor não é um mero acidente de um objeto ou uma elaboração de
um sujeito, como quereriam detratores da teoria do valor, e sim algo real,
inerente a tudo o que existe no cosmos.
Por falar nisso, há duas maneiras com as quais podemos
atribuir valores a um objeto: o sentido predicativo e o sentido atributivo. Por
exemplo: um objeto possui algum tipo de característica que dá sentido para sua
existência, e aqui pensamos em uma guilhotina. A boa guilhotina é aquela que
corta a cabeça do presunto de um golpe só, e isso faz parte dos seus predicados,
é o sentido da sua existência. Entretanto, guilhotinas são instrumentos de
morte, e lhe é atribuído um sentido ruim, mesmo que cumpra a sua função. A boa
guilhotina é aquela que produz o resultado ruim. Portanto, é preciso fazer essa
distinção para que não haja contradição entre os valores.
Por fim, a Axiologia tenta entender se existe uma hierarquia
entre os valores, ou seja, se há valores mais valiosos que outros. Esta é uma
inovação do filósofo alemão Max Scheler, de quem já falei neste
texto muito antigo. Segundo ele, não existe indiferença quando falamos de
valores. Ou eles estão em um polo, ou estão em outro. Isso porque a
neutralidade com relação a um valor é a sua negação. Um valor neutro é um valor
que não existe, porque não recebe carga alguma, o que é contraditório. Desta
forma, nunca estamos plenamente indiferentes em relação a um valor, apenas
menos ou mais próximos do que seria a linha imaginária, porém inexistente, da
indiferença. Sendo assim, individualmente sempre é possível hierarquizar o que
mais nos afeta em termos de valores, porque sempre traremos preferências
pessoais conosco. Percebam como, desta forma, a escala de valores escapa ao
racional, ficando no campo da sensibilidade. Ninguém explica porque prefere um
figo a uma banana, e não o contrário. Simplesmente se gosta mais do figo e
pronto.
Todavia, embora essa escala seja pessoal, devemos nos lembrar
de que Scheler via o homem como um ser tridimensional, com uma de suas partes
sendo a espiritual, o que lhe distingue dos demais animais. Uma das principais características
desse espírito é a de reconhecer valores, reconhecendo entre eles uma
hierarquia, ainda que seu sentimento o dirija para subversões entre elas.
Esta escala partiria do sensório e acabaria no religioso. Do
nível mais básico, temos aquilo que nos agrada e desagrada, causa prazer ou
dor, e que se guia muito fortemente pela utilidade. Subimos um degrau e temos
os valores vitais, aqueles que estão mais relacionados à organicidade e à sobrevida.
Mais um nível e chegamos a um patamar tríplice: os valores espirituais, que
transcendem do uso corporal e chegam aos meios intelectuais. Aqui, temos os
valores estéticos, como a beleza e a elegância; os valores éticos, como a bondade
e a justiça e os valores intelectuais, como o conhecimento e a precisão, nesta
ordem ascendente. Por fim, viriam os valores religiosos, ligados ao sagrado e
que escapariam ao próprio campo sensível.
É perfeitamente discutível tal hierarquia, podendo ser
ajustada de acordo com o parecer de quem a interpreta, mas parece ser
indubitável que certas coisas são, de fato, mais importantes do que as outras,
ainda que sejam igualadas pela característica de receber valor horizontalmente,
e isso é o valor (ora vejam) da tese de Scheler.
Enfim. As teorias de valor foram uma inovação importante
para que outros ramos filosóficos pudessem olhar o produto final de suas
apreciações com um pouco mais de fundamentação, diante da premissa de que tudo
é objeto de especulação para a Filosofia. Bons ventos a todos!
Recomendação de leitura:
Scheler é um escritor profícuo, que falou sobre o tema
tratado neste texto em mais de uma obra. Recomendo esta aqui, que é mais
sintética:
SCHELER, Max. Da
Reviravolta dos Valores. São Paulo: Vozes, 2012.
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