A chapa anda quente do lado de baixo do Equador, de modo
especial em Terra Brasilis. Ao contrário do que diz a canção de Buarque e
Guerra, existe pecado e são muitos, apesar do contragosto de quem achava que
certas figuras trariam a vingança ao povo sofrido. É que não me parece muito
coerente que um determinado modelo de política seja renovado justamente por
alguém que nasceu e cresceu cevado por este mesmo modelo. E, com isso, vamos
percebendo aos poucos o tipo de encrenca em que nos metemos – mais barulhenta,
é verdade, mas com os métodos de sempre.
O ainda novo governo já se especializou na bazófia e na bravata
para lançar muita fumaça nos laranjais de propriedade do presidente e filhos, mas
as últimas notícias têm reportado que o grande lastro moral da equipe, o ministro
Sérgio Moro, nem sempre agiu com a lisura que deveria se esperar de um
magistrado. Não se trata de corrupção, como adorariam opositores depostos, mas
de uma conduta que vai muito mais na raiz do exercício da magistratura. Ele, em
suma, fazia “tabelinhas” com o Ministério Público para melhor orientar os
caminhos que as investigações da operação Lava Jato deveriam seguir. Todos nós
sabemos o quanto seus resultados influenciaram na eleição que trouxe os atuais
ocupantes aos seus respectivos cargos.
A pergunta que povoa as discussões é se os fins justificam
os meios, em um remoçamento das tradicionais teses
maquiavélicas. Vou colocar meu ponto de vista pela melhor alegoria que houve
até agora. Imagine que, na véspera da final do campeonato, o árbitro escolhido
visite o clube adversário do seu. Ele não falará sobre propinas, arranjo de
resultados ou apostas milionárias, mas sobre a imprudência do lateral-direito
do seu time, que pode tomar muitos cartões, ou sobre a mania de resmungar do centroavante,
que é bom alvo de catimba. Imagine ainda que, após a vitória da agremiação tão
solícita, o mesmo árbitro receba (e aceite) um convite para integrar a
diretoria do ora campeão. Isso está tudo bem para você? É correto o
procedimento? A vitória do time rival é legítima?
Por mais que se diga que a comparação não caiba, é
impossível negar que certos vazamentos em momentos-chave e algumas celeridades
inconsuetas nos trâmites processuais não denunciam ao menos suspeição sobre a necessária
isenção do então juiz Moro. Eu lamento muito e, se não morro de amores por Lula
e seus asseclas, que se lambuzaram de m... ao operar o velho toma-lá-dá-cá com
gente que vive deste produto desde as caravelas, o fato é que as conversas
obtidas, se corroboradas, comprovam a imoralidade dos meios, mesmo que fossem
utilizados contra o próprio Satanás. Toda boa conduta e firmeza na busca das
punições, que parecia uma novidade atípica, que dava uma aura de bastião dos
bons costumes, que propiciava a sensação de existir uma honestidade real,
carregava consigo mesma uma espécie de ressabiamento: há quanto tempo não
víamos tal pureza? Lá no meu íntimo eu já pensava que as coisas iam muito além
da aparência, uma mistura do surpreendente com o óbvio, e hoje eu posso ver que
este último venceu de novo, e, bem antes do que poderia supor, soltar meu
grito:
Dei essa volta toda não para comprovar meus vaticínios, mas
para introduzir o tema do presente texto. De fato, eu muito mais erro do que
acerto nos meus prognósticos, de modo a comprovar minha mediocridade na análise
política. Antes da eleição, por exemplo, eu preconizava que o PSDB nadaria de
braçada, que Alckmin já poderia andar com a faixa verde-amarela para cima e
para baixo, que a curva de crescimento do atual presidente chegaria no máximo a
20% do eleitorado e que qualquer candidato que o enfrentasse no 2º turno
levaria o troféu sem fazer força. Mas estou admitindo isso tudo em um rasgo de
franqueza, e não como uma atitude habitual. Não é fácil admitir um pé tão torto.
Nós temos uma tendência muito forte a lembrar bem de acertos
em previsões, e deixar os muitos erros para lá. Podem notar como que as
tentativas de adivinhar o futuro vem acompanhadas de palavras que assegurem o
prospecto, como “provavelmente” ou “é possível”. Se o presságio se cumpre,
basta sacar o termo maroto e eu poso de requintado analista; se não, basta
acenar com a palavrinha mágica: era uma hipótese, e não uma assertiva.
Mas a coisa passa para muito além da malícia consciente. O
tempo é uma ferramenta indispensável ao enviesamento, que age tanto no esquecimento
quanto na produção de memórias irregulares, que acabam se concatenando da
maneira que dá, até se tornarem distintas
da verdade. E esse é o gabarito onde se molda a previsão de fatos já
ocorridos. São inúmeras as vezes em que dizemos “sabia que isso iria acontecer”.
Não sabia, não. Isso é o que se chama, em Psicologia Cognitiva, de viés de
juízo retrospectivo, ou, mais simplesmente, viés retrospectivo.
Como qualquer outro viés cognitivo, o viés retrospectivo é um
desvio inconsciente da lógica canônica de um raciocínio. Ele não ocorre somente
como uma seleção de erros ou acertos, mas como a assunção de um fato diferente
do que ocorreu na realidade. Neste sentido, é primo-irmão da dissonância
cognitiva, porque também resulta de um confronto entre crença e verdade,
com a diferença de que o amoldamento resultante não se dá no nível da
correlação esperado/obtido, mas na capacidade de antecipação dos fenômenos. É
uma maneira de distorcer a compreensão que temos do passado. Como eu já disse, isso
acontece quando substituímos uma hipótese que fizemos em tempo pretérito por
uma certeza de seu acontecimento, justamente após o fato ocorrer. Isso acontece
sem querer, muito em razão do fato de que nossa consciência tende a uma espécie
de acomodação. Quando nos colocamos diante de uma mesa de palpites para um
campeonato de futebol, por exemplo, trabalhamos com uma série de ferramentas
mentais para cravar favoritos, além da reunião de conhecimentos, como elencos,
momentos, tradição, condições de estádios e etc. Há um grande esforço para
investigar racionalmente todos estes fatores, além, é evidente, de uma espécie
de viés do torcedor e de predisposições
heurísticas: o quanto a imprensa tem falado de determinado time, quanto seus
jogadores tem tido destaque em redes sociais e outras coisas que não guardem
relação direta com o desempenho da equipe, mas que fazem parte do arcabouço de
informações disponíveis para conjectura. Quando já conhecemos o campeão, todo
este esforço é desnecessário; já não há hipóteses, mas certezas. Não é preciso
nenhuma espécie de elucubração, o conhecimento do campeão já nos é disponível,
e a hipótese some. Sabíamos desde o início que tal agremiação coligiria mais um
troféu para sua galeria. Em 2017, com o Corinthians como campeão brasileiro improvável,
eu mesmo cantei minhas glórias preditivas aos quatro ventos: eu sabia que os principais
candidatos se ocupariam de outras aventuras mais importantes, e o Timão se
concentraria unicamente no torneio de pontos corridos. Acertei? Acertei,
esquecendo-me de que eu ACHAVA que isso era possível, não que era uma certeza
inexpugnável. A memória, apesar de ter uma capacidade admirável, possui limites,
e joga muita coisa fora. Ela opera com simplificações, que corta tudo aquilo
que é penduricalho para que um determinado caso faça sentido completo.
Portanto, se algo tem começo, meio e fim, é o suficiente para que um registro se mantenha absorvido. Tudo o que é circunstância e contingência, incluindo-se aí as
hipóteses e alternativas, ganha a chance de ser esquecido.
Dito dessa forma, parece que o viés retrospectivo é muito
óbvio, e que é perfeitamente possível distinguir quando ele está ocorrendo. Só
que não. Por muitas vezes ele ocorre de maneira mais sutil. Talvez a melhor
maneira que eu tenha de exemplificar o viés retrospectivo é através da profecia
autorrealizável, um termo criado pelo sociólogo Robert Merton para designar
a alteração de um comportamento baseado na expressão de uma qualidade que
originalmente não existe. Confuso? Vamos para o exemplo mais clássico de todos:
o convertido.
Quantas vezes você já ouviu a cantilena de alguém que era um
bêbado, pobre, fodido, rasgado, e depois de aceitar a palavra de Deus sua vida
se tornou próspera? Claro. Quando um pastor diz ao réprobo que agora ele é um
ungido e que as portas da bem-aventurança lhe estão abertas, o que faz o
contribuinte? Para de beber, de fumar, de se drogar, de ir a pardieiros e
lupanares, de emprestar dinheiro que nunca mais verá, de gastar com jogo, de se
endividar, com rodadas aos companheiros de farra e tantas coisas mais. Tudo fica
sob a espada damoclítica do pecado, e o castigo está em cada uma das antigas
esquinas. Sua vida se torna regrada, dedicada a um trabalho que não se perde
mais, e que, ao lado da frequência ao culto, vira sua grande diversão. Torna-se
caseiro e dedicado à família. É ÓBVIO que a situação financeira do camarada
melhorará. O dízimo obrigatório torna-se em conta com relação à sua vida
pregressa, sendo firme a âncora que lhe impede de cometer novas estripulias: o
medo do inferno. Ele se tornou aquilo que o pastor preconizou, e a profecia se
cumpre. Não por um passe de mágica ou raio divino, mas por uma mudança de
atitude. Neste sentido, qualquer religião (ou mesmo nenhuma) faria o mesmo
efeito. Não é a benção, mas a nova regra de vida que realizou o “milagre”. Mas
ele só aconteceu porque alguém disse que o cidadão já era o que ele não é, e
acabou se tornando exatamente isso.
E como podemos alimentar o Pequeno
Guia da Grandes Falácias com essa conversa toda? É simples. No caso em
questão, quando há uma contestação em cima dos fatos, ao se afirmar que os
mesmos foram obtidos de maneira ilícita, temos aquilo que conhecemos por red
herring. Este curioso nome significa “arenque vermelho” em inglês, e seu
uso tem base no seguinte: o arenque é uma espécie de sardinha grande, muito comum
no hemisfério norte, cuja característica é um odor muito forte. Um recurso
muito comum para enganar cães de caça era espalhar pedaços do peixe já
deteriorado pelo trajeto, já que o mesmo encobria qualquer outro cheiro que
emanasse pelas imediações, como, por exemplo, de um fugitivo. Dessa forma,
enquanto os cães se ocupavam da nauseabunda fedentina, o escapadiço tratava de
pôr o pé na estrada, protegido pela falsa pista. Mesmíssima coisa se dá nas
argumentações. A introdução de elementos irrelevantes tem exatamente a função
de produzir desvios de foco daquilo que está em debate. Por isso mesmo, esta
falácia recebe outros nomes, como cortina de fumaça ou “olha o avião”. Vejam:
enquanto estamos discutindo por quais caminhos foram obtidas as informações que
enquadram Moro, se é legítimo ou não seu uso, se foi cometido crime e outras
minudências, deixamos de lado o que está descrito nas conversas – a prática de
atos que impedem a imparcialidade nos processos da Lava-jato.
O red herring é a mais clássica de todas as falácias de desvio.
Costuma funcionar muito bem, porque não se trata apenas de “mudar de assunto”,
mas de trazer à baila temas que sejam correlatos ao que se discute, sem, porém,
manter a linha argumentativa original. Ela dispersa bem principalmente quando
são introduzidos assuntos que são irrelevantes para a discussão em si, mas que
não podem receber este nome quando temos uma visão mais geral. Por exemplo, o
tema corrupção não pode ser chamado de irrelevante, já que afeta a vida de todo
um povo, mas ele não pode ser utilizado em toda e qualquer circunstância. Ele é
uma espécie de guarda-chuva, que se encaixa facilmente em qualquer argumento. Como
é o caso de quem alega que as denúncias contra Moro partem de quem se locupleta
com a corrupção. Isso não conserta a parcialidade do juiz, mas puxa a conversa
para os motivos que levaram o mesmo senhor a ganhar tanto prestígio: o combate
à corrupção nos meios públicos.
E que não se diga que as cortinas de fumaça são de direito
autoral de quem ora chega, apesar de serem usadas à exaustão. O mote “Lula
livre” obscurece, através de um suposto golpe, tudo o que a Lava Jato descobriu
de podre neste mundo da nossa política, e isto foi muito bom. Desde o mensalão,
demonstra-se como o PT e aliados usaram de meios ilícitos em negociações com
parlamentares, como empresas privadas compravam conveniências, escavando-se
mais e mais lama dos meandros da atividade política. Desta forma, colocar Lula
como um preso político e retirar o que a Lava-jato tem de bom é, sim, uma maneira
de lançar red herrings. Pode ser verdade que uma engrenagem se moveu para
impedir sua chegada à presidência, mas isso não pode esconder tudo o que se fez
de errado para propiciar sua manutenção no poder. Bolsonaro só existe por causa
do PT, lembrem-se disso.
Não tem virgem neste puteiro.
Recomendação de leitura:
O tema é todo psicológico, mas quem disse que Psicologia e
Sociologia não vivem se imbricando? Neste sentido, Robert Merton fez
importantes observações de como as disposições mentais influenciam as
sociedades. Bons ventos a todos.
MERTON, Robert. Teoria e Struttura Sociale. Bolonha:
Il Mulino, 1972.
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